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DIREITOS

HUMANOS,
Interseccionalidade
e
ISOLAMENTO
Nivia Valença Barros
Lobelia da Silva Faceira
Josélia Ferreira dos Reis
Joice da Silva Brum
(organizadoras)
© Nivia Valença Barros, Lobelia da Silva Faceira, Joselia Ferreira dos
Reis e Joice da Silva Brum (organização)

Gramma Livraria e Editora


Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo
Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha,
Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida,
Mirian Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Editor: Geraldo Tadeu Moreira Monteiro


Produção editorial e revisão: Juliana Rios
Capa e diagramação: Larissa Luz dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Direitos humanos, interseccionalidade e isolamento /


Nivia Valença Barros ... [et al.] organização. --
1. ed. -- Rio de Janeiro : Gramma Livraria e
Editora, 2020.

Outros organizadores: Lobelia da Silva Faceira,
Josélia Ferreira dos Reis, Joice da Silva Brum
Bibliografia
ISBN 978-65-86052-30-5

1. Cidadania 2. Direito - Aspectos políticos, 3. Direito - Aspectos
sociais 4. Direitos humanos, 5. Direitos humanos - Brasil 6. Identidade
social, 7. Isolamento social I. Barros, Nivia Valença, II. Faceira, Lobelia
da Silva. III. Reis, Josélia Ferreira dos. IV. Brum, Joice da Silva
20-46563 CDU-347.121
Índices para catálogo sistemático:
1. Direitos humanos : interseccionalidade e isolamento : Direito 347.121
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Gramma Livraria e Editora


Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
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A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
DIREITOS
HUMANOS,
Interseccionalidade
e
ISOLAMENTO
Nivia Valença Barros
Lobelia da Silva Faceira
Josélia Ferreira dos Reis
Joice da Silva Brum
(organizadoras)
DIREITOS HUMANOS,
INTERSECCIONALIDADE E
ISOLAMENTO
Organização
Nivia Valença Barros

Coordenação Editorial
Joice da Silva Brum
Josélia Reis
Lobelia da Silva Faceira
Nivia Valença Barros

Coordenação Executiva
Ana Beatriz Quiroga
Ida Cristina Rebello Motta
Joice da Silva Brum
Josélia Reis
Karla Amaral
Lobelia da Silva Faceira
Marcelo Ricardo Prata
Rosilene Pimentel
Sandra Monica da Silva Schwarzstein
Sheila Brum
Vânia Quintão
Wilma Pessôa

Revisão
Ana Beatriz Quiroga
SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................9
Vania Morales Sierra

APRESENTAÇÃO.............................................................17
Nivia Valença Barros
Lobelia da Silva Faceira
Josélia Reis
Joice da Silva Brum

- PRIMEIRA SEÇÃO -
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento:
Os desafios no Campo Sociojurídico

AS (IM) POSSIBILIDADES DO SERVIÇO SOCIAL E


DA PSICOLOGIA NO CAMPO SOCIOJURÍDICO NO
PERÍODO PANDÊMICO..................................................29
Josélia Reis
Sheila Brum
ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE PUNIÇÕES E AS
ENTRELINHAS DA “SOCIOEDUCAÇÃO”....................55
Nivia Valença Barros
Ida Cristina Rebello Motta
Lobelia da Silva Faceira

VIOLÊNCIA E PRISÃO: OS DESAFIOS DA GARANTIA


DE DIREITOS NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO....77
Lobelia da Silva Faceira

- SEGUNDA SEÇÃO -
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento:
Questões Raciais e de Gênero

VIOLÊNCIAS DE GÊNERO CONTRA MULHERES E


MENINAS E OS AGRAVAMENTOS EM ÉPOCA DE
ISOLAMENTO SOCIAL.................................................103
Nivia Valença Barros
Rosilene Pimentel
Joice da Silva Brum

OS PROCESSOS DE ISOLAMENTO SOCIAL PARA A


POPULAÇÃO LGBTI+ - PARA ALÉM DA PANDEMIA..129
Nivia Valença Barros
Ana Beatriz Quiroga
Marcelo Ricardo Prata
VIOLÊNCIA RACIAL NO BRASIL NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID-19............................................149
Wilma Pessôa

- TERCEIRA SEÇÃO -
Direitos humanos, Interseccionalidade e Isolamento:
Os Desafios no Âmbito do Protagonismo e
do Trabalho Feminino

MOVIMENTO FEMINISTA, TERSECCIONALIDADES


E AS TÁTICAS DE PROTAGONISMO..........................177
Nivia Valença Barros
Sandra Monica da Silva Schwarzstein
Karla Amaral
Ida Cristina Rebello Motta

MULHER, TRABALHO E INTERSECCIONALIDADES:
ISOLAMENTO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE
COVID-19.........................................................................207
Josélia Ferreira dos Reis
Vânia Quintão
Nivia Valença Barros

APONTAMENTOS FINAIS............................................233

QUEM SOMOS.................................................................235
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 9

PREFÁCIO
direitos humanos em tempo
de políticas pandêmicas

Vania Morales Sierra

O
s direitos humanos têm sido a principal referência
para as lutas contra os processos de desumanização
que acompanham o avanço da agenda neoliberal e
o progressivo desmonte das políticas sociais no país. Cons-
tituem uma referência do ponto de vista ético e legal, para a
definição de limites à exploração econômica e a identifica-
ção de diversas formas de discriminação. Como razão e cri-
tério de moralidade, combinam simultaneamente univer-
salismo e comunitarismo, coletividades e individualidades.
A universalidade dos direitos humanos é o que permite o
reconhecimento da “unidade básica do humano”, na varie-
dade das culturas, na multiplicidade das raças, nas diferen-
ças de gênero, nas desigualdades de classe. Como assinalou
Geertz (1989), a humanidade não tem substancia, e o co-
mum é o fato do humano depender da cultura para desen-
volver a individualidade, “tornar-se humano é tornar-se in-
dividual” (p. 64). As relações de dominação-subordinação,
sociação-dessociação, guardam significados que podem ser
apreendidos a partir da compreensão de processos históri-
cos nos quais estão imbricados os componentes estruturais
10 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

e culturais. Neste sentido, a análise dos fenômenos sociais


torna-se mais complexa e multidimensional.
A temática dos direitos humanos só pode ser pensa-
da na consideração com os inúmeros processos e formas de
relacionamentos nos quais se elevam o sentimento de des-
respeito e indignação social, diante de situações vivenciadas
por indivíduos, grupos ou determinada sociedade. No exame
de casos e de acontecimentos, a presença de fatores estru-
turais pode ser identificada em situações constitutivas da
problemática da ordem social. Constroem-se assim conhe-
cimentos para a compreensão de “abusos”, “excessos”, viola-
ções, que permitem ultrapassar o fato e alcançar a dimensão
normativa. Trata-se de um processo permanente de captura
do “social”, que requer um conjunto de respostas relaciona-
das às questões que daí emergem. Neste sentido, os direitos
humanos compreendem a comunicação desenvolvida em um
processo cognitivo de reconhecimento de injustiças, de ava-
liações e de sobreposições, na compreensão da intersecção
de sistemas de discriminação relacionados à raça, gênero,
etnia etc. Na perspectiva da interseccionalidade, os direitos
humanos não são ideologia, pois se constituem e decorrem
da atualização de problemáticas do “social”.
Inseridos ou não no quadro legal, os direitos hu-
manos expressam um sentido de justiça não derivado da
representação abstrata, mas das experiências de sujeição,
que são multiformes e multicausais. Constituem-se do mo-
vimento de coletividades organizadas na intenção de pro-
vocar uma inversão na relação abstrato/concreto, no sen-
tido que parte do concreto ao abstrato. São forças éticas
expressas nos movimentos de reivindicação, contestação e
denúncia. Possuem uma história e um know how específico,
relacionado a cada área – criança e adolescente, mulheres,
negros, indígenas, detentos etc., e por isso dependem da
capacidade cognitiva dos atores em função do desenvolvi-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 11

mento de competências sociais, tais como a política, a téc-


nica e a linguística.
A luta pelos direitos humanos envolve todos os es-
paços onde as relações sociais se desenvolvem (conselhos,
Internet, praça pública, instituições etc.). A identificação de
cada “público” remete às trajetórias que o constituem como
grupo social específico. Produz-se então, um repertório de
conhecimentos e técnicas próprios do campo de ação e de
intervenção social. Neste processo, mesmo questões da vida
privada adquirem publicidade, gerando a renovação cons-
tante da cultura, num trabalho incessante de construção da
própria democracia. Racismo, sexismo, xenofobia, homofo-
bia etc., remetem ao autoritarismo e ao conservadorismo
moral, que implicam em subtrações da cidadania. Portan-
to, identidades depreciadas evocam situações vivenciadas,
tanto no público quanto no privado, que expõem formas
de sujeição, geradas na dinâmica dos relacionamentos so-
ciais, cujos significados atribuídos pelos atores expressam
elementos da cultura.
No contexto da pandemia, a sociedade foi atingida
distintivamente em termos de classes sociais, gênero, raça,
geração, etnia e lugar de moradia. No entanto, se a aná-
lise da questão permite identificar a variabilidade na in-
tensidade e na forma como a doença atingiu os diferentes
grupos, a situação de um modo geral se tornou objetiva
para maior parte da população no Brasil. Ficou evidenciado
o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) diante
de uma demanda crescente por tratamento da doença. Em
decorrência dessa fragilidade, o isolamento social surgiu
como uma medida primordial para minorar ou tornar ad-
ministrável os efeitos da pandemia. Tal medida, no entanto,
tornou-se uma “patologia” e tem se mostrado um fator de
vulnerabilidade social, um efeito perverso das medidas de
prevenção. Vale lembrar que isolar-se significa apartar-se,
12 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

esconder-se da possibilidade de controle institucional ou


de outros. Na perspectiva durkheimiana, o isolamento so-
cial seria um risco à sociedade, pois o enfraquecimento dos
vínculos sociais e o afrouxamento do controle social deixa-
riam os indivíduos livres permitindo que agissem conforme
a própria vontade, podendo, portanto, ser um fator de ano-
mia social. Neste ponto de vista, a relação entre isolamento
e vulnerabilidade social não se resumiria a uma questão do
ambiente privado, passando a se referir também a um pro-
blema relacionado à organização da ordem pública em tem-
po de pandemia. Esta pode ter sido uma lição importante
para a reflexão acerca dos efeitos das mudanças em curso,
tal como o home office, o ensino online, e todas as novas
modalidades de confinamento em casa, onde os processos
de individualização tendem a ser ainda mais intensificados.
No Brasil, o “social” surgiu como o problema da pan-
demia em razão das múltiplas desigualdades sociais exis-
tentes. O enfrentamento da situação tornou imprescindível
o planejamento das formas de intervenção, pela necessida-
de de reunir medidas de vigilância epidemiológica, assis-
tência social e segurança pública. Neste sentido, superar
os desafios trazidos com a propagação do contágio impli-
cava em ultrapassar a mera relação saúde-doença, na qual
a saúde significa apenas ausência de doença. Enfrentar a
pandemia implicava então em considerar a princípio as
condições objetivas em termos desigualdade em termos de
renda, condições de moradia e acesso às políticas sociais.
Uma resposta do governo se mostrava urgente e a proteção
social se fazia inevitável.
Neste contexto, o Sistema Único de Saúde forneceu o
alarme para a situação da propagação do contágio do novo
coronavírus, enquanto o Sistema Único de Assistência Social
trouxe à tona os efeitos da pandemia no cotidiano das popu-
lações em situação de vulnerabilidade total, decorrente da
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 13

falta de recursos financeiros e de recursos de poder. Grande


parte da população desempregada, precarizada ou que foi
perdendo seus empregos durante a pandemia tornara-se um
problema político inadiável.
Da parte do governo, as respostas à pandemia têm
sido dadas a partir de uma política pandêmica sem comando
e sem plano de enfrentamento, e não há, até o momento,
coordenação das ações entre os níveis de gestão federal, es-
tadual e municipal. Nas políticas sociais, a ação aparece con-
centrada sobre a transferência de uma renda mínima emer-
gencial. Por sua vez, este governo tem acentuado o risco à
saúde, a ponto de ser denunciado no Tribunal Penal Interna-
cional, em Haia, por ter cometido genocídio contra os povos
indígenas e, posteriormente, por crime contra a humanidade,
somente neste ano de 2020.
De certo modo, mesmo antes da pandemia, os direitos
humanos já se mostravam em declínio. O neoconservadoris-
mo de inspiração americana adaptado ao Brasil com o cres-
cimento dos evangélicos na política, a influência da bancada
ruralista e dos políticos da segurança pública, conseguiu reu-
nir na personalidade paranoica de Bolsonaro os paradoxos
dessa fusão. Contrário a tudo que defende os direitos huma-
nos, este governo tem desafiado as orientações da Organi-
zação Mundial de Saúde e chegou a ser considerada a pior
gestão do mundo na pandemia, pelo jornal Washington Post1.
A confirmação veio nos dados do Índice de Percepção da De-
mocracia, coletados no período entre 20 de abril e 3 de junho,
que situaram o Brasil na última posição no ranking mundial
de avaliação das respostas do governo à pandemia2.

1 THE WASHINGTON POST. Leaders risk lives by minimizing the coro-


navirus. Bolsonaro is the worst. 14/04/2020.
2 FREY, João. Governo Bolsonaro tem a pior avaliação mundial de enfren-
tamento à covid-19. Congresso em Foco. 17/06/2020.
14 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Em termos de gestão das políticas públicas, Jair Bolso-


naro é incompetente, tosco, autoritário, porém um mal ne-
cessário para a direita, que o prefere no lugar de qualquer
representante da esquerda. É isso que o transforma no Mito.
Ele ainda representa a possibilidade de vitória nas eleições
e, portanto, de realização dos interesses do capital contra os
limites impostos pelos direitos humanos. Ou seja, o enfra-
quecimento dos direitos humanos exprime a voracidade da
acumulação do capital, na sua ânsia de romper de vez o pac-
to da socialdemocracia, que tentava enquadrar no direito as
condições de acumulação capitalista.
Durante a pandemia, o Banco Central liberou os com-
pulsórios que deveriam ser impostos aos bancos no valor de
R$ 1,216 trilhão, o equivalente a 16,7% do PIB3. Dados da
ONG Oxfam revelaram que 42 bilionários brasileiros ganha-
ram 34 bilhões de dólares durante a pandemia, acumulando
cerca de R$ 820 bilhões4. Observa-se, com isso, que enquanto
os trabalhadores estão perdendo seus empregos, enfrentan-
do dificuldades para obter os R$ 600,00 do governo, os mais
ricos estão sabendo como tirar proveito da situação, acele-
rando a capacidade de ampliação do seu capital. Fica claro
que nem todos perderam nessa pandemia.
Voltando a atenção para a dívida pública, constata-se
que em 2019, o governo federal pagou R$ 2,8 bilhões por dia
em juros e amortizações, um total de 38,27% dos gastos. Até
maio de 2020, o gasto já estava em R$ 4,3 bilhões por dia, to-
talizando 566 milhões, 740 mil, 914 reais, o que corresponde
a 48, 15% do total de gastos5. Diante desta violência, a gravi-

3 AGÊNCIA ESTADO. Com crise, Banco Central já anunciou R$ 1,2 tri-


lhão em recursos para bancos. Infomoney, 23/03/2020.
4 PLINIO, Teodoro. Oxfam: 42 bilionários brasileiros ganharam 34 bilhões
de dólares durante a pandemia. Revista Forum, 27/07/2020.
5 Dados da Auditoria da Dívida Cidadã. Disponível no portal eletrônico:
https://auditoriacidada.org.br/
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 15

dade da situação de violação de direitos se acentua na medi-


da em que não resta o suficiente do orçamento público para
o seu enfrentamento. Além disso, a defesa de uma ideologia
“salvacionista” pentecostal, que relega tudo à esfera privada
e aos valores cristãos da sociedade tradicional, lança os di-
reitos humanos numa disputa inglória, convertendo-se em
risco à democracia.
Este livro chega neste contexto, tratando da temática
dos direitos humanos, conferindo publicidade às injustiças
que, em grande parte, recaem sobre a política de assistência
social, porta de entrada das queixas e das necessidades so-
ciais que se tornam públicas, requerendo uma intervenção
profissional ou mesmo uma resposta na forma de um novo
programa. Os capítulos aqui reunidos denotam a resistência
de um grupo de pesquisadores contra as obstruções dos ca-
nais de publicização das situações de violação de direitos so-
fridas durante a pandemia. O percurso teórico-metodológico
de apreensão dos fenômenos sociais se orienta na perspecti-
va da interseccionalidade não apenas por integrar as dimen-
sões de raça, gênero e classe social, mas também por tratar
da intersecção do sociojurídico e do assistencial no plano da
intervenção social. Trata-se de um registro histórico impres-
cindível de análises acerca de determinadas violações de di-
reitos cometidas em contexto de pandemia do coronavírus
no Brasil, constituindo-se um trabalho elaborado com o má-
ximo de primor por pesquisadores que claramente assumem
a defesa intransigente dos direitos humanos6.

6 Para maiores informações, ver GEERTZ, Clifford. Interpretação das


Culturas. RJ: LTC, 1989.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 17

APRESENTAÇÃO
Nivia Valença Barros
Lobelia da Silva Faceira
Josélia Reis
Joice da Silva Brum

E
ste livro é fruto das reflexões e debates produzidos du-
rante o Curso de Extensão “Direitos Humanos, Inter-
seccionalidade e Isolamento” organizado pelo grupo
de orientação da Profª Drª Nivia Valença Barros, compos-
to pela pós-doutoranda Profª Drª Lobelia da Silva Faceira
(UNIRIO); pelas doutoras Josélia Reis (ex-orientanda e atual-
mente vice coordenadora de grupo de pesquisa NUDHESC -
UFF) e Sandra Monica da Silva Schwarzstein (membro do nú-
cleo de pesquisa NUDHESC - UFF); pelas doutorandas Profª
Wilma Pessôa (Departamento de Sociologia da UFF), Joice
da Silva Brum, Ida Cristina Rebello Motta e pelo doutoran-
do Marcelo Ricardo Prata; pela mestra Sheila Brum (membro
do grupo de pesquisa NUDHESC - UFF) e pelas mestran-
das Ana Beatriz Quiroga, Rosilene Pimentel, Karla Amaral
e Vania Quintão, que encontram-se  vinculadas ao Núcleo
de Pesquisa sobre Direitos Humanos, Sociais e Cidadania
(NUDHESC/UFF), do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Política Social da Universidade Federal Fluminense. 
O curso foi realizado no período de 11 de julho a 08 de
agosto de 2020, em ambiente virtual, de forma interativa, isto
18 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

é, os encontros não eram gravados previamente, aconteciam


“ao vivo” e permitiam a interlocução com todos os presentes.
Esta foi a forma que encontramos para democratizar nossos
estudos e produções, em meio a pandemia de COVID-19, que
obrigou muitos países no mundo a manter sua população em
isolamento. No Brasil, o isolamento devido à pandemia ini-
ciou-se em março e ocorreu em contextos específicos: mui-
tas crises políticas, com a negação das questões científicas e
médicas por parte do governo federal e aliados; escândalos
de desvios de verbas da área da saúde; pressões para que a
população voltasse aos locais de trabalho sem, contudo, ha-
ver uma política para garantir esse retorno; obrigatoriedade
do trabalho remoto (realizados nas próprias residências) sem
o devido preparo; alto índice de mortalidade, principalmente,
da população mais pobre; aumento da violência doméstica;
desemprego; demora na concessão do auxílio governamental
para a população pobre; inadequação no processo de sociabili-
dade de crianças e adolescentes (educação e demais atividades
de participação social); isolamento sem acompanhamento de
proteção social de muitos idosos. Estes, entre outros contextos,
fizeram parte de uma conjuntura de instabilidade, angústia e
dor emocional. Diante deste quadro, a realização deste curso
foi um ato de resistência e de construção de pontes e saberes.
Assim, a partir da necessidade de pensar com urgên-
cia os desafios postos pela pandemia, nós, profissionais, pes-
quisadores e acadêmicos de diversas áreas de atuação, ana-
lisamos, a partir de inserções variadas no campo da política
social, os desafios na perspectiva da garantia de direitos hu-
manos e sociais frente aos impactos produzidos pela pande-
mia de COVID-19.
Os capítulos que compõem a coletânea mantêm como
fio condutor a concepção de Direitos Humanos e Intersec-
cionalidade, sendo relevante conceituar brevemente estas
categorias teóricas.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 19

Os direitos humanos consistem em direitos universais


garantidos a todo e qualquer indivíduo independentemente
de sua classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou posicio-
namento político. Segundo a Organização das Nações Unidas
(ONU), os direitos humanos são “garantias jurídicas univer-
sais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões
dos governos que atentem contra a dignidade humana”. São
exemplos de direitos humanos o direito à vida, o direito à
integridade física, o direito à dignidade, entre outros.
Os direitos humanos são garantias históricas, que mu-
dam ao longo do tempo, adaptando-se às necessidades espe-
cíficas de cada momento, sendo organizados por cada país
por meio de negociação com organizações como a ONU e em
encontros e conferências internacionais.
A categoria teórica de interseccionalidade é utilizada a
partir do conceito tratado por Kimberlé Crenshaw:

A interseccionalidade é uma conceituação do proble-


ma que busca capturar as consequências estruturais
e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma
pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de
classe e outros sistemas discriminatórios criam de-
sigualdades básicas que estruturam as posições re-
lativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.
Além disso, a interseccionalidade trata da forma
como as ações e políticas específicas geram opres-
sões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

Utilizamos a interseccionalidade como uma ferramen-


ta metodológica, não somente fazendo uma referência às fe-
ministas negras, mas seguindo a direção dada de não hierar-
quizar as opressões.
20 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Os autores, cônscios da complexidade e relevância


do tema, não têm qualquer preocupação de esgotá-lo, mas
de publicizar reflexões, estudos e resultados de pesquisas,
buscando contribuir para adensar o debate sobre os Direitos
Humanos e a interseccionalidade nos diversos campos da
política social, dando ênfase aos sujeitos sociais.
O livro é constituído por oito capítulos divididos em
três seções, além da apresentação, que se propõem a debater
os desafios dos direitos humanos e sociais no cenário con-
temporâneo, destacando os impactos e agravamentos de-
sencadeados pela pandemia do COVID-19. A primeira seção
intitula-se “Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamen-
to: Os Desafios no Campo Sociojurídico” e é constituída por
três capítulos que apresentam o processo de intensificação
da violação de direitos no campo sociojurídico. A segunda
seção “Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento:
Questões Raciais e de Gênero” é composta por três capítulos
que apresentam debates e reflexões sobre a questão racial
e de gênero, dando destaque para os processos de violação
de direitos e intensificação da violência contra mulheres
e da população LGBTI+ no contexto de isolamento social. 
A terceira seção, “Direitos Humanos, Interseccionalidade e Iso-
lamento: Os Desafios no Âmbito do Protagonismo e do Traba-
lho Feminino” é formada por dois capítulos, que apresentam
o debate sobre os desafios do trabalho e o protagonismo fe-
minino durante o período da pandemia de COVID-19. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 21

PRIMEIRA SEÇÃO - DIREITOS HUMANOS,


INTERSECCIONALIDADE E ISOLAMENTO:
OS DESAFIOS NO CAMPO SOCIOJURÍDICO 

O primeiro capítulo, As (Im) possibilidades do Serviço


Social e da Psicologia no Campo Sociojurídico no Período Pan-
dêmico, busca apresentar uma reflexão sobre a intervenção
das equipes técnicas no âmbito jurídico, a partir da inserção
profissional e em pesquisa das autoras. Discutem-se, a partir
do contexto da pandemia de COVID-19, e do isolamento por
ela imposto, os limites e possibilidades de contribuição do
Serviço Social e da Psicologia para a garantia de direitos de
um grupo particular de usuários dos serviços: pessoas que
estão cumprindo penas e medidas restritivas de direitos. 
O segundo capítulo, Adolescência e Juventude - Puni-
ções e as Entrelinhas da Socioeducação apresenta uma reflexão
sobre a adolescência e juventude no Brasil, com a marca per-
versa da desigualdade social, de segregação e de negligências.
Uma sociedade patriarcal, branca, hierarquizada, misógina
e excludente, estruturação que só recentemente encontrou
formas de diminuir a mortalidade precocemente, na primeira
infância, para estabelecer uma política genocida, de punição
e de privação de liberdade na adolescência e encarceramento
na juventude, sob o pretexto de inclusão em um processo de
socioeducação, que ainda não se materializou. 
O terceiro capítulo, Violência e Prisão: os Desafios da
Garantia de Direitos no Cenário Contemporâneo analisa os
processos de produção e reprodução da violência no ce-
nário contemporâneo e os desafios da garantia de direitos
no sistema penitenciário brasileiro. O estudo parte de uma
análise dos avanços e contradições que a Lei de Execuções
Penais (Leis 7.210) efetiva na perspectiva do reconhecimen-
to dos direitos da população carcerária e os desafios de sua
consolidação na sociedade capitalista, intensificados pela
pandemia de COVID-19.
22 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

SEGUNDA SEÇÃO - DIREITOS HUMANOS,


INTERSECCIONALIDADE E ISOLAMENTO:
QUESTÕES RACIAIS E DE GÊNERO 

O primeiro capítulo, Violência de Gênero Contra Mu-


lheres e Meninas e os Agravamentos em Época de Isolamento
Social promove reflexões sobre a violência doméstica e fa-
miliar de gênero contra mulheres e meninas, o seu agra-
vamento no contexto do isolamento social e as principais
respostas da política pública para o seu enfrentamento.
Busca-se destacar os múltiplos fatores que permeiam o “fi-
car em casa” para mulheres e meninas evidenciando um
preocupante aumento das situações de violência, pensan-
do-se na intersecção de diferentes discriminações que atin-
gem mulheres e meninas. O capítulo também analisa os da-
dos sobre o aumento da violência e feminicídio, os efeitos
da diminuição da procura por serviços especializados e as
principais respostas de políticas públicas para o enfrenta-
mento destas situações para a garantia dos direitos huma-
nos de meninas e mulheres. 
O segundo capítulo, Os processos de Isolamento Social
para a População LGBTI+ - para Além da Pandemia apre-
senta reflexões sobre o isolamento social imposto à parcela
significativa da população LGBTI+ em suas vivências co-
tidianas. Os autores traçam um paralelo com algumas das
questões vividas pela população devido à pandemia causa-
da pelo coronavírus, apresentando dados estatísticos sobre
as violências contra pessoas LGBTI+. O capítulo também
problematiza elementos políticos e éticos que fundamen-
tam o ódio contra a comunidade LGBTI+, resultando na
necessidade de um olhar mais atento para a compreensão
e enfrentamento da LGBTIfobia em tempos de pandemia. 
São discutidos os efeitos do isolamento vividos e a vul-
nerabilidade da população LGBTI+, buscando, da mesma
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 23

forma, analisar o papel do Estado e a carência de políticas


públicas efetivas, como por exemplo, as ações dos movi-
mentos sociais LGBTI+ diante dos efeitos do isolamento.
O terceiro capítulo Violência Racial no Brasil no Contexto
da Pandemia de COVID-19 visa promover uma reflexão ini-
cial sobre como a pandemia impactou a violência racial no
Brasil em seus múltiplos aspectos: históricos, sociais, eco-
nômicos, políticos, culturais, de gênero e também sobre os
aspectos subjetivos que permeiam estes contextos. Tais re-
flexões são discutidas partir de conceitos importantes da
análise teórica do fenômeno do racismo estrutural e de
suas características no Brasil em relação às questões como
classe, gênero, movimentos sociais, interseccionalidade e
violência institucional, em especial. Nesse sentido, desta-
ca-se, em primeiro lugar, as especificidades da pandemia
no modo como impacta a vida social, na medida em que
impõe condições e limites aos padrões de relações sociais
cotidianas em vários de seus aspectos, em geral, e no as-
pecto da violência, em particular. A seguir, reflete como o
impacto da pandemia se diferencia, no Brasil, conforme os
grupos sociais, suas condições de vida e status. Busca-se
assim perceber a complexidade dessa relação, sua multipli-
cidade e interseccionalidade. A partir daí, debruça sobre a
relação entre pandemia, violência e racismo, considerando
a discussão do racismo no Brasil, suas características prin-
cipais no plano estrutural e sua manifestação institucional,
através da violência do Estado, e, no social, como violência
de gênero e de classe. Por fim, trata da dialética do racismo
em tempos de pandemia e de “pandemônio”, analisando o
papel do Estado brasileiro nas atuais políticas e práticas
dirigidas à população negra e periférica e como elas atuam
num contexto excepcional de controle sanitário.
24 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

TERCEIRA SEÇÃO - DIREITOS


HUMANOS, INTERSECCIONALIDADE E
ISOLAMENTO: OS DESAFIOS NO ÂMBITO
DO PROTAGONISMO E DO TRABALHO
FEMININO 

O primeiro capítulo, Movimento Feminista, Interseccio-


nalidades e as Táticas de Protagonismo apresenta reflexões
sobre o Movimento de Mulheres e as táticas de protagonis-
mo feminino adotadas em um período de isolamento. As
autoras destacam a importância dos movimentos sociais e
do movimento feminista para as conquistas das mulheres e
de seu protagonismo social. Destacam a Economia Solidária
para as mulheres, como uma tática que surge para a geração
de renda com possibilidade de autonomia financeira e esta-
belecimento de outros tipos de vínculos e relações de traba-
lho, bem como a organização coletiva com outras mulheres.
As reflexões são pautadas na interseccionalidade, classe, gê-
nero e  raça e correlacionam tais contextos com o isolamento
social imposto pela pandemia de COVID-19. 
O segundo capítulo, Mulher, Trabalho e Intersecciona-
lidades: Isolamento no Contexto da Pandemia de COVID-19
apresenta reflexões sobre os efeitos do isolamento em tem-
pos da pandemia de COVID-19, para mulheres trabalhado-
ras que também acumulam as tarefas na esfera privada. As
autoras se pautam na interseccionalidade - classe, raça e
gênero, bem como sobre o papel dos movimentos feminis-
tas, procurando assim, estabelecer a compreensão sobre os
desafios da mulher na árdua tarefa de agregar ao seu co-
tidiano múltiplas responsabilidades, nos espaços públicos
e privados e a potencialização deste último em tempos de
isolamento. Destaca também a diferenciação entre serviço
doméstico e o trabalho doméstico realizado pelas emprega-
das domésticas.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 25

É possível dizer, considerando a relevante contribuição


de cada uma das autoras e autores, que o livro aponta as
contradições e desafios no âmbito da garantia dos direitos
humanos e sociais de grupos e sujeitos em situação de vul-
nerabilidade social, ressaltando a intensificação de diversas
formas de exclusão e violência, durante o período de distan-
ciamento social, ocasionado pela COVID-19.
Esperamos assim, que esta produção elaborada por
pesquisadoras e pesquisador possa colaborar para o apro-
fundamento de outras tantas reflexões sobre as temáticas
aqui abordadas. Destacamos que somente a vivência em um
grupo de pesquisa tornou este livro possível.
P RIMEI RA SEÇÃO

Direitos humanos,
Interseccionalidade e Isolamento:
Os desafios no Campo Sociojurídico
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 29

AS (IM) POSSIBILIDADES DO
SERVIÇO SOCIAL E DA PSICOLOGIA
NO CAMPO SOCIOJURÍDICO NO
PERÍODO PANDÊMICO

Josélia Reis
Sheila Brum

Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as


pessoas falarem e de seus discursos proliferarem in-
definidamente? Onde, afinal, está o perigo? 
(Michel Foucault, 2016)

O
objetivo deste capítulo é a apresentação de uma re-
flexão sobre a intervenção das equipes técnicas, com-
postas por assistentes sociais e psicólogos, no âmbito
jurídico, a partir da inserção profissional e em pesquisa das
autoras, em um momento histórico específico. Discute-se, a
partir do contexto da pandemia de COVID-19, e do isolamen-
to por ela imposto, os limites e possibilidades de contribuição
do Serviço Social e da Psicologia para a garantia de direitos
de um grupo particular de usuários dos serviços: pessoas que
estão cumprindo penas e medidas restritivas de direitos. O fio
condutor nesta trajetória é o conceito de direitos humanos
numa perspectiva dialética, tal como nos sugere Jefferson Lee
(2014, p.245), ao sinalizar que direitos são sempre sociais e que
também são sempre humanos. Além disso, importante ressal-
tar que existem “dimensões dos direitos humanos estritamen-
te ligadas a dimensões jurídicas da vida social” (idem, p.277). 
30 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Assim, ao tratar das formas como a sociedade se re-


laciona com os sistemas de justiça, cuida-se de questões
que envolvem os direitos humanos, seja para a defesa de
direitos individuais, coletivos ou difusos, seja na condição
de pessoa a quem foi dirigida uma sanção judicial em virtu-
de da violação das normas em uma determinada sociedade.
A aplicação de penas e medidas alternativas, sanções em
tese mais leves e que deveriam substituir o encarceramen-
to, demandam no Brasil, de uma forma geral, o acompa-
nhamento de Equipes Técnicas compostas por assistentes
sociais e psicólogos. 
Inicialmente, este trabalho foi desenvolvido por pro-
fissionais do quadro do Poder Judiciário, mas vem sendo
paulatinamente deslocado para acompanhamento pela rede
da política de assistência e, eventualmente para a atuação de
profissionais autônomos, contratados para avaliação pontual
no início da execução.  Neste sentido, do ponto de vista da
estrutura para a realização do trabalho de acompanhamento
das pessoas em cumprimento de penas e medidas alternati-
vas, esbarra-se num primeiro limite que é a falta de estrutura
(Sierra e Reis, 2018, p.137)  acompanhada de uma demanda
crescente, por exemplo, do trabalho de assistentes sociais,
principalmente, cujas condições de trabalho  são, antes de
tudo, precarizadas. 
Diante dos desafios postos, observa-se que o primeiro
limite se dá justamente pela estrutura dos serviços. Embo-
ra esta questão não seja aprofundada neste momento, urge
sinalizar, tal como Josélia Reis (2019) apresenta em sua tese
de doutoramento, para que a categoria e suas instituições
representativas e de fiscalização atentem para a sedutora ar-
madilha dos cadastros de profissionais para “trabalhar sem
concurso para o Judiciário”. 
Por outro lado, para as equipes que integram os qua-
dros permanentes das Instituições, a tensão e a disputa do
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 31

campo são uma constante, na medida em que as relações


neste âmbito são marcadas por poderes institucionalmente
constituídos e por forte hierarquia.
Pensar nas possibilidades e limites da atuação técnica
em determinados contextos institucionais ainda é considera-
do um clichê, ou seja, algo repetido, bem conhecido. Mas, ao
mesmo tempo, se reveste de importância na medida em que
permite analisar conjunturas, registrar momentos históricos
e organizar para a superação das questões que obstaculizam
a intervenção profissional. 
Assim, neste contexto que se estrutura a presente re-
flexão sobre a atuação do Serviço Social e da Psicologia no
âmbito jurídico, no que tange às possibilidades e limites da
contribuição desses profissionais durante o  período de isola-
mento social,  imposto pela pandemia de COVID-19, doença
causada pelo vírus SARS-Cov 2,  a qual  expõe e  potencializa 
desigualdades sociais produzidas pelo contexto neoliberal,
que, em muitos casos, avilta os direitos humanos das popu-
lações mais vulneráveis,  como  os pobres, negros, encarce-
rados, dentre outros. Parte-se da atuação cotidiana, a qual
é pensada a partir do acúmulo de reflexões realizadas em
pesquisas articuladas com a academia.  
Um dos elementos que integram esta análise é o mal
estar. E este encontra-se na vivência e no discurso dos usuá-
rios dos serviços, mas também se dá para os profissionais,
uma vez que há o contato direto com as mazelas vividas
pela população usuária e a inserção em um espaço marcado
por uma dissimetria de poderes, com ideários positivistas.
Desta forma, impacta tanto assistentes sociais, quanto psi-
cólogos, já que convivem diretamente neste espaço e em
contato frequente com situações de sofrimento, muitas ve-
zes “oriundo das condições materiais/afetivas produzidas
no contexto das desigualdades sociais da sociedade capita-
lista” (Pereira, 2010, p.164). 
32 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Pandemia, execução penal e ação profissional

A situação pandêmica tem tido como consequên-


cia uma mudança brusca e radical das relações sociais e da
economia mundial, com graves incidências sobre a saúde
mental da população planetária, conforme apontado por An-
tônio Guterres, Secretário Geral das Nações Unidas (2020).
E para os profissionais do campo psicossocial, trabalhadores
do Judiciário,  aponta para um desafio no que tange a uma
práxis que promova a garantia de direitos daqueles envolvidos
em  conflitos judiciais, em especial  os que buscam este espaço
por falta de acesso a benefícios previstos em lei  e os que  se
encontram em  cumprimento de penas alternativas. 
Inseridos em um espaço de trabalho com fortes traços
positivistas, marcado por relações de poder potencializadas
e por uma lógica hierárquica, conforme acima apontado,
esses profissionais precisam pensar  em formas de trabalho
que preservem o compromisso firmado em seus Códigos
de Ética - ambos amparados nos valores preconizados pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, e  que garan-
tam a prestação de um serviço de qualidade à sociedade, ain-
da que em uma situação adversa,  como a do momento, que
impõe limites ao trabalho presencial e que impacta a rede de
serviços das diversas políticas públicas. 
O lugar de fala das autoras é situado no Poder Judi-
ciário Federal, especificamente na esfera da Execução Penal,
com atuação em penas e medidas alternativas, também co-
nhecidas como restritivas de direitos. No Poder Judiciário Fe-
deral, tratam-se conflitos que têm necessariamente a União
Federal como uma das partes do processo. Assim, quando se
fala de penas e medidas alternativas na esfera federal, tra-
ta-se de crimes cometidos com menor risco à pessoa e que
envolvem a União, suas autarquias, empresas e fundações. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 33

Mas, o fato de se tratar de crimes contra a União e


com menor risco à pessoa, não exime seus autores do estig-
ma de terem em algum momento da vida entrado em confli-
to com as leis ou de serem denominados como criminosos.
E, por este motivo, há um desafio maior para a garantia de
direitos destes sujeitos, na medida em que um forte conteú-
do moral, de base cristã, permeia o imaginário social, arti-
culando a ideia de pena, a ser cumprida como restauração
por uma ação nociva à sociedade, com a penitência que faz
do sofrimento o elemento redentor do indivíduo. Na maio-
ria dos casos, a própria pessoa que está cumprindo a pena
e que é atravessada por ideias estigmatizantes, relaciona-
das àqueles que cometeram algum tipo de crime, vivencia
maior dificuldade em relação à situação processual, pois se
vê no lugar daqueles que passou a identificar como “anor-
mais”, “periculosos”...  Esta situação aponta para o que Go-
ffman (1975, p. 16) destaca sobre o indivíduo estigmatizado:

Seus sentimentos mais profundos sobre o que ele é


podem confundir a sua sensação de ser uma “pessoa
normal” um ser humano como qualquer outro, uma
criatura, portanto, que merece um destino agradável
e uma oportunidade legítima.

