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Apreciação Pessoal Da Obra “O Pecado: do descrédito ao aprofundamento”, de

Antônio Moser.

A problemática do pecado sempre foi uma questão que trouxe em seu bojo uma
série de dificuldades, por conseguinte, uma diversidade de opiniões que tanto se
divergem quanto se congruem. Todavia, embora para muitos ele ainda seja válido (fiéis
tradicionais em sua maioria), sob as mesmas matrizes de representações a partir dos
quais foram concebidos e interpretados outrora, de maneira geral, sobretudo nos tempos
de agora, o pecado parece ter enfraquecido, perdido audiência, tornado-se assunto
irrelevante, de modo tal a não mais ocupar lugar de destaque nos espaços públicos de
debate (com exceção da Igreja, obviamente; na qual a temática pode ser abordada de
forma radical ou mais atenuada, à depender do lugar religioso do discurso).
Em seu livro: Pecado: do descrédito ao aprofundamento, Frei Antônio Moser
escreve com distinta propriedade sobre o tema. Seu intuito não é o de empreender um
longo itinerário histórico afim de perfazer toda a trajetória humano-religiosa frente ao
mesmo, mas elucidar alguns pontos mais significativos no que se refere ao pecado em
suas múltiplas facetas e compreensões.
Moser desenvolve sua argumentação a partir de três eixos fundamentais, ou
melhor, trata o pecado como mistério sob três aspectos: mistério do mal, mistério do
pecado original e mistério do pecado atual. Desde essa tríade, desenvolvem-se
discussões que perpassam as intuições de pensadores tais como Freud e Marx, bem
como o relato das origens em busca do pecado original, como também os Profetas e o
Novo Testamento, além dos Padres da Igreja e o parecer do Magistério acerca do
pecado.
Se houve um tempo em que o pecado era considerado como que uma mancha
que impregnava a pessoa que, porventura, tivesse cometido com firme decisão e plena
liberdade algum litígio contra Deus, com o advento da modernidade, tal compreensão
perdeu força, ao mesmo tempo em que a consciência de culpa se enfraqueceu e o
pecado caiu em descrédito. Isso se deu na medida em que fatores externos, tais como a
possibilidade de elaboração de uma moral não diretamente ligada a noção de pecado, e
internos, sua dinamicidade e compreensão, como por exemplo, a ideia de pecado
associada tão somente ao não cumprimento de normas eclesiais foram se processando
na sociedade (Aqui, a lógica da lei parece ter tomado o lugar da lógica dos valores
morais, cuja ação tem um fim em si mesma, não no cumprimento de uma obrigação
legal).
Como consequência dessa perda de consciência de culpa, verificou-se uma
evasão no que se refere ao sacramento da penitência que, de então para cá, passou a ser
banalizado; o que não poderia ser diferente, uma vez que na Idade Moderna operou-se
aquilo que Weber denominou dessacralização do mundo, que tinha por equivalente a
ideia de um pensamento que se tornara adulto, em detrimento da ideia de pecado que,
segundo os ditames modernos, fazia evidenciar um estado de imaturidade da mente,
uma condição de infantilidade (em muitos casos, de fato o era, e a Igreja ajudou a
fomentar isso).
Nesse sentido, ao sugerir que o homem deve fazer uso de sua razão, Kant faz
enunciar que os princípios morais que regem o comportamento humano devem ter como
base a racionalidade mesma do homem. A isso, acrescentasse a crítica de Nietzsche, que
ao declarar a morte de Deus, afirma que toda moral é imanente, e não heteronômica
(vinda de fora, dada por Deus). Portanto, dentro dessa ótica, a moral Cristã que sempre
teve como base os dados da revelação é desconsiderada como norma suprema.
Outros dois mestres da suspeita, Marx e Freud, também deram o seu contributo
para o descrédito da compreensão de pecado. O primeiro entende que o homem é
determinado por um conjunto de fatores e relações econômicas que estão além dele, o
que significa dizer que o homem não escolhe assim tão livremente, logo, não pode ser
culpabilizado por suas ações. Depois, Freud descobre que a consciência vive
encurralada por outros dois fatores que a determinam, o id e o superego, e com isso, o
pecado entendido como ato cometido com consciência e liberdade perde sofre um duro
golpe.
Não obstante, de dentro das próprias ciências humanas surgiram contrapontos às
supracitadas teorias, como é o caso de Sartre que, em suas afirmações acerca da
liberdade, postula que todo homem é responsável por suas escolhas e ações, ainda que
sofrera condicionamentos. Nesta direção, embora Sartre não comungue de valores
religiosos, sua máxima de que, “não importa o que fizeram de nós, mas o que fazemos
com aquilo que fizeram de nós”, poderia nos auxiliar numa possível discussão acerca do
pecado, ao menos, no que tange à sua dimensão de ato consciente, livre e volitivo.
