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Cleber Ataíde

Valéria Viana Sousa


[orgs.]

Língua, texto
e ensino
Descrições e aplicações
3ª PARADA: UESB
Vitória da Conquista/BA
Cleber Ataíde
Valéria Viana Sousa
[orgs.]

Língua, texto
e ensino
Descrições e aplicações

Pipa Comunicação
Recife, 2018
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Cleber Alves de Ataíde (UFRPE), Valéria Severina Gomes (UFRPE), André Pedro da Silva (UFRPE),
Emanuel Cordeiro da Silva (UFRPE), Sherry Morgana Justino Almeida (UFRPE), Thaís Ludmila da
Silva Ranieri (UFRPE), Adilson Ventura da Silva (UESB), Carla Salati Almeida Ghirello-Pires (UESB),
Maria da Conceição Fonseca-Silva (UESB), Maria de Fátima de Almeida Baía (UESB), Marian dos
Santos Oliveira (UESB), Nirvana Ferraz Santos Sampaio (UESB), Valéria Viana Sousa (UESB)

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Catalogação na publicação (CIP)


Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo

At12

ATAIDE, C. A.; SOUSA, V. V.


Língua, texto e ensino: descrições e aplicações / Cleber Alves de Ataíde; Valéria
Viana Sousa. [orgs.]. – Pipa Comunicação, 2018.
1.422 p.

1ª ed.
ISBN 978-85-66530-88-9
1. Linguística. 2. Literatura. 3. Língua. 4. Anais. 5. Gelne.
I. Título.

410 CDD
81 CDU
c.pc:11/18ajns
Prefixo Editorial: 66530

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Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGLin


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diretoria
Dr. Cleber Alves de Ataíde (UFRPE) - Presidente
Drª Valéria Severina Gomes (UFRPE) - Vice-Presidente
Dr. Emanuel Cordeiro da Silva (UFRPE) - 1º Secretário
Dr. André Pedro da Silva (UFRPE) - 2º Secretário
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Drª Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UFRPE) - 2ª Tesoureira

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9 a 11 de maio. UESB
Vitória da Conquista/BA

COMISSÃO ORGANIZADORA DO GELNE

Dr. Cleber Alves de Ataíde (UFRPE)


Drª Valéria Severina Gomes (UFRPE)
Dr. André Pedro da Silva (UFRPE)
Dr. Emanuel Cordeiro da Silva (UFRPE)
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Drª Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UFRPE)

COMISSÃO ORGANIZADORA DA UESB

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Prof.ª Dr.ª Carla Salati Almeida Ghirello-Pires (UESB)
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Prof.ª Dr.ª Nirvana Ferraz Santos Sampaio (UESB)
Prof.ª Dr.ª Valéria Viana Sousa (UESB)
Sessão Temática

ESTUDO DA CATEGORIZAÇÃO E CONCEPTUALIZAÇÃO


DE CACHORRO E CACHORRA EM MÚSICAS DO
CANCIONEIRO POPULAR BRASILEIRO

Elisângela Santana dos Santos1


Mariana Argolo Barreto2

Introdução

Com este texto, tem-se por objetivo apresentar notícias acerca de um estudo,
ainda em fase inicial, sobre a categorização e a conceptualização dos itens lexicais ca-
chorro e cachorra, à luz dos princípios da Linguística Cognitiva, mais especificamente
da Semântica Cognitiva, da Teoria da Metáfora e da Metonímia Conceptuais e da Te-
oria do Protótipo, a partir de um corpus constituído por letras de músicas populares
brasileiras de diferentes gêneros.
Partimos da constatação de que as duas lexias em questão, objetos do presente
estudo, possuem múltiplos sentidos interconectados entre si e evidenciam categori-
zações e conceptualizações metafórico-metonímicas, em decorrência da mente cor-
porificada dos falantes/escreventes/compositores/leitores, que, em interação com a
sociedade que os circunda, temporal e espacialmente situada, constroem sentidos
e projetam experiências e conhecimentos de um domínio fonte físico-espacial mais
conhecido, que no caso aqui estudado é relativo a animal, para outros domínios ex-
perienciais, considerados alvo, mais abstratizados, a exemplo do próprio ser huma-
no e da sua sexualidade.
Para discutirmos essas questões, fizemos um estudo qualitativo, assumindo
uma abordagem de cunho introspectivo, uma vez que entendemos a construção do