Observa-se, ainda, no que diz respeito aos relatos das


pessoas em cumprimento de pena,  o medo de julgamentos
morais e prejuízos sociais, o que leva à omissão da situação
processual dos indivíduos com os quais convivem, ocasio-
nando a falta de suporte de pessoas próximas para o enfren-
tamento das dificuldades geradas pelo processo penal. Esta
situação é, muitas vezes, identificada pela psicologia como
um fator ansiogênico. A questão se complexifica quando há
também, em alguns casos, adoecimento psíquico, os quais
ratificam a importância de um trabalho articulado com a
rede de assistência em saúde mental.
34 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

É importante pensar o lugar de onde se fala e o perfil


da população usuária, em se tratando da área penal, também
é importante ressaltar que não obstante o tipo de crime
cometido, estes indivíduos precisam da garantia de seus
direitos ao tempo em que se responsabilizam e respondem
por ações que prejudicaram a comunidade em geral. 
 Desta forma, um dos principais fatores que incidem e
causam impacto na vida das pessoas que  estão envolvidas
em uma situação penal, acusadas do cometimento de
um crime, é a imagem do criminoso, construída no senso
comum, por meio da indústria cultural como aquele sujeito
de alta periculosidade que tem como principal objetivo em
sua relação com o grupo social, causar o mal a quem o cerca.
Acontece que esta imagem não é só carregada de noções pré-
concebidas sobre o comportamento do criminoso, o racismo
estrutural delineia um perfil de classe que possui importante
recorte étnico racial a esta figura. 
O discurso oficial constrói uma narrativa onde as clas-
ses pauperizadas são vistas como perigosas e, portanto, de-
mandam controle social com vistas à manutenção da ordem,
ainda que de forma violenta. É por este motivo que uma incur-
são policial na favela, que resulte na morte de várias pessoas,
ainda é socialmente aceita no Brasil, embora seja criticada por
estudiosos e organismos de defesa dos direitos humanos. Po-
demos considerar tal discurso como herança das ideias lom-
brosianas de criminoso nato que, embora bastante criticadas
por diversos autores, deixaram forte marca no âmbito penal,
além da atuação da medicina e da psicologia, que no século
XX funcionaram como dispositivos fundamentais aos julga-
mentos e ofereceram elementos para o “conhecimento do cri-
minoso”, muitas vezes atribuindo graus de periculosidade às
pessoas e dando respaldo à práticas segregacionistas.
Segundo Maria Lúcia Karam (2010) houve uma “trá-
gica aliança reforçadora dos danos, das dores e enganos
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 35

que sustentam as nocivas ideias de punição, privação de li-


berdade, estigmatização e exclusão como suposta forma de
controle dos comportamentos etiquetados como “crimes”.
Cristina Rauter (2003, p. 84) chama atenção para o que de-
nomina de “exercício de futurologia”, prática relacionada
à  avaliação do grau de periculosidade e à possibilidade de
prever reincidências. Quanto a este aspecto, não se pode
negligenciar a atenção crítica às demandas dirigidas aos
profissionais no âmbito jurídico, sendo estas muitas vezes
permeadas por ideais classificatórios e normalizantes.
Tendo como matriz norteadora os compromissos pro-
fissionais e a estrutura da política de alternativas penais,
apontadas com grande ênfase no Manual de Gestão Para
as Alternativas Penais (2017), elaborado pelo  Departamen-
to  Penitenciário Nacional - DEPEN (Ministério da Justiça e
Cidadania), o papel da equipe técnica é construído na pers-
pectiva da viabilização da garantia de direitos, de forma que
os usuários tenham  preservadas sua  cidadania, dignidade
e liberdade. Tal garantia começa com o direito de escuta e
com  a  identificação de interesses, habilidades e necessida-
des, para que  seja realizado um plano de trabalho singular
com cada pessoa, o que inclui  a elaboração de um relatório
endereçado ao juízo com sugestão de instituição e atividade
para o cumprimento da pena alternativa, além de  encami-
nhamentos à rede de apoio e à rede de  serviços públicos.  
Conforme apontado por Patrícia Carneiro:

Para a efetivação do cumprimento das penas e me-


didas alternativas é necessária a existência de uma
rede social de apoio. Essa rede social é constituída
por instituições cadastradas (...) que se propõem a
receber beneficiários para cumprimento de penas e
medidas (CARNEIRO, 2006, p.41).
36 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Esta é uma práxis complexa e difícil, na medida em


que a ordem neoliberal, também inscrita no Judiciário,  está
comprometida com exigências de celeridade, de  produção e
impõe  restrições à escuta de um sujeito que se encontra em
um momento singular de conflito com a lei, o qual suscita,
para muitos,  sentimentos que esbarram no desamparo estru-
tural do humano e que são evidenciados  por meio de relatos
relacionados:  à insegurança com o futuro,  ao  medo da per-
da da liberdade e do convívio familiar, ao receio da  privação
de direitos e de seus meios de subsistência, vergonha perante
os seus pares, medo da perda de credibilidade pessoal  junto
a familiares, amigos, colegas de trabalho,  dentre outros.  Tais
situações, em alguns casos, podem ser deflagradoras ou po-
tencializadoras de situação de adoecimento psíquico.
Assim, a rede de serviços é utilizada num duplo movi-
mento: se por um lado é preciso conhecer e articular os ser-
viços para possíveis encaminhamentos das pessoas atendidas
na esfera criminal, por outro também se depende dos equipa-
mentos para que se possa efetivar a prestação dos serviços co-
munitários. Via de regra, a identificação e habilitação das ins-
tituições para recebimento das pessoas em cumprimento de
penas e medidas alternativas é seguida pelo acompanhamento
por parte dos membros da Equipe Técnica, os quais as dividem
em grupos seguindo a lógica da referência por técnico.  
Este trabalho requer de psicólogos e assistentes sociais
contatos telefônicos frequentes; visitas institucionais regu-
lares e, atualmente no contexto da pandemia, reuniões por
videoconferência onde se atualizam as questões institucio-
nais; discute-se a rotina do acompanhamento para gestores
recém-chegados e que nem sempre conhecem a existência da
parceria com o Poder Judiciário para a prestação de serviços
comunitários, além de estabelecerem planos individuais de
acompanhamento para cada prestador de serviços, respei-
tando seus limites; suas capacidades e viabilizando a inclu-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 37

são no espaço institucional por meio do desenvolvimento de


um trabalho que tenha relação com sua história, interesses e 
suas potencialidades. 
Há demanda, também, junto aos representantes ins-
titucionais e aos responsáveis diretos pelo acompanhamen-
to dos sujeitos em cumprimento das penas e medidas alter-
nativas de uma reflexão sobre estas serem um direito dos
sujeitos, uma medida de responsabilização necessária para
determinadas situações de infração penal e para a superação
da ideia não só de periculosidade, mas de penalidade des-
vinculada da noção de penitência, esta última relacionada a
um forte conteúdo moralista. Superar a cultura punitivista
é um desafio de grande monta e requer dos profissionais a
busca constante pela qualificação e o exercício intelectual,
que não necessariamente começará na academia, mas an-
tes, na prática profissional e que pode se articular com as
produções acadêmicas no sentido de consolidar as reflexões
do campo sociojurídico. 
É preciso esclarecer que a demanda pela atuação
técnica junto aos usuários no campo sociojurídico tem
relação direta com a multiplicação de estatutos e normas
legais tanto no que se refere ao âmbito criminal, quanto ao
que Vania Sierra e Josélia Reis (2018, p. 142) destacam, quan-
to à proteção social. Assim, para o Serviço Social:

Por se tratar de uma profissão em que a defesa dos


direitos da classe trabalhadora está definida no Có-
digo de Ética e no seu projeto ético-político, o debate
sobre o Poder Judiciário e o aumento das demandas
judiciais (...) não pode ser apenas lateral, já que o
Direito e o Poder Judiciário estão situados no centro
das democracias constitucionais.  

Esta demanda esbarra com situações, em alguns ca-


sos, onde o adoecimento psíquico é uma realidade, em ou-
38 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

tros há questões da saúde geral ou aspectos socioeconômi-


cos preponderantes que podem se relacionar com a situação
processual e/ou interferir e até obstaculizar o cumprimento
das sanções impostas. Nestes momentos, a articulação com a
rede de serviços torna-se um imperativo.
No que tange às situações em que há um compro-
metimento da saúde mental são observados, em alguns ca-
sos, quadros de  depressão, alterações cognitivas, ansiedade,
alterações do sono, fobias, dentre outras situações, as quais 
são motivo de articulação específica  com a rede de saúde
mental para o cuidado e também  de maior atenção quanto
ao acompanhamento do cumprimento da pena, principal-
mente quando a modalidade diz respeito à prestação de ser-
viços comunitários.   Quanto a este aspecto, no que tange à
psicologia, Leila Torraca, na apresentação do livro “Temas de
Psicologia Jurídica” (2000, p.7) aponta que: 

A psicologia adjetivada como jurídica deve dedi-


car atenção especial à saúde mental dos indivíduos
atendidos, promovendo uma reflexão crítica dos im-
passes e interrogantes constantemente dirigidos aos
que atuam neste âmbito. Rejeita-se o papel exclusi-
vamente pericial, influência do ideário Positivista,
quando vislumbrava-se que desvendar segredos ou
conteúdos psíquicos contribuiria para uma efetiva
aplicação das leis.

Outras situações que envolvem a dinâmica do traba-


lho e que suscitam maiores desdobramentos são as pessoas
que se encontram em situação de vulnerabilidade, deman-
dando a intervenção do Serviço Social para encaminhamen-
to de providências no sentido de orientação e articulação
com a rede de serviços para garantia de acesso às políticas
públicas como, por exemplo, saúde e assistência social.  
Importante ressaltar que a demanda encaminhada
pelo Direito, conforme já sinalizado, na maioria das vezes, é
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 39

atravessada  pelas marcas do positivismo penal - que possui


ideais avaliativos vinculados à defesa social e às concepções
preconceituosas em relação àqueles que cometeram crime - e
pelo  modelo penal  retributivo que pode justificar ideais de
vingança, ambos com consequentes riscos de negligência de
aspectos importantes da subjetividade  e do mal-estar que
aflige a maioria daqueles que são apenados. 
Jean Oury propõe em O Coletivo, a necessidade de se
questionar a má utilização das hierarquias, na medida em
que elas são esmagadoras das iniciativas. Ele aponta a neces-
sidade de os profissionais se articularem, o que é uma reco-
mendação importante para aqueles que trabalham com pes-
soas em cumprimento de pena que, embora não estejam em
um espaço como o exemplificado por Oury, estão expostos à
forte hierarquia institucional.
Atente-se ao fato de que um sujeito, quando classifi-
cado “criminoso”, tendo ele cometido crime ou sido injus-
tamente condenado (situação possível de acontecer), fica
exposto ao julgamento dos demais, aos mais diversos pre-
conceitos e à exclusão. Não são raros aqueles que omitem a
vivência criminal das pessoas de sua convivência e temem
que as mesmas tomem conhecimento do fato de estarem
cumprindo pena, ainda que alternativa, pela preocupação
com a estigmatização, sendo este também um fator ansiogê-
nico. Neste sentido, para Goffman:

(...) diante da necessidade de manipulação de in-


formação sobre algo pessoal, as relações estabeleci-
das  ficam comprometidas, carentes de informações
compartilhadas e, mesmo relações recentes, podem
constituir um perigo quanto à exposição de informa-
ções (GOFFMAN, 1975, p.98). 

Há o medo da não inserção no mercado de trabalho e


da demissão por descoberta do processo penal. Não apenas
40 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

demissões, mas também divórcios são relatados como decor-


rentes da situação processual. De uma forma geral, a crimina-
lização gera impactos em vários âmbitos da vida de uma pes-
soa, dentre eles o familiar e o social, além de prejuízos à saúde.
Levando-se em consideração que o direito é um dis-
positivo civilizatório de grande credibilidade na sociedade
ocidental, podemos supor que não é sem consequências psí-
quicas ser por ele classificado como criminoso. No caso da
maioria das pessoas por nós atendidas, a vivência é de inten-
so mal-estar, conforme anteriormente mencionado. Em seus
relatos demonstram temor de serem causa de decepção para
pais e filhos, de serem julgados ou depreciados pelas pessoas
de sua convivência. Há uma preocupação em defenderem a
autoimagem, enfatizam que nunca tiveram problemas com a
justiça, o que é fato entre a maioria, e que estar sub judice é
motivo de constrangimento. 
No contexto de trabalho diário, as pessoas que apre-
sentam demandas jurídicas, endereçadas aos profissionais da
equipe técnica, demonstram perplexidade e apreensão com a
condenação jurídica, o que enfatiza a necessidade de escuta,
principalmente quando descumprem a pena alternativa, si-
tuação em que ela pode ser convertida em prisão.
Diante da situação complexa que apresenta o Judiciá-
rio, conforme acima especificada, a práxis deve ser pauta-
da em reflexões e interrogações constantes que não se res-
trinjam às  atividades avaliativas, mas que incluam a leitura
crítica de um contexto social que limita e/ou impede o acesso
aos direitos, o que muitas vezes é o motivo do aumento
da criminalidade. Um contexto que conclama o ódio e o
recrudescimento penal, com expectativas de classificação,
segregação e extermínio como solução para os conflitos
sociais, onde o direito penal, muitas vezes, acaba por ratificar
a violência policial, principalmente em seu aspecto seletivo
e de cunho racista. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 41

Conforme apontado em dissertação de mestrado por


Sheila Brum Fonseca (2018), ao falar sobre as Teorias da Pena:

A pena, enquanto resposta ao evento denominado


crime, vem sendo, ao longo do tempo, naturalizada
como solução exclusiva para o mal-estar causado
por tal evento. Na maioria das vezes, caracterizada
por coação, privação e violência estatal legitimada, a
punição é justificada por diversas teorias, cada uma
delas difusora de concepções específicas e, a nosso
ver, simplificadas sobre o crime, o criminoso e as for-
mas de controle de ambos (FONSECA, 2018, p.24).

O incômodo social gerado pelo crime e pela violência


é manipulado pela mídia, por meio da espetacularização dos
mesmos e da criação de “bodes expiatórios” para o mal-es-
tar na civilização. São enfatizados os crimes cometidos por
jovens, negros, pobres, moradores de favelas, o que ocorre
sem o devido enquadramento das situações de privação e de
desigualdade social às quais são submetidos. Igualmente vio-
lento, o contexto social de desigualdade ceifa sonhos, possi-
bilidades de desenvolvimento social e, muitas vezes, vidas de
pessoas na mais tenra idade.
O enquadramento da situação criminal focado em de-
terminadas raças e populações, vem gerando, ao longo do
tempo, a busca de respostas para o crime em explicações re-
lacionadas a um déficit no criminoso, portador de anomalias
físicas ou psíquicas. Situação que transfere para determina-
dos grupos os diversos problemas gerados pela ordem ca-
pitalista vigente, que privilegia poucos, em detrimento dos
direitos de muitos. 
Como profissionais do campo psicossocial, cujo com-
promisso é firmado em alinhamento com os princípios dos
direitos humanos, com a escuta de sujeitos e a defesa de seus
direitos, entende-se que quanto maior a hostilidade penal e
42 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

as exigências  de celeridade nas atividades que movimentam


a máquina penal, maior a necessidade e importância de uma
atuação compromissada junto às pessoas em cumprimento
de pena e da ratificação de nossos compromissos profissio-
nais. Principalmente porque há um crescente antagonismo
entre a celeridade da punição e vagar letárgico da garantia
de direitos. Faz-se necessário, portanto, evitar qualquer atua-
ção que compactue com injustiças e arbitrariedades; assim
como a atenção ao imaginário social que associa crime e vio-
lência às parcelas mais vulneráveis da população. 
Em um trabalho de 1930, intitulado o “Mal-estar na
Civilização”, Freud aponta que o homem vive um mal-es-
tar em relação às exigências da pulsão e as restrições da
civilização. Para respeitar as leis, o homem precisa pagar
um alto preço de renúncias. Há momentos nos quais as
restrições civilizatórias não são suficientes para conter a
agressividade, que não é exclusiva de determinados grupos. 
Segundo Freud,

[...] os homens não são criaturas gentis que desejam


ser amadas, são criaturas entre cujos dotes pulsio-
nais deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Assim, o próximo é, para ele, alguém
que o tenta a exercer sobre ele sua agressividade,
explorar sua capacidade de trabalho sem compen-
sação, utilizá-lo sexualmente sem consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, torturá-lo e matá-lo (FREUD, 1930, p.33).

O fundador da psicanálise aponta a agressividade


como uma possibilidade do humano em geral. Fazendo parte
do convívio entre pessoas, desde os tempos primórdios, ela
não é atribuída a grupos específicos. A civilização impõe res-
trições, por meio do direito, com o objetivo de impedir que
o gozo de alguns  coloque em risco os direitos dos demais.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 43

Entretanto, não são difíceis de constatar as mais diversas si-


tuações que escapam a tal controle. 
Ainda segundo Freud (1930) a garantia de que a lei
não será violada a favor de um indivíduo é uma exigência da
civilização, o que, no caso do Brasil, não tem ocorrido desta
forma e tem gerado prejuízo e vulnerabilidade para muitos.
Segundo Birman (1999, p. 281):  

Com efeito, o Brasil tem hoje uma das constituições


mais avançadas do mundo, coisa para ninguém botar
defeito, mas os princípios dessa constituição, infe-
lizmente, não funcionam nas práticas sociais da jus-
tiça. Podemos afirmar, sem pestanejar, que se trata
de uma das sociedades mais injustas do mundo, não
obstante a beleza formal de sua constituição, já que
não funciona concretamente para instituir a Justiça. 

Acrescente-se que, atualmente, tem sido alterada para


a destituição de direitos antes por ela previstos. Birman
(1999, p. 281) aponta ainda que: 

Além disso, nosso código criminal é profundamente


marcado pela longa tradição escravagista e patrimo-
nialista da sociedade brasileira. Assim, o roubo, mes-
mo de uma bagatela - uma bicicleta, por exemplo-,
recebe uma punição bem mais severa do que uma
agressão física. Existe, pois uma evidente assincro-
nia entre a constituição bastante avançada - do pon-
to de vista dos seus princípios democráticos - e as
práticas de processo criminal. 

No contexto de trabalho das equipes técnicas há uma


diferença radical entre as pessoas que são criminalizadas,
tendo em vista que tanto  chegam para acompanhamento,
aqueles que não possuem renda ou uma renda muito bai-
xa, os quais passam pelas mais diversas privações e vulne-
44 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

rabilidades sociais e que apresentam muita dificuldade para


cumprir as determinações judiciais, principalmente àquelas
referentes ao pagamento de multas e prestações pecuniárias, 
quanto também são atendidas pessoas com altos rendimen-
tos financeiros com todo um suporte de defesa técnica, e
com condições de arcar com as sanções de ordem econômica
sem maiores dificuldades. Essas diferenças não podem ser
negligenciadas e o acompanhamento dos primeiros, deman-
da maior atenção e articulação interinstitucional no que diz
respeito ao acesso aos direitos.
A prática profissional não deixa de ser desafiada coti-
dianamente por concepções estigmatizantes em relação ao
criminoso, por ideias de correção e retribuição, o que tem
impactos sobre a demanda que é feita pelo Direito. Esta, na
maioria das vezes, imprime foco na viabilização do cumpri-
mento da pena, sem levar em conta a garantia de direitos, o
que ocorre por meio das exigências de aumento do núme-
ro de pessoas entrevistadas em detrimento do tempo gasto
com escuta e acompanhamento. A leitura crítica do con-
texto social, das concepções que atravessam a demanda e
a afirmação de compromissos profissionais não podem dei-
xar de compor de forma significativa e intensa o trabalho
com as pessoas em cumprimento de pena. Quanto a este
aspecto, destacamos dos princípios do Código de Ética dos
Assistentes Sociais, o reconhecimento da liberdade como
valor ético central e a defesa intransigente dos direitos hu-
manos; e do Código de Ética  Profissional da Psicóloga, o
trabalho baseado no respeito e na promoção da liberdade,
da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano,
apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. 
No que diz respeito à atuação profissional no período
de isolamento social, algumas considerações de viés críti-
co merecem ser traçadas. A pandemia de COVID-19 teve
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 45

um impacto significativo para os profissionais do serviço


social e psicologia atuantes no Judiciário. Em evento on-
line realizado pelo Sindjustiça - RJ no dia  04 de junho de
2020, “Ciclo de Debates Interdisciplinares em Tempos de
Pandemia”, no qual estiveram presentes representantes do
serviço social e da psicologia para reflexões sobre os limites
e possibilidades do exercício profissional destas categorias
no Poder Judiciário, uma grande preocupação destes traba-
lhadores foi a estruturação do trabalho diante da situação
de isolamento e a questão de como realizar avaliações por
meio remoto, garantindo as condições éticas e técnicas da
atuação profissional.
Os desafios postos pela pandemia levaram inicial-
mente ao isolamento e à suspensão total das atividades em
fóruns e a adoção de trabalho remoto, levando em conta que
estes trabalhadores obrigatoriamente se organizassem para
dar conta da estrutura necessária para a realização das ativi-
dades. Ter recursos de informática, acesso à rede mundial de
computadores e articular as tarefas profissionais com o ser-
viço doméstico e com a dinâmica familiar são os requisitos
indispensáveis para tal. 
Além disso, pouco se considerou o desgaste emocional
de quem, como todos, se encontra diante de um cenário mun-
dial de ameaça de aniquilação por uma doença desconhecida
e cujos efeitos não possuem um padrão que permita resposta
adequada. Na sequência, a demanda por formas alternativas
de atendimento ao público foram postas, principalmente na
figura das videoconferências, utilizadas para a realização das
audiências, que no contexto da pandemia, contaram com a
presença dos profissionais da equipe técnica, bem como na
requisição institucional pela realização de entrevistas por
meio remoto para garantia do retorno ou do início da presta-
ção de serviços comunitários pelas pessoas em cumprimento
de penas e medidas alternativas. 
46 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Para estes últimos também foi pensada a possibili-


dade de realização de trabalho remoto, no entanto, tal mo-
dalidade de trabalho exige não só o conhecimento formal,
adquirido no decorrer de anos de estudos (mesmo que até o
Ensino Médio); mas habilidade no uso de mídias e de recur-
sos digitais, bem como a existência dos mesmos recursos
exigidos dos profissionais em teletrabalho. Ou seja, é ne-
cessário que estes sujeitos possuam equipamentos eletrôni-
cos e acesso à Internet.
As pessoas em cumprimento de penas e medidas alter-
nativas possuem, dentre as obrigações periódicas, a apresen-
tação pessoal à vara para comprovar o cumprimento das pe-
nas e, também, para atualizar os dados de contato e endereço.
A partir do contexto da pandemia, estas sofreram alteração,
sendo adotada a via digital para comprovação, o que acarre-
tou dificuldades na medida em que não havia disponibiliza-
ção de meios de contatos ágeis com os usuários do serviço.
A preocupação maior, neste caso, se dirige àquelas pessoas
idosas, ou mais pobres, cujo acesso à tecnologia é limitado.
Neste sentido, já se percebem impactos importantes porque
tais pessoas não possuem, por exemplo, endereço de correio
eletrônico (e-mail) e, na impossibilidade de linhas de telefo-
ne institucionais, as alternativas são reduzidas para tentar
contatá-las, contribuindo para a morosidade dos contatos e
obstaculizando o acompanhamento destas pela equipe técni-
ca. Portanto, a exclusão digital é um elemento agravante na
realidade do isolamento social e das alternativas pensadas
para dar continuidade às rotinas institucionais. 
Além da exclusão digital, as questões técnicas e éti-
cas que perpassam o fazer profissional de assistentes so-
ciais e psicólogos são desafiados pela perspectiva de aten-
dimentos remotos. Questiona-se como se garantir o direito
dos usuários ao sigilo e como garantir as condições éticas e
técnicas da entrevista. Além disso, como garantir que todos
os usuários tenham acesso?
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 47

O trabalho da equipe técnica não se restringe às en-


trevistas, elaboração de relatórios e encaminhamentos para
cumprimento da pena, ele implica  acompanhamento que
se dá por meio de novos momentos de escuta além da en-
trevista inicial, muitas vezes demandados pela pessoa em
cumprimento por meio de contato telefônico direto com a
equipe técnica, sendo este um meio de comunicação utiliza-
do com frequência pelos usuários (pessoas em cumprimen-
to de pena e instituições). 
No contexto pandêmico, houve uma interrupção brus-
ca das atividades presenciais e o recurso telefônico deixou,
por um período, de ser acessível para aqueles que cumprem
penas, o que gerou preocupação na equipe, tendo em vis-
ta a hipótese de que a preocupação com o cumprimento da
pena, o medo da conversão em prisão seriam um acréscimo
nas preocupações e dificuldades geradas pela pandemia. Por
esse motivo os profissionais tiveram como uma das prin-
cipais ações a solicitação do resgate dos meios de contato
com os usuários, o que foi resgatado, parcialmente, ao lon-
go da situação de isolamento social, possibilitando a escuta
e o acolhimento das preocupações e dúvidas em relação ao
cumprimento da pena. Outro fator importante foi o acom-
panhamento das recomendações dos respectivos conselhos
profissionais no enfrentamento dos desafios impostos pela
necessidade de interrupção do trabalho presencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da apresentação das questões postas pelo


isolamento provocado pela pandemia COVID-19, buscou-
se apresentar os desafios postos para as equipes interdisci-
plinares que atuam no Poder Judiciário Federal. O ponto de
partida é a experiência e o acúmulo de conhecimento pro-
duzido no decorrer da atuação técnica, que foi construída
em articulação com o espaço acadêmico. O contexto atual
48 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

apresenta elementos que reforçam questões antigas e apre-


sentam novos desafios no fazer das equipes compostas por
assistentes sociais e psicólogos. Estes desafios mobilizaram
as instituições de fiscalização do exercício profissional a
pensarem a questão e, no Rio de Janeiro, o Conselho Regio-
nal de Serviço Social, criou grupo de trabalho para mapear
as demandas e ações implementadas pelas instituições do
campo sociojurídico. Tanto para psicólogos, quanto para
os assistentes sociais do Poder Judiciário, a perspectiva de
entrevistas por videoconferência é contraditória: ao tempo
em que pode proporcionar a continuidade do trabalho com
a população usuária que consegue o acesso a este meio, por
outro lado, pode acarretar prejuízo quanto à garantia do
sigilo e em algumas áreas, como as que tratam das questões
de violência doméstica e área criminal, entende-se que há
um prejuízo pela falta do contato presencial. 
Tanto para a Psicologia, quanto para o Serviço Social
a garantia do sigilo e a qualidade dos serviços prestados são
fundamentais, conforme preconizado em seus  Códigos de
Ética e nas regulamentações profissionais, o que é causa de
preocupação frente à possibilidade da entrevista remota em
um espaço em que não é o da clínica ou o da garantia de
acesso a políticas e benefícios, visto que a maioria das entre-
vistas são derivadas de determinação judicial, variável im-
portante que exige maior cuidado por parte do profissional.
Quanto ao Conselho de Psicologia, vários recursos foram
criados no sentido de orientar a categoria e, no que tange
ao exercício da profissão no judiciário foi elaborado o Ofício
Circular 63/202 de 11 de maio de 2020 que aponta, dentre
outros fatores, a importância de: 

reconhecer peculiaridades e limites da atuação pro-


fissional em serviços cuja qualidade pode ser preju-
dicada pela modalidade de atendimento psicológico
remoto, como é o caso da psicóloga que atua no Po-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 49

der Judiciário e é comumente acionada para emitir


laudos decorrentes de avaliação psicológica em pro-
cessos judiciais. 

Esses têm sido recursos fundamentais para os psicó-


logos do campo sociojurídico, como referência para nossas
ações nesse período de maiores dificuldades. 
No tocante às relações interpessoais no trabalho,
houve potencialização dos embates na medida em que nem
sempre as instâncias institucionais conseguem perceber as
especificidades do trabalho técnico e, o senso comum de
que assistentes sociais e psicólogos centram seu trabalho
na realização de entrevistas, acaba por encobrir uma série
de ações que ultrapassam em muito a entrevista prévia para
a sugestão de instituições para a prestação de serviços co-
munitários. A articulação com a rede de serviços e políticas
foi seriamente afetada, já que estas instituições também fo-
ram seriamente impactadas com a pandemia. Assim, houve
comprometimento dos encaminhamentos para acesso a es-
tas instituições. Além disso, a suspensão do pagamento de
prestações pecuniárias durante o período acabou afetando
em alguma medida os serviços de assistência prestados por
instituições que mantiveram atividades emergenciais para
atender a população neste momento. 
Assim, entre a “luta” para garantir o espaço de escuta e
o desafio de implementar a entrevista à distância, as questões
da ação de assistentes sociais e psicólogos vão se multiplican-
do de forma complexa e cumulativa, tal como a realidade con-
temporânea no contexto neoliberal. O desafio principal conti-
nua o mesmo, garantir e viabilizar espaços de escuta, o acesso
a direitos e preservar, conforme os códigos de ética profissio-
nal, o respeito e a dignidade da pessoa humana. Um desafio
majorado quando falamos de pessoas envolvidas em situações
processuais marcadas pelo signo do crime. 
50 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

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Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 55

ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE
PUNIÇÕES E AS ENTRELINHAS DA
“SOCIOEDUCAÇÃO”
Nivia Valença Barros
Ida Cristina Rebello Motta
Lobelia da Silva Faceira

  “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois


passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez pas-
sos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”
(Fernando Birri, apud Eduardo Galeano. In: Las pala-
bras andantes. Publicado por Siglo XXI, 1993).

N
este capítulo buscamos refletir sobre os adolescentes
e jovens, pobres, pardos e pretos no Brasil, maior
parcela brasileira neste segmento geracional,
que sofrem o processo de punição, encarceramento e
cumprimento de medidas socioeducativas. Ao analisarmos a
sociedade brasileira, pensamos na interseccionalidade, pois
tem a marca perversa da exclusão e da extrema desigualdade
social, de segregação e de negligências e estas têm classe,
raça e gênero. Uma sociedade com uma forte herança pa-
triarcal, com uma elite branca (ou que se considera branca),
hierarquizada, misógina e excludente. Estruturação que só
recentemente encontrou formas de diminuir a mortalidade
precocemente, na primeira infância de crianças pobres, para
56 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

estabelecer uma política genocida, de punição e privação de


liberdade na adolescência  e encarceramento na juventude,
sob o pretexto de inclusão em um processo de socioeducação
que ainda não se materializou. 
Durante longo percurso histórico as crianças pobres
morriam em índices alarmantes na primeira infância. A ideia
naturalizada das crianças mortas consideradas como anjos,
durante muitos anos foi parte do cenário do senso comum,
pois não era incomum a mortalidade de crianças até 5 anos de
idade. Segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vi-
vos (SINASC) do SUS, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade
de crianças de até um ano caiu 73,67%. Atualmente, com a
diminuição dos casos de mortalidade infantil, principalmente,
pelas ações da saúde pública, discute-se que se deixa de mor-
rer na primeira infância para ser exterminado na adolescência. 
O racismo existe de maneira estrutural no Brasil como
herança do período de escravidão tão entranhado nas formas
de dominação e sociabilidade brasileira. O IBGE, por meio de
estudos sobre as desigualdades por cor e raça no Brasil, em
2019, apontou que as desigualdades raciais persistem; que
há maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social nas
populações de cor ou raça preta, parda e indígena; que os ho-
mens pretos ou pardos possuem rendimentos superiores so-
mente aos das mulheres dessa mesma cor ou raça, isto quer
dizer que as mulheres pretas e pardas são as que recebem
menos rendimentos dentre toda a população; e com dados de
2018, aponta que enquanto o rendimento médio das pessoas
brancas ocupadas atingiu R$  17,00 por hora, entre as pretas
ou pardas o valor foi R$ 10,10 por hora e, no tocante ao nível
de instrução, as pessoas de cor ou raça preta ou parda ocu-
padas receberam rendimentos por hora trabalhada inferiores
aos das pessoas brancas, independentemente do nível con-
siderado; é grande a separação entre esses dois grupos po-
pulacionais: brancos e pretos ou pardos;  no que se refere ao
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 57

mercado de trabalho; a população preta ou parda é a maioria


no Brasil (55,8%), e em 2018, representou apenas 27,7% das
pessoas quando se considera os 10% com os maiores rendi-
mentos; nestes contextos permanecem as graves desigualda-
des nas referências relativas às moradias e as suas condições. 
Os adolescentes e jovens pobres, pretos e pardos vão
vivenciar toda essa conjuntura acrescida da violência letal
que sofrem, que hoje já tem sido considerada um genocídio.
A naturalização dessa mortalidade é pautada no discurso de
sua criminalização, também não se consegue perceber como
iguais os adolescentes e jovens pobres, pretos e pardos.  E se
a cada 23 minutos ocorre a morte de um desses adolescentes
e jovens, a sua suposta ligação com o tráfico de drogas e
a criminalidade justificam tal quadro e escamoteiam outros
fundamentos. 
O capítulo está estruturado em duas seções: num pri-
meiro momento apresentamos um debate da interface da ju-
ventude com a criminalidade, dando destaque para o debate
dos processos de criminalização da pobreza e de recrudesci-
mento do aparato punitivo do Estado e, na segunda seção,
problematizamos os avanços e desafios da medida socioedu-
cativa e sua relação com a criminalização dos adolescentes
pobres, pretos e pardos. 

Juventude, encarceramento e criminalização


da pobreza

A década de 1990 é caracterizada por movimentos


em defesa da infância e pelo avanço no reconhecimento das
crianças e adolescentes como cidadãos de direitos, destacan-
do a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
em 1990 e da Lei das Diretrizes e Bases (LDB) em 1996.
Este avanço histórico legal não encontrou bases de
apoio e sustentação numa sociedade caracterizada pelas
58 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

políticas neoliberais e pela operacionalização de formas cri-


minalizantes e punitivas no trato das expressões da questão
social. Segundo Trindade:  

Não importa quantos tratados internacionais de direi-


tos humanos hajam sido celebrados em salões doura-
dos e brindados com champanhe em taças de cristais
– entenda-se bem, e de uma vez por todas: esses direi-
tos, a vida o vem demonstrando, não são “universais”,
valem apenas para uma parcela da universalidade hu-
mana, a parcela rica, não para as multidões de pobres
ou de desempregados (a estes, no máximo, o assis-
tencialismo público ou a caridade privada), nem para
as pessoas com biótipos não-caucasianos e idiomas
não-europeus (TRINDADE, 2011, 16).

Embora a legislação tenha avançado e o exercício dela


tenha proporcionado novas práticas para a produção e re-
produção da juventude brasileira, a realidade é constituída
por profunda desigualdade e escassez na construção da rede
de proteção aos jovens. Isso fica evidente em inúmeros índi-
ces relacionados à violência e a vinculação da juventude com
a criminalidade no país.
As diversas formas de violência atravessam o cotidia-
no da juventude, que ocupa tanto o lugar de “vítima” como
de sujeito que comete ações de violência. O Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta, no “Atlas da vio-
lência” (2019), os jovens como o público mais atingido pela
violência, enquanto os relatórios produzidos pelo Departa-
mento Nacional Penitenciário (DEPEN) retratam que a maior
parte da população carcerária é constituída por jovens.  
De acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2019), du-
rante o ano de 2017 foram assassinados no Brasil 35.783 jo-
vens (num total de 65,6 mil de homicídios), o que corres-
ponde a um aumento de 6,7% em relação ao ano de 2016 e
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 59

de 37,5% em relação ao ano de 2007. Neste sentido, os assas-


sinatos foram a causa de 51,8% dos óbitos de jovens de 15 a
29 anos. Esses números representam um índice nacional de
69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país, o mais alto
coeficiente nos últimos dez anos. Dentre as vítimas de homi-
cídios no Brasil, 75,5% são negras.
A violência e a criminalidade vem sendo fortemente re-
lacionada ao sexo masculino e ao grupo etário dos jovens de
15 a 29 anos. Dos 35.783 jovens assassinados em 2017, 94,4%
(33.772) eram do sexo masculino. Considerando-se apenas os
jovens do sexo masculino, os três estados com maiores taxas
foram Rio Grande do Norte (281,9), Ceará (262,6) e Pernambu-
co (255,4). Já as menores taxas são observadas em São Paulo
(33,3), Santa Catarina (53,6) e Mato Grosso do Sul (72,3). 
De acordo com os dados do sistema de informações
estatísticas do sistema penitenciário brasileiro (INFOPEN,
2019) a maior parte das pessoas privadas de liberdade no
Brasil é composta por jovens: 29,9% possuem entre 18 e
24 anos, seguido de 24,1% entre 25 e 29 anos e 19,4% entre
35 e 45 anos. O número de presos até 29 anos de idade totali-
za 54% da população carcerária. No estado do Rio de Janeiro,
38,71% dos indivíduos em privação de liberdade possuem de
18 a 24 anos; 22,51% de 25 a 29 anos; 14,65% de 30 a 34 anos;
17,20% de 35 a 45 anos; 5,91% de 46 a 60 anos; 0,85% de 61 a
70 anos; e 0,18% com mais de 70 anos.
Em relação ao dado sobre a cor ou etnia da popula-
ção prisional brasileira, o INFOPEN (2019) indica que 46,2%
das pessoas privadas de liberdade no Brasil são de cor/etnia
parda, seguido de 35,4% da população carcerária de cor/etnia
branca e 17,3% de cor/etnia preta. Somados, pessoas presas
de cor/etnia pretas e pardas totalizam 63,6% da população
carcerária nacional. 
Estes números evidenciam que pensar a associação
de “Juventude e Criminalidade” é constatar a seletividade e
60 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

focalização da política de encarceramento e do processo de


violência estrutural. De acordo com Schmidt (2009, p. 74),
a temática da infância e juventude emerge no século XIX
como um problema social a ser enfrentado, “seja como ór-
fão, seja como marginalizada”, sendo a história das mesmas,
marcada por violações e criminalizações. A autora ressalta
que o aspecto do controle social e do aparato punitivo do
Estado está direcionado apenas às crianças e jovens pobres,
que não são reconhecidos como “sujeitos de direitos”, mas
concebidos como “objeto do direito” (Trindade, 2011), sendo
relevante discutir o processo de criminalização da pobreza e
de configuração do Estado Penal.
O termo Estado Penal tem seu conceito explicado
pelo sociólogo francês Loïc Wacquant, estudioso de fe-
nômenos como a segregação racial, a pobreza, a violência
urbana, a desproteção social e a criminalização na França
e nos Estados Unidos da América no contexto do neolibe-
ralismo. Conforme Wacquant (2012, p. 10), o Estado Penal
constitui uma resposta “às desordens pela desregulamen-
tação da economia, pela dessocialização do trabalho assa-
lariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos
contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios
(...) do aparelho policial (...)”. 
O Estado Penal tem duas frentes expressas no estig-
ma e na criminalização. Assim, pela posição social e étnica
os sujeitos são analisados como ameaça à sociedade, liga-
dos de forma geral à prática de crimes. E isso é propagado
pelas classes dominantes para ter o argumento necessário
para que o alvo imediato da busca e da prisão seja a popu-
lação pobre e negra, principalmente a mais jovem. Com a
colaboração da mídia, as estatísticas e as discussões sobre
esse contexto vão sendo reforçadas, no intuito de que esses
indivíduos sejam culpabilizados. Isso retira o foco de deba-
tes que envolvam proteção social e cidadania. A ascensão
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 61

do Estado Penal e da criminalização é fortificada pelo que é


empreendido na hegemonia dominante e na mídia a serviço
do capital, produzindo o imediatismo e o vínculo da favela e
de seus habitantes à violência.
Wacquant (2004) analisa que grande parte da socieda-
de não consegue identificar o delito como um dos indicado-
res de que o indivíduo que o cometeu é portador de vulne-
rabilidade. Esta vulnerabilidade decorre da própria estrutura
política econômica e sociocultural da sociedade, pois esses
indivíduos que cometem delitos têm a violência compondo
suas histórias de vida, imersas em um contexto extremamen-
te desfavorecido, por conta da face penal do Estado que nor-
matiza cada vez mais a vida cotidiana.
Fabiana Schmidt (2009, p. 11) pontua como a “leitu-
ra do senso comum e do pragmatismo tem levado a socie-
dade a cometer atos de reiteração de subalternidade e de
reafirmação de preconceitos”, na medida em que o apelo
midiático e político voltado para a redução da idade pe-
nal, o clamor da sociedade repleta de medo condicionado é
constituído socialmente, vai de encontro com o Estado de
exceção, que intensifica sua perspectiva penal com a clas-
se subalternizada. Wacquant (2012, p. 69) refere-se a isto
como uma “(...) suposta explosão da violência urbana dos
jovens caídos numa suposta e recente – ‘delinquência de
exclusão’ que motiva - ou serve de pretexto para – à deriva
para o tratamento penal da miséria”.
Os direitos civis, políticos e sociais - fruto de uma ár-
dua luta da classe trabalhadora - vêm sendo cada vez mais
destituídos e negados por parte do Estado, seja pelo viés da
desresponsabilização do mesmo para com a sociedade civil,
seja pelo caráter punitivo que ele vem assumindo frente às
diversas expressões da Questão Social. Wacquant (2012) ob-
serva que a retratação do Estado Social configura a ascen-
são do Estado Penal, ou seja, o tratamento das expressões
62 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

da Questão Social são assentados não no investimento em


políticas sociais, mas sim nas políticas de segurança pública
com aparato punitivo.
Wacquant (2004) ressalta que não coincidentemente
os investimentos maciços no sistema penal, contrastam com
os cortes no investimento em programas sociais. O Estado
Penal estabelece-se ao passo que suas ações se voltam exclu-
sivamente para a reprodução da lógica capitalista, por meio
do controle das contradições firmadas por esta mesma lógi-
ca, que não pretende superar tais contradições, mas apenas
gerenciar. Neste sentido, o Estado trata as demandas sociais,
geradas pelo modo de produção vigente, via marginalização
e repressão aos pobres, sendo liberal no topo e extremamen-
te punitivo na base (LEMOS, 2015). Esta penalização da ca-
mada mais pobre da organização social brasileira demonstra
o processo histórico da não consolidação de um Estado de
plena democracia, que só faz atenuar ainda mais as desigual-
dades econômicas, culturais e sociais. 
Assim, diante do desmonte das políticas públicas e so-
ciais, responsáveis pela geração e intensificação de muitas
expressões da Questão Social, e da maior presença da face
Penal do Estado para lidar com a classe mais afetada por este
desmonte, é necessário, de acordo com Wolff (2005, p. 28)
passar a entender a pena (neste caso, as medidas de semili-
berdade e internação) como um fato político, numa relação
de poder, “antes de ser vista exclusivamente como um fato
jurídico”. Afinal, o que se constata neste contexto é a intensi-
ficação de uma lógica repressiva no enfrentamento de ques-
tões estruturais e estruturantes da sociedade.
O objetivo da luta do setor dominante da socieda-
de, não é, portanto, contra a criminalidade, mas sim contra
uma determinada parcela da população. Parcela esta em sua
maioria pobre, negra, periférica e colocada, pelo Estado, em
situação de vulnerabilidade social, já que em grande parte
das vezes é afastada do alcance de políticas públicas.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 63

Cabe-nos perceber, então, que para além do discurso


que a mídia propaga e do clamor da sociedade civil pelo fim
da violência, que perpassa cotidianamente a vida de milhares
de trabalhadores, o Estado não modifica sua perspectiva, no
âmbito das políticas públicas, de repressão, tentando com-
bater a violência com mais violência. Assim, a redução da
idade penal passa a ser alvo de debate, fundindo os conceitos
de punição e responsabilização, vingança e justiça, ao passo
que a ideia propugnada se centra em medidas estatais mais
duras e contundentes, em resposta (como “solução”) à crimi-
nalidade infantil e infanto-juvenil.
Wacquant (2003, p. 8) denuncia que “a nova fórmula
seria: penas alternativas para os possíveis consumidores e
cadeia para os “consumidores falhos”. Esta lógica individua-
liza “o fracasso da pobreza como responsabilidade pessoal”,
sendo caracterizada pelos processos de judicialização, crimi-
nalização e naturalização das expressões da Questão Social,
configurando um cenário de efetivação de um Estado puni-
tivo e extremamente penal. Ressalta-se, assim, que a legiti-
mação desta sociedade está calcada na retirada constante de
direitos sociais, em detrimento da noção de segurança (eco-
nômica e social) trazida pelo neoliberalismo, numa perspec-
tiva de administração da miséria.
É preciso reconhecer, porém, como observa Schmidt
(2009), que a cultura punitiva dentro das unidades
socioeducativas é tratada como um instrumento para o con-
trole social e, consequentemente para a violação de direitos,
e não como instrumento eficiente e eficaz de “ressocializa-
ção”, “tratamento” de um problema individual e diminuição
dos índices de crimes cometidos na sociedade. Entretanto,
a mesma, ao legitimar a redução da idade penal e/ou o au-
mento do tempo de internação dos adolescentes em conflito
com a lei, por possuir no senso comum a noção de que a
criminalidade é reduzida com a restrição e privação de liber-
64 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

dade, contribui para que estes sujeitos relegados socialmen-


te continuem sendo penalizados por suas condições sociais,
ou seja, por serem pobres. Neste sentido, na próxima seção
apresentaremos o debate sobre a socioeducação e os desafios
da efetivação de direitos.