De qualquer modo, para melhor se compreender o pecado, bem como o seu
demérito nas sociedades hodiernas, ainda que de maneira breve, urge que se faça com
Moser a retomada histórica do termo (não necessariamente cronológica), afim de buscar
suas origens e assimilar como a ideia de pecaminosidade fora se desenvolvendo e
ganhando contornos no decorrer da história, bem como sendo interpretada pelo
Magistério da Igreja, à luz das reflexões da teologia moral e dos conceitos fundamentais
que são o objeto da fé. Nesse percurso, não me furtarei de fazer algumas considerações
pessoais mediante minhas percepções acerca do tema, aliás, o que é o propósito deste
trabalho.
Falar de pecado é falar do problema do mal, e este não constitui um tema
exclusivo da fé judaica ou cristã. Os Persas já falavam em dois princípios antagônicos
(o bem e o mal) que deram origem ao universo. Quanto aos gregos, a moîra era
predominante em seu pensamento, e consistia na crença de que o bem e o mal estão
dentro de um plano maior que determina a vida e o destino. Na tradição judaico-cristã,
por sua vez, os textos que mais expressam a noção do mal são os livros do Gênesis (o
relato mitológico da queda, que serviu de base para a doutrina do pecado original que
visitaremos adiante) e de Jó (a quem Deus, num trato um tanto quanto estranho com as
forças do mal, consente que o mal aflija – tal personagem se tornou um arquétipo da
fidelidade do crente ante a permissividade de Deus).
Numa compreensão mais recente, Teilhard de Chardin, contrapondo-se ao
evolucionismo Darwinista, propôs explicar o problema do mal como uma condição de
possibilidade para o aperfeiçoamento da criação. Dada a incapacidade do ser humano de
se apossar do todo (de tudo), cabe a ele fazer escolhas, que implicam renúncias. Deste
modo, o pecado reside em não escolher as opções que melhor nos plenificam, segundo a
vontade de Deus. Essa tese, embora simples, não deixa de ter o seu charme.
Outra noção de pecado que ganhou muita audiência (e ainda hoje é defendida
pela Igreja, embora valendo-se de uma hermenêutica mais apropriada, o que a meu ver,
não muda o fato de o termo se nos mostrar bastante inadequado) foi aquela denominada
pecado original. Cunhada por Santo Agostinho, este ideado de pecado é entendido como
uma fenda na natureza humana aberta pelo pecado do primeiro, que todo homem herda
ao nascer. Tal condição de decadência seria transmitida pelo que se denominou “pecado
da concupiscência”, a meu ver, concepção demasiado depreciativa da sexualidade. De
fato, é bastante curioso que, ainda hoje, existam tantos tabus e pudores em relação ao
sexo. Resquícios da velha moral? É possível.
Tal pecado, afirmou Trento, pode ser sanado com o Batismo em Cristo, isto é, a
fenda aberta pelo “primeiro Adão” seria fechada “pelo segundo”. Acredito que essa
concepção acerca do Batismo é bastante reducionista. Claro, deve-se reconhecer que,
desde o Vaticano II, a Igreja fez ampliar o seu horizonte de significado acerca do
referido Sacramento. Não obstante, há ainda quem repute sem mais que, o Batismo tem
aquele poder “mágico” de perdoar pecados, isto é, de apagar o predito pecado original.
Para Lutero, ao contrário da posição da Igreja católica, o pecado original diz
respeito a tendência para o mal que todos nós experimentamos, mesmo após o Batismo.
Pessoalmente, acho essa perspectiva bastante interessante, mas o termo “original”
permanece problemático.
Os teólogos mais recentes, todavia, reputam que esse pecado seja o pecado do
mundo, com o qual, todos nos solidarizamos, uma vez que somos seres de relação. Estas
relações de pecado iriam se infiltrando nas estruturas e instituições, de maneira tal que,
ao nascer, o indivíduo já estaria inserido dentro de um contexto marcado pelo pecado.
Embora esta seja uma perspectiva bastante esclarecida,
Dentro da perspectiva da aliança, os profetas trabalharam exaustivamente a
questão do pecado, o que se faz notar em suas severas denúncias quanto à infidelidade
do povo para com o projeto de Deus. Aqui, as palavras usadas para designar o pecado
são: hata (erro, sentido mais externo), awôn (referente a um estado da alma), ráshá e
Peshá (traduzidas por ímpio, mal). Este entendimento sobre o pecado é bastante
legalista, o que se justifica pelo fato de que, para o povo de Israel, Deus se confunde
com a Lei (Ser fiel a Deus é seguir a Torá).
