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O nada na acepção

brasileira do termo
Roberto Schwarz e
o chão social do niilismo

FELIPE CATALANI
O que me angustia não é o ser ou o nada, nem Deus ou a ausência de Deus,
mas a sociedade. Pois ela, somente ela, foi a causa do meu desequilíbrio existencial,
em consequência do qual luto para me manter equilibrado ao caminhar.
Jean Améry

É pouco provável que encontremos um livro – sobre Sartre, digamos


– com o título “O nada na acepção francesa do termo”. A princípio, con-
ceitos filosóficos, universais por excelência, dificilmente são delimitados
de acordo com fronteiras nacionais. Mais inesperado ainda seria predicar
um conceito como o “nada”, tão genérico quanto o próprio “ser”. Ora,
o célebre estudo de Roberto Schwarz sobre Memórias póstumas de Brás
Cubas, intitulado Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de
Assis, tinha inicialmente o título “O nada na acepção brasileira do termo”.
Segundo o autor, o título inicial era melhor do ponto de vista literário,
i
n

mas o definitivo explicitava melhor o que ele, na época, buscava enfa-


a

tizar1: a “maestria” literária na periferia do capitalismo, que colocava a


l

prosa de romance em outro patamar, justamente ali onde faltavam os


a

pressupostos sociais e históricos do romance realista moderno. Mas o


t

que significava aquele primeiro título? Em que medida ele nos ajuda a
a

compreender certos aspectos da obra schwarziana?


C

O nada na acepção brasileira do termo: a expressão é metafísica


e

e irônica ao mesmo tempo. Poderíamos formular nossa (breve) in-


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vestigação de forma grandiloquente: “O sentido do nada segundo


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e

1
Dito por Roberto Schwarz em conversa.
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Roberto Schwarz”. Mas seria um equívoco sem tamanho transformar
nosso autor em filósofo existencialista. Se lermos sua obra com aten-
ção, contudo, reconheceremos a recorrência de certa temática que
chamamos aqui vulgarmente de “existencialista”, ou de “metafísica”,
mesmo que no constante embate contra tal tipo de leitura. Aliás,
esses adjetivos aparecem em Schwarz quase sempre como sinônimos
e de forma pejorativa, isto é, como mistificação da realidade. Mas é
inegável uma sensibilidade para a questão e um interesse pelo pro-
blema: muito se diz de Schwarz leitor de Lukács e Adorno, mas seus
textos, sobretudo de juventude, denotam grande familiaridade com
o vocabulário sartreano (não podemos menosprezar aqui também o
papel da amizade de Bento Prado Jr.). Ao mesmo tempo, é possível
entrever uma oposição entre “rigor crítico” (o pathos uspiano da rua
Maria Antônia) e a literatice existencial que caracterizava a boemia
paulistana que também frequentava a Biblioteca Municipal:
Na biblioteca os alunos da faculdade se encontravam com o pessoal da
intelectualidade boêmia, que não cursava a universidade e era bastante
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diferente. Era uma turma que lia muito existencialismo em espanhol,


enquanto o pessoal da faculdade lia em francês e se achava mais sério.
Havia aí uma espécie de competição. A turma que não fazia faculdade
bebia firme, e a turma da faculdade bebia menos.2
s

Sem pretensões de fazer justiça à história da filosofia, vamos chamar


o b e R t o

de “metafísicos” ou “existencialistas”, de modo bastante genérico, os


assuntos abordados por certa prosa filosófica e certa literatura no fim
do século XIX e primeira metade do século XX, tais como a ausência
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de sentido, a angústia, o desespero, o tédio, o nada, a morte. Algo


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que aparece também na melhor literatura de vanguarda, como em


Kafka e Beckett.
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Todos esses temas interessavam o jovem Roberto Schwarz, que


ao mesmo tempo era socialista e queria fazer crítica materialista. Seu
primeiro livro de ensaios, A sereia e o desconfiado (estamos nos re-
ferindo a textos escritos pelo autor quando ele tinha pouco mais de
vinte anos), está encharcado disso tudo: foram escritos antes do golpe
militar, entre 1959 e 1964. Se ali certos impasses históricos cristalizados
:a
o s s i ê

