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Compreensão do oral (I) — Diálogo argumentativo (transcrição)

(Duração do diálogo argumentativo: 9 minutos [00:00-08:49])

Carlos Vaz Marques: O que é que mais teme, Samuel Úria?


Samuel Úria: Eu acho que temo uma vida subjugada pelo temor, por medos
supérfluos. Eu acho que este é capaz de ser o meu maior receio.
Carlos Vaz Marques: Samuel Úria, 36 anos, músico. Fazer música é, para si, fácil ou
difícil, Samuel Úria?
Samuel Úria: No primeiro disco, tinha uma espécie de chavão que era…
Carlos Vaz Marques: Justamente. Era por isso que eu queria começar a conversa por
aqui. Aquele que dizia «Se isto fosse fácil, eu não o fazia. Se fosse difícil, eu nem lhe
tocava».
Samuel Úria: Exatamente. Eu às vezes governo-me por uma aparência de dificuldade
em coisas que me são algo naturais. E a música, muitas vezes, é esse tipo de
correspondência que eu tenho quando estou a escrever canções.
Carlos Vaz Marques: Isso não é batota?
Samuel Úria: É batota, mas porque não? Porque não? Porque não jogar com isto?
Carlos Vaz Marques: Também não há árbitros.
Samuel Úria: Verdade. Porque não jogar com… Como é que se diz o contrário de um
handicap?
Carlos Vaz Marques: Vantagem?
Samuel Úria: Pronto. Eu andava aqui a tentar dificultar…. [risos]
Carlos Vaz Marques: E, com o passar do tempo, tem-se tornado mais fácil ou mais
difícil escrever canções?
Samuel Úria: Tem-se tornado um bocado mais difícil.
Carlos Vaz Marques: Porque está mais exigente?
Samuel Úria: Sim, também. Também porque há mais gente… Não digo que estará a
depender de mim, mas pelo menos que tem algum tipo de expectativas. Eu sou muito
livre com a minha exposição na música. A maneira como eu me exponho na música
não tem qualquer tipo de complexos. Mas sou um bocado mais reservado, ou pelo
menos mais cuidadoso, quando sei que há pessoas que apostaram de alguma maneira
nas coisas que eu vou fazer ou nas coisas que eu vou dizer. E, como se tem agregado
mais gente à minha volta, no âmbito da minha vida musical, isso também me torna
mais preocupado em tentar corresponder a algum tipo de… não sei. Não ia dizer
«expectativas», porque também não me giro, não fico amedrontado com elas, mas
pelo menos tento corresponder mais um bocado àquilo de que as pessoas estão à
espera ou até o contrário. Muitas vezes, [tento] surpreendê-las, mas tendo o outro em
consideração, que é uma coisa que eu fazia menos quando escrevia canções [quando
era] mais jovem.

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Carlos Vaz Marques: Mas a presença dos outros condiciona-o, de alguma forma?
Samuel Úria: Condiciona-me positivamente. Muitas das canções que eu escrevo
também têm que ver com isso, a procura de eu não me isolar demasiado e de não
querer ser uma pessoa que cresce e se governa e tem como objetivo os seus próprios
limites, os seus próprios objetivos… [Quero] abrir sempre a porta para que os outros
comentem, que destruam e que reconstruam. Sempre com o meu cunho, mas com os
outros em vista.
Carlos Vaz Marques: Pois bem. Samuel Úria tem um novo disco. Vai apresentá-lo ao
vivo na próxima sexta-feira, dia 29, no Teatro de São Luís, e na semana seguinte, a 5 de
maio, na Casa da Música, no Porto. O disco novo chama-se Carga de ombro. O que é
que lhe sugere esta metáfora futebolística, Samuel Úria?
Samuel Úria: Exatamente, metáfora…
Carlos Vaz Marques: «Carga de ombro é legal».
Samuel Úria: É legal, é legal. A carga de ombro é legal. Mas é uma das legalidades
futebolísticas que eu mais aprecio, porque, às vezes, as cargas de ombro são muito
violentas.
Carlos Vaz Marques: A carga de ombro… O objetivo da carga de ombro é,
normalmente, afastar o adversário.
Samuel Úria: Afastar o adversário. Neste caso, na canção, é o contrário, é aproximar o
adversário, é haver o contacto, às vezes um choque violento, um choque que é difícil
de absorver, mas que, pelo menos naquele instante, que é um instante que eu depois
determino que quero como eterno, haja dois ombros encostados.
Carlos Vaz Marques: «Põe o meu ombro junto ao teu…»
Samuel Úria: Exatamente. É essa carga que fica, não é uma carga que machuca e que
atira ou chuta o outro para o outro lado.
Carlos Vaz Marques: Ou seja, continua a cultivar paradoxos.
Samuel Úria: Exatamente, mas não é mérito meu. Acho que a própria expressão dá-se
a isso.
Carlos Vaz Marques: O que é que vê de tão atrativo no paradoxo, Samuel Úria? Tem já
uma boa coleção deles, nas canções que tem vindo a escrever.
Samuel Úria: Essa tensão da contrariedade nos paradoxos, essas ideias que não cabem
em si próprias e que se revoltam em si próprias, ajudam a que o próprio significado
que eu dou às coisas não seja estanque. E o que eu determino agora numa entrevista
sobre o que quer dizer «carga de ombro», se calhar, daqui a uns tempos, vou ter uma
interpretação um bocadinho diferente. E a própria tensão ajuda a que mesmo uma
balada não seja uma canção pacífica. Outro paradoxo, provavelmente… [risos]
Carlos Vaz Marques: Ou seja, é uma balada que tem, digamos, alguma, lá está, tensão
dentro dela e que não adormece.
Samuel Úria: Sim, eu gosto desse confronto. Mais açucarado ou não em termos
musicais… Eu até normalmente faço esse jogo: quanto mais for açucarada a música,

