Você está na página 1de 4

Compreensão do oral (II) — Debate (transcrição)

(Duração do debate: 16 minutos [11:41-21:22 — Gonçalo M. Tavares — e 40:27-46:35 —


Luísa Costa Gomes)

Gonçalo M. Tavares: Bem… Boa tarde. Agradeço o convite. É um prazer estar aqui e
estar junto de pessoas que eu admiro. Bem… Falar rapidamente sobre estes assuntos é
um pouco disparatado, mas tem que ser… Eu associo muito a escrita à ideia de
investigação, à ideia de que vou investigar algo. Logo, o ponto de partida é que eu não
sei aquilo que vou escrever. Não é? Esse é o ponto de partida. Aliás, eu distinguiria a
escrita, no meu caso apenas… a escrita literária da escrita não literária. Quando eu não
sei… quando eu estou a investigar, ou seja, eu não sei o que é que vai aparecer,
é escrita literária. Quando eu escrevo aquilo que eu já sei, é outra escrita. Se eu quero
reclamar, por exemplo, com o Metro, que funciona em Lisboa de uma forma
absolutamente ultrajante, nos últimos tempos, eu tenho de escrever uma carta e eu
sei o que é que quero dizer. Isto é uma escrita não literária. Portanto, a grande
distinção é essa… Eu acho que é… A escrita literária, de alguma maneira, vai-me fazer
escrever coisas que eu não sabia, mas eu não diria que é conhecimento. O Rui Zink já
falou um pouco disso. Eu acho que, muitas vezes, até é destruição de conhecimento,
destruição de lugares comuns do conhecimento.
Eu diria que há uma dupla faceta. Por um lado, eu acho que a literatura pode ser vista
quase como uma ciência social e humana. Nesse sentido, podia estar quase ao lado
das psicologias, das sociologias ou das antropologias, porque, por exemplo, quando
um romancista coloca personagens em movimento, de alguma maneira, faz uma
espécie de experiência social. Enfim, quem gosta de sociologia… A sociologia,
a psicologia… vivem muito de experiências sociais. Agora, por exemplo, há um filme à
volta de uma experiência de um cientista americano… que fez uma experiência depois
do Holocausto, em que convidava universitários americanos para ver até que ponto
eles, obedecendo a ordens, iriam fazendo um choque elétrico cada vez mais intenso.
E eu acho que a literatura é um pouco isso, com a vantagem de não ter, digamos, pelo
menos no imediato… de não matar ninguém, não pôr em risco ninguém, etc. Mas é
uma experiência social no sentido em que muitas vezes se pensa «E se?». E se esta
pessoa, com estas características, se cruzar com esta? O que é que pode acontecer?
É um pouco quase como um químico que junta sódio e cloreto e vê o que é que vai
resultar. Resulta cloreto de sódio, se for…
E de alguma maneira, por exemplo, estou a pensar no [meu] último… um livro recente,
que é Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, que é sobre uma
menina com trissomia 21. Olhando agora posteriormente para aquilo, o que eu sinto
é… Não foi de uma forma voluntária nem consciente, mas era um pouco como: «E se
uma menina com trissomia 21, com 14 anos, estivesse perdida numa cidade onde não
conhece ninguém e estivesse à procura do pai? O que é que poderia acontecer?»
Portanto, esta questão do «e se?», de pôr uma hipótese, é quase um método científico
de alguma maneira. Depois, o que vem a seguir, eu acho que é talvez o mais
estimulante na literatura, é que realmente não se chega a uma conclusão, não se
chega a um resultado, não se chega ao cloreto de sódio, felizmente. Chega-se a
qualquer coisa que é estranha.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 1


