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O SHOW DE TRUMAN

Marta Chagas

Assisti esse filme há algum tempo e desde então tive vontade de escrever algo sobre ele.

Para mim, trata-se de um filme altamente poético, fantasiosamente improvável e realisticamente


palpável. Ele dá margem à inúmeras abordagens, suscita muitas perguntas, enfim, nos faz pensar.

Mas, o que mais me chama atenção é que ele não se situa em um campo específico: ele trabalha
nas margens, ele se des-dobra em vários aspectos.

Poderíamos começar abordá-lo do ponto de vista da estética cinematográfica.

Seria ele uma comédia, uma vez que o ator principal, Jim Carrey, é considerado o sucessor do
grande cômico americano, Jerry Lewis? Seria um drama, uma vez que o personagem principal
sofre e se posiciona frente à sua vida? Quem sabe, estivesse mais perto da tragédia-drama-
comédia, assim como a vida de todos nós...

Segundo a classificação de um site sobre filmes, a IMDB, pertecenceria aos seguintes gêneros:
drama, comédia, romance, ficção científica.

Passemos à história narrada. O filme fala de uma vida. Apenas isso. Aqui, já começam a surgir
questões como: o que é apenas uma vida? Quem a viveu?

No começo do filme, entram alguns créditos, aparecendo os nomes: Truman, como Truman;
Christof, como diretor. Como podemos entender isso? O nome próprio como personagem? Ou
personagem como nome próprio? Já aparece aí uma colocação em abismo, mise-en-abîme, "um
filme dentro de outro filme", onde ele afirma sua categoria de filme, através da utilização de
procedimentos esperados pelos espectadores, como a apresentação de personagens e diretor. É o
30º ano ininterrupto de transmissão do "show" da vida de Truman. Trata-se da estória sobre a
história de um homem chamado Truman Burbank. Sua vida foi filmada continuamente, desde que
nasceu, sendo transmitida para o mundo, sem interrupções, como a primeira experiência de um
"show real", pois Truman desconhece ser um personagem. Truman é casado, trabalha com
seguros, possui um amigo de infância, que sempre chega em sua casa com cervejas. Todos os
dias cumprimenta seus vizinhos, da mesma forma; vai ao jornaleiro comprar revistas para sua
mulher, encontra dois senhores que sempre prometem procurá-lo na seguradora.

Tudo acontece num grande estúdio/cenário: as ruas, as casas, os automóveis, o mar, o céu, a lua,
o anoitecer, a chuva... Tudo se passa dentro de uma enorme cúpula, de uma redoma, mas Truman
não conhece esses limites: ele nunca viajou, nunca saiu de sua cidade, nunca ultrapassou suas
margens.

E isso também foi planejado pelo diretor de sua vida/show: Truman sofreu um trauma na infância,
ao perder seu pai, em acidente no mar. Esse trauma o impediu de querer ter um barco para
navegar, onde se encontrava uma das saídas do estúdio, não controlada pelo elemento humano.
Ali, o mar fazia fronteira com o abismo, como nas fantasias dos antigos navegantes. Mas, Truman
nem imaginava isso!
A vida de Truman é pacata, satisfatória, tranqüila e, principalmente, rotineira - com rotina e com
roteiro desconhecido, traçado pelo Deus/diretor, ele vive sua vida real, sem saber do voyerismo
dos telespectadores, que acompanham cada respiração sua.

Assim se passam quase 30 anos...

Mas, como na vida real, e ainda mais por ser a história de uma vida real, eventos acontecem,
arrastando o roteiro/destino do personagem/pessoa para lados imprevisíveis, sem que autoridade e
vontade do diretor/Deus possa intervir eficientemente: em um dia bastante comum, Truman
encontra seu pai! A partir de então, nada mais permanece estável.

O ator/personagem-pai-de-Truman resolve, para aparecer em um show de grande audiência, voltar


à cidade. Com essa quebra de roteiro, os contra-regras, sob as ordens do diretor, cercam esse
ator, para tirá-lo de cena. MasTruman que busca por seu pai, morto há tantos anos, corre por todos
os lados e acaba por entrar em um prédio em que nunca havia entrado antes, naquele horário,
flagrando o estúdio: por trás do cenário de elevadores, havia um pessoal almoçando.