2
Roberto Schwarz, Seja como for: entrevistas, retratos e documentos (São Paulo, Duas Cidades/
Editora 34, 2019), p. 274. Dessa turma que lia e bebia bastante, com a qual convivia Roberto
Schwarz e o pessoal da Maria Antônia, Manoel Carlos foi dos poucos que ficaram conhecidos,
após sua meteórica carreira na televisão como roteirista.
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na literatura europeia eram lidos como “angústia burguesa” – por sua
vez atacada com golpes duros e decididos pelo porrete lukacsiano –,
seria injusto atribuir a mão pesada a mera ortodoxia. Pois com isso
perdemos de vista a conjuntura da época e o sentido de viver aqueles
anos enquanto jovem que pensava e escrevia sobre literatura mundial
tendo ao mesmo tempo o termômetro nacional e o critério de atua-
lidade na ponta da caneta. Sobre aqueles anos, conta Schwarz que
naquele momento o Brasil entrou em movimento. A estrutura social in-
defensável parecia abalada, em vias de mudar diante de nossos olhos, as
pessoas tomando consciência, as conversas e questões se tornando mais
inteligentes, e todo o arsenal de lugares-comuns e banalidades sobre o
país se dissolvendo.3
Algo ali se distingue de toda a obra posterior de Schwarz, que atinge
a maturidade que conhecemos sobretudo a partir de sua leitura de
Machado de Assis. Naquele livro de juventude, tampouco a “matéria
brasileira” enquanto problema havia recebido seu devido tratamento,
apesar da presença de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. O que
estava latente ali era uma confiança no processo histórico – daí a
grafia de “História” com maiúscula, norma a partir da qual eram me-
didos os personagens desorientados rodando em falso pelo mundo. A
condição humana, de Malraux, que tem a Revolução Chinesa como
tema, realiza, segundo Schwarz, uma “descrição de experiências de
impotência humana”, no entanto com a tendência de se tornar “mera
exemplificação metafísica”4.
Uma constante da crítica schwarziana é acusar toda desistoriciza-
ção da desgraça humana (topos clássico de todo embate de Lukács
e dos frankfurtianos contra o existencialismo). Nesse caso, persona-
gens em vertigem diante do “nada” e da “finitude” ganham contornos
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n

ideológicos à medida que se debatem com falsos limites (atribuídos


a

ao “homem em geral”) e se tornam incapazes para a ação efetiva. O


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protagonista de Malraux consegue se tornar, então, no máximo um


a

assassino: “Tchen descobre a vertigem fundamental [...] está angustiado


t
a

[...] descobre que não é um militante político, mas um desesperado


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metafísico, um sacerdote sacrificial”5.


e
p

3
Roberto Schwarz, Seja como for, cit., p. 288.
i

4
Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado: ensaios críticos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
l

1981), p. 101.
e

5
Ibidem, p. 103.
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Como a realidade social brasileira se apresentava “em vias de mudar
diante dos olhos” do crítico, toda “desorientação” aparecia como mera
patologia de classe: “a ruína da razão não é a verdade da condição
humana, mas apenas daqueles que não dependem dela e que a temem
por amor de seus privilégios e preconceitos”6. Nada mais distante do
jovem Schwarz do que reconhecer que o movimento de rodar em
falso poderia indicar uma verdade da lógica histórica – algo que o
crítico, posteriormente, compreenderá de maneira bastante diversa,
sobretudo com base em uma interpretação própria do “sentido da
formação” e da lógica anômala do capital em sua periferia, que diz a
verdade sobre a norma do centro. Analisando a estrutura interna do
Brás Cubas de Machado, Schwarz afirma que “assim, a vida carece
de sentido porque no horizonte está o nada, ou também porque seu
horizonte é a organização social brasileira”7.
Vejamos que “o nada” ganha aqui outra dimensão, já não é per-
fumaria existencial – possui um chão social, sem deixar, no entanto,
de efetivamente desmanchar sentido, horizonte etc. Seria descabido
dizer que se trata de mera mudança de convicção, ou algo do tipo –
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também aqui a atualidade opera como critério da verdade literária.


Não é exagerado dizer que em 1964 o tempo histórico brasileiro foi
dividido em dois: é naquele momento que emerge o “novo tempo
s

brasileiro regido por essa lógica com a qual estamos nos defrontando
o b e R t o

agora, a do sinal fechado num presente inesgotável” – não por acaso,


“Roberto Schwarz, segundo ele mesmo conta, só atinou com a atuali-
dade desnorteante de Machado depois do golpe de 1964”8.
Mesmo Kafka ganha outro semblante depois da quebra: o autor
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“metafísico” torna-se crítico da alienação na leitura que Schwarz faz do


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conto “Tribulação de um pai de família” em 1966 9. Já no ensaio “Uma


barata é uma barata é uma barata” (provável piada com Um homem
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é um homem, de Brecht), de 1961, Schwarz aponta um “componente


irracionalista” na medida em que o romance “eterniza a desgraça que

6
Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado, cit., p. 79.
7
Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (São Paulo, Duas
Cidades/ Editora 34, 2000), p. 100.
a

8
Paulo Arantes, O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência (São
:o s s i ê

Paulo, Boitempo, 2014), p. 348.