A “Socioeducação” -  Ainda uma utopia

Marco na discussão da democratização das políticas


sociais, a década de 1980 foi delineada pela redemocratiza-
ção do país, pela manifestação popular organizada e bases
para futuras estruturações legais trazidas pela Constituição
de 1988. É nesse bojo que o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente é promulgado, contando com a participação efetiva da
sociedade civil e demais entidades como a Frente Nacional
de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, a
Pastoral do Menor da Comissão Nacional dos Bispos do Bra-
sil, da Comissão Nacional Criança e Constituinte, a UNICEF,
além do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
(BARROS, 2005, p. 128).
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz em sua
essência um palco de disputa para a garantia dos direitos da
infância e adolescência, pois havia interesses das elites he-
gemônicas para restrição da amplitude da lei; pressões inter-
nacionais para a efetivação dos acordos assinados pelo país;
intensa participação dos movimentos sociais, para que essa
legislação fosse a mais ampla possível. Com toda essa mobi-
lização a proposta inicial do ECA consistia em uma utopia,
aqui entendida como “a negação do que é dado e imposto
podendo-se ser ressignificado possibilitando a construção de
algo novo efetivo e transformador” (BARROS, 2020).
Assim, nesse campo de disputa, o ECA pautou como
diretriz fundamental a doutrina de Proteção Integral para
todas as crianças e adolescentes sendo considerados sujeitos
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 65

de direitos, na condição de pessoa em desenvolvimento e


com prioridade absoluta. Um novo marco na elaboração e
implementação das políticas públicas é instituído: uma doutrina
baseada na proteção integral da criança e do adolescente.
A socioeducação passa ser o alicerce do atendimento dos
adolescentes a quem se atribui o ato infracional, com base
nessa doutrina da proteção integral que substituiu a plataforma
“menorista”, portanto, devendo dar ênfase às medidas em meio
aberto e em detrimento das medidas de privação e restrição
de liberdade do adolescente. Porém, a socioeducação ainda se
constitui em uma utopia.
Para contribuir com alterações das medidas socioe-
ducativas que após dezesseis anos da promulgação do ECA,
ainda permaneciam nos padrões anteriores a esta legislação,
no modelo de Situação Irregular, a Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CO-
NANDA, apresentam o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo – SINASE (2006), através da Resolução nº119
do CONANDA, estabelecendo diretrizes e orientações para o
trabalho com adolescentes e seus familiares; posteriormente
se transforma na lei 12.594/12 – Lei do SINASE que em seu
art. 1º e inciso 1º define:

Entende-se por SINASE o conjunto ordenado de


princípios, regras e critérios que envolvem a execu-
ção de medidas socioeducativas, incluindo-se nele,
por adesão, os sistemas estaduais, distrital e muni-
cipais, bem como todos os planos, políticas e pro-
gramas específicos de atendimento a adolescente em
conflito com a lei (BRASIL, 2012). 

O cenário da elaboração e implementação do SINASE


foi marcado por um Brasil de desigualdades sociais. Os dados
referentes aos adolescentes a quem se atribui autoria de atos
66 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

infracionais retratavam esse cenário apresentado. A questão


das desigualdades era latente para essa população que não di-
feriria da parcela infanto-juvenil no quesito de acesso às polí-
ticas sociais básicas. De acordo com o levantamento estatísti-
co produzido pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da
Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos divulgando na época, o Brasil tinha cerca de 39.578
adolescentes no sistema socioeducativo, cerca de 0,2% do total
de adolescentes entre 12 e 18 anos (SINASE, 2006).
Ficou evidenciada a necessidade de se pensar uma
política de atendimento que fosse integrada e articulada
com as demais políticas e sistemas, a partir de uma rede
integrada de atendimento e, é com essa finalidade que se
elabora e implementa o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo:

A realidade dos adolescentes brasileiros, incluindo


aqueles no contexto socioeducativo, exige atenção
do Estado e evidencia a necessidade de uma agenda
de urgências no sentido de se efetivar políticas pú-
blicas e sociais e, sobretudo, ampliar os desafios para
a efetiva implementação da política de atendimento
socioeducativa (SINASE, 2006, p. 19).

O SINASE também ainda não se efetivou de forma


mais plena, só apresentando mudanças pontuais. É um gran-
de desafio implantar e implementar um sistema que tem
como seu princípio norteador a articulação entre as políticas
sociais básicas, que interajam com os demais sistemas – Sis-
tema Educacional/Sistema Único de Saúde/Sistema Único de
Assistência Social/Sistema de Justiça - de forma a garantir o
atendimento socioeducativo do adolescente e de sua família;
compondo o Sistema e Garantia de Direitos (SGD).
Para o desenvolvimento das ações socioeducativas, no
Rio de Janeiro, através do decreto 18.493, datado de 26/01/93,
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 67

foi instituído o Departamento Geral de Ações Socioeducativas


(DEGASE), sendo um órgão inicialmente atrelado a Secretaria
de Justiça  do Estado do Rio de Janeiro (Poder Executivo), ca-
bendo ao mesmo num primeiro momento a execução das me-
didas socioeducativas em meio fechado - Semiliberdade (SL) e
Internação, bem como as medidas em meio aberto - Liberdade
Assistida (LA) e Prestação de Serviço à Comunidade (PSC);
medidas socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente (ECA), aplicadas pelo Poder Judiciário aos
jovens com autoria de atos infracionais. Posteriormente, com
a implantação da Política Nacional de Assistência Social passa
a ter como competência trabalhar articulado com essa política
nos diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro, con-
siderando que a responsabilidade pelo acompanhamento das
Medidas Socioeducativas (MSE) em meio aberto - Prestação
de Serviço à Comunidade (PSC) e Liberdade Assistida (LA)
passou a ser de responsabilidade das prefeituras, através dos
Centros de Referências Especializados de Assistência Social
(CREAS), unidades da Política Municipal de Assistência Social
de cada prefeitura do Estado do Rio de Janeiro.  
Desde 2008, o DEGASE encontra-se atrelado a Se-
cretaria de Estado de Educação - SEEDUC, sendo vincula-
do a várias secretarias do estado até essa data, quando foi
denominado NOVO DEGASE. Em 2012, com a elaboração
do Caderno de Alinhamento Estratégico do Novo DEGASE
passou a ter como missão “[...] promover socioeducação no
Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas
autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes,
possibilitando a construção de projetos de vida e a convivên-
cia familiar e comunitária” (2012, p. 17). Na atual gestão es-
tadual voltou a denominar-se Departamento Geral de Ações
Socioeducativas - DEGASE.           
O DEGASE é uma instituição jovem, porém ten-
do como legado, muitas das práticas da FUNABEM e
68 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

FCBIA (estruturas anteriores ao DEGASE que foram alvo


de inúmeras denúncias por conta de seus atendimentos).
O DEGASE, ao ser intitulado Novo DEGASE, teve o intuito
de romper com os estigmas e as marcas de violência comuns
em seu interior, contudo, legislações e mudanças de nomes
por si só não mudam mentalidades e práticas. A herança
das concepções com base na Doutrina da Situação Irregu-
lar, preconizada pelo Código de Menores, com um histórico
de ações coercitivas e violentas, numa linha correcional e
punitiva, ainda vigoram no DEGASE. Ainda é uma utopia
um novo caminhar institucional, baseado em diretrizes da
socioeducação, em uma perspectiva sociopedagógica, den-
tro da Doutrina de Proteção Integral, demandando novas
metodologias, novos paradigmas e equipes qualificadas
com esse perfil diferenciado.
A socioeducação com base nos princípios, concepções
e objetivos dispostos no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente - ECA tem construído, ao longo desses anos, o lastro
de sua sustentação, enquanto política pública. É importante
entender a socioeducação ou educação social como uma for-
ma de educação de adolescentes e jovens para uma vida em
liberdade, onde a vida em sociedade e o pleno exercício da
cidadania devem ser privilegiados (COSTA, 2004b).
Estabelecer a socioeducação como política pública,
é enfatizar a necessidade de seu caráter pedagógico, refle-
xivo (daquele sujeito de direitos - os adolescentes) através
das medidas socioeducativas, rompendo com as teorias pu-
nitivas comumente utilizadas no antigo Código de Menores.
Desta forma:

O adolescente deve ser o centro das atenções no Cen-


tro de Socioeducação. Ser o centro significa ocupar
o lugar de destaque na atenção, nas intenções e nas
ações de todos os servidores. Além disso, significa tra-
tá-lo com respeito e conhecer suas necessidades para
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 69

poder demarcar limites, indicar caminhos e transmitir


disciplina, elementos fundantes do trabalho educa-
tivo. A organização do trabalho deve ter como foco
principal as necessidades, possibilidades e potencia-
lidades de cada adolescente. É exatamente para ele
que se trabalha, é por sua causa que o Centro de So-
cioeducação existe; é para que ele possa aprender a
ser e a conviver que todos se mobilizam, a fim de que
seu processo socioeducativo tenha um bom resultado
(CADERNOS DE SOCIOEDUCAÇÃO, 2010, p. 26).

O cenário atual do atendimento dentro dos Centros


de Socioeducação no DEGASE é de unidades sucateadas, al-
gumas heranças da FUNABEM (apesar das adequações ar-
quitetônicas realizadas), com superlotação de adolescentes e
equipe reduzida de socioeducadores (operadores do sistema
socioeducativo), caracterizando um atendimento massifica-
do, onde a disciplina e as ações coercitivas e punitivas ainda
são a tônica, ao invés do que preconiza o ECA, quando esta-
belece a doutrina da proteção integral ao adolescente. Lugar
onde a escolarização ainda acontece, mas além de privilegiar
alguns adolescentes (existe um número limite de alunos para
as escolas estaduais matricularem), as turmas são estabeleci-
das de acordo com as facções criminosas do narcotráfico em
alguns Centros de Socioeducação; unidades onde os adoles-
centes ainda andam enfileirados, com a mão para trás e de
cabeça baixa, além de serem chamados pelo seu número de
matrícula (CESEC, 2020).
Ressalta-se que a medida socioeducativa é, por natu-
reza, sancionatória, contudo ela deve possuir um conteúdo
predominantemente pedagógico, seja da mais branda - ad-
vertência - até a mais severa - internação. Ela só pode ser
aplicada através de uma decisão judicial a partir do come-
timento de um ato infracional por parte de um adolescente.
Cabendo inicialmente ao Ministério Público, a partir da es-
70 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

cuta (conhecida como “oitiva”) desse adolescente represen-


tá-lo judicialmente ou remi-lo. Contudo, para que a medida
socioeducativa garanta o seu caráter predominantemente
pedagógico é necessário que as unidades, i.e., os Centros de
Socioeducação não estejam superlotados, atendendo ado-
lescentes acima de sua capacidade máxima, exigindo que os
jovens fiquem trancafiados em seus alojamentos, sem ativi-
dades de esporte, cultura e lazer, assim como, sem acesso a
uma qualificação profissional. A superlotação e a deficiên-
cia no quadro de socioeducadores dentro dos Centros de
Socioeducação, locais onde os adolescentes encontram-se
internados, não permitem a participação dos jovens em ati-
vidades pedagógicas, visando a sua socioeducação.
Pensar em socioeducação também é entender que to-
dos os chamados “operadores do sistema socioeducativo”
precisam estar capacitados para saber lidar com a realidade
e enfrentar o dia-a-dia dos Centros de Socioeducação, de for-
ma a contribuir efetivamente com o caráter pedagógico da
aplicação da MSE. 
O DEGASE possui a Escola de Gestão Socioeducativa
Professor Paulo Freire, responsável pela formação e capa-
citação contínua dos operadores do sistema socioeducativo
desde 2001, contando com uma variedade de capacitações
e cursos para os diferentes níveis desses profissionais. As-
sim como, anualmente realiza seminários socioeducativos,
visando à discussão e implementação da Política Socioedu-
cativa no Estado do Rio de Janeiro, alinhados com as dire-
trizes da Escola Nacional de Socioeducação – ENS. Portan-
to, podemos afirmar que investimentos na área de estudos
e produções científicas vêm contribuindo para reflexões e
elaborações, na retroalimentação dessa política.
Ressalta-se ainda a importância da participação da fa-
mília no processo socioeducativo do adolescente, sendo fun-
damental não só na visitação sistemática dos adolescentes
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 71

privados de liberdade, mas a inserção efetiva de suas famí-


lias nas atividades pedagógicas pertinentes a MSE aplicada
ao mesmo. O DEGASE recentemente elaborou o Programa
de Atenção às Famílias (2016) e em processo de implantação
através do Núcleo de Atenção às Famílias - NUAF; desta-
cam-se duas grandes ações desse programa; a criação de um
fórum permanente de participação das famílias na Política
Socioeducativa (três fóruns já foram efetuados) e a realiza-
ção de uma pesquisa com essas famílias, visando traçar o
perfil das mesmas. A pesquisa “Famílias no DEGASE” foi
realizada entre agosto de 2018 e julho de 2020 e no presente
momento, encontra-se na fase de elaboração do relatório fi-
nal. Dentre as análises produzidas dessa pesquisa, destaca-se
a adesão positiva dessas famílias quando indagadas sobre o
desejo de acompanhar e participar da MSE de seus filhos,
dentro das unidades de privação de liberdade; reiterando a
necessidade de envolver as famílias nesse processo socioe-
ducativo, não como forma de responsabilização das mesmas,
mas como garantia do direito de participar desse processo de
socioeducação de seus filhos. 
Neste sentido, na pauta da socioeducação existem
muitos desafios a serem enfrentados, de forma a garantir a
concretude de uma política que ainda se encontra na instân-
cia de ser implementada, para que efetivamente possa fazer
parte de um Sistema de Garantia de Direitos - SGD.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança


e do Adolescente de 1990 são vitórias no âmbito das lutas so-
ciais, representando outro patamar no que tange a conquista
de direitos da população, e em especial, no trato à infância
e juventude brasileira. Porém, percebe-se também, que este
ganho aconteceu tardiamente nos marcos do neoliberalismo,
72 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

contexto no qual os direitos passaram a ficar cada vez mais


precarizados, criando uma barreira para a conquista e garan-
tia da efetiva cidadania.
Simas (2016, p. 59) ressalta que o Estado, após a pro-
mulgação do ECA, mantém a prevalência de práticas “as-
sistencialistas/paternalistas/voluntaristas, ‘menoristas’ e
arbitrárias, sob a manta penal/repressora” voltada a estes
sujeitos, e em especial àqueles restritos ou privados de li-
berdade, se mantém de forma prioritária.
Isto configura um cenário recheado de contradições
diante, por um lado, da proposta de um Estado Democrático
de Direito, afirmado pela Constituição de 1988 e pelo ECA,
e por outro, da presença constante de disciplina, punição
e violação de direitos de diversas crianças e adolescentes.
A construção da política socioeducativa tem sido deli-
neada dentro desse cenário tão contraditório e permeado de
grandes desafios: lugar onde ainda identificamos a prevalên-
cia do encarceramento e da privação de liberdade; onde veri-
ficamos a perda da essência da socioeducação; e, ainda, onde
essa política pública ainda não está pautada na perspectiva
das relações sociais e em uma educação de vida fincada na
liberdade desses jovens. 
 
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Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 77

VIOLÊNCIA E PRISÃO: OS DESAFIOS


DA GARANTIA DE DIREITOS NO
CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

Lobelia da Silva Faceira

“É preciso atrair violentamente a atenção para o pre-


sente do modo como ele é, se se quer transformá-lo.
Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”
(Antônio Gramsci,1920).

O
capítulo tem o objetivo de problematizar os desa-
fios da garantia de direitos no âmbito da execução
penal no contexto brasileiro. Para tanto, partimos
da análise da categoria teórica da Violência, destacando
seus processos de intensificação e naturalização no cenário
contemporâneo, contexto propício à consolidação do Esta-
do Penal.
Observando os distintos significados da violência, o
primeiro desafio é entender a violência na sua totalidade, ul-
trapassando suas manifestações aparentes e pensando nos
processos de produção e reprodução da mesma numa orga-
nização social determinada – a sociedade capitalista. Numa
perspectiva de totalidade, não pretendemos afirmar que toda
violência deriva da sociedade capitalista, mas que a mesma
oferece terreno sociohistórico e as condições objetivas para a
materialização de todo e qualquer processo violento. 
78 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Na perspectiva marxista, a violência estrutural é con-


siderada uma consequência direta e inevitável desse modelo
social marcado pelo desenvolvimento de forças produtivas
e pela negação de direitos. A proposta do trabalho é proble-
matizar a violência estrutural no âmbito da sociedade capi-
talista contemporânea, destacando em que aspectos a mesma
contribui para a intensificação de um Estado Punitivo e Pe-
nal, bem como analisar os desafios da garantia de direitos da
população carcerária neste contexto. 
O cenário contemporâneo é perpassado por um pro-
cesso de reestruturação econômica, política, cultural, social e
por um processo de reforma e contrarreforma do Estado, que
desencadeia a intensificação das desigualdades sociais e das
diversas expressões da violência. Neste contexto, a sociedade
capitalista produz o medo social e faz uso do mesmo numa
perspectiva de subjugar, controlar, dominar e, até mesmo,
produzir processos de naturalização da violência.
O medo construído socialmente se alimenta, nutre e
cresce pela forma com que a violência se espalha pela cida-
de e pela ausência ou impotência do Estado em assumir seu
papel de garantir direitos e segurança. Nesta perspectiva, o
medo tem impacto na dinâmica econômica, urbanística e na
saúde das pessoas, ou seja, a insegurança é mercantilizada e
pode ser utilizada politicamente, sendo o medo social uma
justificativa para as práticas punitivas. 
A estrutura arquitetônica das cidades é alterada, no
sentido de intensificar o aparato de segurança e punitivo das
prisões. A mídia contribui para o processo de propagação do
medo social e da cultura de massa, que aponta a necessidade
de mais prisões, redução da maioridade penal e recrudesci-
mento de políticas punitivas. Neste processo de recrudesci-
mento de políticas punitivas e do aparato coercitivo do Estado,
as classes populares são consideradas prioritariamente como
classes perigosas, caracterizando um processo de estigmatiza-
ção de grupos sociais e da criminalização da pobreza. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 79

O presente capítulo tem a proposta de contribuir para


a produção de conhecimento sobre estas categorias teóricas
e o desafio de garantir direitos num contexto contraditoria-
mente violador de direitos humanos e sociais, que é a prisão.
Nesse sentido, o capítulo está dividido em três partes:
a primeira parte busca discutir a violência estrutural presen-
te no cotidiano da vida social, mas que muitas vezes é in-
visível ou sequer considerada como violência propriamente
dita. Nesta seção veremos que a violência estrutural é fruto
do modo de produção capitalista e das relações sociais, que
se sustentam no capitalismo. Para contextualizar este deba-
te, torna-se necessário problematizar, não somente sobre o
capitalismo e a violência estrutural, mas o processo de natu-
ralização da violência e de produção do medo social. Dentre
os autores que discutem violência estrutural, utilizamos os
estudos de Peres (2002), Ros (2011) e Cavali (2009).
Num segundo momento, realizaremos brevemente um
debate sobre a prisão como instituição social, problematizan-
do os avanços normativos da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984
– denominada Lei de Execuções Penais (LEP), no âmbito da
definição de direitos sociais, e as contradições presentes no
campo empírico da execução penal. Na terceira parte, numa
perspectiva de considerações finais, apresentaremos refle-
xões sobre as ambivalências e contradições da garantia de
direitos no âmbito da execução penal. 

Violência, Medo Social e Estado Penal: um


olhar introdutório

A categoria violência tem origem no latim violentia, que


significa veemência, impetuosidade e força. Na perspectiva de
considerar a violência como uso da força para alterar deter-
minada ordem, a mesma é caracterizada como um atributo
exclusivamente humano, produzido e reproduzido na vida hu-
80 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

mana. De acordo com Ros (2011, p. 2): “A violência significa,


assim, um meio ou ‘elemento indispensável’ para a realização
da práxis e se manifesta onde o natural ou o humano resiste ao
homem, é, enfim, um elemento necessário à transformação”.
A violência como alteração de uma ordem natural ou
humana, estabilidade, imobilidade e identidade é considera-
da ontologicamente como práxis. Neste sentido, a violência é
uma categoria ontológica do ser social e está ligada à produ-
ção e reprodução material e imaterial da vida humana. Ela se
apresenta nas relações sociais, tanto como forma de alterar
e transformar determinada ordem, quanto como forma de
manter e dominar a mesma.
A práxis social se refere à violência exercida sobre ou-
tros homens em “sua condição de sujeitos de determinadas
relações econômicas, sociais, políticas, que se encarnam e se
cristalizam em certas instituições” (Vázquez, 2007, p. 375), ou
seja, violência que resulta da dominação e da luta de classes.
Pode-se inferir, a partir daí, que a violência pode ter tanto
um caráter conservador, quanto transformador. Por violên-
cia se entende, então, a aplicação de diferentes formas de
coerção, com o objetivo de conquistar ou manter um domí-
nio econômico e político. (Vázquez, 2007, p. 377).
Podemos citar também a definição da Organização
Mundial de Saúde, que considera a violência como o uso in-
tencional da força física ou do poder (real ou potencial) con-
tra o próprio sujeito ou outra pessoa, resultando em dano.
Neste sentido, a violência pode ser caracterizada como pri-
vação de algo, abandono, violação de direitos etc.
Por se tratar de uma discussão complexa e, por ve-
zes, conflitante, é necessário ressaltar que não há uma teoria
ou definição única para a violência, considerando sua com-
plexidade, temporalidade e territorialidade. Neste sentido,
o primeiro desafio deste capítulo é entender a violência na
sua totalidade, ultrapassando suas manifestações aparentes e
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 81

pensando nos processos de produção e reprodução da mes-


ma na sociedade capitalista.
Numa perspectiva de totalidade, não pretendemos
afirmar que toda violência deriva da sociedade capitalista,
mas que a mesma oferece as condições objetivas para a ma-
terialização dos processos violentos. A violência estrutural
está intrinsecamente relacionada à estrutura societária do
modo de produção capitalista que, pelo viés da estrutura e
superestrutura garantem os meios necessários para a domi-
nação burguesa e maior acumulação capitalista. 
A violência estrutural não ganha visibilidade pelas
marcas que deixa no corpo, mas pelas marcas invisíveis que
se expressam no conjunto das relações sociais e na vida coti-
diana. Ou seja, a violência estrutural se caracteriza pela des-
tituição de direitos sociais, ausência de equipamentos sociais
mínimos, desigualdade social, desemprego estrutural, preca-
rização e seletividade das políticas sociais. Neste sentido, a
violência estrutural funciona como uma estratégia de coação
e apassivamento da classe trabalhadora.

Cabe ao capitalismo manter a classe trabalhadora


subjugada aos seus ditames para garantir sua so-
brevivência e isso é feito não pelo uso da força, a
coação se dá pela produção e reprodução da miséria.
E essa é uma das formas mais cruéis de violência,
uma violência produzida pela própria estrutura so-
cial que se desdobra numa série de outras que per-
meiam o cotidiano do trabalhador e são naturaliza-
das pela sociedade (ROS, 2011, p. 6).

A violência é consequência direta e inevitável


desse modelo social marcado, por um lado, pelo extraordinário
desenvolvimento de forças produtivas, e, por outro, pela
negação de direitos. Ela não é a causa ou intensificadora de
outras formas de violência, mas é uma violência legitimada
82 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

pelo Estado no processo de manutenção da ordem social. Se-


gundo Ros (2011, p. 5) “(...) devemos destacar que o indivíduo
que comete violência é antes de tudo violentado por um sis-
tema produtivo tirano e desigual, por um Estado que defen-
de os interesses da minoria”. Neste sentido, o Estado numa
perspectiva de manutenção da ordem e da paz social possui
o monopólio e a legitimidade dos instrumentos de violência.
O cenário contemporâneo intensifica o processo de
reprodução da violência estrutural, sendo necessário pro-
blematizar brevemente as contradições e especificidades da
violência, desencadeadas pelas mudanças efetivadas com o
neoliberalismo.
A crise econômica mundial do final dos anos 70 e iní-
cio dos 80, caracterizada pela crise no padrão de produção
e acumulação capitalista de base fordista-keynesianista, fa-
voreceu o desenvolvimento do ideário neoliberal como uma
importante estratégia de enquadramento e formatação do
Estado aos novos tempos de gastos e recursos públicos insu-
ficientes para a manutenção dos padrões de proteção social
típicos do pós-guerra. De acordo com Mota (1995, p. 56) o
contexto neoliberal é marcado “(...) pela negação da regula-
ção econômica estatal, pelo abandono das políticas de pleno
emprego e pela redução dos mecanismos de seguridade so-
cial, em prol, é claro, da regulação operada pelo mercado.” 
O neoliberalismo surge nesse contexto de crise do pa-
drão de acumulação vigente e de aumento das desigualdades
sociais, enfatizando a consolidação da reestruturação produ-
tiva como indispensável ao estabelecimento de um equilíbrio
na sociedade, reorganizando o papel das forças produtivas
na recomposição do ciclo de reprodução do capital na esfera
da produção e das relações sociais.
No neoliberalismo a ideia de constituição de um Esta-
do forte está associada à criação de condições necessárias à
expansão do mercado e da livre economia. O mercado passa
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 83

a desempenhar um papel fundamental na regulamentação


das relações sociais e da sociedade capitalista.
Os neoliberais consideram o Estado e sua intervenção
na sociedade como antiprodutivos e ineficientes, o que passa
a justificar uma redução das políticas sociais públicas ampa-
radas na necessidade de reduzir os gastos públicos, reforçada
pelo discurso da crise fiscal.
O Estado reduz assim sua intervenção no trato da
questão social, elaborando ou privilegiando os programas
sociais voltados apenas para a população mais empobre-
cida, caracterizando-se pela seletividade e focalização das
políticas sociais. 
Por trás do argumento de excessivo gasto social e ine-
ficiência do Estado destacamos a primazia da lucratividade
do mercado e o processo de desrresponsabilização do Esta-
do, caracterizado pela transferência das responsabilidades
sociais do âmbito público estatal para a sociedade civil. 
Outra característica do cenário contemporâneo é a cen-
tralidade e exaltação do individualismo em detrimento da ação
coletiva e dos movimentos sociais. O mesmo consiste no an-
tagonismo da cidadania, uma vez que o indivíduo se preocupa
apenas com suas questões particulares, representando assim a
possibilidade de corrosão e desintegração da cidadania. 
O espaço público é considerado pelo indivíduo como
uma projeção de suas preocupações e questões privadas. Nesse
sentido, a desintegração da rede social e derrocada das agên-
cias efetivas de ação coletiva representam tanto uma condição
como resultado da nova organização do capital e do poder.
O cenário contemporâneo também é caracterizado
pela racionalização e reengenharia do capital, desencadea-
das a partir da implementação da reestruturação produti-
va, que introduz a especialização flexível de produção em
função da volatilidade da demanda do consumidor, voltada
à capacidade de responder com rapidez às mudanças na de-
84 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

manda do consumo. A reestruturação produtiva caracteri-


za-se pela introdução no processo produtivo da automação
flexível apoiada na tecnologia microeletrônica; no aumento
da produção sem aumento proporcional de demanda de for-
ça de trabalho (desemprego estrutural); descentralização do
processo produtivo nas empresas e no mundo globalizado;
demanda de força de trabalho qualificada e multifuncional;
e a flexibilização do tempo e espaço. As mudanças intro-
duzidas na organização da ordem produtiva desencadeiam
transformações no mundo do trabalho, dentre elas destaca-
mos o processo de flexibilização e precarização das relações
de trabalho, além da fragilização dos movimentos reivindi-
catórios da classe trabalhadora e dos próprios sindicatos.
Nesse processo de reestruturação produtiva o espaço
é desterritorializado e o tempo cada vez mais flexibilizado,
intensificado e presentificado, garantindo assim as condições
favoráveis ao capital flexível e especulativo, bem como ao
processo de intensificação da violência estrutural.
O cenário contemporâneo - de aumento das desigual-
dades sociais e do processo de estranhamento dos sujeitos
sociais -  é perpassado por um medo construído socialmen-
te, que se alimenta, nutre e cresce pela forma com que a
violência se espalha pela cidade e pela ausência ou impo-
tência do Estado em assumir seu papel de garantir direitos
e segurança.  Neste contexto são intensificados o medo, o
sofrimento humano, a incerteza, a insegurança e a própria
falta de perspectiva. Chauí (1987) considera que o medo é
o afeto e sentimento que nos coloca expostos à imagem da
nossa impotência.
O crescimento da violência urbana, a crise dos siste-
mas penitenciário, judiciário e policial, a crescente crimi-
nalidade e impunidade têm como consequência a produção
do medo social, que “alimenta o clamor da população” por
aparatos de maior proteção, como grades nas janelas, condo-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 85

mínios e ruas fechadas, portas trancadas, carros blindados,


armas de fogo e sistemas de segurança privada. 
A sociedade capitalista produz o medo social e faz uso
do mesmo numa perspectiva de subjugar, controlar, domi-
nar e, até mesmo, produzir processos de naturalização da
violência. Neste sentido, a violência passa a ser naturaliza-
da e banalizada, sendo considerada objeto de intervenções e
enfrentamentos particulares, individualizados e de aparato
cada vez mais punitivo.
A mídia tem cumprido o papel social de intensificar o
medo social e de construir ideologicamente um clamor pela
intensificação dos aparatos punitivos destinados aos indiví-
duos que representam uma ameaça à ordem social constituí-
da. Consequentemente, observamos um crescimento das prá-
ticas coercitivas por parte do Estado e a ausência de estudos,
pesquisas e práticas de enfrentamento das diversas expressões
da violência estrutural e ao aumento da criminalidade.
Como resposta a intensificação da violência e do medo
social, surgem as propostas que privilegiam o endurecimen-
to das práticas punitivas e de combate à criminalidade, bem
como reformas e ampliação do sistema penitenciário, com o
objetivo de controlar e reduzir a violência urbana. 
Neste processo de recrudescimento de políticas puni-
tivas e do aparato coercitivo do Estado, as classes populares
são consideradas prioritariamente como classes perigosas,
caracterizando um processo de estigmatização de grupos so-
ciais e da criminalização da pobreza. As classes com maior
vulnerabilidade social são as maiores vítimas e sujeitos acu-
sados de serem atores de ações de violência. A própria ação
da polícia é mais violenta nas periferias do que nos bairros
nobres. Por isso a relevância de discutir classe social, gênero,
a raça e etnia quando problematizamos a violência. 
O Estado vem revertendo seu papel social, num papel
punitivo. A partir do discurso da manutenção da ordem e da
86 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

lei, o Estado utiliza a polícia e a prisão como instrumentos


de controle social.
Wacquant (2003) destaca que os indivíduos que deixa-
ram de ser assistidos socialmente pelo Estado passam a ser
assistidos nas prisões, caracterizando a substituição progres-
sivamente do Estado Social por um Estado Penal, que trata
as expressões da questão social e a violência por meio da
repressão e criminalização dos pobres. Neste cenário, o autor
ressalta que o Estado deixa de ser um Estado social mínimo
para ser um Estado penal máximo. Assim, o Estado impõe
o que Wacquant (2004) chama de “contenção punitiva”, na
qual a prisão ocupa posição central nas políticas de atendi-
mento e controle social dos pobres.
Na próxima seção problematizamos a perspectiva de
reconhecimento de direitos da população carcerária, a partir
da LEP, e os desafios de efetivação e garantia destes direitos,
frente ao cenário contemporâneo de intensificação da vio-
lência e do aparato punitivo do Estado. 

Os desafios da garantia de direitos da


população carcerária: uma análise a partir
da Lei de Execuções Penais e do campo
empírico da execução penal

A prisão como instituição social é organizada para


proteger a sociedade contra perigos intencionais, tendo
como foco principal a disciplina, a punição e manutenção da
segurança, sendo caracterizada por uma rotina instituciona-
lizada e massificada. 
Nesse sentido, as prisões – como projeto que deu lu-
gar às práticas de aviltamento dos corpos em nome de penas
mais humanas – se configuram como um espaço de controle,
tratamento e transformação daqueles indivíduos, que come-
teram delitos e que deveriam ser excluídos do convívio social
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 87

até a sua “pronta recuperação”; passando a ser legitimada


pela sociedade a partir da sua proposta de tratamento do
preso, onde o mesmo é considerado como um “doente social”,
que precisa de mecanismo de reparo e correção. 
A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 – denominada
como Lei de Execuções Penais (LEP) - é um dos instrumentos
legais que normatizam os direitos e deveres dos presos, pre-
vendo a concessão de benefícios e punições no processo de
cumprimento da pena. A legislação e regras mínimas para o
“tratamento” do preso no Brasil preveem que o mesmo deve
ser realizado em condições, que permitam justa reparação do
delito cometido sem prejuízo da integridade física, mental e
social do preso. Nesse sentido, o processo de cumprimento
da execução da pena previsto em lei é de cunho positivista,
individualizando o crime, a pena e considerando a perspecti-
va de “tratamento” e de “reabilitação social”.
Para tanto, a legislação prevê o desenvolvimento de po-
líticas sociais, que possibilitem a garantia dos direitos huma-
nos e sociais da população carcerária, bem como o desenvolvi-
mento das “condições de retorno ao convívio social”. Estando
assim, os marcos jurídicos permeados pela concepção de cida-
dania e, contraditoriamente, por uma perspectiva positivista.
A LEP estabelece, no artigo 11, que as formas de as-
sistência aos presos são compostas pelo direito à assistência
material, jurídica, religiosa, social, educacional e à saúde;
representando assim, no plano normativo uma inovação no
atendimento às necessidades sociais, jurídicas, religiosas e
educacionais dos presos, sendo os mesmos considerados le-
galmente como sujeitos sociais e cidadãos.
Os presos que cumprem pena privativa e restritiva de
liberdade devem ser respeitados na sua condição de cida-
dãos, pois, embora tenham seus direitos políticos suspensos
com a perda da liberdade e estejam sob a custódia do Estado,
não lhe foram retirados os direitos sociais.
88 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