1. Doutora em Letras (UFBA) e Professora Adjunto (UNEB).

2. Graduanda em Letras (UNEB) e bolsista de Iniciação Científica (CNPq).

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significado como reflexo da interação do ser humano com o que está à sua volta e,
por conseguinte, da sua compreensão de mundo. Dividimos o texto em quatro se-
ções, com vistas a expor alguns resultados preliminares sobre o que foi pesquisado,
de modo que temos esta introdução, em que esboçamos as primeiras palavras sobre
o tema do nosso estudo; na sequência, mais especificamente na seção 1, apresenta-
mos algumas informações sobre os processos de categorização e conceptualização;
na seção 2, discorremos sobre a significação dos itens lexicais cachorro e cachorra,
constantes de algumas letras de músicas populares brasileiras que selecionamos e,
no final, tecemos as nossas considerações parciais sobre o que foi abordado.

Algumas breves palavras sobre os processos de


categorização e conceptualização

A categorização

Entendemos categorização como “o processo mental de identificação, classifi-


cação e nomeação de diferentes entidades como membros de uma mesma catego-
ria” (SILVA, 1997, p. 6). As associações entre esses membros são frequentemente es-
tabelecidas por processos conceptualmente metafóricos e metonímicos. Entretanto,
os estudos sobre categorização não são recentes nem uniformes e a discussão so-
bre essa temática remonta à Antiguidade Clássica. Sendo assim, temos abordagens
distintas para o mesmo fenômeno, daí falarmos de teoria clássica, teoria natural e
teoria do protótipo, em suas versões standard e ampliada.
Segundo Taylor (1989, p. 22-24), entre os aspectos que se sobressaíram no mo-
delo clássico de categorização, podemos citar: a) a definição das categorias a partir
de um conjunto fixo de propriedades consideradas necessárias e suficientes; b) o fato
de as categorias possuírem fronteiras claramente delimitadas e c) o fato de todos os
membros de uma categoria apresentarem estatuto semelhante. Isso pressupunha
que se um elemento não partilhasse traços comuns em relação a outros elementos
não faria parte de uma mesma categoria. Nessa perspectiva, os conceitos eram ob-
jetivos e desembodied, ou seja, não corporizados, conforme designou Johnson (1987),
pois não havia relação entre significado e experiência humana. Isso significa dizer
que o conhecimento linguístico, de acordo com essa teoria da categorização, era dis-
sociado do enciclopédico e, portanto, autônomo e não experiencial.

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Em 1953, uma nova concepção de categorização, também conhecida como Te-