E o que é que é essa estranheza? Falando até como leitor… Os livros de que eu gosto
particularmente são os livros que me inquietam. E, pessoalmente, o conhecimento não
me inquieta. O conhecimento, pelo contrário, é qualquer coisa que nos acalma.
Quando nós estamos desorientados e nos explicam onde é que nós estamos, nós
acalmamos. Eu acho que a função da literatura não é acalmar, não tem uma função
terapêutica, não é… Tem, pelo contrário, uma função de perturbar as terapias
anteriores. E, portanto, o que é estranho é isso… É uma investigação que produz
inquietação, que produz desassossego, que produz… produz um olhar de um outro
ponto de vista, produz muito uma espécie de deslocação da retina. Quase como se
nós, depois, olhássemos para um acontecimento, ou para um casal de namorados a
discutir, e realmente, se o livro for bom, se o livro literariamente for bom, nós
baixamos o livro e de repente está no café alguém… um casal de namorados a discutir,
por exemplo, e nós vamos perceber aquilo de outra forma completamente diferente.
E é este tipo de conhecimento que tem a ver basicamente com aquelas perguntas
muito intermináveis… Uma pergunta básica como «Como viver?», «Como viver
tentando não perturbar demasiado os outros?». Ou «Como viver percebendo mais ou
menos o que os outros estão a sentir?», que é qualquer coisa de muito difícil. Por
exemplo, a literatura, às vezes, até tem métodos… o monólogo interior, etc. Quando
alguém como o narrador coloca… Por exemplo, eu posso colocar os pensamentos das
pessoas que estão à nossa frente… Isto é qualquer coisa que realisticamente não
existe. E, portanto, é uma espécie de metodologia fantasiosa de produzir alguma coisa
que não é possível na realidade. Mas isso produz, por exemplo, julgo eu, um sistema
de empatia. O monólogo interior é um bom exemplo de algo que se utiliza na literatura
e que me ajuda a perceber esta coisa muito simples: como é que o outro pensará em
relação a isto? Como é que alguém com trissomia 21 pensará em relação a isto? Como
é que um homem violento, que para de repente ao pé da menina com trissomia 21,
como é que verá esta menina?
Só para concluir. De alguma maneira, eu acho que a literatura tem meios, através da
linguagem, que as outras ciências não têm. E consegue investigar coisas que a química,
a sociologia, a antropologia, não conseguem. Há um livro que eu dou como exemplo,
do Thomas Mann, um dos menos conhecidos, um pequenininho, que se chama
As cabeças trocadas, que parte de um mito indiano que é muito simples. Há um
acidente, não se sabe bem qual é o acidente, mas do acidente resulta que dois amigos
ficam com a cabeça trocada. Portanto, a cabeça de um vai para o corpo do outro. E a
partir daí, a questão básica… Há a mulher — vamos dizer que é o A e o B —, a mulher
do A que entra, e a primeira questão ali é para onde é que a mulher do A se vira, não
é? Porque o corpo do marido está num lado, e a cabeça do marido está no outro…
A mulher vira-se para a cabeça do marido. Isso é muito interessante sobre a questão
da identidade, mas depois o mais interessante é que ela está grávida, e depois a
grande questão do livro é quem é que, de alguma maneira, é o pai verdadeiramente.
E é um livro pequeniníssimo mas extraordinário, que põe todas as escolas da filosofia
ao lado, o materialismo, o espiritualismo… O corpo do pai diz: «Não, eu sou o pai
porque estão aqui os órgãos responsáveis diretamente pelo ato de fazer nascer uma
criança.» A cabeça do pai diz: «Não, mas eu é que tive vontade.» Portanto, foi a
cabeça. E só para dizer… Isto é uma investigação muito forte sobre a questão da
identidade, que nenhuma outra ciência podia fazer senão a literatura. Eu acho que é

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 2


extraordinário quando algo parece absolutamente luxuoso, como escrever um verso
ou escrever um romance… [que] possa fazer com que o homem pense em coisas [em]
que não poderia pensar se não existisse literatura.
Inês Fonseca Santos (moderadora): […] Então, a literatura é inútil no que diz respeito à
aquisição de conhecimento?
Gonçalo M. Tavares: Há uma frase… Disseram uma vez ao [Jorge Luís] Borges, com
aquela arrogância muito pragmática: «Então, para que é que serve a poesia?» E o
Borges respondeu: «Para que é que serve o pôr do sol?» Há coisas que não têm a ver
com esta questão da utilidade, não é?
Inês Fonseca Santos: Mas agora estamos sempre a ouvir: «Mas para que é que serve a
literatura? Para que é que serve a poesia?» Estão sempre a retomar esse...
Gonçalo M. Tavares: É uma má pergunta. É que, como sempre, tem a ver com uma
questão de funcionalidade. É obsceno fazer-se a mesma pergunta à literatura que se
faz a uma máquina. E o que é obsceno é que se fazem essas perguntas às pessoas. Já
seria obsceno se se fizesse à literatura. «Para que é que serve a literatura?» Isso é uma
pergunta estúpida e inaceitável, porque é assumir que aquilo é uma máquina. Para
que é que serve uma fotocopiadora? Uma fotocopiadora serve para tirar fotocópias.
A literatura não é isso. Mas o mais repugnante é que essa pergunta se faz às pessoas.
«Para que é que serve uma pessoa?» Essas perguntas é que são tontas.
[…]
Luísa Costa Gomes: Se a literatura é ou não uma via real para a moralidade ou para
nos dizer, como dizia o Gonçalo [M. Tavares], como viver, parece-me que é pouco
acautelado procurar isso na literatura. Não quero dizer com isto… não sou tão radical
quanto o Rui… que não se ensina nada, que não se aprende nada.
Na minha opinião, aquilo que nós aprendemos, ou seja, o conhecimento que a
literatura nos dá, são todos e é nenhum. Ou seja, aquilo que eu acho que nós
descobrimos na literatura, e não só, mas particularmente na literatura, porque ela é
razoavelmente formativa, pelo menos nos nossos primeiros anos, aquilo que nós
aprendemos é quem é que nós somos como leitores. Ou seja, nós vamos buscar aos
livros aquilo de que nós precisamos. Se somos leitores à procura de conceções do
mundo, de lições, de mensagens ou de recados, nós encontramos lá os recados que
precisamos de encontrar. Se, pelo contrário, nós somos leitores com pouca
disponibilidade para nos… enfim, para nos desestabilizarmos, vamos procurar
obviamente livros que tenham uma moralidade, por assim dizer, que seja familiar. Algo
que não nos ensine grande coisa, algo que possamos utilizar para reconfirmar aquilo
que nós já sabemos.
É evidente que o escritor, enquanto leitor, é um pouco diferente, porque eu penso que
o escritor lê sempre de uma forma técnica, ou seja, nós procuramos, eu procuro…
alguns escritores procuram nos livros aquilo de que precisam fundamentalmente para
escrever os seus próprios livros. E nesse caso, nesses casos, o diálogo que eles
estabelecem com os livros é, obviamente, um diálogo paradoxalmente muito mais
utilitário e mais especulativo do que o do leitor, vamos dizer assim.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 3