A legislação relacionada ao campo da execução penal


evidencia o caráter contraditório e híbrido da instituição
social prisão, destacando as funções sociais de educação e
de punição, bem como de assistência e de custódia. Nesse
sentido, no campo da execução penal o conceito de direito
passa a ser considerado benefício, sendo atravessado pela
dimensão da disciplina e segurança, consideradas questões
prioritárias neste campo.
A assistência, anunciada na LEP como direito, é ressal-
tada na perspectiva de efetivar ações voltadas à recuperação
dos presos e a garantia dos serviços sociais, que possibilitam
a “inclusão social” do indivíduo, sendo considerada, como
ação indispensável ao “tratamento penal”, colocando o preso
na condição ambígua de cidadão e, ao mesmo tempo, “sujeito
em disfunção social”. Draibe (1996) argumenta que, histori-
camente, as políticas sociais configuram-se como respostas
às necessidades fundamentais ao desenvolvimento da perso-
nalidade humana e da sociedade.
Nesse sentido, as políticas sociais definidas no texto
legal da LEP representam estratégias de atendimento às ne-
cessidades básicas dos presos, no processo de cumprimento
da pena, caracterizadas principalmente pela assistência ma-
terial, jurídica e à saúde. 
Por outro lado, as políticas sociais no cenário de exe-
cução penal efetivam ações e atendimentos necessários à
perspectiva de “ressocialização”, “readaptação” e “reinser-
ção social” dos indivíduos privados de liberdade. Estas cate-
gorias teóricas remetem à perspectiva teórica metodológica
funcionalista, caracterizando o viés conservador e funcio-
nalista da legislação. 
A assistência social, educacional e religiosa contribui
para a produção material e imaterial da vida social dos pre-
sos. Ou seja, estas assistências além de viabilizar o acesso
concreto e material a diversos serviços, produzem e repro-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 89

duzem ideologicamente valores, concepções, pensamentos,


visões de homem e de mundo.
O acesso e efetivação dos direitos sociais e das assis-
tências, no campo da execução penal, configuram-se como a
reprodução de ideologias dominantes e de controle social ou
a possibilidade de elaboração de uma cultura própria dos di-
versos segmentos sociais. Destacando-se o papel da educação,
religião e assistência social no acesso do preso à informação,
conhecimentos e habilidades imprescindíveis para o desenvol-
vimento de uma visão crítica da realidade. Logo, as assistên-
cias – na dimensão ideológica - consistem num contexto de
múltiplas contradições e num campo de luta hegemônica.
Outra contradição presente no texto legal, normativo
e evidenciado no cotidiano da vida prisional consiste no bi-
nômio direito / beneficio; cidadão / beneficiário; benefício
/ disciplina. O direito às assistências, previsto na LEP, são
efetivados no campo empírico da execução penal como ações
de benemerência e favorecimento aos presos, que possuem
bom índice de comportamento e disciplina. Nesse sentido, o
direito não adquire status de cidadania, uma vez que sua
operacionalização depende das estruturas física e humana
do ambiente prisional; além de serem associadas à condição
de disciplina dos presos. 
Nesse sentido, as prisões não constituem espaços
de efetivação da cidadania, mas um lugar de atendimentos
pragmáticos, emergenciais e compensatórios de carências.
A condição meritocrática e particularista de atenção às neces-
sidades sociais dos apenados retira sua condição de cidadão,
uma vez que o critério de acessibilidade, maior necessidade
ou mesmo o critério positivista do bom comportamento, res-
tringe o acesso da população carcerária aos bens e serviços
previstos na LEP.
Sposati (1995) ressalta que as políticas sociais consti-
tuem um campo contraditório, caracterizado por processos
90 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

de exclusão e inclusão social. Por um lado, o acesso da popu-


lação às políticas sociais minimamente garante o atendimen-
to das suas necessidades básicas, configurando um processo
de inclusão social. E, por outro lado, estes atendimentos são
desenvolvidos na forma de benefícios, reforçando o traço de
exclusão social desta população e de benemerência presente
nas políticas sociais.
No sistema penitenciário brasileiro, as políticas sociais
são consideradas excludentes na medida em que o seu acesso
não é universal e garantido à totalidade da população carce-
rária, mas, contraditoriamente, possuem um caráter inclusivo,
uma vez que muitos indivíduos têm acesso às mesmas pela
primeira vez quando são presos. Pereira (2013) aborda esta
contradição em seu artigo “Quando o camburão chega antes
do SAMU: notas sobre os procedimentos Técnico-operativos
do Serviço Social”, ressaltando que, na maioria das vezes, o in-
divíduo que cumpre medida de segurança tem acesso ao aten-
dimento da política de saúde mental (diagnóstico, medicação e
tratamento terapêutico) apenas após a sua prisão.  
As políticas sociais, consideradas por Draibe (1996)
como meritocráticas e particularistas também são perpas-
sadas por um excesso de burocrativismo estatal. No campo
da execução penal, o preso, para ter acesso às assistências,
trilha caminhos burocráticos diversos, caracterizados pelo
preenchimento de fichas e formulários, pelo condiciona-
mento, custódia e disciplinamento do tempo de espera ou
do tempo do atendimento, sendo o mesmo definido previa-
mente pela direção da unidade prisional ou pelos profissio-
nais deste campo.
A Lei de Execução Penal evidencia que a responsa-
bilidade pela execução das penas privativas de liberdade é
intrínseca ao Estado, devendo este recorrer à colaboração
da sociedade. Nesse sentido, o processo de custódia e trata-
mento do preso, apesar de ser considerado normativamente
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 91

uma prerrogativa do Estado, pode ser executado de manei-


ra descentralizada pelas instâncias públicas, privadas e pelo
terceiro setor. 
Existem estados brasileiros que privatizaram o siste-
ma penitenciário, repassando as responsabilidades e inter-
venção no campo da execução penal para empresas priva-
das. Estes rearranjos da execução das políticas sociais são
perpassados pela ideologia da ineficiência do Estado e da
eficiência, eficácia e efetividade da prestação de serviços
pelo Mercado. Mas, intrinsecamente, configuram a expan-
são do mercado lucrativo e de acumulação do capital para a
área social. (Motta, 1995).
No estado do Rio de Janeiro é adotada, pela administra-
ção penitenciária, a gestão mista de serviços, realizada direta-
mente pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciá-
ria (SEAP/RJ) e por empresas ou cooperativas terceirizadas.
A assistência ao trabalho e o desenvolvimento de atividades
laborativas são desenvolvidas no interior da unidade prisional
por empresas privadas. Essas empresas instalam a infraestru-
tura necessária à sua produção e utilizam a força de trabalho
do preso, reduzindo os custos da produção e caracterizando o
processo de mercantilização das políticas sociais.
As atividades e cursos de profissionalização (assistên-
cia à educação), bem como a assistência religiosa e material
são realizadas através de parcerias do Estado com organi-
zações não governamentais, instituições religiosas e outras,
que configuram o terceiro setor; caracterizando o processo
de refilantropização das políticas sociais. Os presos - muitas
vezes - obtém assistência material através da sua inserção
numa atividade religiosa, reforçando o caráter filantrópico,
individualista e meritocrático do atendimento às suas neces-
sidades, mediante a participação religiosa.   
A LEP não ganhou a efetividade necessária à garantia e
ao acesso aos direitos da população presa. Tal efetividade, na
92 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

verdade, seria configurada a partir da implantação de uma po-


lítica penitenciária contínua, sob a responsabilidade do Estado
(nos três níveis: federal, estadual e municipal), garantindo a
intersetorialidade e integralidade das políticas públicas.
No cenário contemporâneo, de intensificação da violên-
cia e do aparato punitivo do Estado brasileiro, observamos o
encarceramento massificado, a superlotação e o sucateamento
das unidades prisionais. O Brasil possui a terceira maior popu-
lação carcerária do mundo – 726.712 pessoas (INFOPEN, 2019)
– e 31% das unidades prisionais não possuem qualquer tipo
de assistência médica, de acordo com o Conselho Nacional do
Ministério Público. A superlotação é generalizada, com uma
taxa de ocupação de 171,6%, em todo o sistema. 
No presente capítulo iremos ilustrar o desafio da ga-
rantia de direitos ressaltando alguns dados sobre a assistên-
cia à saúde nas prisões brasileiras. Na seção III de Assistên-
cia à Saúde, do Artigo 14 da Lei de Execuções Penais, consta
que a assistência à saúde do preso e do internado, de cará-
ter preventivo e curativo, compreende atendimento médico,
farmacêutico e odontológico. Ainda nesse trecho da LEP, é
estabelecida a integralidade entre os hospitais prisionais e a
rede de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). De modo
que, caso não haja, nos hospitais prisionais as instalações e
remédios necessários ao atendimento médico, o preso não
tenha seu direito à saúde, cerceado. 
No que tange às condições de saúde em prisões, o Re-
latório do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime
em parceria com a Organização Mundial de Saúde (UNODC
& OMS, 2013, p. 02) evidencia que tanto a incidência de trans-
tornos mentais, assim como a transmissão de doenças infec-
tocontagiosas tem uma taxa significativamente maior na po-
pulação carcerária do que na população em geral. O Informe
Mundial sobre os Direitos Humanos no Mundo – Edição 2016,
apresentado pela Human Rights Watch, destaca que no Brasil a
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 93

incidência de HIV nas prisões é 60 vezes maior que no restan-


te da população, ao passo que essa mesma relação é da ordem
de 40 vezes mais para os casos de tuberculose.
Os dados do INFOPEN (2019) mostram uma escassez
de recursos humanos e materiais para a plena execução das
Políticas de Saúde. Ou seja, as instituições prisionais brasi-
leiras encontram-se em condições de extrema insalubrida-
de, superlotação e precarização. No Rio de Janeiro, apenas
36% das unidades prisionais possuem sala de coleta de mate-
rial para laboratório; 10% das prisões estaduais não possuem
ambulatório médico; nenhuma unidade prisional possui en-
fermaria com solário; há apenas 21 médicos de clínica geral,
4 médicos ginecologistas, 14 médicos psiquiátricos, 11 médi-
cos de outras especialidades e 72 enfermeiros. 
Estes dados têm sido problematizados e questionados
pelas instâncias de controle social, dentre elas o Conselho
Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Pú-
blico e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à tor-
tura, em função da pandemia ocasionada pela COVID-19. 
O Relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e
Combate à tortura (09/06/2020) destaca que em cinco meses
(01/01/2020 a 08/06/2020), cerca de 82 presos morreram no
sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro, dos quais
12 morreram por coronavírus e 15 por síndrome respirató-
ria aguda grave (SRAG). O referido relatório destaca que os
maiores entraves ao enfrentamento da COVID-19 nas pri-
sões são caracterizados pela ausência de água, de itens de hi-
giene e atendimento médico especializado, falta de informa-
ção, problema no registro de óbitos, superlotação e ausência
de vagas na rede (SUS).
O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacio-
nal do Ministério Público também denunciam a violação de
direitos caracterizada pelos entraves ao processo de desen-
carceramento, pela falta de acesso aos atendimentos de saú-
94 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

de, pela insalubridade e ausência de higienização das celas,


incomunicabilidade, problemas nas notificações de óbitos,
acesso controlado à água. Esclarecemos que a ausência de
atendimento médico se caracteriza não apenas pela ausência
de infraestrutura e recursos humanos nas unidades prisio-
nais, mas pela violação de direitos e violência que, por vezes,
acontece na transferência e escolta dos presos para a rede de
saúde pública. Muitos presos relatam – às instâncias de con-
trole social – que preferem não comunicar seus problemas
de saúde e demandar atendimento médico, em função do
medo de serem vítimas de violência física durante a escolta.
Apesar das denúncias de organismos nacionais e in-
ternacionais no âmbito da violação de direitos nas prisões,
grande parte da população brasileira reafirma a concepção
de que o indivíduo, que cometeu um delito deve ser executa-
do, punido e cumprir penas de privação de liberdade (longas)
em instituições totalmente fechadas e precarizadas. Retor-
nando ao exemplo do direito à saúde, entre março e maio de
2020, cerca de 2,5 mil presos receberam uma forma alternati-
va de cumprimento da pena, como regime domiciliar e moni-
toração eletrônica, em função da Recomendação n. 62/2020,
aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê
a reavaliação emergencial de prisões para pessoas de grupo
de risco. Esta ação do CNJ efetivada no sentido de garantir o
direito à saúde e de incentivar medidas alternativas ao cum-
primento da pena privativa de liberdade foi amplamente cri-
ticada pela população, que ressalta a necessidade constante
de punição, sofrimento e exclusão destes sujeitos.
Estes exemplos evidenciam os desafios da garantia de
direitos da população carcerária, que abrangem não apenas a
operacionalização das normatizações previstas na LEP, mas a
efetivação da integralidade e intersetorialidade das políticas
públicas e, principalmente, a necessidade de colocar em de-
bate as medidas alternativas ao encarceramento massificado. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões abordadas impõem a necessidade de re-


fletir sobre a assistência ao preso, nos aspectos legais e sua
operacionalização no cotidiano prisional, tendo o desafio de
refletir, no concreto do cotidiano prisional, a perspectiva da
garantia e a efetivação do exercício da cidadania. 
As expressões da Questão Social são individualizadas,
naturalizadas, criminalizadas e judicializadas, configurando
um cenário de efetivação de um Estado penal e punitivo, que
normatiza cada vez mais a vida cotidiana. 
Outra questão importante na análise do processo de
criminalização e judicialização das expressões da Questão
Social é o fato do controle e da coerção, exercida pelo Estado,
se dirigirem preferencialmente às chamadas classes perigo-
sas, ressaltando o processo de criminalização da pobreza.
Conforme observa Wacquant (2004), a maior parte
da sociedade não reconhece o crime como um indicador de
desigualdades sociais ou da violência estrutural e possui no
senso comum a ideia de que o encarceramento reduz a crimi-
nalidade. O indivíduo que comete um delito não é percebido
como portador de vulnerabilidade decorrente da estrutura
social e política da sociedade, consequentemente, as prisões
são vistas como um instrumento eficaz e eficiente de trata-
mento, punição e reabilitação dos indivíduos, contribuindo
para a diminuição da criminalidade.
As políticas sociais inseridas no campo da execução
penal são perpassadas por contradições e limites, no que
se refere à garantia dos direitos sociais. A lei penal não é
igual para todos, pois o status de criminoso é distribuído
de modo desigual entre os indivíduos, tendo os mesmos,
acesso restrito, tutelado, meritocrático e assistencialista às
políticas sociais. Nesse sentido, as características e contra-
dições presentes no campo da execução penal são eviden-
96 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

ciadas na própria configuração das políticas sociais no ce-


nário brasileiro.
O presente capítulo não tem a intenção de esgotar a te-
mática, mas, ao contrário, apontar um primeiro olhar teórico
e crítico sobre as interfaces entre a violência, o medo social
e a execução penal, ressaltando a necessidade da efetivação
de direitos, levando em conta a realidade social dos sujeitos.
Ressaltamos a necessidade e relevância da elaboração
e publicização de pesquisas cujo objeto de estudo seja re-
ferente às especificidades (visíveis e invisíveis) do sistema
penitenciário, produzindo conhecimentos com base nas de-
mandas postas pelos próprios sujeitos - presos e profissio-
nais - inseridos no campo da execução penal. 
Estudos e pesquisas que deem visibilidade ao preso
como sujeito social, político e histórico, como cidadão que
tem acesso a direitos e deveres no processo de exercício de
sua cidadania, inserindo a dimensão investigativa no con-
texto do exercício profissional e de luta política pela efeti-
vação dos direitos humanos e sociais no campo da execu-
ção penal.

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SEGU N DA SEÇÃO

Direitos humanos,
Interseccionalidade e Isolamento:
Questões Raciais e de Gênero
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 103

VIOLÊNCIAS DE GÊNERO CONTRA


MULHERES E MENINAS E OS
AGRAVAMENTOS EM ÉPOCA DE
ISOLAMENTO SOCIAL

Nivia Valença Barros


Rosilene Pimentel
Joice da Silva Brum

“Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada
nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria subs-
tância, já que viver é ser livre”
(Simone de Beauvoir, 2009).

O
“Fique em casa”, umas das principais medidas do
distanciamento social que ecoou em vários países
e regiões do mundo enquanto estratégia de preven-
ção ao contágio do novo coronavírus (COVID-19) promoveu
o isolamento social de muitas pessoas e famílias no âmbi-
to doméstico, evidenciando, dentre as desigualdades sociais
existentes, um preocupante aumento dos casos de violência
de gênero no âmbito doméstico contra mulheres e meninas.
A casa, em uma estruturação societária que a coloca como
espaço e principal locus de proteção, de cultivo da indivi-
dualidade, da privacidade e da coexistência permitida de re-
lações e afetos, nega, em sua conformação, a coexistência
de conflitos e violências que permeiam o convívio familiar,
desde que camuflados. Pois, “no caso do Brasil temos uma
casa complicada, onde estilos aparentemente singulares e até
104 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

mesmo mutuamente exclusivos parecem conviver em íntima


relação” (Da Matta, 1997, p. 7). 
Os conflitos e violências que coexistem na “casa” e
aparecem como desestruturações, não estão deslocados de
todo o processo societário. A casa, as famílias, que nela ha-
bitam produzem, reproduzem e absorvem, em uma retroali-
mentação os contextos políticos e socioeconômicos ine-
rentes à toda a sociedade. Assim, a casa, é também local de
desproteção, de inseguranças e de risco para as mulheres e
meninas que vivenciam relações abusivas, podendo ser um
espaço letal às suas vidas. Para conceituar as violências, tra-
zemos o pensamento de Chauí (1985, p. 35): 

“a conversão dos diferentes em desiguais e a desi-


gualdade em relação entre superior e inferior (...).
A ação que trata um ser humano não como sujeito,
mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia,
pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quan-
do a atividade e a fala de outrem são impedidas ou
anuladas, há violência.” 

As violências contra meninas e mulheres passaram


a ser discutidas de forma mais enfática graças aos movi-
mentos feministas, que trazem para a agenda pública ques-
tões silenciadas por muito tempo em nossa história - as
violências (doméstica, de gênero, institucional, sexual, fí-
sica, patrimonial, estrutural), o sexismo, a discriminação,
a diversidade sexual, entre outros. Para analisar esse pro-
cesso destacamos, especialmente, as feministas negras, com
a concepção trazida por Crenshaw, de Interseccionalidade
- classe, raça, gênero -, que no nosso estudo acrescentamos
a questão geracional. Esta fundamentação nos permite ana-
lisar o contexto sem fragmentações e hierarquizações, mas
visto em suas imbricações. Neste sentido, considerando-se
as multiplicidades, entrelaçamentos e imbricamentos des-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 105

tas questões, utilizamos feminismos, violências, famílias,


meninas e mulheres como categorias plurais. As violências
de gênero contra meninas e mulheres sobre a qual trata-
mos neste capítulo, requer a utilização do plural, pois desse
modo, explicitamos a multiplicidade de contextos que cer-
cam as temáticas. Sendo capaz de ressaltar a diversidade de
suas produções, reproduções e expressões, seja pela origem
ou pelas condições socioeconômica, racial, religiosa e étni-
ca, que são engendradas. 
Assim, por meio da revisão bibliográfica, o presen-
te estudo traz reflexões sobre os agravamentos da vio-
lência doméstica e familiar de gênero contra mulheres e
meninas, no contexto do isolamento social provocado pela
COVID-19, as intersecções de discriminações que as atinge
e as principais respostas de políticas públicas para o seu
enfrentamento. 

A violência doméstica e familiar de


gênero contra mulheres e meninas e suas
intersecções 

A violência de gênero não é algo novo e nem restrito


ao âmbito brasileiro, trata-se de um fenômeno complexo e
multidimensional que atinge mulheres de diferentes classes
sociais, origens, idades, escolaridades, raças, orientação se-
xual e culturas. Consideramos, neste capítulo, o gênero como
uma construção social que, segundo Scott (1985, p.86)  “é um
elemento constitutivo das relações sociais baseado nas dife-
renças percebidas entre os sexos (…) uma forma primária de
dar significado às relações de poder”, e a violência de gênero
como uma das modalidades de violência com múltiplos en-
trelaçamentos (físico, psicológico, patrimonial, entre outros),
exercida contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas sobre
a base de seu sexo ou gênero, que impacta amplos aspectos
de sua existência. 
106 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

As meninas foram negligenciadas durante muitos


anos, enquanto sujeitos de direitos. E, se as mulheres foram
invisibilizadas pela história e, somente, nas últimas décadas,
passam a ser resgatadas enquanto elementos ativos e consti-
tuintes  da construção histórica da humanidade. As meninas,
mesmo aquelas que passam por contextos semelhantes aos
vividos pelas mulheres adultas – de violências físicas, psi-
cológicas e sexuais -, ficam em uma espécie de “limbo”, ora
sendo tratadas como crianças que não vivenciam as “coisas”
consideradas como tipicamente adultas, ora sendo adultiza-
das e culpabilizadas pelos abusos sofridos.
Em termos de marcos legais no país, em favor de me-
ninas, destacamos: em 1988 - Constituição Brasileira; 1990
– Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA; em 1995 - Con-
venção de Belém do Pará; 2005 - Alterações no Código Penal
Brasileiro. Sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te, Lei 8069 de 13 de julho de 1990, determina em seu Art. 15
que: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao
respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo
de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, huma-
nos e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”.
No cenário internacional, apenas no ano de 1993 as
meninas são abordadas com maior especificidade, junto à
Declaração e Programa de Ação de Viena, Conferência Mun-
dial sobre Direitos Humanos, que enfatiza que “os Direitos
Humanos das mulheres e das meninas constituem parte ina-
lienável e indivisível dos direitos humanos universais”. Em
1995, pautadas nesta Declaração, a Plataforma de Ação de
Beijing pontua diretrizes focadas na eliminação da discrimi-
nação e dos entraves à igualdade de gênero e à emancipação,
visando desenvolver e mobilizar o potencial além de promo-
ver e respeitar os direitos humanos das meninas. 
A importância dos movimentos feministas no com-
bate à violência contra meninas e mulheres no Brasil e no
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 107

mundo, que há décadas, imprimem suas marcas junto a con-


quistas no âmbito de reformas jurídicas, sociais e de saúde
pública, requer ser reiterada. Neste cenário das violências,
muitas vidas foram ceifadas ou convivem com marcas atuais
e/ou passadas inscritas em seus corpos e mentes. Alguns ca-
sos recebem notoriedade no âmbito social e servem de base
para a mobilização e reforço de questões que incessantemen-
te são abordadas como bandeira de luta pelos movimentos
feministas que levam casos e dados maciçamente expostos e
debatidos ao cenário das agendas de discussão pública.  
Neste contexto, temos dois casos que ilustram com
representatividade o cenário brasileiro de ações de enfren-
tamento da violência contra o público feminino, o da farma-
cêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência
e que após sofrer agressões por parte de seu marido à época
- que inclusive a deixou paraplégica -, adentrou os meios
públicos incitando a discussão sobre a violência doméstica.
O caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos, pertencente à Organização dos Estados Americanos
(OEA) em 2002, tendo em vista que os mecanismos legais na-
cionais existentes até o momento, através de brechas e inú-
meros recursos, colaboraram com a impunidade e para ne-
gligenciaras violências praticadas. Na ocasião, a OEA dispôs
sobre a necessidade da elaboração de mecanismos eficazes
para coibir a prática da violência doméstica e familiar contra
mulheres, incluindo políticas públicas e legislações mais efi-
cientes. Hoje, Maria da Penha nomeia a Lei número 11.340,
de 7 de agosto de 2006. Esta lei: 

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica


e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
108 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de


Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
altera o Código de Processo Penal, o Código Penal
e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências
(BRASIL, 2006).

A Lei Maria da Penha (LMP) representou um marco


para o enfrentamento da violência de gênero e concomitan-
temente, desenvolveu mecanismos voltados para a repres-
são da violência em suas diversas variáveis. Representa uma
evolução na história da impunidade vivenciada pelo público
feminino, com a proposta de tratar em sua integralidade o
problema da violência doméstica contra a mulher, não apenas
determinando penas maiores aos agressores. Há a preocupa-
ção de requerer a construção de um aparato de instrumentos
que escute, acolha e proteja as vítimas. A ampla divulgação da
lei produziu um maior conhecimento de suas prerrogativas
por mulheres de diferentes classes sociais, por todo o país.
O IPEA (2015) realizou uma pesquisa sobre a LMP,
buscando traçar a efetividade de suas ações nos oito primei-
ros anos de sua promulgação e constatou a existência de uma
lacuna de estudos empíricos para avaliar o efeito da Lei. As-
sim, realizaram este estudo através de “um modelo de dife-
renças em diferenças, em que os homicídios contra mulheres
que ocorreram dentro das residências foram confrontados
com aqueles que acometeram os homens”. Como resultado,
encontraram que a LMP de fato desempenhou um papel ex-
pressivo junto à contenção da violência de gênero. No en-
tanto, o processo de aplicabilidade de suas ações não se deu
de maneira uniforme no país, uma vez que a “sua eficácia
depende da institucionalização de vários serviços protetivos
nas localidades, que se deu de forma desigual no território”.
Não obstante a implementação discrepante da LMP
entre as várias partes do Brasil, os números de violência
contra mulheres continuaram elevados e denotando a neces-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 109

sidade de uma nova ferramenta que pudesse colaborar com


enfrentamento destas práticas. Em 9 de março de 2015, a san-
ção da Lei nº 13.104, que altera o artigo 121 do Código Penal
Brasileiro de 1940, respeitando a urgência de medidas mais
rígidas contra o recrudescimento do assassinato de mulhe-
res em decorrência de sua condição de gênero, o feminicídio
passou a elencar o rol dos crimes hediondos.
Os dois marcos citados mostram que, paulatinamente,
a violência contra as mulheres vem transcendendo o espa-
ço privado do lar e sendo vista e tratada com maior rigor e
expressividade nas últimas décadas, nas suas mais diversas
interseções. No entanto, a maioria das ações substanciais
instituídas hoje, ainda são direcionadas ao público feminino
adulto, o que nos faz retomar a retórica da falta de visibi-
lidade e ações capazes de responder às demandas mais es-
pecíficas do público infanto-juvenil feminino. O enfoque na
mulher adulta não constitui um problema, pelo contrário, é
uma conquista para o mundo feminino, já tão acometido por
questões violentas e estigmatizado. Porém, não pensar, ou
acomodar em segundo plano as especificidades que habitam
o universo infanto-juvenil feminino, dificulta a promoção
destes sujeitos como atores sociais relevantes no contexto
das relações estabelecidas em sociedade.   
Tendo em vista ao que já está pautado pela construção
social das relações de gênero, a violência contra mulheres e
meninas se materializa por meio de opressões psicológicas
e morais; agressões físicas e sexuais que podem culminar /
culminam em suas mortes; o cárcere privado que as isola de
suas redes de relações, limitando-as à convivência do rela-
cionamento abusivo; entre outras manifestações, que atin-
gem mulheres e meninas em seus direitos à vida, à saúde, e à
integridade física (BRASIL, 2011).
Estudos que abordam o tema de diferentes ângu-
los apontam os contornos sociais e culturais deste tipo de
110 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

violência que está presente em todas as dimensões da vida


social e indicam sua incidência no âmbito doméstico (BAR-
ROS, 2015; MEDEIROS, 2011; SAGOT, 2000; SAFIOTTI, 2015;
TERRA, d`OLIVEIRA, SCHRAIBER, 2015). 
O estudo “Raio-X do Feminicídio em São Paulo: é pos-
sível prevenir a morte”, realizado pelo Núcleo de Gênero do
Ministério Público do Estado de São Paulo, analisou 364 de-
núncias de morte violenta de mulheres motivada por razões
de gênero, entre março de 2016 a março de 2017, com o obje-
tivo de verificar se a Lei do Feminicídio foi aplicada na fase
inicial do processo criminal e identificar as circunstâncias
da ocorrência do crime. Dentre as denúncias analisadas, o
estudo identificou que o local em que as mulheres são mais
atacadas é dentro da própria casa, 66% dos casos analisados
ocorreram dentro da casa da vítima. Em 96% das denúncias,
o autor das agressões tinha ou teve relacionamento íntimo
com a mulher. 
De acordo com a publicação da ONU Mulheres “In-
fográfico: A pandemia das sombras – violência contra mu-
lheres e meninas e COVID-19”, de 06 de abril de 2020, nos
12 meses anteriores ao surgimento desta pandemia, com-
preendendo o ano de 2019, 243 milhões de mulheres e me-
ninas, entre 15 e 49 anos, em âmbito mundial, foram sub-
metidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo.
Outras 87 mil mulheres foram mortas em 2017, sendo que
a maioria desses assassinatos foi cometida por um parceiro
íntimo ou membro da família da vítima. Ao mesmo tempo
em que os indicadores mostram a magnitude do fenômeno
da violência contra mulheres e meninas, a existência da sub-
notificação indica que esse número pode ser muito maior.
Segundo a ONU Mulheres, menos de 40% das mulheres que
sofrem violência, denunciam ou procuram ajuda.
Desde o surgimento da COVID-19, a intensificação da
violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 111

tem apresentado um triplo movimento em que se identificam


os contornos da subnotificação: aumento dos casos de vio-
lência e feminicídio, diminuição das denúncias em serviços
especializados e aumento de chamadas, com pedido de ajuda,
em linhas de denúncias da violência doméstica em diferen-
tes países do mundo. Segundo a ONU Mulheres, na França
houve um crescimento da violência doméstica em 30%, já na
Argentina as chamadas de emergência de casos de violência
doméstica tiveram um crescimento de 25%. Tal crescimento
de chamadas também foi identificado em Chipre e Singapura
em 30% e 33% respectivamente. De acordo com Peterman et
al (2020), na Austrália uma pesquisa realizada com 400 tra-
balhadores da linha de frente indicou que 40% relataram um
aumento nos pedidos de ajuda e 70% apontaram um aumen-
to na complexidade dos casos. 
No Brasil, não foi diferente, a Nota Técnica publica-
da pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020) que
analisou a situação violência doméstica contra meninas e
mulheres durante a pandemia da COVID-19, indicou que
entre os meses de março e abril de 2020 houve um cresci-
mento de 27% das denúncias telefônicas pelo canal “Ligue
180”, comparado ao mesmo período do ano de 2019. Nos
chamados para a Polícia Militar, via 190, o crescimento foi
de 44,9% em São Paulo e 22,3% no Acre, em relação ao ano
anterior. Enquanto observou-se o crescimento das denún-
cias nesses canais telefônicos, identificou-se a diminuição
em relação aos registros de Boletins de Ocorrências nas De-
legacias de Polícia decorrentes da violência doméstica no
mesmo período, com redução de 25,5% para os registros de
lesão dolosa e 28,2% para os registros de estupro e estupro
de vulnerável. Nestas circunstâncias, também foi consta-
tado o crescimento de feminicídio em 22,2% em relação ao
ano de 2019, isto é, 143 mulheres foram mortas em 12 esta-
dos brasileiros, em razão de serem mulheres. O feminicídio
112 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

é a manifestação mais brutal dessa violência que tem em


sua base as complexas relações de poder entre os gêneros,
constituídas histórica e socialmente. 
Neste cenário, as consequências do isolamento social
na vida das mulheres e meninas que já vivenciavam situa-
ções de violência, são múltiplas. As tensões geradas pelo
convívio mais intenso dentro de casa com parceiros e / ou
familiares violentos são acompanhadas pelas inseguranças
de saúde, aumento do trabalho doméstico, perda de emprego
ou diminuição da renda, condições habitacionais precárias,
entre outras, que mostram a intersecção de um conjunto de
discriminações e desigualdades sociais que atravessam suas
vidas e são experimentadas de diferentes formas. 

Agravamentos e isolamentos

No início de março, com a confirmação dos primeiros


casos de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, gradati-
vamente, os estados e municípios foram decretando Estado
de Emergência Pública, o qual dentre outras medidas, visan-
do o distanciamento social, suspendeu o funcionamento de
atividades não essenciais e nesse rol, escolas e universidades
tiveram suas aulas interrompidas; muitas empresas suspen-
deram suas atividades de serviços e produção e / ou adota-
ram o trabalho remoto home office (funcionários/as passam
a trabalhar de suas casas); e muitas atividades de trabalho
informal foram interrompidas. 
Tais medidas trouxeram a atenção para as relações in-
terpessoais no âmbito doméstico e logo vários veículos de
comunicação passaram a noticiar os impactos econômicos e
sociais desta medida na vida das mulheres e meninas, prin-
cipalmente em relação ao acirramento das situações de vio-
lência, que conforme declarou a diretora executiva da ONU
Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, a “Violência contra
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 113

mulheres e meninas é pandemia invisível” e neste momento


de crise sanitária tem se agravado.  
Neste contexto, com a medida de distanciamento so-
cial, um dos primeiros impactos na vida de mulheres e me-
ninas foi a redução da dinâmica de sua rede relacional, seja
com familiares, amigos, vizinhança ou com serviços e insti-
tuições. Se anteriormente a pandemia da COVID-19, as mu-
lheres e meninas contavam com apoio decorrente de suas
relações estabelecidas no trabalho, na escola, com o convívio
mais próximo com amigos e vizinhos, com o isolamento so-
cial as relações ficaram mais restritas ao âmbito doméstico,
intensificando medos e inseguranças. 
O medo, gerado principalmente pelas recorrentes
ameaças dos parceiros íntimos, é reconhecido como um
dos fatores que pode inibir as mulheres e meninas de aces-
sar suas redes de apoio formal e informal (SAGOT, 2000;
TERRA, d`OLIVEIRA, SCHRAIBER, 2015) e associado ao
momento atual de pandemia, tanto intensifica o isolamento
social de mulheres e meninas, como permeiam as inseguran-
ças de saúde e de subsistências. 

“O medo, nos contextos de violências, é intensificado


quando há falta de apoio da família, comunidade e
das instituições responsáveis por garantir a seguran-
ça. O sentido de medo é ditado pela obediência na re-
lação com os outros, e definido como um fenômeno
psicológico que acompanha a tomada de consciência
de um perigo real ou imaginário, ou quando a inte-
gridade do indivíduo está em risco” (FIORIN apud
TERRA, d`OLIVEIRA, SCHRAIBER, 2015, p. 119).

As inseguranças de saúde estão relacionadas ao medo


de contágio do vírus, às incertezas sobre a disponibilidade
de leitos hospitalares diante do rápido aumento de casos de
pessoas infectadas, à redução de oferta de atendimentos de
114 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

rotina nas Unidades Básica de Saúde - UBS pelo direciona-


mento de prioridade ao acolhimento de casos suspeitos de
contaminação pela COVID-19, sendo que este serviço, ape-
sar de muitas vezes não ofertar uma escuta especializada em
relação aos casos de violências contra mulheres e meninas,
são os serviços mais acessados por elas, com queixas de saú-
de ocasionadas pelas situações de violência. 
Somado a esses aspectos, autores de violência também
se utilizam da pandemia para aterrorizar e isolar ainda mais
mulheres e meninas, segundo Peterman et al (2020), a linha
direta Nacional de Violência Doméstica dos Estados Unidos,
emitiu uma declaração no início de março de 2020 sobre
“Manter-se seguro” em meio à COVID-19 e destacou evidên-
cias de como os autores de violências usavam o vírus como
uma tática assustadora para ameaçar ou isolar suas vítimas.  
Outra dimensão que impactou as mulheres foi a brus-
ca perda de empregos e diminuição da renda, principalmente
daquelas que são responsáveis pela manutenção da renda fa-
miliar. A participação das mulheres no mercado de trabalho,
historicamente foi marcada por uma inserção em ocupações
consideradas socialmente de menor prestígio e foram exata-
mente essas posições as mais afetadas durante a pandemia. 
Segundo o Boletim n°3 “COVID-19: Políticas Públicas e as Res-
postas da Sociedade” (2020), publicado pela Rede de Pesquisa
Solidária, as mulheres apresentam uma participação maior
nos setores de serviços não essenciais que incluem predomi-
nantemente os serviços domésticos, cabeleireiros e outras ati-
vidades de tratamento de beleza que foram os segmentos mais
atingidos, ao passo que homens se situam entre as atividades
de setores essenciais (muitos em serviços essenciais menos
afetados como construção de edifícios, restaurantes e outros
estabelecimentos de serviços de alimentação e bebidas). 
Dessa forma, o respectivo estudo aponta que devido às
mulheres estarem menos presentes em setores considerados
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 115

essenciais, estão mais sujeitas à perda de emprego e renda. E


as desigualdades no mercado de trabalho também são marca-
das pelas diferenças raciais, na qual homens e mulheres ne-
gras encontram-se com vínculos trabalhistas mais instáveis e
frágeis. “E cabe destacar, mesmo dentre eles, a desigualdade
de gênero que faz despontar as mulheres negras no grupo
que combina os vínculos mais instáveis e os setores não es-
senciais” (Idem, 2020).
A situação das trabalhadoras doméstica é um retrato
desta desigualdade social de classe, raça e gênero no Brasil.
Segundo nota técnica publicada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada -  IPEA (2020), as domésticas represen-
tam atualmente cerca de 6 milhões de trabalhadoras, corres-
pondendo a aproximadamente 15% das trabalhadoras ocupa-
das, sendo que 10% são mulheres brancas e 15% de mulheres
negras. Segundo o estudo, trata-se de um campo ocupado,
em geral, por mulheres negras, pobres e com baixa escola-
ridade e que se opera predominantemente pela informali-
dade das relações trabalhistas, visto que menos de 28% das
domésticas possuem vínculos empregatícios com proteção
de direitos. Isto significa que mais de 70% das trabalhado-
ras ficaram desprotegidas durante a pandemia, seja pela dis-
pensa de seus empregos sem garantia de renda e / ou por
permanecerem trabalhando, muitas vezes, expostas ao risco
de contaminação pela ausência de equipamento de proteção
individual adequado.
Essas situações de desigualdades sociais estão engen-
dradas nas relações assimétricas de gênero, classe e raça, em
que tanto reforçam os papéis de gênero onde mulheres e
meninas culturalmente são direcionadas no desempenho de
atividades relacionadas aos cuidados de forma naturalizada
(BARROS, 2015), como se articulam às diferenças de classe e
raça nas quais as desigualdades de acesso agravam a situação
de mulheres negras.
116 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Essas desigualdades sociais estão intrinsecamente en-


raizadas na formação social do Brasil e impactam despropor-
cionalmente mulheres negras, como demonstrou o Atlas da
Violência (IPEA, 2019). Segundo o estudo, em 2017 foi cons-
tatado um aumento no número de assassinatos de mulheres.
Foram 4.936 mulheres mortas, com cerca de 13 assassinatos
por dia, alertando ser o maior número registrado depois de
2007. Entre o período de 2007 a 2017 o aumento foi de 20,7%
na taxa nacional de feminicídios, passando de 3,9 para 4,7
mulheres assassinadas por grupo de 100 mil mulheres. Nesse
universo, a pesquisa mostra que as mulheres negras são as
mais atingidas por este tipo de violência. Enquanto o aumen-
to de homicídios em relação às mulheres não negras foi de
1,7%, o aumento em relação às mulheres negras foi de 60,5%,
uma discrepância considerável, o que representa a interação
da discriminação de gênero e raça nos contornos desta vio-
lência (CARNEIRO, 2003).
Com o distanciamento social também houve uma al-
teração no funcionamento dos serviços de saúde, assistência
social e jurídico, reduzindo a forma de acesso das mulheres
em situação de violência. 

Principais respostas das políticas públicas

As respostas para o enfrentamento da violência contra


as mulheres e meninas no Brasil se inscrevem num conjun-
to articulado de políticas públicas previstas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990), Lei Maria da Penha (2006),
na Política e no Pacto de Enfrentamento da violência con-
tra as mulheres, ambos de 2007 com releituras em 2011, que
fomentam uma abordagem integral da violência baseada no
gênero por meio de ações protetivas, preventivas, punitivas,
de assistência e de garantia dos direitos de mulheres e meni-
nas. Tal diretriz de atuação se encontra expressa no conceito
de enfrentamento da violência da Política Nacional (2011):
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 117

O conceito de enfrentamento, adotado pela Políti-


ca Nacional de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres, diz respeito à implementação de polí-
ticas amplas e articuladas, que procurem dar conta
da complexidade da violência contra as mulheres em
todas as suas expressões. O enfrentamento requer a
ação conjunta dos diversos setores envolvidos com
a questão (saúde, segurança pública, justiça, educa-
ção, assistência social, entre outros), no sentido de
propor ações que: desconstruam as desigualdades e
combatam as discriminações de gênero e a violência
contra as mulheres; interfiram nos padrões sexistas/
machistas ainda presentes na sociedade brasileira;
promovam o empoderamento das mulheres; e ga-
rantam um atendimento qualificado e humanizado
àquelas em situação de violência (BRASIL, 2011).

Neste escopo, o trabalho em rede com atuação entre


diferentes instituições e serviços governamentais e não go-
vernamentais desempenha um papel central na garantia da
oferta de assistência às mulheres associadas “(...) à amplia-
ção e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação
e encaminhamento adequado das mulheres em situação de
violência; e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de
prevenção” (BRASIL, 2011).  
A constituição de uma rede de serviços especializa-
dos no atendimento de mulheres em situação de violência
foi idealizada pelo movimento feminista e de mulheres em
um processo de lutas e reivindicações pelo reconhecimento
público e social da violência doméstica e familiar de gênero
e pela necessária intervenção do Estado por meio de Políti-
cas Públicas. Neste contexto, em 1980, surge o primeiro SOS-
Mulher na cidade de São Paulo, empreendido pelo movimen-
to feminista, essa experiência se constituiu em um marco no
atendimento de mulheres em situação de violência e logo
expandiu nas demais cidades brasileiras (MEDEIROS, 2018). 
118 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Como resultado da crescente atuação e mobilização do


movimento feminista, são implementadas as primeiras políti-
cas públicas com recorte de gênero no âmbito do Estado, tais
como o Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983,
a criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher – DDM
em 1985, no ano seguinte, em 1986, é inaugurada a primeira
Casa Abrigo do país para mulheres em situação de risco, em
decorrência da violência doméstica e familiar de gênero. To-
dos esses serviços foram criados no Estado de São Paulo e,
posteriormente se disseminaram os demais Estados brasileiros
(FARAH, 2004; SILVEIRA, 2006; MEDEIROS, 2018).
A experiência do SOS também foi fundamental para
a criação de novos serviços de enfrentamento da violência
contra as mulheres. Seu formato é recuperado como refe-
rência para a implementação dos Centros de Referência da
Mulher no início de 1990 na Cidade de São Paulo, objeti-
vando o acolhimento qualificado e multidisciplinar, assim
como um processo de trabalho articulado com o intuito de
responder às diversas demandas das mulheres, possibili-
tando seu rompimento com a situação da violência (SIL-
VEIRA, 2006, p. 53).
Na década de 2000, com a criação da Secretaria Polí-
tica para Mulheres - SPM, em 2003, iniciou-se um processo
descentralizado para elaboração de instrumentos normati-
vos que instituem diretrizes, princípios e conceitos para o
enfrentamento da violência baseada no gênero e com a pro-
mulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, que estabelece em
seu art. 3° que “o poder público desenvolverá políticas que
visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito
das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá
-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”, a ampliação e fortalecimen-
to da rede de serviços especializados ganha força com uma
composição diversificada.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 119

No que tange aos serviços especializados, a rede de


atendimento é composta por: Centros de Atendi-
mento à Mulher em situação de violência (Centros
de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos
de Atendimento à Mulher em situação de Violên-
cia, Centros Integrados da Mulher), Casas Abrigo,
Casas de Acolhimento Provisório (Casas-de-Passa-
gem), Delegacias Especializadas de Atendimento
à Mulher (Postos ou Seções da Polícia de Atendi-
mento à Mulher), Núcleos da Mulher nas Defenso-
rias Públicas, Promotorias Especializadas, Juizados
Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher, Central de Atendimento à Mulher - Li-
gue 180, Ouvidoria da Mulher, Serviços de saúde
voltados para o atendimento aos casos de violência
sexual e doméstica, Posto de Atendimento Huma-
nizado nos aeroportos (tráfico de pessoas) e Núcleo
de Atendimento à Mulher nos serviços de apoio ao
migrante (tráfico de pessoas) e Núcleo de Atendi-
mento à Mulher nos serviços de apoio ao migrante
(BRASIL, 2011a).