oria Natural, foi difundida por Ludwig Wittgenstein, autor do livro Investigações Filo-
sóficas. Ao questionar quais as propriedades definidoras da categoria jogo, ele notou
que os seus vários membros não compartilhavam nem, muito menos, precisavam
compartilhar de um conjunto de propriedades comuns, ao contrário do que se pre-
gava até então, o que o levou a afirmar que uma categoria não é estruturada em
termos de características criteriais partilhadas, mas por uma rede de similaridades
que se entrecruzam, denominadas de “parecenças de família”, pois nem todos os
seus membros partilham os mesmos traços, podendo estabelecer relações de seme-
lhança aproximadas ou distanciadas, tal como ocorre entre os integrantes de uma
mesma família dos reinos animal e hominal.
Algumas décadas depois, a pesquisadora Elianor Rosch, juntamente com sua
equipe, observou, por meio de estudos baseados na aplicação de testes, inquéritos e
experiências com informantes, conforme recomendam os estudos psicolinguísticos,
que as categorias, em geral, tinham melhores exemplares (muitas vezes definidos
por critérios que iam desde a escolha dos falantes à frequência de uso) e organiza-
vam-se, de forma gradual, em torno de um significado nuclear que era representado
por um membro típico, denominado “protótipo”, com o qual outros membros, mais
periféricos, se associavam por similaridade. Essa teoria ficou conhecida como a Teo-
ria Standard do Protótipo.
No entanto, a falta de precisão terminológica e o fato de considerar o protótipo
uma entidade unificadora, organizadora da categoria ou ainda representante direta
de um conceito foram alguns dos equívocos daqueles que idealizaram e estudaram
as categorias sob o enquadramento psicolinguístico, fazendo com que surgisse um
novo enfoque para o estudo desse tema. Ao refutar a ideia do protótipo como me-
lhor exemplar da categoria e considerá-lo um efeito de prototipicidade (tese defendi-
da por Rosch, nos estudos realizados em fins dos anos 70), a Teoria Experiencialista
do Protótipo, difundida por George Lakoff, também conhecida como Teoria do Protó-
tipo na sua versão “ampliada”, “revisada” ou “polissêmica”, conforme denomina Klei-
ber (1995, p. 159), propôs um novo olhar sobre o processo de categorização e sobre
os conceitos relativos ao protótipo, na década de 80, distinguindo-se, assim, não só
da Teoria Clássica como da Teoria do Protótipo, na sua versão inicial.
Em vista dessas diferentes possibilidades de abordagens, vale dizer que exa-
minamos os usos dos itens lexicais cachorro e cachorra, nas músicas estudadas na

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seção seguinte, com o enfoque experiencialista, baseado nos pressupostos da Teoria


Ampliada do Protótipo, vinculada à Linguística Cognitiva.

A conceptualização

Para a Linguística Cognitiva, o significado é perspectivista, experiencial, flexível


e baseado no uso e a conceptualização é o reflexo da compreensão de mundo e, por
conseguinte, da interação e percepção do ser humano com o que está à sua volta.
Em outras palavras, nós conceptualizamos a partir de uma dada perspectiva, a qual
pode basear-se em crenças, valores, atitudes coletivas ou individuais, formas de ver
e conceber fatos e situações, de modo que entender e estudar os significados de
palavras dentro de um determinado contexto pressupõe acessar o conhecimento
enciclopédico das pessoas que as pensam e as proferem, por isso o estudo sociocog-
nitivo do significado é interdisciplinar e baseado no uso.
Tal como defende Kövecses (2010, p.202), ao proferir que as metáforas concep-
tuais refletem a experiência humana e podem variar individual, social e diacronica-
mente dentro de uma mesma cultura, entendemos que o fator experiencial é um
forte aliado nas conceptualizações de cachorro e cachorra, uma vez que o cão é um
dos animais mais próximos do ser humano e seu companheiro há mais de mil anos.
Desse modo, consideramos que os sentidos encontrados no corpus da nossa pes-
quisa refletem não só a percepção de características aparentemente comuns entre
o comportamento do animal canino e do homo sapiens. Ademais, percebemos que
os seus usos indicam determinados lugares de fala, posições sociais, relações de
gênero, dentre outras questões que expressam percepções e comportamentos da
sociedade brasileira.