9
Essa passagem é comentada por Paulo Arantes em Um departamento francês de ultramar:
estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (uma experiência dos anos 1960) (Rio de
Janeiro, Paz & Terra, 1994), p. 228.
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acusou”10. Ao lado de Rilke e Benn, o autor d’A metamorfose entra
na lista dos “fenomenólogos da danação humana”11. Essa “danação” é
justamente o caráter intransformável do mundo e dos homens: a me-
tamorfose ocorre como um processo irreversível, diante do qual toda
tentativa de ação é anódina: “o destino arrasta a personagem, cujos
atos pouco importam”12. Se a transformação em bicho não é novidade
na literatura, o peculiar em Kafka é que essa mutação não pode ser
desfeita: “O destino de Gregor selou-se pela transformação, não há
como desfazê-lo. [...] A nova aparência é uma barreira absoluta, contra
a qual atos são ineficazes”13. Nessa “metafísica de barata tonta”14, a ação
humana é rebaixada a reflexos pré-conscientes de animais enjaulados
que não “engendram História” e onde os homens são como “frangos
behavioristas num circuito de estímulo e resposta, inconstantes e
teimosos, míopes e excitáveis”15. Não passava pela cabeça do jovem
Schwarz enxergar um grau de realismo nos frangos behavioristas de
Kafka, uma vez que a norma era o combo História–Consciência–Ação.
Já o ensaio sobre Os demônios, de Dostoiévski, traz algo mais in-
teressante. O romancista “começa por um mundo já fraturado, cujo
colapso é seu tema. Constrói a trama com um olho na aniquilação”16.
É possível afirmar que ali nosso crítico está diante do nada na acep-
ção russa do termo – bastante próxima da brasileira, algo que será
insinuado pelo autor no ensaio “As ideias fora do lugar”. Antes de sua
leitura de Machado, Schwarz via em Dostoiévski que “o romance leva
ao absurdo todas as ideias humanitárias que apresenta, mostrando
que na prática resultam em seu contrário”17. Assim como no Brasil,
os ideais modernos não encontram na periférica Rússia sua base de
sustentação, resultando no “caráter autodestrutivo do liberalismo”18.
Configura-se uma situação na qual a crítica das ideias dá em niilismo
i

e um tipo de literatura frente à qual “ainda os maiores romances do


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10
Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado, cit., p. 55.
a

11
Ibidem, p. 72, grifo nosso.
t
a

12
Ibidem, p. 60, os grifos são do original.
C

13
Idem.
14
A expressão é de Paulo Arantes, falando do jovem Schwarz.
e

15
Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado, cit., p. 61.
p
i

16
Ibidem, p. 59.
l

17
Ibidem, p. 62.
e

18
Ibidem, p. 77.
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realismo francês fazem impressão de ingênuos”19. A ironia, esse “jogo
infinitamente leve com o nada”, na definição de Kierkegaard, torna-se
objetiva: as ideias são ironizadas pela própria realidade, e a ideologia,
em vez de “esconder”, converte-se na brutalidade do cinismo20.
Olhando para o Brasil e para a objetividade social do nada, Ro-
berto Schwarz enxergará o existencialismo virado de ponta-cabeça, e
com isso reduzido a lixo. Afinal, o angustiante em Machado de Assis
é que, no universo machadiano, não há angústia. Na verdade, estão
ausentes todos os afetos sobre os quais se debruçaram a filosofia
existencial: vergonha, culpa, desespero. Tampouco há “náusea” – pelo
contrário, em Dom Casmurro, Machado faz questão de mostrar como
Bentinho nunca perde o apetite. Tanto Brás como Bentinho são tudo
menos suicidas potenciais. Em Brás Cubas há “uma estranha conjun-
ção, em que a vida é cheia de satisfações, e vazia de sentido”21. A
realidade é contraditória, mas “o antagonismo se desfaz em fumaça
e os incompatíveis saem de mãos dadas”22. Para além da concepção
trivial de dialética, segundo a qual há sempre movimento e avanço,
Schwarz compreende, então, que as contradições do capitalismo
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podem ser uma máquina de compulsão à repetição com tendências


desintegradoras. De uma forma muito mais sinistra do que a seriedade
grandiloquente das questões metafísicas no existencialismo europeu,
s

a “voluptuosidade do nada”23 de Machado revela o horror do vazio


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social no qual a sociedade brasileira se forma. Se Paulo Arantes está


certo em enxergar Roberto Schwarz como um dos únicos marxistas
ocidentais a identificar a “afinidade entre Capital e Eterno Retorno”24,
é porque ele aprendeu com o “mestre na periferia do capitalismo”,
R

Machado de Assis, a encarar o nada brasileiro.


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19
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000), p. 27.
20
Sobre a crítica da ideologia em Roberto Schwarz, remeto a um artigo mais extenso que
redigi junto com Luiz P. de Caux, “A passagem do dois ao zero: dualidade e desintegração no
pensamento dialético brasileiro (Paulo Arantes, leitor de Roberto Schwarz)”, Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 74, 2019, p. 119-46.
21
Roberto Schwarz, “Complexo, moderno, nacional e negativo”, em Que horas são? (São Paulo,
a

Companhia das Letras, 1987), p. 122.


:

22
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, cit., p. 18.
o s s i ê

23
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. VII.
24
Paulo Arantes, O fio da meada: Uma conversa e quatro entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional
(São Paulo, [s/n], 2021 [1996], col. Sentimento da dialética), p. 159.
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