No bojo do avanço ao enfrentamento da violência


contra as mulheres com vista à diretriz da oferta da assis-
tência integral e a premissa do trabalho em rede, os serviços
especializados apresentaram uma significativa ampliação de
forma diversificada. De acordo com estudo do IPEA (2015),
em 2013 foram mapeados 214 Centros Especializados da Mu-
lher, 77 Casas Abrigos, no âmbito da segurança pública ha-
viam 381 Delegacias Especializadas da Mulher e 125 Núcleos
de Atendimento à Mulher nas Delegacias comuns. Quanto
ao sistema de justiça, os Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a mulher, uma das principais inovações ins-
tituídas pela Lei Maria da Penha, foram implementadas 53
Juizados e 45 Varas Adaptadas de Violência Doméstica e Fa-
miliar; 40 Promotorias Especializadas ou Núcleos de Gênero
120 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

do MP e 46 Núcleos Especializados no Atendimento da Mu-


lher da Defensoria Pública (IPEA, 2015).
Reconhecidamente, a implementação de um conjunto
de políticas públicas de enfrentamento da violência contra
as mulheres proporcionou uma ampliação significativa no
quantitativo de serviços especializados da rede atendimento
às mulheres em situação de violência. No entanto, segundo
Campos (2015), a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
– CPMI da Violência contra a Mulher, do Congresso Nacio-
nal, investigou as condições do enfrentamento da violência
contra as mulheres no país, entre os anos de 2012 e 2013 e
identificou que esse importante avanço convive ainda com
muitos desafios para o alcance de uma oferta ampliada com
atenção integral às mulheres. 
De acordo com a autora, a CPMI em 2013 constatou
que a rede especializada é composta por 977 serviços, núme-
ro ainda reduzido diante da dimensão geográfica e diversi-
dade regional do país, considerando os 26 Estados, o Distrito
Federal e os 5.570 municípios, a rede atinge menos de 20%
das cidades brasileiras (CAMPOS, 2015). Detalhando essa
realidade, o estudo realizado pelo IPEA (2015), que visou
analisar a espacialidade dos serviços especializados, identi-
ficou que, em 2013, os Centros de Referência da mulher en-
contravam-se presentes em 191 municípios (3,4% do total), as
Casas Abrigos se localizavam 70 municípios (1,3% do total),
já as Delegacias Especializadas foram o serviço com maior
capilaridade, presente 362 municípios (6,5% do total). Quanto
aos serviços do sistema de justiça tem-se que estes ainda es-
tavam presentes em menos de 1% dos municípios brasileiros.
Segundo Campos (2015), corrobora a essa questão, de
um lado, o fato de grande parte dos serviços se encontrarem
nas capitais das cidades e regiões metropolitanas compro-
metendo o acesso de mulheres que residem em bairros ou re-
giões distantes, e por outro lado, o fato das verbas também se
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 121

concentrarem em capitais deixando os municípios menores


com poucos recursos para efetivação das políticas públicas.
Outro aspecto que se constitui em um dos obstácu-
los para o acesso das mulheres aos serviços especializados,
é a pouca institucionalização de uma prática articulada en-
tre os diversos serviços no atendimento das mulheres em
situação de violência (CAMPOS, 2015; SANTOS, 2015). Se-
gundo Campos (2015), a CPMI identificou em vários Estados
uma atuação isolada dos serviços em que mesmo havendo
proximidade de localização entre eles, não conversam entre
si, não discutem casos coletivamente, atuação que impede
o acesso das mulheres a outros serviços na perspectiva da
complementaridade e transversalidade que o atendimento
integral requer.  
Além do baixo investimento em formação continua-
da dos profissionais, sobretudo numa perspectiva de gênero,
Santos (2015) argumenta que a “(...) posição institucional dos
serviços, a história de cada serviço e a experiência e trajetó-
ria profissional das/os agentes institucionais são fatores im-
portantes a influenciar as suas abordagens sobre a violência
e a relação entre instituições”. 
Cabe destacar, que em muitas regiões existem inicia-
tivas de constituição e / ou constituíram redes de enfrenta-
mento com participação dos serviços que compõem a rede de
atendimento e representantes de organizações governamen-
tais e não governamentais, e buscam incorporar o paradigma
do trabalho da rede (SANTOS, 2015) com objetivo construir
estratégias de prevenção e oferta de assistência qualificada
às mulheres em situação de violência, conforme preconiza as
diretrizes da Lei Maria Penha (2006) e a Política Nacional de
Enfrentamento da Violência contra as Mulheres (2011).
O processo de adaptar e aperfeiçoar o acesso das mu-
lheres isoladas a serviços, informações e formas de denún-
cias em decorrência da violência doméstica e familiar de gê-
122 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

nero requereu a adoção de estratégias que incluíssem o uso


de tecnologias de informação e comunicação, permitindo
realizar Boletim de Ocorrência online, ampliando os canais
de denúncias via telefone e rede social de Whatsapp. Estados
como Sergipe, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul, além
de manter o atendimento físico nas Delegacias Especializa-
das de Atendimento à Mulher – DEAMs, implementaram o
registro da ocorrência online. No Piauí, novos serviços de
telefone foram disponibilizados; no Rio Grande do Sul foi
divulgado um número para recebimento de denúncias; no
Rio de Janeiro, a Subsecretaria de Política para Mulheres
implementou uma escuta especializada no canal do Disque
Cidadania e Direitos Humanos. Semelhantemente, a Prefei-
tura de São Paulo também passou a ofertar escuta qualificada
por meio do telefone 156, e os casos que necessitarem serão
conectados à Casa da Mulher Brasileira para o atendimento
psicossocial por telefone (IPEA, 2020a; PMSP).
Em relação às ações de Segurança Pública, a Patrulha
Maria da Penha, serviço realizado pela Guarda Civil Muni-
cipal ou Polícia Militar que prevê o acompanhamento das
mulheres com medidas protetivas em vigência por meio de
visitas as suas residências, continuou sua atuação e alguns
estados adotaram adaptações como o acompanhamento via
telefonemas, mensagens e atendimentos online. Se destacam
o Rio Grande do Sul, o qual ampliou o atendimento das Pa-
trulhas Maria da Penha de 46 para 82 municípios no estado;
o Mato Grosso do Sul, cujo governo intensificou as ações do
Programa Mulher Segura (Promuse), o qual realiza as visitas
de acompanhamento em áreas urbanas, rurais e nas aldeias
indígenas. O Estado do Maranhão se destacou no uso desta
ação, pois além da Patrulha Maria da Penha realizar o acom-
panhamento das medidas protetivas de urgência, passou a
realizar a entrega de cestas básicas às mulheres que necessi-
tam (IPEA, 2020a).
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 123

Os serviços do sistema justiça da rede especializada


(Núcleos da Mulher da Defensoria Pública, Promotorias Es-
pecializadas e Juizados Especiais de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher) passaram a atender por meio remoto,
priorizando os casos considerados urgentes como solicitação
de medida protetiva de urgência, informação/intimação de
descumprimento da medida protetiva e busca e apreensão de
crianças. No caso da Defensoria Pública de São Paulo foi dis-
ponibilizado um formulário para solicitação de atendimento
dessas requisições via Whatsapp e no portal da instituição.
No âmbito dos Juizados Especiais de Violência Do-
méstica e familiar contra a mulher, foi adotado o aplicativo
para deferimento das medidas protetivas de urgência, desde
que haja concordância das mesmas com o fornecimento do
número de telefone celular, por ocasião de requerimento das
medidas. Em São Paulo, por meio de atendimento à solici-
tação do NUDEM, o Tribunal de Justiça de São Paulo fle-
xibilizou a exigência do Boletim de Ocorrência para reque-
rimento de medidas protetivas de urgência, considerando
prescindível apresentação de Boletim de Ocorrência para a
instauração de processos no âmbito da Violência Doméstica
e Familiar contra as mulheres. Outro ponto atendido, que vi-
sou potencializar a garantia de proteção das mulheres diante
da pandemia, foi recomendar aos Juízes/as, que, ao deferir
as medidas protetivas de urgência por prazo determinado,
avaliassem a sua prorrogação, evitando revogação, exceto se
houvesse requerimento da mulher neste sentido.
Outra ação desenvolvida pelas redes de serviços e Se-
cretarias que realizam gestão desta política em diferentes
regiões do país foi a elaboração de materiais informativos,
distribuídos em meios digitais, divulgando os serviços dis-
poníveis na rede de atendimento do território e seus horá-
rios de funcionamento durante a pandemia;  orientando a
respeito dos canais telefônicos de denúncias como Disque
124 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

100, Ligue 180 e Disque 190 e aplicativos de direitos huma-


nos; também foram observadas a ampliação de campanhas
de incentivo para que as mulheres busquem ajuda em razão
da situação de violência em suas relações de vizinhança,
família e serviços públicos; tais campanhas também se des-
tinaram a incentivar as pessoas e da comunidade que tomar
conhecimento das situações de violência doméstica e fami-
liar, a denunciar (IPEA, 2020a). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil se depara com uma grave crise sanitária de


COVID-19 e em meio a esse processo, deveria simultanea-
mente enfrentar as demandas trazidas por este contexto,
continuar a tarefa de ampliar a rede de serviços, investir
na institucionalização de uma atuação articulada para su-
perar os desafios já existentes, e apresentar estratégias que
possibilite a garantia de proteção para mulheres e meninas
diante do crescente risco da violência doméstica e familiar
de gênero, potencializado pelo isolamento social em decor-
rência da pandemia. Mas, isso não tem se concretizado.
Neste contexto, em que a prevenção da disseminação
da COVID-19 é de extrema importância e a proteção da vida
das mulheres e meninas em decorrência da violência domés-
tica e familiar de gênero se faz urgente, a adoção das tecno-
logias de informação e comunicação representaram maiores
possibilidades de acesso aos serviços, mas dada as desigual-
dades sociais, muitas mulheres passam por muitas vulnera-
bilidades que vão das mais concretas e objetivas a outras que
são mais singulares. Não se efetivar políticas sociais para a
prevenção e enfrentamento das violências contra meninas e
mulheres é uma forma de inviabilização e descaso.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 125

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Against Women and Girls and COVID-19. 6 abril 2020. Dis-
ponível em: https://www.unwomen.org/en/digital-library/
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Against Women and Girls and COVID-19. Disponível em: 
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SANTOS, Cecília Macdowell. Curto-Circuito, falta de linha


ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra
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23 (2): 352, maio-agosto, 2015. 
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 129

OS PROCESSOS DE ISOLAMENTO
SOCIAL PARA A POPULAÇÃO LGBTI+
PARA ALÉM DA PANDEMIA
Nivia Valença Barros
Ana Beatriz Quiroga
Marcelo Ricardo Prata

“Contra todos eles a história. Não só vivemos, mas


saímos de úteros nobres e pobres, abandonados ou
vasculhados. Somos legião, ora demônios, ora solda-
dos, mas nunca suprimidos”
(Guilherme Almeida, 2019).

A
pandemia de COVID-19 em 2020 trouxe com ela
a necessidade do isolamento, que teve como in-
tuito evitar a propagação do vírus. Tratava-se de
um contexto mundial e apresentou, em cada país atingido,
ações e políticas diferenciadas. No Brasil, esta pandemia
foi tratada de muitas formas. O governo federal, na ima-
gem do Presidente da República e de seus aliados, tratou a
questão sanitária de forma negacionista, desconsiderando
as indicações científicas dadas por médicos, epidemiologis-
tas e pela OMS. Negava-se  sua abrangência, letalidade e,
na maior parte das vezes, tratou a doença de forma banal,
naturalizando o crescente número de óbitos. A falta de con-
dições sanitárias e hospitalares foi uma realidade preocu-
pante neste período.
130 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

No dia 12 de março, começo oficial do período de iso-


lamento, foi divulgada a primeira morte oficial devido ao ví-
rus. No final de julho, passados mais de quatro meses, já se
contabilizava mais de 90 mil mortes.
O negacionismo e a naturalização, principalmente do
preconceito e da agressão, são comuns na vida da popu-
lação LGBTI+. Nega-se sua orientação, sua identidade, sua
expressão e, muitas vezes, indicam-se tratamentos como a
chamada “Cura Gay” - prática proibida pelo Conselho Na-
cional de Psicologia e Medicina - tratando a orientação e
identidade LGBTI+ como uma “opção”, “uma escolha que
pode ser mudada a qualquer hora”. A sociedade natura-
liza a segregação e o isolamento de pessoas LGBTI+, seja
de forma velada, através de piadas, estigmas, estereótipos
constantes, ou, até mesmo, banalizando a letalidade da vio-
lência. Tal cenário fica ainda mais complexo em um período
de outro isolamento, o pandêmico, que em muitos casos,
tem-se que conviver diretamente com segmentos que com-
pactuam com estas concepções.
Assim, ao nos referirmos ao isolamento social, busca-
mos traçar um paralelo entre as situações vivenciadas pela
população LGBTI+ no contexto gerado pela pandemia da
COVID-19, com outros cenários de isolamento vividos por
esta população ao longo das vivências particulares e coleti-
vas, nos segmentos da chamada “sopa de letrinhas” (termino-
logia que expressa a diversidade de identidades e expressões
LGBTI+, mas também é usada de forma pejorativa e contribui
para banalizar e cercear as possibilidades de orientações e
expressões de identidades invisibilizadas).
Ao pensarmos em isolamento, podemos pensar nos
isolamentos praticados por vontade e deliberação própria,
ou realizados forçosamente. A decisão deliberada de afastar-
se de outras pessoas ou grupo ocorre por variados motivos,
entre eles, questões socioeconômicas, dor emocional, senti-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 131

mento de não pertencimento, exclusões, rejeição, ou ainda,


vergonha. O isolamento forçado ocorre em períodos contur-
bados como em casos de atribulações sociais (guerra, rebe-
liões), sanitárias (doenças) e infracionais (crimes, prisões).

Vulnerabilidades, violências e isolamento

As vulnerabilidades são ainda mais pungentes nos


casos das violências e homicídios sofridos e não permitem
dúvidas sobre os perigos letais que afetam a existência da
população LGBTI+. Para esta população os isolamentos se
apresentam de diversas formas e são cotidianos:  ter que es-
conder sua sexualidade ou identidade numa prática conhe-
cida pela expressão de  “ficar no armário”, como forma de
sobrevivência; não poder utilizar a banheiros de acordo com
a sua identidade de gênero - no caso da população trans; não
poder demonstrar afetos na maior parte dos locais públicos;
a expulsão de suas casas; evasão escolar; vitimização pelo
bullying; distanciamento compulsório de seus familiares e de
amizades; sofrer inúmeras violências devido a sua identidade
e ou orientação sexual; cárcere privado;  entre outros. Tais
contextos colocam a população LGBTI+ em uma situação de
extrema vulnerabilidade e obriga a ter, em muitos casos, uma
vivência solitária e isolada.
Nessa concepção de isolamento social, podemos tam-
bém compreender, no sentido de invisibilidade social que
segundo Araújo e Silva (2018) tem sido aplicado aos seres
humanos que estão segregados, socialmente invisíveis, seja
pelo preconceito, pela indiferença, classe econômica, escola-
ridade, entre outros fatores. Assim, dialogamos sobre as duas
concepções de isolamento social - o vivenciado pela comu-
nidade LGBTI+ e o da pandemia de COVID-19, apontando
como estas opressões se somam a situação de vulnerabilida-
de que a pandemia trouxe a todos.
132 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

O Brasil é considerado o sexto país com maior nú-


mero de mortes de pessoas LGBTI+ no mundo, e o primeiro
em morte da população T. O Relatório Grupo Gay da Bahia
informa que 329 LGBTI+ foram vítimas da homotransfobia
derivando em morte, em 2019. Totalizaram-se 297 homicí-
dios e 32 suicídios, o que equivaleria a uma morte a cada 26
horas. A falta de uma estatística governamental transmite
para o movimento social a responsabilidade dessa coleta e
verificação de dados e estatísticas, como o trabalho feito por
grupos como o citado anteriormente, GGB e a Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), fazendo com
que haja uma invisibilidade por parte dos governos sobre ca-
sos de LGBTIfobia, impactando diretamente a formulação de
políticas públicas voltadas para essa população.
Atualmente, procura-se caracterizar as singularidades
das violências, com estudos e busca de dados, em suas es-
pecificidades, tratando não somente como LGBTIfobia, mas
também como Lesbofobia, Transfobia, Bifobia, Homofobia.
Cabe ressaltar que a Lei que pune casos de LGBTIfobia só
começou a ser aplicada em 2019, quando aprovada pelo STF
e inserido nos registros de ocorrências policiais o campo mo-
tivacional do crime referente à homofobia. E por si só, uma
lei não muda a mentalidade, mas com certeza torna-se um
ponto de resistência para o enfrentamento das violências.
É importante que olhemos para essa questão da
vulnerabilidade, com uma perspectiva calcada no conceito
de interseccionalidade, pois não se hierarquiza as opressões
e vulnerabilidades, por exemplo, as mulheres negras e
lésbicas, sofrem com o machismo, racismo, lesbofobia, mas
este processo gera demandas diferenciadas das mulheres
brancas, dos homens negros e dos gays. Assim é importante
compreendermos que a situação de vulnerabilidade na qual
se encontra a população LGBTI+ encontra-se imbricada com
recortes de raça, classe, gênero e geração, sem, contudo, hie-
rarquizar estas opressões. Parece-nos claro que uma mulher
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 133

trans, negra e periférica sofrerá outros tipos de opressão do


que um homem homossexual, branco e de classe média; e
que essas opressões e diferenças se agravam quando coloca-
das em um contexto de pandemia mundial, isolamento social
e dependência da proteção estatal.
A LGBTIfobia enraizada socialmente faz com que
políticos, gestores e a sociedade civil invisibilizem e isolem
socialmente esta parcela da população, segregando-a e ne-
gando a garantia de direitos fundamentais. Segundo Duarte
(2014), atualmente, a crescente obtenção de direitos por parte
da comunidade LGBTI+ e o inegável aumento da visibilidade
dessa população poderão fazer pensar que o preconceito e a
discriminação em razão da orientação sexual e da identidade
de gênero já não mais se constituem expressões da questão
social, contudo, a realidade é bem diferente, cruel e perversa.
A existência de preconceito e discriminação ainda é grave e
levam à morte.

Isolamentos e vulnerabilidades revividos


continuamente...

Após a redemocratização do Brasil, após o período do


regime militar, os movimentos sociais encontraram outras
formas de organização. É importante, no entanto, destacar
que o movimento LGBTI+ sempre procurou se organizar como
uma resistência, mesmo antes, na ditadura, onde era rigorosa-
mente perseguido, e ainda que de forma clandestina, resistia.
Na construção da democracia, os grupos voltaram a se reunir
mais abertamente e os grupos organizados assumidamente
LGBTI+ e as primeiras ONG’S, tornaram-se mais visíveis.
No final dos anos 1980 e início dos 1990, a epidemia
da AIDS assolava a comunidade LGBTI+. Vendida pela mídia
como o “câncer gay”, a imagem de “pessoas aidéticas” (como
eram chamadas na época, com total objetivo de estigmatiza-
ção) como promíscuas e “alvo da ira de Deus” era a referência
134 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

passada a respeito da “população gay”, efeito perverso para


quem crescia e vivia naquelas décadas. As religiões mais con-
servadoras também contribuíram para o estigma de pecado e
imoralidade, com a epidemia da AIDS, reforçando o estigma
da doença. E esse somatório de marcas, preconceitos e este-
reótipos, resultaram em um isolamento social, voluntário ou
compulsório, muitas vezes, recortado por outras questões so-
ciais que permeavam a vida de uma pessoa LGBTI+ na época.
Descobrir e viver a sexualidade e identidade já é um proces-
so difícil e solitário, imagina em tempos que se associa esta
vivencia diretamente como uma sentença de morte? Mas, os
grupos e as representatividades individuais, foram fundamen-
tais, ativos e incisivos em suas lutas e resistências para o en-
frentamento da AIDS, para a luta contra a estigmatização e
para a inserção, de forma mais aberta, de outras representa-
ções em diversas áreas - mídia, política, cultura...
A AIDS trouxe a população LGBTI+ para a agenda na-
cional de saúde. As ONGS LGBTI+ se multiplicaram e se pro-
puseram a compensar o vazio deixado pela falta de políticas
efetivas para a área. Este processo era um grande palco de dis-
puta, pois, as ações sérias e comprometidas com as questões
vigentes, não compactuavam com a ideia de absorção das ver-
bas públicas para o setor privado, sem a devida preocupação
com as reais demandas trazidas pelo advento da AIDS, pois a
luta maior era a consolidação de políticas sociais efetivas para
a área, de forma a atender todos os segmentos LGBTI+. 
O movimento político em torno das questões LGBTI+ se
avivam em um período tão conturbado como o atual e contri-
buem para a ampliação do debate e para as futuras organiza-
ções que se pautam na luta pelas conquistas de direitos. Nesse
período, vários aspectos da solidão da população LGBTI+ tor-
nam-se mais visíveis. Foram inúmeros gays, trans e travestis
morrendo à espera das políticas públicas. É nesse momento
também que se compreende, de forma mais ampla, a impor-
tância da representatividade e do reconhecimento no outro,
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 135

pois, ao chegar a um grupo LGBTI+ a pessoa descobre que não


está sozinha, “não está louca”, e que há uma rede de apoio.
Mas, passadas décadas, ressaltamos também o quão
ainda está isolada das políticas públicas e sociais a população
LGBTI+, principalmente, se pensarmos em estados e municí-
pios que ainda não tem nem mesmo centros de referência para
o atendimento desta população, entre outras políticas sociais.
Podemos destacar: pessoas transexuais que têm seus nomes
sociais negados por profissionais do setor público e privado; no
período de pandemia fica dificultada a presença da população
trans em serviços de saúde para a hormonização; há subnotifi-
cações em diversas áreas, principalmente, falta de estatísticas
oficiais dos crimes de assassinatos de LGBTI+; o atendimento
de saúde precarizado; fica evidente a inexistência de políticas
públicas ou sociais voltadas para o envelhecimento; ainda são
presentes o estupro corretivo e as violências diversas e letais.
Sinigaglia e Prata (2020) sinalizam que a primeira
construção de uma política específica para a população LGB-
TI+ é da recente data de 2004, com o Programa Brasil Sem
Homofobia; e tratava-se de uma proposta interministerial
de promoção e prevenção da homofobia (terminologia que
anos depois passaria a ser denominada de LGBTIfobia, para
abranger as múltiplas faces e especificidades do preconceito,
direcionada a cada segmento da população LGBTI+) em nível
institucional e social, mas também esta iniciativa foi enfra-
quecida e desmobilizada.

Famílias e isolamentos

Analisando o processo de isolamento aqui descrito, é


importante destacar a primeira vinculação de pertencimen-
to e sociabilidade, ou seja, as famílias, pensadas no plural,
pois também é múltipla e diversa. As famílias que têm em
seu grupamento pessoas LGBTI+ possuem inúmeras inquie-
tações sobre a questão da orientação sexual e ou identidade
136 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

de gênero. O isolamento social de LGBTI+ dentro da própria


família ocorre por inúmeros e singulares aspectos.

A família é um grupo social de indivíduos diferencia-


dos por sexo, idade, que se relacionam cotidianamen-
te, gerando uma complexa e dinâmica trama de emo-
ções, ela não é uma mera somatória de indivíduos
que a compõem, mas sim, um conjunto heterogêneo
composto de seres com sua própria individualidade
e personalidade. Assim, a sexualidade, a reprodução,
a socialização são esferas potencialmente geradoras
tanto de relações prazerosas quanto conflituosas
(ARANHA, 1990).

A família, instância de afeto e territorialização das


questões privadas, constitui-se também como palco de disputa
- construção de afetos e padronização de condutas e compor-
tamento -, portanto, é também o locus de constantes inquieta-
ções e angústias. Prata (2005) discute as tensões oriundas das
famílias e pessoas LGBTI+ analisando as tensões entre a pessoa
ser livre e estar em lugar de segurança. Ao analisarmos pelo
prisma da segurança e liberdade, podemos observar que den-
tro das famílias encontramos a tensão entre estas duas cate-
gorias, muito bem definidas. De um lado, as famílias oferecem
segurança a seus integrantes, protegendo-os de ameaças pro-
vindas do “mundo exterior”, de outro lado, o preço pago por
esta segurança é literalmente a perda da liberdade. No espaço
familiar, muitas vezes, as relações são pautadas em “ordens” e,
em uma estruturação patriarcal, onde estas são sempre hierár-
quicas. Neste contexto não se fala em liberdade, principalmen-
te, no que diz respeito à liberdade sexual. O que figura nestes
espaços familiares é a ordem cisnormativa heterossexual que
define a vida socioafetiva dos componentes do grupo.
Alguns cenários são comuns às diversas famílias, que
vão desde a expectativa gerada pelos papéis sociais e sexuais
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 137

impostos pela sociedade até a não aceitação da identidade


sexual e orientação sexual de familiares. Os membros da
família LGBTI+ podem sentir, desde a tenra idade, o senti-
mento de não pertencimento, não aceitação, podem passar
por uma adolescência conturbada, se sentirem invisíveis,
sofrer bullying escolar e social e terem um envelhecimento,
na maioria das vezes, solitário e em situação de total des-
proteção. Para os adolescentes e jovens LGBTI+ são muitas
as dores emocionais, constrangimentos e segregações que
levam muitos a evadirem das escolas e terem dificuldades de
inserção no mundo do trabalho. 
As famílias possuem inúmeras inquietações sobre a
questão da orientação sexual de seus filhos e esse tema é re-
corrente nos contextos vivenciados, seja nos silenciamentos,
nas discussões travadas, nas constantes agressividades e até
mesmo nas violências sofridas. Muitos adolescentes LGBTI+
têm suas vidas sociais e sexuais silenciadas por suas famílias,
na grande maioria dos casos, são proibidos de levar seus na-
morados ou namoradas para o convívio familiar, em detri-
mento de outros membros da família que podem levar para
casa seus parceiros e parceiras sem nenhum estranhamento,
constrangimento ou contenda, sofrem inúmeros castigos,
podem ficar em cárcere privado, internados em clínicas por
distúrbio de conduta, entre outros contextos violentos e re-
pressivos. Essa relação de isolamento familiar por conta da
orientação sexual na adolescência traz inúmeras consequên-
cias de saúde em indivíduos LGBTI+.
Para muitos adolescentes e jovens, a vivência familiar é
configurada como de “dor e violência”. Segundo Barros, Frei-
tas, Barros e Perez (2018) “a violência contra adolescentes tem
sido tratada em diversos estudos acadêmicos, mas pouco se
fala sobre a violência que eles sofrem devido à identidade de
gênero e à orientação sexual”. As autoras salientam ainda que
o período da adolescência pode ser uma fase da vida bastan-
138 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

te conturbada e que não é incomum a referência às extremas


dificuldades. Para elas, a adolescência é uma fase de descober-
tas e de aprendizagem, como pode ser de discriminação e de
imposições. Natarelli, Braga, Oliveira e Silva (2015) salientam
que “a influência da LGBTIfobia para a saúde do/da adoles-
cente, principalmente no que diz respeito à sua saúde mental,
contribui para o surgimento de comportamentos depressivos,
ansiedades, medos excessivos, ideações e tentativas de suicí-
dio, ou seja, quadros que indicam sofrimentos e cuja origem
está nos episódios de violência vivenciados, ou seja, a interna-
lização da violência. Além de interferir na adoção de hábitos
de vida saudáveis e no autocuidado”. 
No caso da expectativa social e sexual dos corpos
podemos encontrar nas mídias inúmeros casos de meninos
e meninas ainda crianças assassinados ou violentados por
romperem os estereótipos masculinos e femininos. Muitas
violências contra a população  LGBTI+ são silenciadas por
toda a sociedade e, principalmente, no interior das famílias. 
Uma sociedade heteronormativa fundada no patriar-
calismo determina os padrões de comportamento conside-
rados normais para homens e mulheres. Quem foge desses
estereótipos paga um preço caro por esta “transgressão”.
O chamado estupro corretivo de meninas lésbicas pode ser
justificado com frases do tipo: “vou te ensinar a gostar de
homem” ou “é porque você ainda não conheceu um homem
para gostar”! 
Tendo claras as expectativas criadas e o controle so-
cial exercido pela família nas pautas de sexualidade e perfor-
mance de gêneros, foi possível observar que no contexto da
pandemia, no qual muitos se encontravam com diminuição
salarial, dependentes do auxílio emergencial ou demitidos,
muitas pessoas LGBTI+  se viram forçadas a retornar às suas
casas e ao convívio familiar. Neste ambiente, que deveria ser
de acolhimento, se sentiram violentados, como que obriga-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 139

dos a “voltar para o armário” e a performar um gênero ou se-


xualidade que não lhes corresponde.  A população T é a que
mais se vê violada ao ser chamada por seu nome de registro,
ao voltar a utilizar vestimentas culturalmente consideradas
correspondentes ao seu sexo biológico e quando sofrem vio-
lência física por causa das alterações corporais. Como citado
anteriormente, mulheres lésbicas que sofreram estupro cor-
retivo voltaram a conviver com seus agressores (que em sua
grande maioria são pessoas da família), ou correm o risco de
sofrer um, da mesma forma que os “gays afeminados”.
Os que não têm opção de retornar às suas casas, se
veem dependentes de ajudas emergenciais, como doação de
cestas básicas (realizada por diversos setores, sobretudo,
grupos LGBTI+), ou ainda, se arriscam em plena pandemia
a aceitar empregos que rompem com o isolamento social.
Para além destes, é importante lembrar das profissionais
do sexo que, nesse contexto de COVID-19, são proibidas
de trabalhar ou burlam o isolamento e se arriscam a con-
taminação para pagar as contas. Podemos destacar que a
população trans é a mais afetada, pois, apresenta o maior
índice de expulsão de casa, evasão escolar, desemprego e
se veem na rua, sem casa, sem formação e com uma única
opção: a prostituição. Por isso é tão importante a luta por
políticas públicas que incentivem a contratação de pessoas
trans e travestis no setor público e privado, como também
projetos educacionais (como o PREPARANEM, pré-vesti-
bular social para pessoas LGBTI+ em vulnerabilidade para
garantir a entrada em uma universidade, uma formação e a
inserção no mercado de trabalho).

Isolamentos LGBTI+ e a questão


intergeracional

A fase adulta da população LGBTI+ também é bem


marcada socialmente pelo isolamento social: desemprego,
140 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

violência e demais vulnerabilidades já discutidas amplamen-


te. Porém, se faz necessário nos debruçar sobre a questão
do envelhecimento da população LGBTI+ um assunto ainda
pouco discutido nos meios acadêmicos. Tanto para as ques-
tões referentes à adolescência quanto ao envelhecimento da
população LGBTI+ o recorte de classe social se faz extrema-
mente importante, tendo em vista que as pessoas mais ri-
cas têm possibilidades muito maiores do que as pobres. Pes-
soas LGBTI+ oriundas de famílias abastadas têm muito mais
acesso à saúde, educação e cultura do que as mais pobres.
O recorte de classe social também se faz necessário para que
entendamos os processos de aceitação familiar e vivência da
orientação sexual ou identidades de gênero.
Para Marsiaj (2003) a classe social interfere de maneira
significativa no que diz respeito à família. Segundo o autor,
para os setores mais populares no Brasil, a função econômi-
ca da família retém uma grande importância, já que para os
mais pobres a renda é mais irregular e pequena, tornando-se
difícil a independência econômica, já que a renda da família
como um todo é um diferencial para a sobrevivência de to-
dos. O autor salienta que para LGBTI+ de classes mais abas-
tadas, esse convívio financeiro se torna mais fácil, pois essas
pessoas podem alugar um apartamento ou quarto de motel
para viverem suas sexualidades e identidades. A Dependên-
cia financeira da família faz com que indivíduos LGBTI+ de
classes populares tenham maiores dificuldades para viven-
ciar suas experiências afetivas. Cabe salientar que o Brasil
possui altos índices de desigualdade social e essa desigual-
dade fica bem marcada e demarcada nas populações LGBTI+
periféricas, principalmente no que diz respeito às políticas
públicas e sociais. 
Os conflitos ligados à questão de classe social também
vão impactar diretamente no que diz respeito à cidadania e
direitos, embalados pelo pink Money, ou seja, a possibilidade
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 141

de estar inserido socialmente a partir do que se consome e que


está intimamente ligada à convivência de pessoas LGBTI+: a
exacerbação no consumo de bens relacionados ao conceito de
cidadania. Para Masiaj (2003) existe a visão de que gays repre-
sentam um nicho de mercado a ser explorado e leva a aceita-
ção de um tipo de gay: branco e de classe média. Visto como
modelo de cidadão consumidor, o gay rico terá uma sociabi-
lidade muito diferente em relação à chamada “bicha pobre”. 
Outro ponto nevrálgico refere-se à questão do enve-
lhecimento da população LGBTI+ que em um período de iso-
lamento social encontra-se em situação ainda mais adversa,
tendo em vista que esses indivíduos, em sua maioria, de clas-
se social pobre precisam retornar aos seus núcleos familiares,
necessitando criar uma nova rotina de vida para se adequar
às normas impostas pelo grupo e às exclusões sociais im-
postas. Entendemos aqui também como exclusões sociais, as
“sociabilidades proibidas”, visitas de amigos, de parceiros se-
xuais, de mudanças corporais que já estavam em andamento
(no caso das pessoas transexuais). O retorno à família não é
o retorno para um lugar de conforto, principalmente se os
fatores de renda e saúde estão perpassando as relações esta-
belecidas. É muito comum haver pessoas Trans que cuidam
da família no decorrer da vida e quando adoecem e perdem
sua renda precisam recorrer à sua rede de proteção social
mais próxima, familiares e amigos e amigas, e, em muitos ca-
sos, não encontram retorno e acolhimento. Segundo Masiaj
(2003), muitas vezes, travestis adquirem respeito e tolerância
familiar graças à ajuda financeira e material que elas podem
dar aos parentes. 
A marca de nossa sociedade, pautada no consumo, é a
valorização de padronizações que sirvam ao mercado, pró-
prio do sistema capitalista. Até mesmo a diversidade é cate-
gorizada em padrões de consumo. Vivemos em uma socieda-
de na qual os padrões de beleza, de corpo e de sociabilidade
142 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

são pré-definidos, por mais que existam pessoas e grupos


dispostos a quebrá-los. Ainda persiste a valorização do corpo
jovem, viril, belo e “saudável” como fonte de inspiração e,
como “modo de ser e estar socialmente aceito”.  
A valorização da juventude e de uma corporeidade
pré-determinada por padrões de beleza e estereótipos, torna
o processo de envelhecimento ainda mais complexo. Segundo
Leite (2014) na sociedade atual, lidar com limitações e modi-
ficações físicas inerentes ao processo de envelhecimento tor-
na-se difícil, pois a velhice está associada a algumas perdas,
físicas, biológicas, psicológicas e sociais. Entre a população
LGBTI+  o culto à juventude e a padronização dos corpos é
muito presente. O destaque do corpo belo alcança patamares
muito alarmantes em uma população que se encontra muito
segregada, como a LGBTI+. A formatação do belo, o enqua-
dramento de sociabilidades e os padrões de determinados
consumos são exigências impostas que encontram ressonân-
cia em um grupamento que busca aceitação. Não é por acaso
que ocorre a busca de padronização nos moldes tradicionais,
pelas famílias LGBTI+. Estereótipos são muito presentes para
esta população e não raramente, a definição para a entrada
na velhice está em torno dos 30 anos de idade, mesmo que a
Organização mundial de Saúde considere como pessoa idosa
aquela que regula entre 60 e 65 anos de idade. Nos padrões
de beleza, consumo e juventude, persistem certa repulsa às
pessoas mais idosas, inclusive entre esta própria faixa etá-
ria, que comumente apenas se relaciona com pessoas mais
jovens. Segundo Leite (2014), os idosos homossexuais estão
marcados pelo silêncio e duplo estigma, que pesam sobre a
sua idade e a sua orientação sexual. E é este estigma que cos-
tuma pautar as relações sociais das pessoas LGBTI+ e as suas
redes de apoio na velhice.
O medo da solidão ou quando esta se concretiza na
velhice é um tema recorrente para a comunidade LGBTI+.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 143

O sentimento de solidão e não pertencimento perpassa to-


das as relações sociais dessas pessoas no decorrer de suas
vidas, tornando este sentimento ainda maior no período da
velhice: o medo de terminar seus dias de modo solitário está
presente em muitos discursos de pessoas LGBTI+. Segundo
Leite (2014), um estudo da Universidade de Washington
aponta que lésbicas, gays e bissexuais, entre os 50 e os 95
anos, sofrem maior solidão e depressão devido a discrimi-
nação por sua orientação sexual ou identidade de gênero.
O mesmo estudo revela a relutância existente na procura
de cuidados médicos na velhice, sendo que quatro em cada
dez idosos homossexuais admitem que pensam no suicídio,
uma vez que não puderam casar ou assumir publicamente
o seu companheiro(a) e, devido a isso, passaram a viver si-
tuações de isolamento. 
As questões relacionadas à saúde da população LGB-
TI+ tendem a se agravar com o avanço da idade não só nos
casos das doenças sexualmente transmissíveis, mas também,
em outras comorbidades. Numerosos são os relatos de dis-
criminação e preconceito sofridos por LGBTI+ quando vão
buscar atendimentos médicos. Segundo Ribeiro, Abdo e Ca-
margos (2016) a discriminação sofrida pelas minorias sexuais
ao buscarem atendimento médico pode ser evidenciada pelo
pressuposto de heterossexualidade em todos os casos; recusa
de se aceitar determinados acompanhantes escolhidos pelo
paciente durante internações; declarações ofensivas e depre-
ciativas. Estes, dentre outros fatores podem levar ao atraso
ou a desistência na busca de atendimento médico por esses
grupos, devido ao receio de sofrerem estigmatização. A dis-
criminação contra gays e lésbicas é reconhecida como um
possível obstáculo na relação médico-paciente. Ou seja, no
Brasil, a população LGBTI+ idosa também está isolada no que
diz respeito ao atendimento em saúde.
144 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Este trabalho teve o objetivo de refletir sobre os efeitos
da pandemia de COVID-19 para a população LGBTI+. Busca-
mos pensar no impacto do isolamento social, oriundo das re-
comendações sanitárias, correlacionado ao isolamento social
que a comunidade LGBTI+ vivencia ao longo da vida. Traça-
mos um diálogo com contextos vividos por esta comunidade
e as que foram obrigadas a passar nesse contexto de pande-
mia, trazendo elementos sociopolíticos e históricos para nos
auxiliar a entender a dinâmica que se estabeleceu de forma
geral e como ela afetou a população LGBTI+ em especial.
No entanto, é preciso admitir os obstáculos encon-
trados para acompanhar, em tempo real, as repercussões do
contexto pandêmico sobre a população LGBTI+. Destacamos
a necessidade e a urgência do acompanhamento ininterrupto
desses casos, bem como de políticas públicas que permitam
não só amenizar os efeitos da pandemia sobre essa popula-
ção, como também trazer reflexões sobre o tema.
Refletimos sobre as diversas violências e situação de
vulnerabilidade na qual a população LGBTI+ se encontra
nesse contexto pandêmico, assim como a demanda de po-
líticas públicas para a questão geracional. Reconhece-se a
pouca participação do Estado brasileiro no combate a LGB-
TIfobia num âmbito geral, como também o investimento de
políticas públicas efetivas que possibilitem oportunidade
para a participação ativa e igualitária da comunidade LGB-
TI+. Destacamos a não existência de ações que pensem nes-
sa população em período pós-pandemia, olhando-a princi-
palmente como classe trabalhadora. A liberação da doação
de sangue por pessoas LGBTI+ no meio da pandemia, nos
indica que somente com pressão do movimento social é
possível desconstruir a segregação da população LGBTI+.
É importante que na recuperação econômica pós-pande-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 145

mia, se invista na inserção no mercado de trabalho e na


qualificação dessa população. Destacamos ainda, o empe-
nho de muitas ativistas, militantes, artistas, professoras/es
e pesquisadoras/es na produção de conteúdo em platafor-
mas virtuais. Vê-se, então, um grande trabalho da popula-
ção LGBTI+ em manter (se) viva, e continuar a comunica-
ção, mesmo durante o período pandêmico e disposta a criar
novas formas de sociabilidade, além de outros territórios de
resistência, existência e persistência, como a Parada LGBTI
Virtual de São Paulo.

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Transição. Rio de Janeiro: Ed. Devires, 2019.

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Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 149

VIOLÊNCIA RACIAL NO BRASIL


NO CONTEXTO DA PANDEMIA
DE COVID-19

Wilma Pessôa

“A ideia de liberdade é inspiradora. Mas, o que isso


significa? Se você é livre em um sentido político, mas
não tem comida, o que isso significa? A liberdade de
morrer de fome?”
(Angela Davis)

B
uscamos com este capítulo, construir uma reflexão
inicial sobre como a pandemia impactou a violência
racial no Brasil. Primeiramente, entendemos ser ne-
cessário identificar as características da pandemia, da situa-
ção social e de uma política nova que emerge a partir dela,
pela adoção de medidas para seu enfrentamento. Assim, po-
demos refletir sobre a relação da pandemia com a violência,
em geral, e a violência racial, em particular. Uma vez que se
trata de um fenômeno recente ainda em curso, não temos
a pretensão de construir uma análise explicativa do nosso
objeto, outrossim, nos pautaremos por uma metodologia
comparativa, em que tomaremos como referência os dados
publicizados recentemente, junto à mídia ou em sites, pelas
secretarias de Segurança Pública; pelo Ministério da Justiça,
150 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

e por instituições e organizações nacionais e internacionais


ligadas aos direitos humanos. Destacamos a relação entre os
povos, a saúde pública, assim como os estudos de violência
e a luta contra o racismo, a fim de verificar como ações ra-
cistas se expressaram nas suas múltiplas formas de violência
durante esse período inicial da pandemia.