Os usos dos itens léxicos cachorro e cachorra na música


popular brasileira

Cachorro e cachorra em gênero musicais diversos

Não é de hoje que os usos de cachorro e cachorra para se referirem a homem e


mulher, respectivamente, são empregados em músicas populares brasileiras de di-

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versificados gêneros e por diferentes intérpretes, entre os quais podem ser citados
Baby do Brasil, Waldick Soriano, Rita Lee, Claudia Leite, dentre outros.
Cachorro vagabundo, por exemplo, é um samba-choro, que foi composto por
Alberto Ribeiro, em 1937, cantado inicialmente por Carmem Miranda e, mais tarde,
gravado por Baby do Brasil e Maria Alcina. Para muitos, é um hino à libertação, por
retratar o brasileiro como um ser livre, mestiço, que ase adapta às dificuldades e
consegue sobreviver em meio às adversidades, tal como o cachorro vira-lata:  “Eu
gosto muito de cachorro vagabundo/ que anda sozinho no mundo/ sem coleira e sem
patrão…”. Nesse caso, fica evidente a categorização do povo brasileiro como cachor-
ro e a sua conceptualização metonímico-metafórica: POVO BRASILEIRO É CAHORRO
LIVRE.
Já no bolero Eu não sou cachorro não, de Waldick Soriano, datado de 1972, a re-
lação é diferente, pois no caso específico dessa canção, o cachorro é o homem mal-
tratado por uma mulher que não retribui o seu amor. O amor desfeito é, portanto,
o mote da canção que foi popularizada no Brasil, na década em que surgiu, e que,
ainda, hoje é conhecida, cantada e incluída nos repertórios de cantores românticos.
Seus versos soam como um pedido de clemência, uma reclamação pelo descaso so-
frido: “Eu não sou cachorro, não/Pra viver tão humilhado/Eu não sou cachorro, não/
Para ser tão desprezado”: HOMEM APAIXONADO É CACHORRO ABANDONADO.
Por outro lado, em Vida de cachorro, composta também, em 1972, por Rita Lee,
Arnaldo Baptista e Sergio Dias, encontramos a conceptualização de cachorro como
homem submisso, apaixonado e desejado pela mulher: “Me dê sua pata peluda, va-
mos passear/Sentindo o cheiro da rua/Me lamba o rosto, meu querido, lamba/E diga
que também você me ama/ Eu quero ver seu rabo abanando/Vamos ficar sem colei-
ra/Vamos ter cinco lindos cachorrinhos/Até que a morte nos separe, meu amor! Nes-
se caso, temos a metáfora conceptual: HOMEM DESEJADO É CACHORRO SUBMISSO.
Alguns anos depois, em 2001, surge a música da banda Babado Novo, interpre-
tada pela cantora Claudia Leite e intitulada Safado, cachorro, sem-vergonha, em que
cachorro, mais uma vez, refere-se a homem, mas não como o protótipo do brasileiro
livre, nem o coitadinho, nem o bonzinho ou fofinho desejado pelas mulheres. Mui-
to pelo contrário, cachorro nessa música, é conceptualizado como o homem sem
escrúpulo, explorador, preguiçoso e infiel: “Safado!Cachorro!Sem-vergonha!/Eu dou
duro o dia inteiro/E você colchão e fronha.../E deixa de ser mulherengo homem/O

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dia todo pensando em mulher/Você tá doido prá ficar sozinho/E tá querendo ficar
a miguér...”. Encontramos, portanto, a metáfora conceptual: HOMEM INFIEL E PRE-
GUIÇOSO É CACHORRO.

Cachorro e cachorra no funk e no pagode

Nas últimas décadas, vimos assistindo e vivenciando uma maior liberdade com-
portamental, sexual, o que tem se refletido nas diferentes formas de nos expres-
sarmos por meio de múltiplas linguagens. Nas músicas categorizadas como funk
e pagode, ritmos musicais originados no Rio de Janeiro e popularizados em todo
o Brasil, nas últimas décadas, os itens lexicais cachorro e cachorra aparecem com
frequência. Selecionamos algumas composições, em que essas palavras aparecem
para comentarmos.
Nas músicas selecionadas, observamos que homens e mulheres se autocate-
gorizam como animais caninos e se autoconceptualizam com valores oponentes ou
antonímicos, isto é, positivos e negativos.
Na canção Magoada, da dupla de pagode country, Janderson e Anderson, lança-
da em 2016, encontramos a conceptualização de homem como cachorro, por ser in-
fiel, desleal com as mulheres: “E eu que sou o cachorro,/ vagabundo e mulherengo/ O
que não valia nada/ e cadê a princesinha?”.O mesmo ocorre na canção Sou cachorro
mesmo, de outra dupla de pagode sertanejo, Léo e Júnior, lançada em 2012:“Eu sou
cachorro mesmo/ Do tipo que não presta/ mas a mulherada gosta”.
Nas duas canções anteriores, o homem cachorro é o homem infiel, que não tem
muito critério nem compromisso quanto à escolha de uma mulher para se relacionar.
A diferença é que, em Magoada, o tom irônico usado pelo homem nos faz perceber
que ele era assim chamado pela mulher da relação, evidenciando um sentido mais
negativo de homem infiel. Já em Eu sou cachorro mesmo, o sentido de homem rapa-
rigueiro é positivado, a partir do momento em que fica explicitado que as mulheres
gostam e se apaixonam, por ele por causa dessa característica.
Na mesma direção, encontramos as composições de funk, de Tati Quebra Bar-
raco, em que a mulher é concpetualizada metaforicamente como uma cachorra. Em
Boladona e em Me chama de cachorra, lançadas nos anos 2000, por exemplo, a com-
positora se auto-categoriza como cachorra, respectivamente, nas estrofes: “Vou sol-