Daí o filme começa a mostrar o despertar de Truman para a realidade! Mas a saída de seu estado
de sonolência acontece um tanto lentamente. Truman começa a se dar conta de que seu "paraíso"
tem aspecto de cenário: ele comeu, sem querer, do fruto da árvore do Bem e do Mal - ele se
tornou, inexoravelmente, consciente.

A partir de então, o Deus/diretor não consegue mais manobrar seu destino, sua vida. Segundo
Sartre, em sua peça As Moscas, os homens livres e os deuses são universos diferentes, que às
vezes se tocam, mas que não se subordinam uns aos outros. Em um momento dramático, o diretor
no papel de Deus (ou será o contrário?), fala do alto, sobre as águas (que Truman acredita se
tratar de um mar real), que não deixará Truman partir, nem que para isso ele tenha que tomar
medidas drásticas. E Truman, como Jó, diz que ele terá que matá-lo, pois sua não voltaria atrás em
sua decisão de sair desse grande espetáculo. E o diretor, assumindo o papel do Pai, chega a
cogitar sobre essa hipótese, mas a divindade existente acima do Deus, a grande, poderosa e
irrepresentável Môira, a Mídia, não deixa que isso aconteça, não por concordar com a humanidade
defendida por Truman, nem pelos conceitos americanos de liberdade, mas por uma questão de
possível queda de audiência e da não aceitação popularesca.

E, assim, o show deve parar!... Com a saída de Truman do grande cenário, cúpula, redoma,
paraíso, acaba o grande show de sua vida pública: Truman, ao contrário de Getúlio Vargas, deixou
a história para entrar em sua vida, se tornando um homem invisível ao grande controle das
câmeras de televisão.

Finalmente, como acontece tragicamente na vida do homem, assim como demonstrado no final de
Metamorfose de Kafka, as pessoas, os telespectadores que, após 30 anos acompanhando esse
show, lamentam um pouco e... mudam de canal.

O filme acaba, então, agora, aparecendo créditos trazendo Jim Carrey como Truman, Ed Harris
como Christof, etc. - Seria esse um ritual de saída para a realidade? Quais questões podemos
levantar com esse procedimento?

Uma vez que Truman aceita o desafio de sua consciência, ele passa a não ser mais dirigido por
Christof; no entanto, Jim Carrey continua a ser dirigido por Peter Weir... Essa duplicidade de
liberdade e confinamento do destino não seria uma boa expressão do assim chamado Livre
Arbítrio?
Será que toda nossa vida faz parte de um grande roteiro, como o que carrega o personagem
Destino, um dos Perpétuos, da obra de Neil Gaiman - Sandman? Somos um sonho de alguém?
Somos livres?

A dádiva de Prometeu, o fogo, a consciência, nos arranca da ingenuidade de sermos vítimas de


nossa história, para colocar-nos não no controle dela, mas a seu lado, ora por dentro, ora mais
superficialmente, ora nos afogando, ora navegando em águas mais tranqüilas, ora em terra firme,
ora apenas com cabelos ao vento...

Para Truman sair da prisão, ele teve que enfrentar seu pior trauma: o mar.

Psicologicamente, ao aventurarmo-nos através de nossas mais terríveis feridas, enchemo-nos de


esperança de encontrar a saída de nosso inferno, da eterna repetição de nossa dor. Às vezes não
a achamos e nos afogamos em nosso medo; mas, às vezes encontramos uma saída, que não tem
garantia de ser boa, nem ruim, mas, que abre para um outro lugar, que até pode ser um outro
cenário, mas, que nos dá a chance de vivermos um outro papel.

Cabe também a pergunta: por que esse filme não ficou entre os cinco candidatos a receber o
Oscar de melhor filme? Ele não é suficientemente americano? Ele não tem a linguagem
hollywoodiana? A mídia não gosta de ataques à mídia? Continuamos sob o controle dela?
Posso dizer que trata-se de um filme realmente fantástico!...

Para conhecer mais sobre o filme:


www.thetrumanshow.com

martachagas@rubedo.psc.br

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