Aspectos gerais da pandemia de COVID-19


e suas repercussões

A pandemia do novo coronavírus foi um fenômeno


que assaltou o mundo de forma muito rápida. A compreen-
são desse fenômeno, em face das urgências sanitárias de-
mandadas para o enfrentamento dela, se desenvolveu numa
velocidade elevada, considerando os padrões em que vinham
sendo desenvolvidas, no tempo e no espaço, as pesquisas
científicas em todo o planeta. Trabalhamos aqui, portanto,
com informações que estão em processo de aprimoramento
constante, haja vista o muito que ainda está por se descobrir
e confirmar em termos de conhecimento científico sobre o
Sars-Cov-2, seu comportamento e sua evolução no organis-
mo humano. O mundo ainda está em processo de adequação
à nova realidade imposta pela pandemia.
Identificado a partir de um surto em Wuhan, cidade
industrial da China, em dezembro de 2019, o novo coronaví-
rus, batizado como Sars-Cov-2, mostrou-se de fácil e rápido
contágio. A COVID-19, doença provocada pelo Sars-Cov-2,
tem uma evolução relativamente rápida no organismo hu-
mano e, nos casos que exigem tratamento hospitalar, um
percentual de 20 a 25% dos infectados (segundo a Organiza-
ção Mundial de Saúde - OMS), pode ser bem agressiva para
parte deles, exigindo intubação, UTI e podendo evoluir para
o óbito do doente. A OMS estima que vai de 0,4% a 0,6% a
taxa média de letalidade da COVID-19. O tempo de interna-
ção é, geralmente, um mínimo de 15 dias, havendo casos de
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 151

pacientes internados por mais de 100 dias. A recuperação


da COVID-19 demanda, ainda, medicamentos e equipamen-
tos de suporte, bem como uma equipe multidisciplinar em
saúde. Por se tratar de um vírus novo, não existe vacina que
imunize, nem remédio que cure, além disso, também, os pro-
tocolos para o tratamento dos doentes internados vão sendo
ajustados conforme se tem um quadro mais compreensível
de como o vírus atua no organismo dos infectados.
O grande problema que o novo vírus impõe à saúde
pública é a possibilidade de um colapso sanitário e funerá-
rio, se a velocidade do seu espalhamento não for contro-
lada, pois tal colapso implicaria não só na impossibilidade
de salvar vidas de doentes de COVID-19, mas de quaisquer
outras enfermidades que demandem internação hospitalar
e atendimento de urgência. Nesse sentido, deter a propaga-
ção do vírus permitiria ao sistema de saúde absorver, sem
ir a colapso, os doentes e daria mais tempo para que os
cientistas pudessem adquirir maior conhecimento sobre o
comportamento do coronavírus, da evolução da COVID-19,
no organismo humano e no ambiente para construir pro-
tocolos de atendimento mais eficientes, até obter uma cura
ou vacina. Outra medida importante é o mapeamento do
avanço da contaminação, o que depende da maior testagem
possível. Apesar ter tido a oportunidade de ver o que outros
países fizeram em relação à pandemia, seus erros e acertos,
o Brasil figura hoje, justamente, entre os países cujo gover-
no menos apoia as medidas de isolamento social, menos
realiza testagem e tem um elevado índice de subnotifica-
ção1. No início do mês de agosto de 2020, foi registrado o
segundo maior número de óbitos por COVID-19 e somos
o segundo país do mundo em número de infectados e de

1 MOTA, Camilla Veras; GUIMARÃES, Ligia; ALVIM, Mariana; BARI-


FOUSE, Rafael; LEMOS, Vinícius. Coronavírus: 9 erros que levaram às 100
mil mortes no Brasil. BBC NEWS BRASIL. São Paulo, 08/08/2020.
152 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

mortos, só estamos abaixo dos Estados Unidos, onde a ca-


pacidade de identificar os casos é bem superior. O Brasil é o
segundo país que menos faz testes de COVID-19 no mundo,
em primeiro está a Índia.2
Em 11 de março de 2020, o diretor geral da Organi-
zação Mundial da Saúde - OMS, Tedros Adhanon, declarou
que a COVID-19 havia entrado na categoria de pandemia
mundial. Desde 30 de janeiro de 2020, a OMS já alertara o
mundo de que a COVID-19 se tratava de uma Emergência de
Saúde Pública de Importância Internacional, mas isso não foi
suficiente para deflagrar uma ação dos governos para deter
a disseminação do vírus. Com vistas a desacelerar a expan-
são da pandemia, a OMS, com base nos estudos científicos
que foram desenvolvidos sobre a nova doença, indicou al-
gumas medidas sanitárias preventivas para a desaceleração
do contágio, a saber: a higienização do corpo, roupas, ves-
tuário, alimentos, objetos e lugares; o uso de máscaras, e,
o “isolamento social”, o qual, em casos de maior gravidade
para a saúde pública, pode chegar ao chamado “lockdown”
- uma situação de confinamento coletivo e de restrição das
atividades, mantendo apenas as estritamente essenciais para
atender à sociedade.
Uma vez que, o mundo contemporâneo se caracteriza,
dentre outras coisas, pela intensa, ampla e altíssima veloci-
dade nos contatos entre pessoas no circuito cotidiano da vida
social, em todos os espaços, desde o plano local até o global,
o impacto da pandemia tem uma gama de consequências que
podemos, inicialmente, sintetizar:

1) Afeta a dinâmica dos acontecimentos históricos na


medida em que se atinge uma gama de processos e
relações, assim, os processos históricos em nível local,

2 BERTONI, Estevão. O plano de testes em massa no Brasil depois de me-


ses no escuro. NEXO Expresso, 24/06/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 153

regional e global estão agora condicionados pelas iné-


ditas situações desencadeadas pela pandemia.

2) Redefine as condições da sociabilidade, os protoco-


los sociais, as relações interpessoais e coletivas e até
vestuário. Os fluxos migratórios são atingidos. Tudo é
adaptado a uma situação de controle, em tempos de-
mocráticos, só relativamente comparáveis, com a da
gripe espanhola que afetou o mundo em 1917 e 1918.

3) Impacta a vida econômica, uma vez que, as necessá-


rias restrições à mobilidade e ao contato entre pessoas
levam a suspensão total ou parcial de parte significati-
va da atividade econômica mantendo-se um grupo mais
restrito de atividades essenciais funcionando, mas tam-
bém essas sob subprotocolos sanitários mais rígidos.
O consumo, em geral, é reduzido, o ritmo da produção
e os níveis de emprego e renda caem vertiginosamente
gerando uma crise econômica aguda.3

4) Modifica as condições da disputa política sobre a


concepção do papel do Estado. Em tempos de louva-
ção neoliberal da diminuição do Estado, de desmonte
das políticas sociais e de privatização dos serviços de
saúde, emerge uma demanda pela forte intervenção do
mesmo a fim de dar sustentação, política e material às
medidas de contenção do espalhamento da COVID-19
e aos segmentos impactados por elas, sejam empre-

3 “A pandemia de COVID-19 está gestando uma recessão que já foi ba-


tizada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) de ‘o Grande Confina-
mento’. E parece haver um consenso de que será a maior crise econômica
desde a Grande Depressão de 1929.” In: GOZZER, Sthefania. Crise e coro-
navírus: V, U ou W, os 3 cenários possíveis para a recuperação econômica
após a pandemia de covid-19. BBC News, 10/05/2020.
154 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

sas ou pessoas. Em contrapartida, há uma investida,


a partir de alguns governantes e movimentos políti-
cos, na manipulação da pandemia para difundir a des-
qualificação da ciência, das políticas públicas e dos
próprios valores civilizatórios e democráticos. Tal
polarização evidenciou as diferenças na formação
política de um povo para lidar com um cenário que
demanda forte solidariedade social.

5) Mudanças na vida cultural, intelectual e artística


dos povos, impedidos de se reunir e aglomerar em
função do isolamento social. Em tempos de muitas
relações e comunicações via rede sociais, as res-
trições à mobilidade e ao contato coletivo fizeram
emergir dificuldades para as atividades artísticas,
científicas, educacionais e culturais mais populares e
que envolvam a presença do público, especialmente
em espaços fechados. Por outro lado, a busca pela
informação, a busca por momentos de lazer que pos-
sam amenizar a rotina da quarentena estimularam a
construção de alternativas para essas atividades via
redes sociais. No entanto, toda essa atividade fica
restrita aos que gozam do acesso a Internet e equi-
pamentos digitais, o que reforça a desigualdade.
A educação escolar formal foi fortemente atingida
por essa mudança reforçando a educação à distância
e o ensino remoto, bem como aprofundando o fosso
entre as classes.

6) A violência de gênero, de risco de contágio e de


sofrimento psíquico se agravaram na pandemia.
O impacto da pandemia entre os grupos oprimidos se
diferencia mas guarda em comum o aprofundamento
de seu sofrimento, o que ocorre, por exemplo, com a
comunidade LGBTI+ a mais vulnerável ao desempre-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 155

go e a depressão4. Na intersecção entre gênero e raça


as mulheres negras, por sua vez, representam o grupo
profissional mais exposto ao risco de contágio pelo co-
ronavírus5. As preocupações das organizações inter-
nacionais com a pandemia se ampliam ante o aumento
dos suicídios6 e da violência doméstica e de gênero,
especialmente contra as mulheres, essas últimas, por
estarem numa sociedade estruturalmente patriarcal,
machista e misógina, se veem, em grande parte, en-
volvidas em trabalhos ligados aos cuidados, sendo as
enfermeiras negras o grupo profissional com maiores
chances de contaminação pela COVID-19. Ainda, com
relação à violência, a combinação entre crise econô-
mica, confinamento e sofrimento psíquico pode se
agravar ainda mais pela dificuldade das vítimas de
violência denunciarem seus agressores às autoridades.
Só em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública
identificou um aumento de 44,9% na violência domés-
tica contra as mulheres e de 46,2% nos feminicídios,
mas, infelizmente, o fenômeno é não é apenas nacio-
nal, como global:

“Violência contra as mulheres é ‘pandemia global’.


Mais do que isso, pois essa violência não é um fe-
nômeno agudo, que ocorre em intervalos de tempo
restritos, mas um problema crônico, de caráter his-

4 PIMENTEL, Thaís. Pesquisa da UFMG e UniCamp aponta que população


LGBT está mais vulnerável ao desemprego e a depressão por causa da
pandemia. G1, 17/05/2020.
5 SIQUEIRA, Egberto. Enfermagem é o grupo mais exposto ao risco da
pandemia de covid-19, aponta boletim CoVida #5. Instituto de Saúde Cole-
tiva – UFBA, 19/05/2020.
6 Sobre os suicídios há várias matérias jornalísticas tratando esse grave
problema na pandemia. Aqui segue uma delas: UOL. Cresce em 32% o
número de suicídios durante a quarentena. Grupo Perfil, 24/07/2020.
156 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

tórico e estrutural, que antecede em muito o sur-


gimento de coronavírus. Estamos assistindo a um
novo episódio desse fenômeno social e problema de
saúde pública.”7

Enfrentamento da COVID-19 no brasil

A violência é uma prática que se dá de diversas ma-


neiras, ela pode ser violência contra um indivíduo ou contra
um coletivo humano. No contexto de uma pandemia, o poder
público, ao se negar a tomar as medidas de saúde pública que
poderiam mitigar os efeitos nefastos da COVID-19 cometem
uma violência contra a sociedade, a qual deveriam proteger.
Os cidadãos se veem com a responsabilidade individual de se
proteger contra uma doença cuja contaminação depende do
comportamento coletivo. O regramento capaz de proteger a
cada um depende de todos e não de um só cidadão. Por essa
razão, para alguns, poder-se-ia pensar no comportamento de
um governante que se nega a promover políticas contra a ve-
locidade da contaminação ou que contribui deliberadamente
para sabotá-las, como sendo o de um genocida.
No caso brasileiro, vivemos uma situação que preocu-
pa cientistas, médicos e toda a comunidade internacional no
que tange ao enfrentamento da pandemia. No mês de março,
houve uma declaração assustadora de que se a COVID-19
fosse mais letal entre idosos, seria possível equilibrar as con-
tas do governo. A maior agência internacional de notícias do
mundo, a britânica Reuters, fez extensa matéria sobre o caso,
que acabou repercutindo pessimamente no exterior:

Solange Vieira, aliada de Guedes que esteve en-


volvida na importante reforma previdenciária do

7 TOLEDO, Eliza. Aumento da violência contra a mulher na pandemia


de covid-19: um problema histórico. Fundação Oswaldo Cruz, 28/04/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 157

governo no ano passado, também mostrou pouca


urgência quando foi apresentada a previsões do Mi-
nistério da Saúde em meados de março, de acordo
com o epidemiologista [Júlio] Croda. O ministério
previu mortes generalizadas entre os idosos, se o
vírus não fosse contido.
Segundo Croda, ela afirmou: “É bom que as mor-
tes se concentrem entre os idosos... Isso melhorará
nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso
déficit previdenciário” (EISENHAMMER ; STAR-
GARDTER, 2020).8

O fato é que os cientistas e pesquisadores concluí-


ram que, desde o início da pandemia, na China, a taxa de
mortalidade por COVID-19 entre pessoas idosas mostrou-
se bem maior do que entre as que têm menos de 50 anos.
Tal constatação levou os governos dos países a recomendar
especial atenção no distanciamento social em relação aos
idosos para salvá-los da contaminação, como evitar visitas
aos mesmos por filhos, netos e demais familiares, durante
a pandemia9. A divulgação dessa informação levou, inclu-
sive, grupos de pessoas mais jovens a tomar a iniciativa de
se disponibilizar voluntariamente para ajudar os idosos de
sua vizinhança, fazendo suas compras, levando seus ani-
mais para passeio e pondo seu lixo para fora, a fim de con-
tribuir para que os mesmos pudessem manter melhor dis-
tanciamento social. A fala da chefe da SUSEP deixou claro
em que perspectiva se construiria a política de saúde para
lidar com a pandemia da COVID-19 no Brasil. A ausência
de uma estratégia comprometida, em primeiro lugar, com a

8 EISENHAMMER, Steven; STARGADTER, Gabriel. ESPECIAL: Bolsona-


ro colocou generais para combater coronavírus e Brasil está perdendo a
batalha. Reuters, 26/05/2020.
9 LOPES, Nathan. Letalidade do novo coronavírus chega a 14,8% entre
idosos, mostram dados. UOL, 13/03/2020.
158 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

defesa do bem estar e da vida do cidadão foi ficando cada


vez mais evidente, a medida em que divergências sobre a
condução do enfrentamento da COVID-19 levaram à saída
de dois ministros da saúde do governo Bolsonaro em plena
pandemia e a manutenção de um ministro da saúde interi-
no, sem formação nem experiência em medicina ou com os
estudos sobre saúde pública ou privada.

O Ministério da Saúde completa 50 dias sem um


titular no cargo neste sábado, 4 [de julho de 2020].
A vaga é ocupada  interinamente  pelo general
Eduardo Pazzuello e o presidente Jair Bolsonaro não
tem dado nenhuma sinalização de que está em busca
de um nome para a pasta que tem entre suas missões
enfrentar a pandemia do novo coronavírus.
(...) É a primeira vez desde 1953 que o ministério fica
tanto tempo sem um titular....
(...) Sob o comando interino de [general Eduardo]
Pazuello, cargos estratégicos da pasta foram lotea-
dos por militares. Há mais de 20 nomeados, sendo
14 da ativa. Eles estão, principalmente, em postos na
gestão de dados, recursos humanos, orçamento, lo-
gística e contratos.10

As características da política do atual governo brasi-


leiro no enfrentamento da pandemia explicitam uma con-
tradição com as recomendações da Organização Mundial
da Saúde que vêm sendo aplicadas por vários governos do
mundo, com raras exceções. Esse tipo de violência do Estado,
que expõe a população ao risco de adoecimento que pode até
levá-la à morte, vem agregar-se às violências que as opres-
sões vêm gerando ao longo da história brasileira, como é o
caso do racismo.

10 VARGAS, Matheus. Em meio à pandemia, ministério da saúde completa


50 dias sem titular neste sábado. Estadão, 04/07/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 159

O estado, o racismo, a pobreza e a COVID


contra os negros

O espalhamento da COVID-19 tem características


claramente determinadas pela classe e raça dos infectados.
Os primeiros casos identificados pelas autoridades de saú-
de foram nas áreas nobres e entre pessoas com condições
econômico-sociais de viajar ao exterior a trabalho ou para
lazer. Contudo, na medida em que a principal forma de con-
taminação deixou de ser o contato entre pessoas vindas do
exterior e se tornou comunitária, ou seja, entre pessoas da
mesma localidade, houve um deslocamento da concentração
da doença das áreas mais ricas para a periferia e o interior.
A propagação e a gravidade da COVID-19 se amplia-
ram nas áreas pobres, pois nessas localidades residem mais
pessoas num mesmo e menor espaço, as casas são mais pró-
ximas e as condições sanitárias são mais precárias (falta de
água e saneamento básico, principalmente); a população
pobre sofre mais de comorbidades que são fatores de risco
na COVID-19, tais como: diabetes, hipertensão e obesidade;
nessas áreas também se concentram trabalhadores cuja ati-
vidade pode não ser feita remotamente e/ou em atividades
com menor proteção, seja devido à informalidade ou às no-
vas condições impostas pela Reforma Trabalhista do governo
Temer. Sem uma política pública de suporte sanitário, médi-
co e de renda para os segmentos carentes, o que se verifica,
conforme os dados comprovam, é que os mais pobres sejam,
cada vez mais atingidos pelo novo coronavírus. Ocorre que,
no Brasil, a população que vive nessas condições é majorita-
riamente negra e parda11 e, uma vez que a pobreza é um fator

11 BÔAS, Bruno Villas. IBGE: dos 135 milhões vivendo em extrema pobre-
za, 75% são pretos ou pardos. Valor Econômico, 13/11/2019.
160 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

de risco na pandemia, a população negra e parda está entre


as que mais morrem de COVID-19 no Brasil12.
Nesse sentido, foi uma vitória da oposição ao governo
conseguir articular com o “Centrão”, dentro do Congresso
Nacional, uma maioria para aprovar um auxílio emergencial
de seiscentos reais para as pessoas sem renda ou com renda
diminuída devido à pandemia, contra a proposta original do
governo Bolsonaro de uma ajuda de duzentos reais. A imi-
nente vitória da oposição levou o governo a recuar e aderir à
proposta de 600 reais de auxílio emergencial13.
Ainda assim, diversas dificuldades para a liberação e o
saque dos recursos têm levado à ocorrência de aglomerações
de pessoas pobres nas portas das agências bancárias em bus-
ca desse direito, o que as faz romper com o isolamento social
e se expor aos riscos de contágio.14
Herança do passado escravista que se reproduz na for-
ma de um racismo estrutural, a pobreza no Brasil tem cor e
endereço, é predominantemente preta e parda e concentra-se
nas periferias das áreas metropolitanas ou nos rincões mais
afastados do país, regiões abandonadas pelo poder público
ou onde vivem populações expostas à sanha dos explorado-
res da terra, latifundiários, madeireiros e mineradores, em
especial. Com isso temos, que além dos negros da periferia,
os negros do interior, particularmente os que vivem em co-
munidades quilombolas, se colocam na rota de colisão com

12 CARVALHO, Diego; DURÁN, Pedro; VIÑAS, Júlia. Morrem 40% mais


negros do que brancos por coronavírus no Brasil. CNN Brasil, 05/06/2020.
13 LARCHER, Marcelo. Líderes da oposição propõem renda básica emer-
gencial durante a pandemia. Câmara dos Deputados, Brasília, 25/03/2020.
MAZIEIRO, Guilherme. Bolsonaro aumenta valor após fala de Maia e pro-
põe 600 reais a trabalhadores. UOL, 25/03/2020.
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gularidades em auxílio emergencial. Gazeta Digital, 25/05/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 161

os interesses que o atual governo representa, o de uma elite


escravagista, herdeira do elitismo e do racismo, incapaz de
construir laços de solidariedade e empatia com a população
preta e parda do país; o de uma elite capitalista que patrocina
e usa o racismo como instrumento de imposição de níveis
perversos de exploração; o de uma elite que retroalimenta
cotidianamente a imagem do povo preto e pardo como peri-
goso e ameaçador à ordem e a paz social a fim de legitimar
seu descaso intencional e suas múltiplas violências diárias
contra esse segmento da população brasileira.
Uma das ações governamentais que confirma o ante-
riormente exposto está na sua política genocida para com os
quilombolas, assim como aquela dirigida às populações indí-
genas. No Projeto de Lei 1142/2020, que trata das políticas a
serem adotadas para o enfrentamento da pandemia, o gover-
no revela suas intenções através dos vetos que apresentou:

Entre outros pontos, o presidente retirou a obrigação


do acesso das aldeias à água potável; do fornecimen-
to de materiais de higiene, de limpeza e de desinfec-
ção de superfícies em aldeias ou comunidades indí-
genas, oficialmente reconhecidas ou não, inclusive
no contexto urbano; da oferta emergencial de leitos
em hospitais e de UTIs (Unidades de Terapia Inten-
siva), aquisição ou disponibilização de ventiladores
e de máquinas de oxigenação sanguínea; da distri-
buição de cestas básicas, sementes e ferramentas
agrícolas diretamente às famílias indígenas, quilom-
bolas, pescadores artesanais e demais povos e comu-
nidades tradicionais; e da criação de um programa
específico de crédito para indígenas e quilombolas
durante o plano safra 2020-202115.

15 VALENTE, Rubens. Socorro a indígenas e quilombolas foi o mais veta-


do por Bolsonaro, diz ONG. UOL, 13/07/2020.
162 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Importante ressaltar, que, uma vez que as atividades


laborais braçais concentram uma massa de trabalhadores
pobres e, nesse universo, mais amplamente, os negros e
pardos. Durante a pandemia, houve estados que incluíram
o trabalho doméstico como “trabalho essencial”. Essa de-
cisão tem desdobramentos sérios no contexto da desigual-
dade social e do racismo profundos que caracterizam a so-
ciedade brasileira. A classe média, com melhores empregos
e renda, com maior possibilidade de realizar seu trabalho
remotamente, com possibilidade de acesso diferenciado a
uma saúde privada, demandaram o trabalho das emprega-
das domésticas, babás, jardineiros, seguranças, porteiros e
faxineiras para diminuir a carga de trabalho em sua resi-
dência e liberar-se para fazer o isolamento social com tra-
balho remoto e aulas à distância. No entanto, essa classe
média é a mesma que veio da Europa, principalmente, nas
férias, trazendo consigo o novo coronavírus. Nesse con-
texto, esses trabalhadores, expostos a contaminação nos
lares e condomínios da classe média, retornavam às suas
pequenas e precárias casas, em transportes precários e
lotados e para bairros igualmente precários, levando con-
sigo, o vírus. Nessa casa, os protocolos para os casos de
contágio pela COVID-19 são difíceis de serem executados,
como o isolamento do doente ou do suspeito de estar com a
infecção do coronavírus haja vista suas casas terem poucos
cômodos, quando não tem apenas um, para abrigar uma
quantidade de pessoas desproporcional ao espaço. Não foi
por outra razão que no Rio de Janeiro, o primeiro óbito por
COVID-19 foi o de uma trabalhadora doméstica negra que
se contaminou no Leblon, na casa da patroa branca, doente
de COVID-19 recém-chegada da Itália. Um exemplo em-
blemático do desprezo com a vida pobre e preta, da ideia
de subordinação hierárquica do preto às necessidades do
branco rico.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 163

A idade avançada e os problemas de saúde de uma


empregada doméstica de 63 anos não a impediam
de percorrer semanalmente 120 km de sua casa hu-
milde em Miguel Pereira, no sul fluminense, até o
apartamento onde trabalhava no Alto Leblon, bairro
da zona sul do Rio que tem o metro quadrado mais
valorizado do país. Ali ela trabalhou como empre-
gada doméstica por mais de dez anos até a última
segunda-feira [16 de março/2020], quando apresen-
tou os primeiros sintomas do coronavírus e morreu
no dia seguinte. A patroa voltara de viagem recente-
mente da Itália, país que já registra o maior número
de mortes pela doença, e aguardava o resultado do
exame quando a empregada chegou ao trabalho no
domingo [15 de março/2020].16

Outra situação que exemplifica a discriminação racial


na pandemia foi a que teve como vítima o menino Miguel,
de 5 anos, que gerou comoção nacional. A morte de Miguel
é envolvida por muitas situações que tipificam o comporta-
mento criminoso da elite brasileira. A mãe e a avó de Miguel,
mulheres negras e periféricas, eram empregadas domésticas
num apartamento de um luxuoso condomínio de Recife,
construído sob protesto por destruir área de interesse histó-
rico-cultural da cidade. O casal branco e rico que lá residia
com seus filhos pequenos pertencia a tradicional família da
elite pernambucana e o marido é prefeito da cidade de Tre-
membé, onde não reside, mas que pagava o salário de suas
domésticas, registradas por ele como servidoras do municí-
pio. A empregada cumpria a tarefa de passear com os cães da
família dos patrões enquanto seu filho, que ela levara para o
trabalho por estar sem aulas devido ao afastamento social da
pandemia, ficara no apartamento onde a patroa era atendida

16 MELO, Maria Luisa de. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou


coronavírus da patroa. UOL, 19/03/2020.
164 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

por uma manicure. Impaciente com os sucessivos pedidos e


idas do menino até o elevador para ficar com a mãe, a patroa
assistiu a criança entrar no elevador e a deixou partir nele,
mas não sem antes apertar o botão do terraço, ainda que sou-
besse se tratar de uma criança e que a mãe dele estava no tér-
reo. Um minuto após sair do elevador no 9º andar, o menino,
tentando ver a mãe de uma área reservada aos aparelhos de
refrigeração, caiu num mergulho fatal. Esta é uma situação
carregada de significados sobre racismo, elitismo e desprezo
pela vida dos negros, além da corrupção do prefeito de Tre-
membé, já absolvido pela Câmara do município por pagar
suas empregadas com o dinheiro público da cidade.
Para a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e
especialista em história da escravidão, abolição e pós-aboli-
ção no Brasil e nos EUA, a morte de Miguel resume o debate
sobre as diferenças entre a questão racial nos dois países.

“A nossa supremacia branca é assim. Não tivemos


leis segregacionistas, como nos Estados Unidos, mas
temos o mesmo princípio de que algumas pessoas
são mais humanas do que outras”, disse à BBC News
Brasil, em entrevista por telefone.17

A negação do racismo no Brasil, característica do go-


verno Bolsonaro, deu voz e força àqueles que vinham des-
qualificando as lutas do povo preto contra a discriminação
racial. Essas lutas incluíam a bandeira contra o genocídio
dos jovens negros, um problema brasileiro reconhecido pela
ONU e denunciado pelo Human Wrigths há mais de uma dé-
cada, como fruto da violência das instituições de segurança
pública, em todos os níveis de governo, municipal, estadual

17 COSTA, Camila. Caso Miguel: morte do menino no Recife mostra ‘como


a supremacia branca atua no Brasil’. BBC Brasil, 05/06/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 165

e federal. O fortalecimento do racismo institucional e as po-


líticas armamentistas patrocinadas pelo governo Bolsonaro
convergiram para a intensificação da violência policial con-
tra a população preta. Operações policiais que têm como re-
sultado a morte de negros são corriqueiras na periferia brasi-
leira, em virtude do afastamento social, da menor circulação
de pessoas desde as áreas nobres até as mais pobres, que
trouxe como consequência uma queda nos índices de crimi-
nalidade. Era de se esperar uma queda nas mortes de negros
em ações policiais, o que acabou não ocorrendo no Brasil.
O aumento da violência em operações policiais nas fa-
velas e periferias levou o STF, na figura do ministro Edson
Fachin, a proibir, em 5 de maio de 2020, tais operações, res-
tringindo-as a situações excepcionais. Uma das mortes que
mais impactou a opinião pública e revelou o caráter racista
e assassino das operações policiais vitimou João Pedro Ma-
ttos Pinto, menino negro de 14 anos, morador do Complexo
do Salgueiro, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Com as aulas
suspensas devido à pandemia, João Pedro fazia quarentena
em casa junto com os primos quando as polícias federais e a
civil, em conjunto, atacaram a casa em que o menino estava
invadindo-a e disparando mais de 70 tiros, dentre os quais,
um deles acertou João Pedro e o levou a óbito. Conduzido
por um helicóptero da polícia, o seu corpo foi encontrado
pela família no Instituto Médico Legal sem qualquer ajuda
ou informação da polícia.18
Apesar da medida, a violência policial contra a popu-
lação negra e parda segue sendo estimulada dentro das pró-
prias instituições de Estado. Recentemente tivemos o caso
da juíza que associou a criminalidade à negritude em decisão
judicial, legitimando, claramente a prévia interpretação de

18 GORTAZAR, Naiara Galarraga. Mortes em operações policiais aumen-


tam no Brasil, apesar da quarentena. El País, 02/06/2020.
166 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

que o negro é uma ameaça à sociedade, o que está por trás


do ethos policial na hora de atirar, em suas ações.19
Os flagrantes de violência policial contra negros têm
sido expostos sucessivamente em redes sociais por morado-
res que gravam essas ações durante a pandemia. Por estarem
mais tempo em suas casas, a sucessão de divulgação da vio-
lência policial criminosa contra o povo negro tem produzi-
do reações de revolta no Brasil e no exterior. O movimento
Black Lives Matter, que se mobilizou diante do assassinato
cruel do negro norte-americano George Floyd, levou a uma
reação massiva de escala global contra o racismo e fortaleceu
o movimento antirracista e contra o genocídio da juventude
negra no Brasil. Não foi por outra razão que um major da PM
de SP disse a uma turma de policiais que os abusos da PM são
comuns e que evitassem ser filmados.20

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo não teve a pretensão de produzir uma


análise teórica ou explicativa de grande envergadura,
mas identificar criticamente os elementos que convergem
na produção da violência racista durante a pandemia de
COVID-19 ainda em curso. Esses elementos nos servem para,
agora aplicar alguns conceitos de análise acerca da situação
da violência racial no contexto de pandemia, no Brasil. Na
perspectiva da interseccionalidade, observamos como as
questões de gênero, raça e classe convergem na produção da

19 UOL. Juíza diz que homem negro é criminoso ‘em razão da sua raça’ e
o condena. São Paulo, 12/08/2020.
20 Um major da PM disse em palestra a uma das primeiras turmas dos 70
mil policiais militares treinados em São Paulo, que os abusos cometidos
pela corporação existem há 188 anos e sempre vão ocorrer. Por isso, ele
orientou policiais para que não fossem flagrados por filmagens. ADORNO,
Luis. Major diz que PM comete abusos policiais a 188 anos e orienta esca-
par de filmagens. UOL, 30/07/2020. N.A.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 167

maior vulnerabilidade da população negra às violências de-


correntes do racismo no contexto da epidemia da COVID-19.
O confinamento, ao mesmo tempo em que é uma neces-
sidade para proteger a população do contágio, representa uma
medida que aumenta os riscos de exposição à violência pela
população negra, dado o acirramento do controle social pelo
Estado racista e suas instituições repressivas. Nesse sentido, o
conceito de necropolítica de Achille Mbembe (2018) contribui
para a compreensão do contexto político em que a pandemia
avança no Brasil. Foi eleito em 2018 um governo que enfatiza
justamente o controle das tecnologias da morte para aplicar
o protocolo da eliminação física de grupos identificáveis pela
narrativa desumanizadora que elege seus traços fenotípicos
como indicadores de sua periculosidade para a ordem domi-
nante. Esse contexto coloca para a população negra o desafio
de, uma vez que já foi apartada para territórios nos quais a in-
fraestrutura para uma vida humanamente digna está ausente
ou precarizada, ter de lutar pelo direito à vida, que depende
em grande medida do isolamento social, o mesmo isolamen-
to que permite ao Estado instrumentalizar a pandemia para
a regulação da morte de indígenas, idosos, negros, pobres e
todos os grupos potencialmente ameaçadores dos interesses
político-econômicos da elite escravista no poder.
A pandemia de COVID-19 se desenrola ainda no con-
texto de uma disputa imperialista para o controle de popula-
ções e territórios, acirrando as ideologias eugenistas, racistas
e xenofóbicas, o que potencializa a política agressiva do atual
governo brasileiro.
Para a população negra brasileira, se coloca a tarefa
de manter-se firme no movimento antirracista, lutando e de-
nunciando para o Brasil e para o mundo as violências que
vêm sendo praticadas de forma mais intensa na pandemia e
que são estruturais, existiam antes e pretendem se perpetuar
independente da pandemia. Trata-se de um fenômeno, es-
168 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

trutural no sentido que Sílvio de Almeida (2019) define, que


se funda na ideia de raça como constructo que dá suporte
a uma determinada forma de sociabilidade garantidora do
status quo das elites. Tais grupos instrumentalizam a ordem
política e jurídica a serviço da reprodução dessas condições e
inculcam uma narrativa cujo cerne é a discriminação e a de-
sigualdade racial como elemento constitutivo e constituinte
do modo de ser da sociedade e de seus membros. Nesse sen-
tido, o racismo e suas consequências são naturalizados, pois
o conjunto da ideologia racista atua no sentido de torná-lo
imperceptível pela integração dos indivíduos à vida social,
sob a perspectiva hegemônica dos que ocupam o poder, isto
é, a classe abastada e branca.
Sobreviver à pandemia é um ato de resistência e da luta
antirracista que prosseguirá até que as vidas negras efetiva-
mente importem tanto quanto toda e qualquer vida humana.

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12 de agosto de 2020.
T ERCEI RA SEÇÃO

Direitos humanos,
Interseccionalidade e Isolamento:
Os Desafios no Âmbito do
Protagonismo e do Trabalho
Feminino
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 177

MOVIMENTO FEMINISTA,
INTERSECCIONALIDADES E AS
TÁTICAS DE PROTAGONISMO
Nivia Valença Barros
Sandra Monica da Silva Schwarzstein
Karla Amaral
Ida Cristina Rebello Motta

“Claro que classe é importante. É preciso compreen-


der que classe informa a raça. Mas raça, também,
informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é
a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma
que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gen-
te precisa refletir bastante para perceber as intersec-
ções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber
que entre essas categorias existem relações que são
mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode as-
sumir a primazia de uma categoria sobre as outras”
(Angela Davis, 2011).

A
o focalizarmos, neste capítulo, os movimentos so-
ciais, consideramos que sua gênese está ligada a valo-
rização dos sujeitos, com direções de lutas concretas
e emancipatórias, mas também associadas às subjetividades
inerentes ao processo de sua construção. Alguns elementos
nos permitem perceber as características peculiares aos movi-
mentos sociais, que tecem um caminho socialmente e politica-
mente próprio. Os movimentos sociais, em geral, apresentam
diversas características, mas destacamos três: por ter ações em
178 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

oposição ao Estado, ou como alguns autores chamam, ações


“de costa” para o Estado; por ter ações que representam um
projeto de vanguarda ou por ações consideradas de cunho
mais culturalista, a partir de suas identidades. Como discorre a
socióloga Maria da Glória Gohn (1997, p. 12) “[...] Analisar os
paradigmas a respeito dos movimentos sociais implica abor-
dar preliminarmente duas difíceis questões: o próprio concei-
to de movimento social e as teorias a seu respeito”.
A autora esclarece que não existe um único conceito
sobre Movimentos Sociais e sim vários, de acordo com o pa-
radigma. Quanto às teorias, ela ressalta que existem várias,
cada qual com o seu entendimento próprio sobre o que eles
são, bem como a que tipo de manifestação se referem; sendo
tratados ora como fenômenos empíricos e ora como objetos
analíticos e teóricos.
Durante mais de duas décadas, no contexto do regi-
me militar, os movimentos sociais no país foram persegui-
dos, muitos foram dispersados e outros sufocados. Contudo,
não foram extintos e as lutas deles derivadas concretizaram
uma série de conquistas. Historicamente, a década de 1980,
considerada em termos econômicos a “década perdida”, trou-
xe, a partir de pressões criadas pelos movimentos sociais, o
crescimento dos direitos sociais, a Constituição de 1988, o
Estatuto da Criança e do Adolescente, o Sistema Único de
Saúde, entre outras conquistas. Podemos identificar vários
avanços na luta contra as desigualdades sociais, a luta pela
liberdade de imprensa, de expressão e de organização, por
questões trabalhistas, como também a instituição do racismo
como um crime inafiançável. Portanto, podemos dizer que
os anos 1980 foram marcados pela saída das pessoas às ruas
na busca por seus direitos, contexto de grande crescimento e
fortalecimento dos movimentos sociais.
Os anos 1990 foram marcados por novas formas de or-
ganização popular, como o Fórum Nacional pela Moradia, o
Fórum Nacional de Participação Popular e demais formas de
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 179

associativismos. Surgiram novas articulações e parcerias entre


o poder público e a sociedade civil, como o Orçamento Parti-
cipativo, Renda Mínima, entre outros; todas essas parcerias
envolvendo a chamada “Participação Cidadã” na gestão públi-
ca. Nesta década, a partir do avanço das políticas neoliberais,
organizam-se novos contextos de ações pelos movimentos
sociais, na luta contra as reformas estatais. Foi um período
também marcado pela organização dos grupos de mulheres,
na luta desses grupos contra a discriminação e proveniente da
inserção desses movimentos no campo da política.
Os movimentos sociais de mulheres criaram inúme-
ras “táticas” na luta em prol dos processos emancipatórios.
Utilizamos “tática” em lugar de “estratégia”, de acordo com o
sentido que lhes aufere o historiador francês Michel de Cer-
teau (1994), pois “estratégia” e a “tática” atuariam como con-
ceitos articulados, de natureza distinta, mas não excludentes.
A “estratégia” é, por definição, uma escolha entre diferentes
alternativas possíveis, já que, ao optar por aquela que lhe
parece ser a melhor forma de chegar a um determinado ob-
jetivo, o agente da ação reconhece no processo de elaboração
estratégica um exercício e um espaço temporal reservado a
uma análise e a um julgamento que deve ser exercido de for-
ma prudente para definir os meios adequados. A “estratégia”
é do campo da racionalidade, implica uma temporalidade es-
tendida e; para ser efetivada define um alvo e seu percurso.
A “tática” é diferente da “estratégia” e acontece num
tempo curto e se aproveita do contexto; serve para contornar,
escapar ou minar uma determinada “estratégia”. A “tática” é
a arma do fraco, dos sujeitos sociais subalternizados, que rea-
gem à “estratégia” do forte, dos que detêm o poder hegemô-
nico. Os dominadores articulam as “estratégias” e os domina-
dos fazem o aproveitamento tático das mesmas, imprimindo
tensão às relações de poder, para dobrar ou desviar uma dada
força. A “tática” é do campo da intuição e não somente da
razão, portanto, do universo das mulheres. A “tática” tem a
180 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

ver com o caminhar pela cidade, com a leitura momentânea


da realidade, com o modo de utilizar os produtos, entre outros.
A “tática”, para Certeau, não depende de uma propos-
ta totalizante elaborada a partir de uma visão abrangente do
cenário, e também não depende de uma identificação níti-
da do perfil de cada um dos possíveis adversários em cena.
Se renova passo a passo, “lance por lance”. Se aproveita da-
quilo que o momento proporciona sem acumular recursos e
possibilidades ou antecipar rotas de fuga. Privilegia o movi-
mento e garante ágil flutuação no espaço, mas depende de
oportunidades momentâneas que devem ser rapidamente
identificadas e aproveitadas. Exige a percepção rápida dos
vazios que as dinâmicas prevalentes abrem nas estruturas de
controle do poder hegemônico. É nesses vazios que procura
se alimentar. É lá que cria o inesperado, quando consegue
ocupar espaços improváveis. É com base em táticas pontuais
que se movimentam, na sociedade, atores desempoderados,
camaleônicos, sagazes e imprevisíveis que se servem de as-
túcias para “fortalecer ao máximo a posição do mais fraco”.
Pensamos que por meio das práticas cotidianas de or-
ganização das mulheres em grupos, associações, coletivos e
movimentos, no passado e no presente, em torno da luta por
emancipação, autonomia, denúncia da violência, geração de
trabalho e renda, para serem visibilizadas em toda a sua di-
versidade - vão se constituindo enquanto sujeitos sociais ati-
vos, congruentes com as ideias sobre a natureza das táticas.