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tar a minha fera,/ eu boto o bicho pra pegar, /sou cachorra” e “Me chama de cachorra
que eu faço auau”.
Observamos, nessas duas letras de funk, de autoria feminina, duas conceptua-
lizações para o item lexical cachorra: na primeira, a mulher se auto-conceptualiza
como empoderada quanto às suas questões sexuais e, portanto, livre para se re-
lacionar sexualmente como um animal, a cachorra. Já na segunda canção, temos a
conceptualização da mulher como um ser domesticado, submisso e obediente, que
pode ser adestrado. Portanto, temos a seguinte projeção: MULHER EMPODERADA É
CACHORRA e MULHER SUBMISSA É CACHORRA.
Segundo Lopes (2010), estudiosa do funk carioca e autora de uma tese sobre
esse tema, o funk é um estilo musical que apresenta um vocabulário próprio. Em
seu estudo, Lopes (2010) afirma que Tati Quebra Barraco, compositora e cantora das
duas músicas mencionadas anteriormente, foi a primeira a utilizar a palavra cachorra
em seus funks. Depois disso, outros grupos também gravaram, usando essa palavra
para expressar a significação já referida.
Lopes (2010, p.154) acredita que, em algumas narrativas de MCs, há a presença
de uma animalidade (sendo o uso de cachorra uma demonstração disso), que “pode
ser considerada como metonímia de um vigor sexual feminino”. Também entende
que “há em todas essas produções um tom jocoso que provoca o riso – ao mesmo
tempo tão degradante e tão regenerador – que festeja, porém agride, desenvolven-
do toda a ambivalência fundamental ao grotesco.”
Apesar de a autora não adentrar nas Teorias da Metáfora e da Metonímia Con-
ceptuais, ela identifica a relação metonímica que os indivíduos falantes/cantores/es-
creventes/ouvintes estabelecem entre o animal canino e o “comportamento” sexual
feminino nas composições do funk brasileiro.
No funk de autoria masculina, de forma geral, vemos que a mulher infiel é ca-
tegorizada como um animal canino e, portanto, conceptualizada metafórica e me-
tonimicamente como cachorra, devido a possíveis semelhanças entre os comporta-
mentos das duas fêmeas. A projeção se dá tanto entre domínios distintos (animal e
humano),quanto dentro do mesmo domínio (características distintas referentes ao
comportamento de um mesmo animal e, por conseguinte, de um mesmo ser huma-
no), já que o conhecimento de mundo que temos sobre cachorros e cachorras nos

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permite fazer tais associações. Entretanto, encontramos também a mulher cachorra