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mais ácida ou mais venenosa ou mais difícil de entender é a mensagem que está na
canção.
Carlos Vaz Marques: E o contrário também acontece, pôr acidez na música para
contrariar o mel das palavras?
Samuel Úria: Sim, acontece também. É uma ferramenta… Não a inventei, mas que me
tem servido, às vezes, para finalizar ou a melodia ou a própria letra, para jogar um
bocado com essa circunstância de estarem a viver dependentes uma da outra e
poderem ou ser harmoniosas ou ser completamente desarmoniosas, no âmbito da
música que também se quer harmoniosa ou o seu contrário.
Carlos Vaz Marques: Em termos estritamente musicais, encara este disco como um
disco de continuidade ou, de alguma forma, como uma rotura no seu percurso?
Samuel Úria: Todos os discos que eu faço têm um bocadinho disso…
Carlos Vaz Marques: Disso… De ambos?
Samuel Úria: De ambos, de ambos, exatamente. Têm um bocadinho dessas duas
facetas, mas normalmente são coisas que eu não tenho bem a certeza e se calhar só
daqui a uns anos é que alguém poderá debruçar-se sobre a minha obra e tentar
decifrar…
Carlos Vaz Marques: Normalmente, olha para os seus discos anteriores com outros
olhos, com olhos diferentes daqueles com que os via no momento em que estava a
publicá-los?
Samuel Úria: Sim, absolutamente. Embora eu não me sinta uma pessoa radicalmente
diferente, há coisas que obviamente vão sendo alteradas em mim e que eu olho para
os discos… esses discos antigos, como feitos por uma pessoa que eu não sou agora,
que era naquela altura, por muito ou pouco parecida que ela fosse comigo. Até por
uma questão muito prática de não querer repetir algumas fórmulas… Outras, sim, eu
acho que têm de ser… Lá está, em equipa que ganha não se mexe. Há outras em que
eu sinto que estava vitorioso e não quero mexer.
Carlos Vaz Marques: Em que fórmulas é que não mexe?
Samuel Úria: Uma das coisas em que eu… Não diria no grosso do disco, mas em grande
parte dos meus discos, das minhas canções… Têm um tipo de escrita que é
moderadamente encriptada. Tudo o que lá está é completamente pensado, é pesado,
não desperdiço palavras, mas gosto que elas não sejam totalmente fáceis de entender,
para que as pessoas não fiquem estanques, não fiquem presas a um significado que eu
quisesse atribuir a essas canções…
Carlos Vaz Marques: Até porque poderiam, ouvindo duas vezes, perceber tudo e
aborrecer-se…
Samuel Úria: Exatamente. É isso… Por acaso… Curioso. No meu último disco…
Carlos Vaz Marques: Grande medo do pequeno mundo.
Samuel Úria: Grande medo do pequeno mundo… Eu pedi ao Pedro Mexia, que eu creio
que tu também conheces… [risos]

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Carlos Vaz Marques: Vagamente.
Samuel Úria: Pedi para ele fazer o texto de apresentação. E foi engraçado, porque o
Pedro fez ali um trabalho de… Ele não só decifrou. Ele fez quase uma exegese de
muitas das coisas que eu escrevi e até fez… Foi buscar fórmulas clássicas para explicar
as coisas que eu estava a escrever. E isso, para mim, foi muito engraçado, até porque
não é habitual alguém chegar lá com tanta facilidade, porque eu procuro exatamente
apanhar as pessoas um bocado mais despercebidas, até para elas não ficarem reféns
daquilo de que eu próprio estou refém. Porque, quando os discos são inteligíveis ao
máximo, acabam por ser um reflexo apenas de quem escreveu as coisas. E eu, dando
alguma complicação à ordem e à sequência do que eu escrevo, muitas vezes há quem
entende coisas radicalmente diferentes, mas que são suas e que eu reconheço como
válidas.
Carlos Vaz Marques: Tão válidas como outras que sejam lidas naquelas palavras?
Samuel Úria: Exatamente. Eu acho que grande parte do percurso (agora não me quero
estar a armar ao pingarelho…), grande parte daquilo que define muita da arte,
sobretudo das artes plásticas contemporâneas, é que, muitas vezes, interessa mais
reconhecer que houve expressão do que propriamente entender ou decifrar essa
expressão. E eu tenho tido a boa vontade de quem me ouve de reconhecer que, de
facto, existe sinceridade, existe expressividade, mesmo não percebendo
completamente onde é que eu quero chegar. Isso ajuda a que os meus discos possam
ser não só o meu espelho mas também o espelho de quem os está a ouvir e de quem
se projeta nas minhas palavras.

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