Rememorando - uma breve abordagem do


movimento feminista no brasil

As mulheres, com maior ou menor ênfase, sempre es-


tiveram presentes e atuando nos diversos contextos sociais,
mas estas intervenções não se caracterizam como um movi-
mento, mas como ações protagonizadas por algumas mulhe-
res. As inovações provocadas pela estruturação capitalista,
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 181

principalmente, no final do século XIX mudou radicalmente


as sociedades e gerou alterações significativas, nos modos
de produção, na forma de subsistência e na proteção so-
cial, trouxe como marca também desse processo a entrada
da mulher no mercado de trabalho na esfera pública. Para
que este cenário fosse possível, foi elaborado também todo
um aparato ideário com fundamentações teóricas que viriam
contribuir para dar sustentação às relações sociais que aten-
dessem a demanda do capital. Diante de tal quadro, as mu-
lheres começam a se unir e, pode-se se dizer que este seria o
marco inicial do movimento feminista. Esta estruturação do
capitalismo não traz consigo mudanças em uma realidade
demarcada pela pauperização e exclusão social, mas exige
responsabilização por parte do Estado para a implantação
de um sistema de proteção social próprio. A consolidação
desse processo vai se viabilizar de acordo com os interesses
do capital, mas também decorrente dos níveis de mobilização
de cada sociedade e da correlação de forças da classe tra-
balhadora; surgem, assim, as políticas sociais como respos-
ta às desigualdades sociais e ao pauperismo da população,
frente ao novo sistema de produção. Segundo Maria Amélia
Teles (2017), no Brasil, no final do século XIX, as mulheres
representavam uma parte significativa da força de trabalho;
muitas já trabalhavam na indústria, constituindo a grande
maioria do operariado do setor têxtil. Muitas delas já haviam
se engajado nas lutas sindicais e socialistas por melhores sa-
lários e condições de trabalho e saúde, denunciado os abusos
e discriminações de gênero e lutado pela diminuição da jor-
nada de trabalho, para oito horas diárias. Para a historiadora
Michelle Perrot (1991), na Europa, o século XIX foi marcado
pelo “sair” das mulheres das camadas sociais altas e médias,
de suas casas. Mulheres que adentraram aos espaços públi-
cos, inicialmente, para fazer caridade e filantropia, median-
te a “permissão” dos maridos, pais e religiosos. “Permissão”
esta, justificada nas ajudas aos pobres, no trabalho como en-
182 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

fermeiras, na solidariedade. Também, Angela Davis (2016)


discorre sobre mulheres que ocuparam o espaço público nos
Estados Unidos, para angariar recursos para as causas abo-
licionistas. Mas, cabe ressaltar que as mulheres pretas e po-
bres sempre estiveram trabalhando, fora e dentro de seus la-
res, mas estes trabalhos nem sempre foram reconhecidos ou
considerados importantes. E mesmo a história das mulheres,
recentemente tratada, passa muito pela visão eurocêntrica.
No Brasil, as mulheres também ocuparam a cena polí-
tica no século XIX. As precursoras clássicas feministas eram
brancas e escolarizadas, as mulheres pretas, só recentemente
têm sido retratadas e, muitas delas desempenharam um pa-
pel importante para toda a coletividade como Dandara dos
Palmares, que não se limitou ao papel de esposa de Zumbi,
mas também liderava homens e mulheres, na luta pela liber-
tação dos negros e negras brasileiras; Tereza de Benguela foi
líder do quilombo de Quariterê e liderou indígenas e negros
na resistência contra a escravidão; Luísa Mahin tomou par-
te na articulação dos levantes de escravos que sacudiram a
Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX, na
revolta dos Malês; Tia Simoa era uma negra liberta e foi uma
das lideranças da “Greve dos Jangadeiros”, quando se decre-
tou o fim do embarque de escravizados, definindo os rumos
para a abolição da escravidão na então Província do Ceará,
que se efetivaria três anos mais tarde. Estas são algumas das
mulheres negras, entre outras, que tiveram papel importan-
tíssimo para todas as mulheres e para o coletivo - homens e
mulheres. Destaca-se também como uma das primeiras fe-
ministas brasileiras, a potiguar, Nísia Floresta Brasileira Au-
gusta, nascida em 1809, que se engajou na luta pela abolição
da escravatura, defendeu e trabalhou pelo acesso à educação,
pela emancipação feminina, pelo direito ao voto e também
na luta para a instauração da República (Teles, 2017).
Em termos de marco referencial, em 1831, o jornal
“Espelho das Brasileiras”, publicado pelas mulheres pernam-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 183

bucanas, foi seguido por gaúchas, que entre 1833 e 1834,


produziram o jornal “Belona”. Foi na esteira dessas pionei-
ras que, na segunda metade do século XIX, diversos outros
jornais e revistas incentivaram as ideias de emancipação fe-
minina1, segundo as pesquisadoras Hildete Melo e Débora
Thomé (2018). Denunciavam os obstáculos que impediam as
mulheres de acessar o direito à educação e também ao voto.
Na realidade, a força de trabalho feminina já coproduzia, há
muito, as riquezas do país.
Segundo a historiadora June Hahner (1981), as mu-
lheres brasileiras, ocuparam o espaço público e realizaram
ações abolicionistas, mesmo que de forma mais restrita que
as companheiras internacionais, organizando-se em grupos e
associações abolicionistas. Venderam flores e doces nas ruas,
cantaram e realizaram concertos para angariar o dinheiro
necessário a esse movimento. Para Melo e Thomé (2018), es-
ses grupos não eram formados apenas por mulheres brancas,
instruídas e ricas do Império, contavam também com a parti-
cipação de mulheres trabalhadoras e dos segmentos médios.
Em relação ao direito de voto feminino, na Assem-
bleia Constituinte de 1891, as mulheres lutaram arduamen-
te. Uma das militantes mais destacadas foi a jornalista e
atriz Josefina Álvares de Azevedo, que também se utilizou
da peça “O voto feminino”. Apesar dos esforços de mobi-
lização política, na primeira Constituição Republicana do
Brasil as mulheres seguiram excluídas do processo eleitoral
(Melo & Thomé, 2018).
Também como marco é importante resgatarmos que
o século XX trouxe em sua primeira década a constituição
de organizações feministas em diversos países da América

1 Segundo Teles (2017), em 1872 cerca de 29,3% das mulheres do Rio de Ja-
neiro eram alfabetizadas e no restante do país este percentual era de 11,5%.
No Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, existiam 17 escolas
primárias para os meninos e somente nove escolas para as meninas. N.AA.
184 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Latina; sejam elas, socialistas, anarquistas ou liberais. Es-


pecificamente no Brasil, destaca-se a grande mobilização
de mulheres, tendo à frente a baiana Leolinda Daltro, com
a criação do Partido Republicano Feminista, assim como o
surgimento da Associação Feminista, influenciado pelas gre-
ves operárias em São Paulo, em 1918. Ainda, a criação da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino com a lideran-
ça de Bertha Luz, em 1922; e, a conquista do voto em 24 de
fevereiro de 1932 (Decreto nº21.176) e sua incorporação à
Constituição de 1934, posteriormente. Para Teresa Cristina
de Novaes Marques (2016), estimulou-se, assim, a criação de
associações feministas em todos os estados e também uma
articulação com parlamentares simpatizantes do voto femi-
nino. E finalmente, ocorreu a conquista do direito ao voto
em 24 de fevereiro de 1932 (Decreto nº 21.176), incorporado
posteriormente à Constituição Federal de 1934.
Para alguns estudiosos, este primeiro momento do
movimento feminista é demarcado pelo cunho conservador,
focado na “divisão sexual dos papéis de gênero”, como expli-
citado por Ana Alice Alcântara Costa (2006, p. 55-56). Desta-
que também para a luta da comunidade negra, em especial, a
luta invisibilizada destas mulheres.
As convulsões políticas dos anos 1930 criaram uma
situação favorável a uma mobilização contra o racismo. Jor-
nais foram publicados e a Frente Negra enfrentou a política
de embranquecimento. Em São Paulo, as professoras Celina
Campos, Gersen Barbosa e Antonieta Barros trabalharam
pela criação de bibliotecas. Na cidade de Santos, Laudelina
Campos de Melo fundou a Associação das Empregadas Do-
mésticas. Clementina da Costa criou o grupo, Rosas Negras
que, por meio de bailes, arrecadava recursos para o movi-
mento negro. Em 1944, no Rio de Janeiro, a atriz Ruth Souza,
junto com outros companheiros, criou o Teatro Experimen-
tal do Negro (TEN), segundo Abdias do Nascimento (1978).
Já em 1950, durante a realização do I Congresso do Negro
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 185

Brasileiro, as mulheres negras foram a público falar da si-


tuação de precariedade a que estavam submetidas as traba-
lhadoras domésticas, excluídas da legislação trabalhista. Foi
nesse mesmo ano, que a assistente social Maria de Lurdes
Vale do Nascimento criou o Conselho Nacional de Mulheres
Negras, que priorizou a defesa dos direitos das trabalhadoras
domésticas (Melo & Tomé, 2018).
A partir dos anos de 1970, fruto das influências inter-
nacionais na década de 1960, que romperam e ampliaram o
pensamento tradicional de que a política estava restrita ao
espaço público, dominado pelos homens. Neste período as
mulheres passaram a manifestar nos espaços públicos suas
insatisfações no campo das relações pessoais, tradicional-
mente restritas ao espaço doméstico, com ênfase para o
mote: “O pessoal é político”! Neste período, a articulação dos
segmentos populares, organizações comunitárias, segmen-
tos da Igreja Católica vinculados ao pensamento da Teologia
da Libertação e grupos de mulheres nas periferias, criou um
importante movimento de mulheres com diversas pautas de
luta e táticas de intervenção. As mulheres inseridas nestes
contextos eram nossas protagonistas na articulação pela luta
por mudança social, pela defesa dos direitos das mulheres.
Mobilizaram as camadas populares e as práticas por elas de-
senvolvidas deram um caráter mais abrangente aos movi-
mentos de mulheres brasileiras e latino-americanas (Costa,
2006, Teles, 2017).
Quando do princípio de certa distensão política, nos
anos de 1975, mobilizadas pelas comemorações do “Ano In-
ternacional da Mulher”, coordenadas pela Organização das
Nações Unidas (ONU), as mulheres mobilizaram-se publi-
camente em torno da discussão da condição feminina, com
atividades nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
Horizonte. Nesse mesmo ano, novos coletivos de mulheres e
grupos de estudo surgiram no país. Dois periódicos que de-
nunciavam as opressões de gênero são criados. O primeiro,
186 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

ainda em 1975, chamado de “Brasil Mulher”, vinculado ao


Movimento Feminino pela Anistia e o segundo, em 1976, o
jornal “Nós Mulheres” (Teles, 2017). Na sequência, estes dois
veículos de comunicação se tornaram fundamentais para dar
visibilidade nacional à luta das mulheres.
Apesar dos enfrentamentos e embates entre as mulhe-
res ativistas, das camadas altas, médias e populares, quere-
mos destacar a coragem das feministas brasileiras brancas,
negras e mestiças. Suas lutas, em especial neste período de
repressão política nas mais variadas formas de organização
social, estas mulheres teceram táticas e construíram a iden-
tidade do movimento de forma coletiva. Em especial, as mu-
lheres militantes de esquerda, que resistiram à ditadura, que
trouxeram suas experiências de contestação para fortalecer a
luta contra os modelos sociais que impediam a emancipação
das mulheres. Colocaram em xeque, tabus como virgindade e
casamento, afirmaram o direito de decidir sobre seu próprio
corpo e, experimentaram até mesmo entre os companheiros
de luta, os impedimentos de estabelecer relações igualitárias
entre os gêneros. Maria Amélia Teles (2017) também fala so-
bre as prisões e torturas de gênero, sofridas pelas mulheres
que resistiram à ditadura militar. Além da violência física e
dos abusos sexuais, as militantes encarceradas também so-
freram tortura psicológica, com a manipulação da relação
afetiva entre elas e seus filhos.
Os anos de 1980 marcam um novo momento no mo-
vimento feminista, demandando novas questões e dilemas.
Para muitas feministas, dentre elas, Ana Alice Costa (2006)
a entrada de muitas militantes para os partidos políticos
acarretou numa apropriação dos discursos feministas por
estes partidos. Dilemas que giraram em torno de constru-
ção da identidade do movimento, gerando uma divisão en-
tre os grupos que o constituíam. Parte das mulheres rei-
vindicava uma maior autonomia do movimento frente às
instituições oficiais (partidos, governos nacional, estaduais
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 187

e municipais) e a outra parte acreditava que de alguma for-


ma poderia influenciar as agendas e ações institucionais em
prol da equidade de gênero. Em 1983, com o retorno das
eleições para os governos estaduais, foi criado o primeiro
mecanismo de Estado no Brasil, voltado para a implemen-
tação de políticas para mulheres - o Conselho Estadual da
Condição Feminina (CECF), em São Paulo. Na sequência,
foram criados em alguns estados e municípios, conselhos
semelhantes, também fruto de mobilizações. E finalmente,
foi instalado, em Brasília, o Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher (CNDM) (Teles, 2017).
Os movimentos feministas e de mulheres, juntamen-
te com o CNDM, no período da Assembleia Nacional Cons-
tituinte, empregaram criativas táticas de lutas políticas de
enfrentamento de uma realidade culturalmente patriarcal.
Demandas apontadas por mulheres de todo o país foram ex-
pressas na Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte.
Cerca de duas mil mulheres ocuparam o Congresso Nacio-
nal – camponesas, empregadas domésticas, patroas, brancas,
negras, índias, operárias, intelectuais e, também desenvolve-
ram a campanha nacional “Constituinte pra valer tem que
ter palavra de mulher”. O resultado da pressão feita pelas
feministas sobre os constituintes, aliada à participação con-
junta de toda a bancada feminina, independente dos parti-
dos políticos, conhecida como o “lobby do batom”, conseguiu
aprovar cerca de 80% das propostas encaminhadas. O seg-
mento das mulheres foi um dos que mais registrou avanços
constitucionais (Costa, 2006). A principal exceção foi o direi-
to ao aborto (Teles, 2017). Segundo a jurista Adriana Mello
(2016), o reconhecimento da igualdade entre homens e mu-
lheres na família e a rejeição formal à violência doméstica
foram os principais ganhos constitucionais.
Nos primeiros anos da década de 1990 não obstan-
te os ganhos constitucionais de 1988, os movimentos de
mulheres confrontaram-se com problemas de atuação
188 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

nas esferas governamentais e, para fazer frente aos novos


contextos sociais, políticos e econômicos, emergiram as
Organizações Não-Governamentais (ONG’s), muitas com
preocupações concretas com as mulheres, outras somente
como forma de captação de recursos públicos. Muitas mili-
tantes históricas criaram então as “ONGs feministas”, com
o intuito de pressionar e influenciar o Estado por políticas
públicas. Ao mesmo tempo, uma diversidade de identidades
feministas passou a se expressar de maneira mais visível
em todo o país. As mulheres pobres de bairros periféricos,
as operárias, junto aos sindicatos e centrais sindicais, bem
como as trabalhadoras rurais também se identificam como
feministas, criando as mais variadas modalidades de orga-
nização, com características de “feminismo popular” (COS-
TA, 2006). Para Sonia Álvarez (1994, p. 278), “[...] a exis-
tência de muitos feminismos foi amplamente reconhecida,
assim como a diversidade de pontos de vista, enfoques,
formas organizativas e prioridades estratégicas feministas
nos anos noventa”. Para a feminista negra, Lélia Gonzalez
(2008) em meio ao “feminismo popular”, os grupos femi-
nistas constituídos por mulheres negras, que já existiam de
forma silenciada, passaram a ter visibilidade e suas pautas
ampliaram a agenda feminista.
Segundo Ana Alice Costa (2006) por ocasião da reali-
zação da Conferência Mundial sobre as Mulheres em Beijing,
imbuídas em garantir a participação democrática, no primei-
ro encontro preparatório para a conferência, em 1994, no Rio
de Janeiro, as mulheres criaram a Articulação das Mulheres
Brasileiras (AMB)2. Todos esses esforços ajudaram a motivar
o governo nacional a apresentar um documento representa-

2 Mais de 800 instituições de mulheres participaram do processo. Em tor-


no de 4.000 representantes de 25 fóruns estaduais, aprovaram a Decla-
ração das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial sobre a
Mulher, entregue ao governo brasileiro (COSTA, 2006). N.AA.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 189

tivo na conferência, aprovar de forma integral a Plataforma


de Beijing e absorver as pautas apresentadas pelas mulheres.
A diversidade entre as mulheres contribuiu para o redese-
nho da própria identidade política do movimento feminista
latino-americano, formada nos anos 1970 e 1980, conferindo
visibilidade ao “[...] caráter plural, multicultural e pluriético
destes feminismos” (COSTA, 2006, p. 69).
No primeiro semestre de 2002, ano de eleição presi-
dencial, em torno de 5.000 ativistas foram mobilizadas. Rea-
lizaram Conferências Estaduais e Municipais e construíram
a carta de princípios: “Plataforma Política Feminista”, com o
propósito de fortalecer a democracia e superar as desigual-
dades socioeconômicas, de gênero e de raça/etnia. Imediata-
mente, na sequência, realizaram a Conferência Nacional de
Mulheres Brasileiras, com cerca de 2.000 representantes das
conferências locais. Nesta Conferência, a Plataforma - do-
cumento de referência das lutas femininas foi amplamente
divulgada pela mídia e entregue a todos os candidatos aos
governos federal e estadual, a representantes de partidos, se-
nadores e deputados (Costa, 2006). Em 2004, as feministas
participaram da “I Conferência Nacional de Políticas Públi-
cas para as Mulheres”, com o objetivo de construir “as dire-
trizes da política nacional para as mulheres na perspectiva
da igualdade de gênero, considerando a diversidade de raça
e etnia” (PLANO NACIONAL, 2004, p. 11). Na sequência do
processo de implementação destas ações públicas, respecti-
vamente, três outras Conferências Nacionais foram organi-
zadas, nos anos de 2007, 2011 e 2016. Esta última Conferên-
cia contou com cerca de 150 mil mulheres, representando
todo o território nacional, inovando com a realização de con-
sultas nacionais aos grupos com maiores impedimentos de
expressão nos processos tradicionais de participação social:
mulheres com deficiência, transexuais, indígenas, ciganas,
quilombolas e de religiões de matriz africana.
190 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Como não poderia deixar de registrar, mesmo que de


forma rápida, em uma das bandeiras históricas das mulhe-
res se encontram as lutas incessantes pela criminalização
da violência doméstica. Passados quase 30 anos do primeiro
encontro oficial em torno da emancipação das mulheres no
Brasil, em 1975, em 07 de agosto de 2004 foi sancionada a
Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, para
coibir a violência doméstica, através de medidas de pre-
venção, assistência e proteção às mulheres em situação de
violência. Apesar dos esforços, o movimento feminista per-
manece denunciando o fato de que as mulheres continuam
sendo assassinadas e os agressores continuam impunes. Para
complementar a Lei Maria da Penha que, envolve somente as
situações de lesão corporal vinculadas à violência doméstica,
sem incluir a violência letal, em março de 2015, foi sancio-
nada a Lei 13.104/2015, que determina o feminicídio como
modo qualificado de crime de assassinato da mulher por
questões de gênero, segundo a jurista Adriana Mello (2016).
Até os dias de hoje, a violência contra a mulher se constitui
como um dos mais complexos desafios a serem enfrentados
por uma sociedade que se pretende democrática.
Num breve olhar sobre as trajetórias dos movimentos
de mulheres no Brasil, percebemos como as ativistas tatica-
mente criaram ações contra a violação dos direitos humanos
na ditadura militar. Semelhante às mães de militantes polí-
ticos de esquerda que denunciaram os desaparecimentos e
assassinatos de seus filhos em tempos de repressão política,
nas duas últimas décadas, mães dos Meninos do DEGASE
predominantemente pobres e da periferia também têm se
organizado para denunciar as violações a que seus filhos, jo-
vens negros, estão submetidos, resultantes das políticas de
morte (necropolítica)3. Também, podemos enumerar, com

3 Recomendamos ver os capítulos desta coletânea que tratam do tema,


com as pesquisadoras: Nivia Barros, Lobelia Faceira, Josélia Reis e Wilma
Pessôa (2020). N.AA.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 191

base na pesquisa de Ida Cristina Motta (2017) alguns movi-


mentos sociais mais recentes nos quais as mulheres estive-
ram à frente do processo de organização dos grupos, tendo
como grande elo, a maternidade: as Mães de Acari, as Mães
da Cinelândia, as Mães de Crianças Desaparecidas de São
Paulo4, as Mães contra a violência5, as Mães do DEGASE.
Para esta autora, são mulheres, mães que encontraram uma
nova forma de exercer a maternidade indo para as ruas, para
a vida pública, através da luta e dos seus movimentos de gru-
pos, transformando suas angústias, tristezas e incertezas –
suas dores - em plataformas de organização.
Nesses percursos dos movimentos, as mulheres dos
segmentos populares desenvolveram alternativas criativas
para sobreviver às necessidades de suas famílias e comunida-
des como resposta ao abandono dos governos, especialmente
no que tange aos serviços básicos urbanos e sociais. Mulheres
camponesas continuam na luta pelo direito à terra, enfren-
tando cotidianamente a violência no campo ao mesmo tem-
po em que trabalham na produção de alimentos saudáveis.
As mulheres lésbicas, travestis e trans, articularam-se com os
homens homossexuais para enfrentar a homofobia. As jovens
mulheres estudantes ocuparam seus lugares de liderança nos
movimentos estudantis, nos ensinos médio e universitário.
Com a falta de oportunidades econômicas, mulheres e ho-
mens também desenvolveram maneiras criativas de trabalho e
renda, a exemplo da economia solidária. Mulheres pretas for-
taleceram o movimento negro nas lutas antirracistas e estão
conquistando espaços de voz e de visibilidade.

4 Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida - ABCD.


N.AA.
5 Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco
(AMAR), São Paulo. N.AA.
192 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Enegrecendo os feminismos – o feminismo negro

Na discussão dos movimentos de mulheres no Brasil,


se faz necessário refletir sobre o reconhecimento da luta das
mulheres negras e indígenas. Estas mulheres não brancas
aportaram outras perspectivas e práticas aos movimentos6.
Sobretudo, as mulheres negras demarcaram outras episte-
mologias e espaços com base nas opressões interseccionais7
a que historicamente estiveram e estão submetidas - de clas-
se social, de raça e de gênero.
Na história de colonização do Brasil, podemos identifi-
car as colisões interseccionais de gênero, classe e raça. Cita-
mos as lutas de resistências que vão representativamente de
Aqualtune, avó do grande líder Zumbi dos Palmares e uma
das fundadoras do quilombo, no século XVII e da coragem de
Dandara, à contemporaneidade, nos aportes teóricos e práti-
cos demarcados pelas feministas negras Lélia Gonzalez, Lui-
za Bairros, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, Jurema Werneck,
Djamila Ribeiro e outras tantas mulheres. Incluídas também,
no campo da política partidária, inaugurado pela catarinen-
se Antonieta Barros, em 1934; na atualidade, de Benedita da
Silva à Marielle Franco.
No final dos anos 1970, Lélia Gonzalez, como as mili-
tantes negras dos EUA, denunciava as opressões vividas pe-
las mulheres negras - em razão de sua raça, nos movimentos
de mulheres e; em razão de seu gênero, entre os companhei-
ros homens do movimento negro. Para a pesquisadora Kia

6 Para citar, algumas das mais conhecidas, as feministas negras estadu-


nidenses, Angela Davis, Audre Lorde, Kimberlé Crenshaw e, desde os
primórdios do feminismo, Sojourner Truth e Harriet Tubman, ambas ex
-escravas, no século XIX. N.AA.
7 Para interseccionalidade recomendamos: CRENSHAW, Kimberlé. Do-
cumento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 2002, págs. 171 - 188. N.AA.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 193

Caldwell (2000), entre os eventos organizados por ocasião do


Ano Internacional da Mulher, em 1975, o Congresso de Mu-
lheres Brasileiras foi marcado pelo primeiro ato de afirmação
formal da existência de divisões raciais dentro do emergen-
te movimento de mulheres, quando um grupo de mulheres
anunciou o “Manifesto das Mulheres Negras”8. Noutro even-
to feminista, o Encontro Nacional de Mulheres, no Rio de
Janeiro, em 1979, Gonzalez (2008) criticou o feminismo que,
para ela, havia escamoteado o racismo de suas pautas e o
fez para contornar a contradição da exploração do trabalho
das mulheres negras pelas mulheres brancas. Para a autora,
as ativistas brancas, que se consideram progressistas, recu-
saram-se a reconhecer que a questão racial incidia de forma
perversa sobre a vida das companheiras negras. Para ela, as
mulheres brancas não enfrentaram a discussão sobre raça
porque eram cúmplices da dominação racial. No interior do
movimento, emergiram, portanto, diferenças entre brancas e
negras, baseadas nas experiências da própria existência coti-
diana, referenciadas pela ocupação de lugares sociais deter-
minados pelas estruturas patriarcais, capitalistas e racistas.
Especialmente no início do movimento feminista, como se
vê, as relações entre mulheres negras e brancas foram, algu-
mas vezes, marcadas por intensos enfrentamentos.
Vemos quão incessante e árdua foi e tem sido a luta
das mulheres negras para desconstruir a ideia universalista
do feminismo ocidental, de origem anglo-saxônica, dos paí-
ses industrializados, que majoritariamente imprimiu nas lutas
emancipatórias a imagem da mulher branca, de classe média,
de alta escolaridade. Esta visão dificultou, ao longo de décadas,

8 Sobre as pautas de resistências das ativistas negras no Brasil, recomen-


damos ver a tese de doutoramento de Sandra Monica da Silva Schwarzs-
tein, intitulada “Atuação de Militantes Femininas em Favelas do Rio de
Janeiro – ‘Invisibilidade’ e Protagonismo”, pela Universidade Federal Flu-
minense, em 2019. N.AA.
194 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

o reconhecimento da diversidade étnica e racial característica


de territórios continentais como os da América do Sul e do Ca-
ribe, predominantemente ocupados por populações amerín-
dias nativas e africanas, da diáspora negra e suas descendentes
que, ao longo de séculos, foram subjugadas e oprimidas por
razões étnicas e raciais, além das razões econômicas. A nosso
ver, interseccionalidade é um conceito que agrega força aos
coletivos de mulheres pobres, negras, mestiças e indígenas,
entre outras. Os movimentos sociais em que estas mulheres
estão inseridas têm ganhado força, desde o final dos anos 1970,
e lançado profundos alicerces no terreno dos feminismos in-
terseccionais. Destaca-se, em 2015, em Brasília, a Marcha das
Mulheres Negras – Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem
Viver, com 50 mil mulheres e as marchas estaduais e o lema
“Nossos passos vêm de longe”.

Economia solidária como tática de


protagonismo

A Economia Solidária para as mulheres surge como


alternativa para geração de renda com possibilidade de au-
tonomia financeira, acesso à propriedade coletiva e estabe-
lecimento de outros tipos de vínculos e relações de trabalho.
Além disso, nessa atividade é possível reconhecer o trabalho
reprodutivo e sua contribuição também para construção de
outro paradigma da economia.
O Sistema de Informações de Economia Solidária
(SIES) da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SE-
NAES) mapeou 19.708 empreendimentos solidários no Bra-
sil, entre os anos de 2009 e 2013. Do total desses empreendi-
mentos solidários, a agricultura familiar corresponde a 53,3%
dessas atividades e o segundo lugar é ocupado por atividades
artesanais que corresponde a 17,9%. Dentre as atividades ar-
tesanais de economia solidária 78,1% são realizadas por tra-
balhadoras mulheres.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 195

O relatório aponta também que na região sudeste as


atividades artesanais (32,5%) superam a agricultura familiar
(28,3%) entre os Empreendimentos de Economia Solidária e
que as artesanais estão presentes em maioria nas áreas urba-
nas (78,9%) e metropolitanas (38,8%).
Dos Empreendimentos Solidários mapeados pelo Pro-
jeto Brasil Local Economia Solidária e Feminista, da entidade
Guayí, no ano de 2012, identificou que 48% das atividades
de artesanato são compostas majoritariamente por mulhe-
res, seguido de 17% nas atividades de confecção e 13% de
alimentação. Esse levantamento aponta para a presença das
mulheres em atividades tipicamente femininas, já realizadas
por elas na divisão sexual do trabalho, como extensão dos
afazeres domésticos, como fala Helena Bonumá (2015).
O Departamento Intersindical de Estatística e Estu-
dos Socioeconômicos (DIEESE) realizou pesquisa qualitativa
com mulheres que lideraram empreendimentos artesanais
urbanos e apresentou dados para além das estatísticas so-
bre as suas vivências, práticas e cotidianos. Foram realizadas
oficinas de diagnóstico participativo com trabalhadoras em
grupos ou empreendimentos de produção artesanal nas re-
giões metropolitanas de São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro,
entre os anos de 2016 e 2017. A faixa etária dessas trabalha-
doras estava acima de 50 anos de idade.
Neste estudo, percebeu-se que as mulheres, nas três
regiões metropolitanas analisadas realizam trabalho indi-
vidual na etapa de produção (compra da matéria-prima e
confecção do produto) e na etapa de comercialização elas
se organizam coletivamente. A etapa de produção é realiza-
da em ambiente doméstico, o que viabiliza o cuidado com a
casa, filhos e netos. Neste sentido, se verifica um aumento
exaustivo de horas de trabalho, que não há separação entre
o local de trabalho e a residência, o que dificulta o acesso ao
descanso e lazer.
196 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Apesar de a comercialização acontecer de forma co-


letiva em feiras e espaços cedidos pelo poder público, as
mulheres também se dedicam à própria venda. Muitas delas
utilizam transporte público para deslocarem-se, carregando
seus produtos e estruturas (barraca e cadeiras). A violência
urbana também é um importante marcador no trabalho des-
sas mulheres. Vale citar a cidade do Rio de Janeiro, com ho-
rários estabelecidos para retorno para suas casas, às vezes,
com cancelamento das vendas, nos dias de operação policial
na comunidade.
Na pesquisa foi revelado que as mulheres encontram
mais oportunidades na atividade artesanal do que quando
tentam acessar o mercado formal de trabalho. Também a re-
muneração da atividade artesanal é utilizada como comple-
mento da renda da família e não como sua fonte principal. O
que tem inviabilizado a profissionalização e a dedicação para
ampliação do empreendimento.
Para Isabelle Guérin (2003) o acesso das mulheres às
atividades que geram renda não garante a diminuição das
desigualdades entre homens e mulheres. Para isto, se faz ne-
cessário repensar outros obstáculos presentes neste cenário
como a feminização da pobreza, a inadequação das insti-
tuições e a distribuição desigual das obrigações familiares.
Diante desses obstáculos, para esta autora, a Economia Soli-
dária tem contribuído através de seus princípios e funciona-
mento, já que:

Em primeiro lugar, desempenham um papel de jus-


tiça de proximidade, e esse papel é essencial diante
do caráter multidimensional da pobreza. Em segun-
do lugar, criam espaços de discussão, de reflexão e
de deliberação coletivas; nesse caso, apresentam-se
como formas de acesso à fala em público para pes-
soas que, em geral, não o têm e, por meio da expres-
são e da reivindicação coletivas, podem participar da
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 197

transformação das instituições, seja da legislação ou


das normas sociais. Em terceiro lugar, contribuem
para redefinir a articulação entre família, autori-
dades públicas, mercado e sociedade civil, além de
participarem da revalorização das práticas de reci-
procidade; ora, essa redefinição e essa revalorização
devem permitir a luta contra as desigualdades den-
tro da família, permitindo às mulheres, mas também
aos homens, conciliarem melhor a vida familiar e a
vida profissional (GUÉRIN, 2003, p. 77).

A Economia Solidária segue princípios de autoges-


tão, solidariedade, democracia, cooperação e respeito ao
meio ambiente. Estes princípios são praticados pelos que
entendem e almejam viver numa sociedade onde o capital
não ocupe a centralidade absoluta do sistema econômico,
onde as relações sociais humanas passem a ocupar também
este lugar.
A pesquisadora Miriam Nobre (2003, p. 98) propõe um
diálogo da Economia Solidária com as contribuições dos fe-
minismos, com o intuito de enfrentar as desigualdades de
gênero. A autora aponta que as iniciativas de “[...] economia
solidária funcionam como espaço de intermediação entre o
Estado, o mercado e a família”. Além disso, os grupos de mu-
lheres de Economia Solidária rompem com a separação exis-
tente entre o espaço público, atribuído ao homem e o espaço
privado, imposto às mulheres.
A economia solidária para as mulheres, sobretudo, para
as trabalhadoras pobres, apesar dos entraves encontrados,
também se coloca como oportunidade para o “redesenho” de
suas vidas, quando da possibilidade de busca de autonomia
financeira, de reafirmação do seu lugar de mulher no mundo
do trabalho e da organização coletiva com outras mulheres.
Diante dos elementos elencados para o debate, uma
crítica importante tem sido feita a Economia Solidária. Essa
198 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

crítica fala que, por serem os empreendimentos solidários


majoritariamente constituídos por mulheres trabalhadoras
– suas dinâmicas reproduzem os tradicionais afazeres do-
mésticos, já que muitas delas utilizam os espaços da casa
para realizar tais atividades. Na atualidade, também o iso-
lamento social imposto pela pandemia de COVID-19, con-
tribuiu para maior sobrecarga do serviço doméstico para
as mulheres, com a intensidade dos cuidados sanitários de
prevenção ao vírus, mesmo quando elas possuem um tra-
balho remunerado.
O estudo de Carolina Cherfen (2014)9 buscou analisar
os avanços e limites de três Organizações Sociais Produtivas
(OSP) vinculadas à economia solidária, duas em Pernambuco
e a última em São Paulo. Baseando-se na realização de entre-
cruzamento das categorias de classe, gênero e raça, presentes
nas iniciativas pesquisadas, Cherfen (2014) defende a tese de
que os empreendimentos pesquisados:

[...] apresentam a prioridade de enfrentamento das


relações de classe, focados, sobretudo, no desempre-
go, oportunidades de geração de renda e superação
da fome e miséria de parte da população brasileira.
Contudo, não priorizam as questões de gênero, so-
bretudo as de raça, com a mesma relevância, não
considerando, portanto, a coextensividade dessas
relações sociais como estruturantes da sociedade,
tanto como a classe (CHERFEN, 2014, p. 244).

Para a autora, sua pesquisa comprovou que nessas OSP,


em algumas experiências, existem oportunidades diferencia-
das para homens e mulheres, além do silenciamento das ques-

9 Esta autora se refere à Empresa Recuperada Catende-Harmonia de Reci-


fe/ Pernambuco; a Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metro-
politana e a Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos “Bom Sucesso”,
de Campinas/São Paulo. N.AA.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 199

tões raciais. Que apesar da ênfase nas questões de classe, as


relações sociais são atravessadas, principalmente pelo gênero
e pela raça, o que torna a questão mais complexa.
No que se refere à prática de autogestão (princípio fun-
damental da Economia Solidária), o estudo também aponta
para a necessidade do rompimento da divisão sexual e racial
do trabalho nas atividades cotidianas dessas OSP.
Sobre a divisão sexual do trabalho foi observado que
as tarefas realizadas por homens e mulheres foram pautadas
em estereótipos de gênero, como força física e determinadas
habilidades, bem como, a falácia da dificuldade de a mulher
ocupar cargos de poder e decisão. Em relação à divisão ra-
cial do trabalho para a reprodução das desigualdades ficou
explicitado que a maior parte das/os trabalhadoras/es das
OSP analisadas eram pretas/os ou pardas/os. E, sobretudo, as
mulheres negras de baixa renda eram as que executavam os
serviços mais precários, em algumas das organizações, prin-
cipalmente na cooperativa de reciclagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, apresentamos um sucinto panorama


das lutas feministas no Brasil. Ao longo dos últimos 200
anos, as mulheres, através de suas táticas de resistências, fo-
ram se tornando ativos sujeitos coletivos. Isso foi feito sem
que fossem negados os conflitos que podem ocorrer entre as
diferentes correntes do movimento, mas também sem que se
deixasse de reconhecer a pluralidade de identidades e formas
de ser e de estar no mundo, que as caracterizam.
Na década de 2020, a despeito de todas as lutas femi-
nistas e da classe trabalhadora, vivenciamos um desmonte
das políticas sociais (saúde, educação e assistência social, di-
reitos trabalhistas e outras). Apesar de ocupar o 5º lugar no
ranking mundial de feminicídio (ONU BRASIL, 2017), nossas
200 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

políticas afirmativas de gênero10 também passaram a sofrer


duros golpes.
A nosso ver, o processo de desmonte das políticas pú-
blicas que estamos vivendo é mais uma violência infligida
às mulheres, uma violência que se agrava com a emergência
da pandemia de COVID-19. Como bem se sabe, são as mu-
lheres pobres e negras, muitas das quais são responsáveis
pelo sustento de suas famílias, que mais dependem do sis-
tema público de saúde e que ocupam os postos dos serviços
precarizados.
A adoção de práticas de distanciamento social pou-
co constrangeu a atividade profissional de muitas mulheres
e homens de segmentos médios, que passaram a trabalhar
remotamente, sem sair de casa. Constrangimentos de outra
natureza surgiram para esses segmentos, quando pessoas
que não estavam acostumadas a isso se viram obrigadas a
lavar o vaso sanitário do qual se servem para suas necessi-
dades íntimas. Se por um lado, passaram a entender melhor
qual o valor da contribuição das empregadas domésticas
para suas vidas, por outro, passaram também, muitas vezes,
a exigir que as mesmas dessem continuidade ao seu traba-
lho, sob o risco de perderem seus empregos. Em Belém do
Pará, por exemplo, o Prefeito11 corroborando com as deter-
minações do Governador, decretou lei que definiu quais são
as atividades chamadas “essenciais” que não poderiam ser
interrompidas durante a pandemia, incluindo também as
atividades das domésticas, sem as quais, patroas e patrões
consideraram que não seria possível viver. Perversamen-
te, porém, esta súbita “valorização” de algo que sempre foi
desprezado, se fez acompanhar dos riscos de contaminação

10 CORREIO DO ESTADO. Violência contra a mulher: área precisa de


postura, não de dinheiro, diz presidente. Estadão, 05/02/2020.
11 DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Prefeitura de Belém inclui empregadas
domésticas como serviço essencial durante lockdown. 06/05/2020.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 201

maiores aos quais suas empregadas tiveram que se expor


para chegar ao local de trabalho.
Um caso emblemático, já bem conhecido, é o da pri-
meira vítima de COVID-19, no Rio de Janeiro, uma mulher
de 63 anos12, que trabalhava como doméstica na mesma casa
há muitos anos e foi contaminada por sua patroa, que se con-
taminou com o vírus durante uma viagem ao exterior. Numa
dinâmica paralela à sua, outros milhares de mulheres, pobres
e negras se viram constrangidas a continuar a sair de suas
casas, não mais para lutar por seus direitos, mas sim para ar-
riscar suas vidas em transportes lotados, nos longos trajetos
para o trabalho.
Outro episódio trágico, já muito conhecido e discutido
por seu desfecho trágico, revelador de contradições raciais e
sociais escancaradas pela pandemia, foi o da mulher negra,
Mirtes Renata que se fez acompanhar de seu filho Miguel, de
5 anos de idade, quando foi trabalhar na casa em que presta-
va serviços, porque a escola do menino estava fechada. Por
negligência de sua patroa, seu filho morreu quando caiu do
9º andar13 de um prédio de luxo, em Recife-PE. Parafrasean-
do Angela Davis, citada no início deste estudo, o que pode
ser dito a guisa de comentário é que raça e gênero são as
maneiras como a classe e a raça são vividas.
Sabemos que as opressões sociais, econômicas e ra-
ciais não são de hoje, entretanto, na pandemia, estas ques-
tões foram potencializadas. Nota-se que, no princípio da
quarentena, as delegacias das mulheres foram fechadas, apa-
rentemente por não ser vistas como serviços essenciais. Só
foram reativadas quando feministas munidas com os núme-
ros crescentes da violência doméstica, mesmo em quarente-

12 ISTOÉ. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da


patroa no Leblon. 20/03/2020.
13 G1. Caso Miguel: como foi a morte do menino que caiu do 9º andar de
prédio, no Recife. 05/06/2020.
202 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

na, passaram a pressionar as autoridades. Ao mesmo tempo,


por todo o país, milhares de redes solidárias foram criadas
e outras (re) ativadas por mulheres pobres da periferia que
passaram a distribuir refeições nas ruas, cestas básicas, ma-
teriais de limpeza e de cuidado com os idosos e doentes. Ta-
ticamente, na pandemia, as mulheres conseguiram, sem sair
de casa, alertar a sociedade para a necessidade de enfrenta-
mento da violência doméstica e do feminicídio. Trata-se de
um ganho que não irá se esvair com o – espera-se possível –
fim da pandemia. A adesão massiva das mídias ao alerta das
feministas nos dias que correm, seguramente terá também
desdobramentos futuros.

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Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 207

MULHER, TRABALHO E
INTERSECCIONALIDADES:
ISOLAMENTO NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID-19
Josélia Ferreira dos Reis
Vânia Quintão
Nivia Valença Barros

(...) a superposição de modalidades díspares de su-


bordinação do trabalho ao capital exacerba a frag-
mentação efetiva da massa de trabalhadores, seccio-
nados entre os com-direitos, os com algum-direito,
os com poucos-direitos, os quase-sem-direitos e os
sem-direitos que, precisando defender seu lugar es-
pecífico na hierarquia de direitos, dessolidariza o
conjunto de maneira profunda. Outra tendência for-
te é a dessolidarização intergeracional: conservam-
se os direitos dos mais velhos, enquanto são pratica-
mente suprimidos os direitos dos novos ingressantes
no mercado de trabalho (Virginia Fontes, 2017).