como a mulher sexualmente livre.
Na canção Adestrador de cadela, de Mc Mm, a mulher cachorra é a mulher libidi-
nosa, que gosta de sexo: “Sabe aquelas minas cachorra, piranha, sapeca/Então pode
trazer elas que r7 dá um trato/Põem no pelo e goza nela/Então cancela as moças de
família certa [...]”. O mesmo ocorre em Só as cachorras, do Bonde do Tigrão, em que,
mais uma vez, fica explícita a correlação entre a liberdade sexual das cachorras e das
mulheres que, nesse caso, são as empoderadas e devem ir para o centro do salão
dançar, aparecer:“Só as cachorras/As preparadas/As popozuda/O baile todo/Vem pra
cá/Que eu sou tigrão/Vou te dar/Muita pressão [...]”.
Como podemos perceber, em todos esses exemplos, ocorre o mapeamento
conceptual HUMANO É NÃO HUMANO, uma vez que características humanas e não
humanas se identificam, evidenciando o que denominamos de animalização do ser
humano, por via metafórico-metonímica, encontrada em ele/ela é um/a cachorro/a,
objeto do nosso estudo, e também em outros exemplos, como ele/ela é um/a maca-
co/a, ele/ela é burro/a, ele/ela é uma anta, ele/ela é um/a galinha, ele/ela é o/a cão (de
calçolão), ele/ela é um/a gato/a, fazendo referência aos dois sexos, ou, ainda, em ela
é uma vaca, ela é uma égua, ele é um veado, ele é um garanhão, ela é uma piranha,
fazendo menção a um dos sexos especificamente. Em quase todos esses exemplos,
observamos um tom pejorativo, na maioria das vezes, de cariz sexual.
Entendemos que isso se deve ao fato de o sujeito categorizador-conceptuali-
zador acionar também metonimicamente o alvo, uma vez que, ao categorizarmos
pessoas de sexos diferentes como cachorro e cachorra, não significa que sejam pers-
pectivadas todas as características do animal canino, a exemplo de pelos, de focinho,
de patas etc., mas determinadas características do seu comportamento, como a sua
liberdade sexual, a sua liberdade quanto à escolha de parceiros e parceiras, à sua
falta de moralidade, dentre outras questões.

Considerações finais

A partir do estudo realizado, constatamos que os itens lexicais cachorro e ca-


chorra são polissêmicos, isto é, possuem sentidos diferenciados e polarizados, mas
interconectados entre si, os quais evidenciam categorizações e conceptualizações

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metafórico-metonímicas, resultantes das percepções de mundo dos sujeitos/falan-


tes/escreventes/compositores/leitores e da sua interação com a sociedade que os
circunda, temporal e espacialmente situada.
Notamos, ainda, que o recorte metonímico é feito no domínio da sexualidade e
que a polissemia desses itens advém das múltiplas possibilidades de percepção do
que é ser cachorro ou cachorra na sociedade atual.
No corpus, foi possível pressupor que o fator social sexo e, possivelmente, gê-
nero textual licenciam algumas categorizações e conceptualizações que têm deter-
minados sentidos mais prototípicos e outros menos, o que poderia ser diferente, se
considerássemos outros corpora ou um estudo diacrônico.
Nas letras de músicas e funks, homens e mulheres são categorizados como ani-
mal e, ao que parece, prevalece a conceptualização do homem cachorro como o ho-
mem infiel e a mulher cachorra como a mulher livre sexualmente, despudorada e
empoderada. Notamos que os usos encontrados, no pequeno recorte feito, refletem
o mapeamento conceptual HUMANO É NÃO HUMANO, uma vez que características
do animal canino são projetadas no domínio humano, por via metafórica.
Entendemos que tais projeções são, também, metonímicas, pois o sujeito cate-
gorizador-conceptualizador perspectiva algumas ou apenas uma das características
do animal canino, a exemplo da submissão, do comportamento sexual, da forma de
se relacionar com o sexo oposto, da liberdade quanto à escolha de parceiros e par-
ceiras, da falta de moralidade, dentre outras questões, como a fidelidade, a amizade,
a beleza.
Na maior parte dos exemplos, observamos, portanto, um cariz sexual, embora
haja uma ambivalência resultante da autoantonímia que se manifesta nos exemplos
em que ser cachorra ou cachorro é compreendido por homens e mulheres como
ruim, desqualificador e, portanto, um xingamento e, também, como bom, por isso
um elogio, um desxingamento, conforme define Almeida (2016).

Referências

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foda à luz do sociocognitivismo. In: ALMEIDA, A. A.D.; SANTOS, Elisângela Santana dos. (Org.).
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