No novo testamento, Jesus não condena o pecador, mas quer que ele tenha vida e
se estabeleça em sua relação com Deus. Para Jesus, o pecado é a recusa do Reino de
Deus que ele veio anunciar (aqui, encontra-se a chave hermenêutica necessária para
compreendermos a moral cristã, bem como a ideia de pecado sob outro prisma, mas,
lamentavelmente, a ética do Reino contida nos Evangelhos foi, sobremaneira,
negligenciada pela Igreja até o Concílio Vaticano II). Paulo, por sua vez, diz-nos que a
origem do pecado está na ganância, mas reitera que existe uma força misteriosa que atua
em nós, levando-nos a praticar o mal que não queremos. Por fim, João considera que o
pecado seja o poder das trevas, poder este que atinge o seu ápice na crucifixão e morte
do filho de Deus (na morte de um inocente – quantos inocentes morrem ainda hoje? ...).
Na teologia Patrística, o pecado será desenvolvido a partir da tríade criação-
pecado-redenção, sendo a graça mais abundante e evidente que o pecado (a graça
sempre foi mais abundante que o pecado, e o Novo Testamento atesta isso em cada uma
de suas páginas). Aqui, mais que questionar o mal como origem do pecado, busca-se
uma forma de combate-lo, na superação da pobreza e no estabelecimento de uma vida
digna para todas as pessoas (não é sem razão que os Santos Padres ainda tem muito a
nos ensinar, se devidamente interpretados e atualizados nos tempos de agora,
obviamente).
Na Idade Média, evidencia-se duas correntes de pensamento que tratam da
temática do pecado: a dominicana com Santo Tomás de Aquino, e a franciscana com
São Boaventura. Para Tomás, o pecado é uma violação da razão humana e da lei eterna,
e como tal, pressupõe matéria, conhecimento e consentimento mediante o ato pelo qual
o ser humano se priva de um bem (esquema vigente até hoje). Contudo, o que
prevaleceu nas teses tomistas foi a moral casuística, juridicista, que acentua mais a
violação da lei, considerando os atos desvinculados da pessoa (isso causou um grande
prejuízo no que se refere à percepção do pecado). Em Boaventura, o pecado consiste em
não se deixar moldar por Deus a partir do modelo ideal que é o Cristo. Assim, todos
pecados teriam um único princípio, o orgulho. Esses pecados possuem sete
manifestações capitais: Orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza gula e luxúria. A Igreja,
diga-se de passagem, ao longo da história, cometeu boa parte desses pecados, senão,
todos eles (santa e pecadora, afinal...).
Finalmente, na contemporaneidade, a maior virada na compreensão do pecado
diz respeito à passagem do enfoque no objeto para o sujeito. Aqui a pessoa é vista
mediante sua opção fundamental, não apenas os atos em si descontextualizados. Com
isso, buscou-se superar aquela mentalidade legalista/conformista e se intentou
estabelecer uma distinção entre pecado e sentimento de culpa (que certamente não são a
mesma coisa).
Não obstante, uma vez que esse caráter personalista não se revelou suficiente
para se compreender o ser humano em sua totalidade, com o auxílio das ciências sociais,
procurou-se cunhar outra categoria de pecado denominada “pecado sócio-estrutural”.
Esse pecado, ao contrário do original, não seria essencial e metafísico, mas sim
histórico. Depois, o mesmo se distingue do pecado coletivo, pois não acentua a ação das
pessoas, mas os mecanismos sociais atuantes na sociedade que provocam as
desigualdades, as injustiças, a miséria, a fome, a exploração do homem e a degradação
do meio ambiente (tema central da Laudato Si), a violência, enfim, o mal em todas as
suas dimensões possíveis. Daí, segundo Moser, a urgência em se repensar o mistério da
iniquidade como algo que se aninha nas profundidades dos corações, mas também
encontra-se arraigado nas micro e macro estruturas do tecido social; ora pois, o que está
em jogo são os destinos das pessoas, da humanidade como um todo, e de toda uma obra
criadora.
O pecado continua sendo uma categoria importante para se estabelecer juízos de
valor acerca do agir humano, sobretudo em tempos de niilismo ético, fundamentalismos
religiosos de todos os tipos e de uma banalidade do mal sem precedentes. Contudo, este
precisa ser constantemente iluminado pela lógica do Reino que, a saber, consiste no
perdão, na liberdade e na promoção da vida, não na condenação, na culpa e na morte.

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