Eu acho que realmente as narrativas, tal como elas hoje são na indústria… nós não
[nos] podemos, penso eu, abstrair do facto de vivermos numa época em que a
literatura é industrial, ou seja, em que o conceito de literatura é já hoje tão vasto que
quase que é coextensivo1 com o de registo escrito, ou seja, literatura é mais ou menos
tudo. Já a noção de conhecimento é uma noção razoavelmente técnica e que tem essa
noção de funcionalidade e de pragmatismo… Para que é que serve? Eu acho que serve,
ao contrário de algumas opiniões, serve para várias coisas. Podem não ser
objetivamente quantificáveis, podem não ser até muito úteis à vida comum, mas são
realmente úteis para outras coisas que eventualmente não são muito imediatas.
Aquilo que eu penso que nós aprendemos nos livros é como é que se aprende a ler
livros, como é que se lê livros. E por isso nós sabemos, ao fim de um certo número de
livros que lemos, que a parte importante está no fim. A parte importante do livro,
a mensagem, está no desfecho. Por uma razão muito simples: é que nós, quando
escrevemos e quando lemos, gostamos que as frases se mexam, que as coisas se
movam, podem-se mover para a frente ou para os lados, mas não queremos um livro
que esteja parado, sempre. Para isso, temos a Gertrude Stein. Portanto, as frases têm
que se mexer, e há um momento em que as frases acabam. E eu acho que isso cria um
certo ressentimento, tanto no leitor como no escritor, porque há ali qualquer coisa
que se passou, que é… aquilo, aquela experiência daquela leitura, daquele texto,
acabou. E nós temos de arranjar uma maneira qualquer de lidar com essa perda, e a
maneira que nós temos de lidar com essa perda é fazer com que o fim seja mais denso
do que o resto do texto. E por isso, se o texto acaba de uma certa maneira, então é
porque isso é uma lição para nós, e essa lição não é que o texto acabou, mas é que, de
facto, o desfecho é mais denso, é mais importante e é mais intenso, e portanto a lição
está no fim. Curiosamente, há muitos textos onde isto não acontece, e o leitor vê-se
muitas vezes obrigado a pôr uma lição e a pôr uma mensagem que ele não sabe, pela
simples razão de que o fim significa que aquilo tem de ter uma mensagem qualquer,
tem de lá estar um recado qualquer, tem de lá estar qualquer coisa que seja — pela
situação que ele ocupa no texto — mais importante que o resto. Isto põe problemas
muito graves a um escritor, nós temos problemas de não sabermos mais do que os
outros e termos de fingir que sabemos, porque estamos a contar histórias…
E, naturalmente, quem conta histórias, quem está aqui sentado, está num plano
superior, pelo próprio protocolo das coisas. Quem pega numa caneta para escrever
parece que sabe alguma coisa, e aquilo que nós, de facto, estamos a dizer é que
fingimos que sabemos, fingimos que estamos a contar uma história e que essa história
tem um sentido e que esse sentido é importante para a vida. Mas aquilo que nós
percebemos na literatura é que ela não é a vida. São frases, que se mexem, e que em
certo momento acabam.

1
Que pode ocupar o mesmo patamar [termo do português do Brasil].

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 4

Você também pode gostar