O
isolamento, em decorrência de um período pandê-
mico, provoca desdobramentos em todas as esferas
societárias, mas acarreta impactos ainda mais impor-
tantes para todos os trabalhadores. A pandemia do COVID-19
impôs mudanças radicais nas formas de sociabilidade e de
organização social, simbolizadas pelo isolamento dos sujeitos
em suas casas. A partir da necessidade de recolhimento de to-
dos ao espaço doméstico, surgem questões, reflexões signifi-
208 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

cativas sobre as múltiplas responsabilidades da mulher, sejam


elas derivadas de sua inserção no espaço público, sejam pró-
prias da esfera privada que são acumuladas com as ativida-
des externas. Assim, procuramos refletir sobre a repercussão
desse processo para as mulheres trabalhadoras, destacando,
nesse contexto, mais especificamente, o acúmulo das tarefas
no espaço privado e o trabalho na esfera privada.
Como ponto de partida, buscamos uma abordagem que
contribua para refletir sobre a divisão sexual do trabalho, em
uma sociedade desigual, fundada no patriarcalismo, que tem
uma forte hierarquização de papéis sociais, de acordo com o
gênero, raça e classe. Assim, ao falarmos das tarefas priva-
das e das empregadas domésticas, estamos discutindo sobre
as opressões que estas trabalhadoras sofrem nesta sociedade.
Para entendermos este contexto destacamos a importância do
movimento feminista para as lutas e conquistas das mulheres,
principalmente, as críticas do feminismo negro. Considera-
mos assim, que se constitui necessário debruçarmos um olhar
não só sobre a perspectiva de gênero, mas também sobre a
classe, raça e etnia que perpassam os debates feministas sobre
o mundo do trabalho. Esta interseccionalidade é fundamental
para o aprofundamento da discussão, considerando que nela
transpassam múltiplos feminismos.
Mesmo que de forma sucinta, procuramos pensar
sobre questões relevantes que ainda se fazem necessárias,
mesmo estando presente como pauta nas lutas dos feminis-
mos durante longos anos. Para tratarmos sobre mulher e
trabalho, focalizando as tarefas desenvolvidas pelas mulhe-
res no âmbito privado, sua articulação com a esfera pública
e destacando-se a diferenciação entre serviço doméstico e
trabalho doméstico exercido pelas empregadas domésticas,
faz-se necessário, agregar reflexões sobre a questão racial
como contribuição para a superação do racismo estrutural
nos dias atuais.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 209

Mulher, trabalho doméstico e movimentos


sociais

As experiências das mulheres mostram o quanto o


público e o privado, elementos constitutivos das sociedades
ocidentais, constituem esferas estruturadas que determinam
papéis e reforçam as desigualdades. Em uma separação his-
tórica, fundada no patriarcalismo, os homens ocuparam o
espaço público e as mulheres, o privado. A mulher, durante
séculos ficou restrita ao espaço doméstico, impedida de tran-
sitar livremente e de ocupar espaços públicos identificados
como masculinos por excelência.
A história do século XIX é marcada por esta clara di-
visão, com base em uma narrativa de destinação natural de
papéis que foram, ao longo da história, forjados a partir do
estabelecimento da família burguesa como modelo “tradicio-
nal” ou, melhor dizendo, como ideal consolidado. Assim, os
homens pertenceriam ao espaço público, desempenhariam
seu papel de provedores da família, controlando também os
modos de produção e o destino das nações; as mulheres per-
tenceriam ao espaço privado, exerceriam o papel do cuidado
e seriam uma contrapartida ao sustento financeiro dos mari-
dos. Essa polarização é a base da divisão sexual do trabalho
(SOUSA e GUEDES, 2016, p.123).
As mulheres, que na estrutura patriarcal foram “apa-
gadas” da história, têm reavivado sua participação nos di-
versos contextos históricos, principalmente através dos
estudos feministas. Muitas conquistas têm sido efetivadas
com muitas lutas, principalmente nos últimos anos, com o
movimento feminista. Souza e Guedes (2016) destacam que
houve mudança significativa, na medida em que as mulheres
ocuparam o espaço público, mas que este movimento não
foi acompanhado por um movimento masculino de assunção
das atividades domésticas como contrapartida. O serviço do-
210 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

méstico, exercido por mulheres no seio de suas famílias e que


era considerado como um não trabalho, percebido como atri-
buição “natural” e destino de todo ser feminino, continuou
exclusivamente a seu cargo.
As transformações no cenário socioeconômico e a mi-
litância dos movimentos feministas no século XX trouxeram
novas configurações sociais e fragilizaram a relação estabe-
lecida entre o público e o privado. Os papéis considerados
“naturais” assumidos por homens e mulheres, principalmen-
te, passaram por novas configurações, que ampliaram a par-
ticipação das mulheres nos ambientes considerados produti-
vos, nos espaços públicos, mas não fizeram o oposto, trazer
os homens para a participação no espaço privado (SOUSA e
GUEDES, 2016).
Cabe ressaltar que as mulheres pobres e pretas sem-
pre trabalharam tanto na esfera privada quanto na pública,
mas em geral, seu trabalho era considerado “não trabalho”,
era considerado como parte de tarefas inerentes ao “mundo
feminino”. As mulheres pobres e pretas lavavam, passavam,
cozinhavam, cuidavam das crianças e dos idosos, trabalha-
vam nas lavouras, cultivavam, entre outras ações, dentro e
fora de suas casas. Contudo, tais funções não eram consi-
deradas “trabalho”. No campo, quando trabalhavam lado a
lado com os homens, também não havia o reconhecimento.
A consideração do serviço doméstico como “não trabalho”,
como algo a não ser valorizado, é um dos muitos fatores
que dificultam o reconhecimento do trabalho das emprega-
das domésticas.
Essa reconfiguração das relações entre o público e pri-
vado e, consequentemente, entre o trabalho remunerado e o
trabalho não remunerado, de fato, não trouxeram mudanças
significativas na sua base, relações de poder e, consequen-
temente, na divisão sexual do trabalho (SOUSA e GUEDES,
2016). Podemos sinalizar que, na divisão sexual do trabalho,
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 211

mesmo com tantas mudanças ao longo da história, conti-


nuou a se constituir como uma atribuição primária, os traba-
lhos domésticos para as mulheres. Estes trabalhos poderiam
ser acumulados com outras funções, delegados a outras mu-
lheres enquanto elas exerciam o trabalho no espaço público,
mas estariam em sua esfera de ação. E mesmo exclusivamen-
te trabalhando no espaço público, os baixos salários em de-
trimento de atividades iguais desenvolvidas por homens, se
manteve como uma das principais desigualdades enfrenta-
das por trabalhadoras.
Um ponto importante a destacar é que a não consi-
deração do trabalho doméstico como trabalho, o invisibili-
zou por muito tempo e favoreceu a manutenção de relações
desiguais e de poder entre os sexos, principalmente levan-
do em conta que o trabalho doméstico tem como vínculo as
relações familiares, sejam no casamento ou parentais, deli-
neando relações pautadas na subalternidade e opressão, no
entanto invisibilizadas, em nome da cumplicidade familiar
(SOUSA e GUEDES, 2016). O trabalho doméstico carrega em
si a desvalorização como um “não trabalho”, mas acumulam
um alto nível de desgaste físico e de uso de horas que os
tornam extremamente cansativos e desgastantes, posto que
é preciso refazê-lo a cada dia. Muitas vezes, esse processo
interfere no trabalho na esfera pública e, caso isso ocorra,
há um demérito, como se fosse uma incapacidade da mulher
para dar conta de suas atribuições.
Com a saída das mulheres para o espaço público em
funções consideradas como trabalho, fruto da luta feminista
encabeçada por mulheres brancas, a lacuna deixada na es-
fera do trabalho doméstico acabou ocupado por quem, sem
acesso à formação e aos mecanismos de reivindicação, era
obrigado a vender sua força de trabalho dentro das casas:
as mulheres pretas e pobres. A terceirização do trabalho do-
méstico, ainda considerado “não trabalho”, voltou-se para
212 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

outro grupo de mulheres e se estabeleceu numa forma de


relação marcada pela informalidade e pela falta de garantias
trabalhistas. Este fato, aliado a uma herança escravagista de
utilização de mão de obra das mulheres pretas dificultou ain-
da mais a formalização do trabalho das empregadas domés-
ticas (CASTRO, 2018).
As contribuições do feminismo europeu para o debate
sobre o trabalho doméstico permitiu que o tema ganhasse visi-
bilidade, começando a ser percebido como um trabalho de re-
produção sexual e sem remuneração realizado pelas mulheres,
bem como fortaleceu o debate sobre o trabalho da mulher, não
só no espaço privado, mas também no espaço público, abrindo
caminho para se pensar a divisão sexual do trabalho (SOUSA
e GUEDES, 2016). A este movimento convencionou-se chamar
de Segunda Onda no Ocidente (1960-1970).
No entanto, apesar de todas as lutas dos movimentos
feministas, fato é que ainda perdura na nossa sociedade, este
conceito. Independente da atividade profissional que uma
mulher desenvolva, a vida familiar é de sua responsabilidade
total e dela depende o seu bom desenvolvimento, a educa-
ção dos filhos, a organização da casa e o atendimento das
necessidades do marido (MELLO, 2010). O papel da mulher
no espaço privado independe de sua participação no espaço
público, do trabalho remunerado.
Em nossa sociedade ainda permanece a estruturação
em que os homens dividem seu tempo entre o trabalho re-
munerado e as atividades de lazer (mesmo que seja assistir
a TV e ler jornais) e, podem fazê-lo porque as mulheres di-
videm seu tempo entre o trabalho remunerado e a família.
À medida que as mulheres vão se inserindo mais no
mercado de trabalho, vão tendo maior sobrecarga com as
“obrigações” do lar ou vão deixando de ser as cuidadoras
exclusivas da família. Muitas vezes, isso é compensado, por
outras mulheres que deixam suas famílias de lado, muitas
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 213

vezes seus próprios filhos, já que também são as únicas pro-


vedoras do grupo familiar, para cuidar das casas e dos filhos
de outras mulheres. Como ainda há resistência no país para
o reconhecimento do trabalho doméstico, muitas emprega-
das domésticas não têm seus direitos assegurados, podendo
ter longas horas de trabalho, salários abaixo do mercado,
entre outros fatores.
A inserção de mulheres no mercado de trabalho está
relacionada intimamente com o acesso a mecanismos que
garantam sua inserção, a começar pelo acesso a educação
formal e a condições igualitárias em vagas de empregos com
salários igualitários, o que se distancia bastante da realidade.
Em síntese, a divisão sexual do trabalho e a incorpo-
ração da mulher no mundo do trabalho foram se delineando
a partir das conquistas, das pressões, mas ainda encontra im-
bricações tradicionais fundadas no patriarcado, pautados na
ideia do homem provedor e da mulher cuidadora que ainda
encontra-se arraigada em nossa sociedade. As mulheres con-
tinuam a ter que conciliar o trabalho na esfera profissional
e o trabalho doméstico. Como também, muitas mulheres po-
bres e pretas, trabalham no emprego doméstico, possibilitan-
do o trabalho em outras esferas, de outras mulheres.
Railka Freitas (2017) discute a diferença entre traba-
lho doméstico e emprego doméstico compreendendo que
ambos são expressões da divisão sexual do trabalho. “O tra-
balho doméstico está circunscrito nas atividades de repro-
dução da vida e referem-se ao cuidado com o lar, com as
crianças, com as pessoas idosas e com os doentes, ao pre-
paro dos alimentos, à confecção de vestimentas, bem como
incluem relações de afeto” Freitas (2017, p.63). Já o emprego
doméstico, que também é uma forma de trabalho doméstico
se configura como expressão de relações de trabalho na
sociedade capitalista e constitui o exercício remunerado do
trabalho doméstico para outrem (idem, p.66). Para a autora,
214 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

a desvalorização da atividade se origina da sua circunscrição


à esfera da reprodução.
Neste mesmo sentido, vale destacar o que Mello (2010)
traz em relação à associação entre o trabalho doméstico re-
munerado e a sua extinção, em decorrência do desenvolvi-
mento econômico, chamado de “paradigma da teoria da mo-
dernização”. Segundo o autor, observando os EUA e outros
países com o mesmo nível de desenvolvimento, não seria
este desenvolvimento ou a modernização que extinguiria o
trabalho doméstico remunerado, mas a distribuição de renda.
Enquanto se mantiver a desigualdade de renda, existindo
renda alta o suficiente para contratar o trabalho doméstico
remunerado, sem impacto significativo nos ganhos, este tra-
balho persistirá ainda de forma exploradora.
No Brasil, as relações estabelecidas com as empregadas
domésticas trazem a marca e o estigma herdados da história
escravista: segregação em “quartos de empregada” muitas ve-
zes minúsculos e sem janelas; banheiros separados, relatos de
discriminação quanto à alimentação e ao uso de áreas e uten-
sílios da casa, horários não estabelecidos de forma clara.
Recentemente, tivemos o caso do Menino Miguel
(G1, 05/06/2020), uma criança de cinco anos que morreu após
cair do terraço de um prédio de classe média na área metro-
politana de Recife-PE. Filho da empregada, Miguel foi levado
ao trabalho da mãe, obrigada a trabalhar no meio da pande-
mia de COVID-19, e que não tinha com quem deixar a crian-
ça. Enquanto a mãe de Miguel saía para levar os cães da pa-
troa para passear na rua, a criança agitou-se com a falta dela.
E a patroa, que estava em atendimento por manicure, deixou
o menino sozinho no elevador. Os jornais televisivos denun-
ciaram em rede nacional imagens do circuito de vídeo do
elevador mostrando o momento em que a patroa da mãe do
menino aperta o botão do andar de onde a criança despencou
(G1, 05/06/2020). A fala de Mirtes ao ser entrevistada (Extra,
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 215

04/06/2020) é dolorida: “eu sempre tive paciência com os fi-


lhos dela. Quando precisei, ela não teve paciência com meu
filho. E ele agora está morto!”
O caso retrata a profunda desigualdade que reveste a
situação das empregadas domésticas no país e que são ne-
gras, em sua maioria. Obrigadas a trabalhar em plena pan-
demia, muitas vezes, vítimas de contaminação, além de leva-
rem para suas famílias e comunidades a doença contraída de
seus patrões, acabam falecendo por não disporem de recur-
sos adequados para o tratamento.
Dessa forma, as relações de trabalho vão se desenhan-
do e mantendo uma configuração, ainda nos dias de hoje,
estruturada não só por uma divisão sexual do trabalho, dife-
renciando, especializando e desempenhando o trabalho pro-
dutivo e reprodutivo, para diferentes pessoas, de acordo com
o sexo, que segue se legitimando através dos espaços público
e privados, por meio de mecanismos como a própria famí-
lia, a escola, a religião, e tantos, sob a perspectiva de “dom
natural”, masculinizando tarefas relacionadas à força física,
raciocínio lógico, habilidade de comando, por exemplo, e fe-
minizando outras tarefas relacionadas à paciência, atenção,
destreza manual e minúcia (Stancki, 2000). Mas, também por
uma desigualdade racial marcada pelo racismo estrutural e
pela exploração de classe na medida em que direitos traba-
lhistas e de proteção social são negados a estas mulheres,
além da persistência de formas de discriminação que têm por
base a questão racial.
Com relação ao fluxo espaço doméstico e espaço pú-
blico na relação com o mundo do trabalho, mulheres negras
vivenciaram um trânsito inverso ao de mulheres brancas.
Nos anos finais do período imperial, às vésperas da
abolição, mulheres negras ocupavam as ruas com seus ta-
buleiros de ganhadeiras, como quitandeiras ou quituteiras.
As atividades de ganho possibilitaram a estas mulheres a
reconstrução da atividade de troca realizada nas feiras afri-
216 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

canas, onde tanto a subsistência, quanto a acumulação era


possível, bem como as trocas de bens simbólicos e o estreita-
mento de relações sociais. O espaço da feira na cultura afri-
cana original (e aqui estamos nos referindo à cultura iorubá)
é o lugar de intercâmbio econômico e simbólico e o prota-
gonismo deste espaço é feminino (BERNARDO, 2003. p. 34).
No contexto da diáspora, mulheres negras ocuparam
as ruas, inicialmente com a tarefa de ganhar dinheiro para os
seus proprietários. Fizeram isso a duras penas, além de orga-
nizarem formas de economia e meios para a libertação de si
mesmas e de seus semelhantes, não só comprando suas alfor-
rias, mas permitindo a circulação de informações e a formação
de redes de suporte ao movimento abolicionista (idem, p. 39).
A atividade econômica desenvolvida por estas mulhe-
res produzia impactos importantes na economia das cidades,
incluindo as populosas, como São Paulo. No Rio de Janeiro, já
na República, uma das mulheres mais notáveis nesta ativida-
de foi Tia Ciata que, além de quituteira, era líder comunitá-
ria e religiosa e incentivava outras mulheres ao trabalho nas
ruas, capacitando, alugando bancas e roupas tradicionais.
A história das mulheres negras na diáspora segue em
notável descompasso com a história das mulheres brancas:
sequestradas de seus locais de origem e famílias; submeti-
das ao tráfico de escravos; ao estupro e diversas formas de
violência, elas vão, a duras penas, construindo formas de re-
sistência e organização no mundo do trabalho e na rua, es-
paço público paradigmático. O processo de industrialização
brasileira fará com que estas mulheres sejam recolhidas aos
espaços domésticos de outras mulheres brancas, que segui-
rão na reivindicação pela saída de suas casas, conquista do
mundo do trabalho e pelo reconhecimento de seus direitos
enquanto mulheres.
No Brasil, nos séculos XIX e XX os movimentos fe-
ministas nascem brancos e de classe média, contando com
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 217

o aparato necessário para a participação no espaço público,


mas deixando de lado as mulheres negras, para as quais fo-
ram delegados os cuidados domésticos e com crianças, em
detrimento de seus próprios filhos. Até os dias de hoje, as
discussões suscitadas por estes feminismos acerca da divisão
sexual do trabalho e da separação do espaço público, como
masculino, e do privado, como feminino, persistem e trazem
a necessidade de ampliar a noção de desigualdade para os
feminismos invisibilizados (e colonialistas), tornando a de-
pendência entre as mulheres um conteúdo consistente, mas
invisível no sistema protecionista, onde essas desigualdades
se consolidam (Mello, 2010).
Do ponto de vista da proteção social, são as dinâmicas
do mercado de trabalho, ou seja, das relações construídas no
bojo da sociedade capitalista e, portanto marcadas pelo lega-
do de discriminação e segregação, que ditam as políticas ou
justificam suas lacunas (Paixão, 2020, p.137). São estas lacu-
nas que garantem e viabilizam o trabalho doméstico remu-
nerado. Quanto mais pessoas com renda elevada, o suficien-
te para poder sustentar, mesmo que em condições precárias
outra pessoa (mulher, pobre e negra, em sua maioria) para a
execução do trabalho doméstico, sem sacrificar a renda fami-
liar de forma significativa, mas esta desvalorização do traba-
lho doméstico se reproduzirá e maior será a importância do
quesito classe e etnia para a manutenção/ expansão do tra-
balho doméstico remunerado, nestes moldes (Mello, 2010).
Um destaque importante nesta questão é a configura-
ção das mulheres multiplamente exploradas e subordinadas,
seja por serem mulheres, mas também por serem pobres e
negras. Nessa relação de patroas x empregadas se estabele-
ce um jogo de múltiplas identificações e diferenciações, que
também envolve relações afetivas e conflitivas, decorrentes
dessa afetividade, sendo importante destacar, também, que o
bom desempenho da empregada nas suas funções domésticas
218 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

remuneradas é considerado um bom desempenho da patroa,


pois ainda é dela as responsabilidades com o trabalho domés-
tico, se não na execução, no seu gerenciamento (Mello, 2010).
O trabalho doméstico (ora remunerado, mas principal-
mente remunerado) pode ser compreendido, assim, como uma
espécie de termômetro das estruturas de classe e de etnias.

Interseccionalidade

Certamente cabe um destaque especial quando se quer


falar do papel dos movimentos feministas nas conquistas das
mulheres. É imprescindível falar de feminismos e de sua im-
portância para as pautas das lutas das mulheres, como tam-
bém, diante de tanto retrocesso que insiste em reinventar a
domesticidade das mulheres. Destacam-se também as contri-
buições do feminismo negro, que traz para o campo de dis-
putas, entre outros aportes, o conceito de interseccionalidade.
Para iniciar as discussões sobre interseccionalidade se
faz necessário resgatar alguns pontos importantes, como a
questão do cuidado, configurado como trabalho doméstico,
destinado às mulheres e revisitar a divisão sexual do trabalho.
Segundo Passos (2020), este cuidado, chamado de “cui-
dado colonial”, está intimamente relacionado à necessidade
do ser social de suprir suas necessidades, que estão sempre
tendo novas necessidades agregadas através das relações
sociais e das transformações na natureza. Também importa
destacar que a satisfação dessas necessidades faz parte do
processo de produção da própria vida do ser e dos outros
seres. Neste sentido, torna-se extremamente necessária à
existência a cooperação entre os indivíduos. Assim, os in-
divíduos, que “não conseguem” suprir suas necessidades
primárias, estabelecem uma “dependência” de outros. O cui-
dado seria assim, a interdependência entre indivíduos, re-
lacionando “a necessidade de existir com a ação de suprir”
(Passos, 2020, p. 118).
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 219

Importante ressaltar, no entanto, que estas formas de


suprir o cuidado vão sofrendo transformações sociais à me-
dida que as forças de produção e reprodução social vão se
desenvolvendo e, dessa forma, ficando a cargo das mulheres,
na divisão sexual do trabalho, na sociedade capitalista, a via-
bilização do cuidado. Dessa forma, a destinação do cuidado,
configurado como trabalho doméstico, é determinada a par-
tir do gênero, mas não só. O debate sobre interseccionalidade
torna-se importante para trazer luz ao tema e mostrar que
não só está presente uma questão de gênero, mas que se en-
trecruzam outras múltiplas questões, como raça e classe.
É sobre essas múltiplas desigualdades que, por exemplo,
as mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico,
não só pela perspectiva da esfera reprodutiva, mas também
por uma perspectiva colonialista, pois nessa divisão sexual
do trabalho são as mulheres negras que ocupam os trabalhos
mais subalternos e de menor remuneração, permanecendo
na base da pirâmide (Passos, 2020).
O conceito de interseccionalidade surgiu no final da
década de 1980, dentro da arena das lutas feministas, mas
também como crítica a essas mesmas lutas. A formulação
desse conceito tem em sua base as dimensões de raça e gê-
nero em relação à violência contra as mulheres negras e o
silêncio sobre o fato de serem excluídas das lutas feminis-
tas que se solidificaram em favor das mulheres brancas, com
base nas suas experiências e vida.
Neste sentido, agregar todas as peculiaridades desse
“ser mulher” por uma só perspectiva invisibiliza cada uma
dessas peculiaridades. As mulheres estão sujeitas à discri-
minação de gênero, no entanto, cada uma delas tem relacio-
nada a essa discriminação outras peculiaridades, ou melhor,
identidades sociais, como por exemplo, classe e raça. Neste
sentido, é importante destacar que não há hierarquia entre
as opressões e o sofrimento das mulheres, mas perceber as
220 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

diferenças entre elas como componente importante de suas


identidades sociais (Akotirene, 2019). A intersecção entre es-
sas identidades sociais e o seu entrecruzamento criam vul-
nerabilidades exclusivas, que afetam, de forma despropor-
cional determinados grupos de mulheres (Crenshaw, 2002).
O pensamento interseccional tem como símbolo o discurso
de Sojourner Truth, marcado pela frase “E não sou eu uma
mulher?”, denunciando como as mulheres negras não eram
tratadas como as mulheres brancas (Akotirene, 2019).
Nesta breve análise, então, torna-se imprescindível per-
ceber os contornos específicos de cada identidade social in-
terseccionada, bem como o quanto o entrelaçamento destas
contribuem para a vulnerabilidade e invisibilidade de diferen-
tes grupos de mulheres. Deste modo, também torna-se fun-
damental traçar aqui este entrecruzamento como uma forma
de responder às questões que este trabalho se propõe a fazer.
Uma questão importante é analisar é a questão da
subinclusão, que se delineia para um conjunto específico
de mulheres, mas não é percebido para outro grupo. Neste
sentido, Akotirene faz menção a Sojourner Truth na denún-
cia da “matriz da opressão cisheterosexista” (AKOTIRENE,
2019, p. 18), da divisão sexual do trabalho em 1867, e traz a
tona o trabalho das mulheres negras nas casas das mulheres
brancas, que ao chegar em casa tinham seu dinheiro tomado
pelos maridos, ofendidas por não ter “a comida pronta” em
casa. Akotirene ainda destaca a experiência da mulher negra
como “burro de carga” da patroa, a discriminação geracional,
o quanto as mulheres mais velhas são consideradas velhas
para o mercado de trabalho e o modo como estão submetidas
a um processo de múltiplas subordinações.
A discriminação interseccional é difícil de ser percebi-
da dentro de um contexto de forças econômicas culturais e
sociais dentro de um bojo que submete mulheres a múltiplos
sistemas de subordinação, dessa forma a interseccionalida-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 221

de é a busca pela “captura das consequências estruturais e


dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subor-
dinação” às quais as mulheres estão submetidas, tratando,
“especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarca-
lismo e a opressão de classe e outros sistemas discriminató-
rios criam desigualdades básicas que estruturam as posições
relativas às mulheres” (CRENSHAW, 2002, p. 177). Assim, a
“interseccionalidade revela o que classe pode dizer de raça”
(AKOTIRENE, 2019, p. 30).
Ainda é importante destacar que a interseccionalidade
é o norteador da experiência do racismo que coexiste e co-
munga com outras estruturas (Akotirene, 2019).

O isolamento e a potencialização do espaço


privado para a mulher

Diante do peso secular de reafirmação do que é “ser


mulher” e reforço permanente do espaço privado como a ela
pertencente, não obstante todas as reflexões já realizadas,
cabe neste momento destacar, para fins de breve análise so-
bre os aspectos relacionados ao isolamento e potencialização
do espaço privado para a mulher, que o trabalho doméstico
não é uma livre opção. Antes, chamado de amor, é este que
se espera da sua trabalhadora. Esta afetividade é uma das
responsáveis por sua invisibilidade, uma construção históri-
ca acentuada pelo capitalismo (Mello, 2010).
Este fato chama atenção para uma questão, dentre ou-
tras: o lar como representação de isolamento para as mulhe-
res, quando realizado o trabalho doméstico não remunerado
de forma exclusiva (Mello, 2010). Esta é uma questão comple-
xa, pois nela estão intrinsecamente vinculadas as relações fa-
miliares, sobrepondo as dimensões pessoal e laboral (Mello,
2011). O isolamento, neste sentido, pode ter repercussões
físicas, psicológicas, organizativas e políticas (Mello, 2011).
222 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Nos aspectos físicos é necessário considerar que o


trabalho doméstico se desenvolve em unidades privadas, de
forma isolada e solitária, requerendo uma disponibilidade
permanente. Por vezes, um mecanismo de “fuga” deste isola-
mento é a execução de trabalhos domésticos específicos fora
da unidade familiar, como fazer compras (Mello, 2011).
Outro aspecto desse isolamento é o psicológico, mar-
cado pela doação contínua e atendimento permanente das
necessidades físicas e efetivas, marcado pela renúncia em
prol de sua família (Mello, 2011).
Acrescenta-se também como dificuldade, o aspecto
organizativo, uma vez que no trabalho de cunho doméstico,
realizado em unidades privadas, a dona-de-casa tende a ter
mais dificuldade de se organizar como categoria trabalhado-
ra que os demais trabalhadores, agregando-se o fato de seu
trabalho ser permanente e não ter tempo para se dedicar às
suas próprias atividades (Mello, 2011).
Por último, e não menos importante, outro aspecto é
o político, considerando as relações políticas como relações
de poder e a mulher como uma prestadora de trabalhos do-
mésticos não remunerados, excluída dessa relação de poder
(Mello, 2011).
As mulheres que não são exclusivamente donas de
casa, seja por delegarem seu trabalho doméstico a outras ou
por conciliarem este com seu trabalho remunerado, conse-
guem circular entre os espaços públicos e privados de forma
que um espaço alivia a tensão do outro, se tornando livres
desse isolamento destinado a quem realiza, com exclusivida-
de, o trabalho doméstico.
O isolamento doméstico é impactado pelo isolamento
imposto pela ameaça global de uma doença nova e agressi-
va. O isolamento em decorrência da COVID-19 atingiu di-
retamente os mais frágeis e pobres. E, desta forma, atingiu
as mulheres em, pelo menos, três maneiras diferentes, que
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 223

demandam discutir o mundo do trabalho no século XXI.


Este período histórico é marcado por uma derrubada nas
barreiras do processo do trabalho e da produção de seu va-
lor, seja através da informalização ou terceirização, ou do
afrouxamento de vínculos e direitos, dispensando o capital
da necessidade de possuir local fixo para consumir a força de
trabalho, sem necessidade de reunir essa força de trabalho
em uma única unidade de produção. Portanto, a marca dos
vinte anos iniciais do século XXI será a precarização agres-
siva e o retrocesso dos direitos historicamente conquistados
no século que o antecedeu.
Esta desterritorialidade da produção ganha mais força
com a informatização, conectando os espaços privados às ati-
vidades próprias do espaço público, diária e continuamente.
Fato que vai reconfigurando o trabalho não só nessa desterri-
torialização, mas também na acarreta uma desmaterialização
da produção, fazendo com que as empresas deduzam o peso
das operações e dos componentes materiais no processo de
acumulação, como no caso do teletrabalho (Teixeira, 2009).
Segundo a OIT (1995) teletrabalho é todo o trabalho
realizado em lugar distante do escritório central ou do centro
de produção, permitindo a separação física e implicando o
uso de novas tecnologias facilitadoras do desenvolvimento
do trabalho à distância (Gisele, 2016). Este é um dos pontos
centrais desta discussão do isolamento em decorrência da
pandemia, pois foi o teletrabalho que possibilitou diversas
atividades econômicas de manterem suas atividades através
de seus trabalhadores desenvolvendo seu trabalho de suas
casas e dentre estes, muitas mulheres.
Neste ponto, de acordo com nossas vivências e aná-
lises, se configuram dois grupos de mulheres: as que estão
desenvolvendo seu trabalho durante o isolamento, através
do teletrabalho, que são contratantes de outras mulheres,
por terem os recursos necessários para esta contratação, e as
224 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

que não são contratadoras de mulheres, por não dispor dos


mesmos meios.
Estas representam um recorte privilegiado das que ti-
veram o direito ao isolamento como proteção à COVID-19,
devido ao status ou especificidade de suas atividades profis-
sionais, e que, ainda assim, são atingidas pelo teletrabalho de
formas específicas.
Um dos impactos marcantes é a tensão de ter, no mes-
mo ambiente, no espaço privado, os trabalhos pertinentes
ao espaço público e privado. Nesta relação tensa entre os
trabalhos profissional e doméstico há um aumento do fluxo
de trabalho profissional, por não ser possível se desligar do
ambiente de trabalho (Santos, 2016) e pelo fato dos demais
membros da família estarem também em isolamento, deman-
dando um fluxo contínuo e mais intenso de cuidado. É neste
impacto que estes dois grupos se diferenciam.
As mulheres que não contratam outras mulheres se
deparam com seu espaço privado potencializado pelas obri-
gações antes delineadas com exclusividade ao seu espaço pú-
blico, não tendo mais a “rota de fuga” dessas tensões através
da circulação por estes espaços e as diferenciações dos pa-
péis desempenhados em um e outro e a redução do contato
com os demais colegas (ou sua virtualização) (Santos, 2016).
A falta de interação com os colegas de trabalho, além de uma
agressiva alienação no processo de trabalho pode, a médio
prazo, ter impactos consideráveis na organização dos traba-
lhadores dos diversos setores que vêm se organizando em
torno do trabalho remoto.
No contexto da pandemia de COVID-19 especifica-
mente, as mulheres que contratam outras mulheres para
dar conta do trabalho doméstico se deparam com uma gra-
ve questão ética: exercer seu direito ao isolamento, e, por-
tanto, à proteção sem impactos significativos no exercício
dos papéis nos dois espaços (mesmo que no espaço priva-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 225

do seu papel seja o de gerenciar as atividades delegadas


à outra), mas implicará no não direito de isolamento - e,
portanto, na proteção - das mulheres contratadas para o
serviço doméstico.
Isto nos leva ao terceiro grupo de mulheres: as mulhe-
res contratadas por mulheres. Estas mulheres têm, a priori,
no espaço público e privado “o mesmo trabalho”, no entanto,
visto que a dimensão do seu trabalho doméstico remunerado
não pode ser exercida através do teletrabalho e dele depende
sua subsistência, se deparam com o não direito ao isolamen-
to o que, em último caso, impacta também no isolamento
das mulheres em trabalho remoto, já que ao se exporem em
transportes públicos durante o deslocamento casa-traba-
lho-casa, podem não só se contaminarem, mas contaminar
as pessoas no local de trabalho, além da própria família e da
vizinhança. Além disso, agregando ao seu trabalho (repe-
titivo no espaço público e privado) o medo da exposição à
COVID-19, acrescentando um importante elemento de es-
tresse num período em que o medo e a insegurança têm
potencializado o adoecimento mental. Esta questão poten-
cializa o espaço privado não só com as atividades repeti-
tivas desenvolvidas no espaço público (espaço privado de
outra mulher) mediante o deslocamento do trabalho para
o espaço doméstico, mas agrega a ele os excessos de cuida-
dos oriundos da pandemia e a preocupação e tensão com
o risco de contágio não só de si mesma, mas de toda a sua
família e comunidade. A questão aqui é o impacto profundo
da exploração do trabalho em diferentes níveis: trabalha-
dores que usufruem do direito remunerado ao isolamento
estão se organizando para a realização de trabalho remoto
em suas casas, independente de instalações que respeitem
condições ergonômicas, e isto pode impactar futuramente a
sua saúde, pois além das questões referentes à saúde men-
tal, ainda não se conhece os impactos desta atividade para
as doenças osteomusculares, comuns aos trabalhadores que
utilizam determinadas tecnologias.
Destaca-se na realidade do teletrabalho e, neste caso,
no contexto de isolamento, os aspectos não só de gênero,
mas, especialmente, de classe e raça para pensarmos a pro-
funda desigualdade que perpassa a vida dos trabalhadores
em tempos de pandemia.
Estes três grupos de mulheres têm em si múltiplos mo-
vimentos de distanciamento e aproximação, de identificação
e diferenciação, como já pode ser visto nas reflexões sobre
interseccionalidade.
Considerando as aproximações, todas essas mulheres
sofrem subordinação de gênero e continuam com o espaço
privado a elas conectado. Nos distanciamentos, a ameniza-
ção dos impactos desta subordinação repercute em diferen-
tes graus, se forem considerados os aspectos de classe e raça.
Logo, quanto mais as interseções de desigualdade,
mais são as repercussões deste isolamento e maior será a
potencialização do espaço privado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bem longe de encerrar qualquer discussão sobre o


tema, esta breve análise sobre a divisão sexual do trabalho e
a mulher em isolamento traz, aos dias atuais, questões muito
importantes.
Até os dias atuais a divisão sexual do trabalho é senti-
da no cotidiano das mulheres que, mesmo tendo se inserido
no mercado de trabalho, o trabalho doméstico não remune-
rado continuou sob sua responsabilidade e, mesmo quando
consegue delegá-lo à outra mulher, o êxito deste trabalho
continua sendo de sua responsabilidade.
Da mesma forma, a questão do trabalho doméstico,
que ganhando visibilidade como trabalho, quando delegado
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 227

por mulheres que podem pagar por sua execução sem grande
impacto na renda familiar precisa ser olhada por uma pers-
pectiva histórico-cultural colonialista, pois traz em si aspec-
tos de gênero, raça e de classe.
Também se tratou do papel dos movimentos feminis-
tas na conquista do espaço público e das suas marcações de
classe na conquista de direitos, silenciando questionamentos
importantes das mulheres negras.
Logo, em decorrência desta questão, também se desta-
cou a importância da interseccionalidade para realizar uma
análise deste tema e que esta se trata do entrecruzamento
das identidades sociais das mulheres, não só no que tange ao
gênero, mas, especificamente, à raça e classe.
Em relação ao isolamento, oriundo da pandemia, esta
breve análise fez refletir que este é direito apenas de algumas
mulheres, e que este direito passa pela perspectiva da classe,
a partir do trabalho remunerado realizável pelo teletrabalho
e, ainda assim, das que tem direito a este isolamento, umas
o fazem de forma sobrecarregada, conciliando o trabalho
remunerado pelo teletrabalho e o trabalho doméstico não
remunerado, agora no mesmo espaço privado, enquanto ou-
tras o delegam às mulheres negras e pobres, sem direito ao
isolamento e com sobrecarga de trabalho, com o medo de
contágio por COVID-19 agregado, para que as mulheres que
as contrataram possam se dedicar apenas ao teletrabalho.
Fato é que a pandemia repercutiu no incremento de
trabalho remoto para diversos trabalhadores impondo desa-
fios e novas questões, os impactos históricos desta condição
ainda estão por serem avaliados, mas já são percebidos os
efeitos deletérios na proteção social e no aprofundamento da
desigualdade, não só no que diz respeito à classe e ao gêne-
ro, mas expõe também a desigualdade relacionada à questão
racial. Neste sentido é importante pensar a realidade a partir
do conceito de interseccionalidade. A pressão para que tra-
228 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

balhadores se exponham nas ruas, pelo deslocamento entre


a casa e o trabalho têm se constituído principalmente pela
falta de proteção social pública, com a inexistência ou a in-
cipiência de ações de distribuição de renda que permitam
que as famílias sobrevivam dignamente enquanto o Estado
se organiza para solucionar a ameaça fatal do vírus.

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Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 233

APONTAMENTOS FINAIS

O
livro apresenta reflexões sobre os desafios dos direi-
tos humanos no cenário contemporâneo, destacan-
do os processos de violação de direitos e de violên-
cia que atravessam as temáticas do campo sociojurídico, a
questão racial e de gênero, a violência contra mulheres e a
população LGBTI+, os desafios do trabalho, geração de renda
e protagonismo feminino durante o período da pandemia de
COVID-19.
Os capítulos evidenciam diversas formas de precon-
ceito e violência - caracterizadas pelo machismo, homofobia,
patriarcalismo, racismo estrutural e diversos preconceitos
produzidos e reproduzidos no âmbito da sociedade capitalis-
ta, - que constituem entraves ao reconhecimento e efetiva-
ção dos direitos humanos.
O cenário contemporâneo - caracterizado pelo conser-
vadorismo, recrudescimento do aparato punitivo do Estado e
reducionismo das políticas sociais - possui diversos desafios
apara a consolidação dos direitos humanos. Como efetivar
direitos num contexto de intensificação das desigualdades
sociais, da pobreza e da violência? 
234 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

Outro desafio na perspectiva da garantia de direitos


humanos é ultrapassar o individualismo e o pragmatismo, no
sentido de um sujeito reconhecer o outro como detentor dos
mesmos direitos humanos e sociais. Cada indivíduo constitui
um sujeito histórico e social, inserido na luta pela efetivação
de todos os direitos humanos e sociais, para todas as pessoas.
Também é necessário romper com a perspectiva da
presentificação e consumismo - características intensificadas
pelo neoliberalismo -, ultrapassando a visão do ser huma-
no como mera força de trabalho ou mercado de consumo.
Os direitos humanos e a cidadania existem para consolidar
as bases humanas da sociedade, buscando ultrapassar e en-
frentar as diversas formas de preconceito, violações, desres-
peito e violências aos sujeitos detentores desses direitos.
A luta pelos direitos humanos consiste num processo
contínuo, perpassado por valores e princípios éticos e pelo
compromisso político com o exercício da cidadania. Pensar
os direitos humanos no cenário contemporâneo é desvelar as
diversas formas de violação e, principalmente, intensificar os
espaços de resistência e de lutas políticas.
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 235

QUEM SOMOS

ANA BEATRIZ QUIROGA –  Graduada em Literatura.


Membro da equipe do Núcleo de Direitos Humanos e Cida-
dania – NUDHESC-UFF. Membro do Programa UFF Mulher,
membro da Diretoria do Grupo Diversidade Niterói.

IDA CRISTINA REBELLO MOTTA – Assistente Social.


Doutoranda e Mestre em Política Social pela Universidade
Federal Fluminense - UFF. Atua desde 1994 no Departamento
Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE e atualmente
compõe a equipe técnica da Divisão de Estudos, Pesquisas
e Estágios da Escola de Gestão Socioeducativa Professor
Paulo Freire.

JOICE DA SILVA BRUM – Assistente Social (UFF). Es-


pecialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos
(FIOCRUZ); Mestre e Doutoranda em Política Social pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro no Nú-
cleo de Pesquisas sobre Direitos Humanos e Cidadania
(NUDHESC-UFF) e do Laboratório de Iniciação Acadêmica
em Segurança Pública (LABIAC-UFF). Coordenadora do cur-
236 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

so de Serviço Social e docente do Centro Universitário Gama


e Souza. Bolsista da CAPES.

JOSÉLIA REIS – Doutora em Política Social/UFF; mestre


em Política Social e especialista em Gênero e Saúde/UFF;
pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Prote-
ção Social – NUPHPS, pesquisadora no Núcleo de Pesquisas
sobre Direitos Humanos e Cidadania – NUDHESC/UFF; vice
coordenadora do Grupo de Estudos sobre Alternativas Pe-
nais e Políticas de Desencarceramento – GEAPD/UFF e uma
das idealizadoras do Encontro Mulheres de Axé e Univer-
sidade, evento itinerante interinstitucional; trabalha como
assistente social da Justiça Federal do Rio de Janeiro desde
2002. Pesquisa a judicialização da política e das relações so-
ciais; Instrumentalidade do Serviço Social; Religiosidade e
Exercício Profissional, Direitos Humanos e Poder Judiciário
Federal. Integrou a gestão do Conselho Regional de Serviço
Social da 7ª Região (Rio de Janeiro) no período 2011-2014; é
coautora do livro “Poder Judiciário e Serviço Social” (2018).

KARLA AMARAL – Psicóloga, mestranda no Programa de


Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade
Federal Fluminense. Psicóloga da Prefeitura Municipal de
São Gonçalo/RJ. Bolsista CAPES.

LOBELIA DA SILVA FACEIRA - Assistente social, pro-


fessora da Escola de Serviço Social e do programa de pós-
graduação em Memória Social da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda do Programa de
Estudos Pós-graduados em Políticas Sociais.

MARCELO RICARDO PRATA – Assistente social pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005).
Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Ca-
Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento 237

tólica do Rio de Janeiro (2009). Doutorando no Programa de


Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade
Federal Fluminense.

NIVIA VALENÇA BARROS – Graduada em Serviço So-


cial, Mestra em Educação, Doutora em Psicologia, Pós-Dou-
tora em Ciências Sociais. Professora Associada vinculada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da
Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo
de Direitos Humanos e Cidadania – UFF. Bolsista Produtivi-
dade em Pesquisa CNPQ.

ROSILENE PIMENTEL – Assistente Social, mestranda no


Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social/UFF.
Tem experiência na área de Serviço Social, gestão de serviços
de proteção social, com ênfase no trabalho com mulheres em
situação de violência doméstica e familiar de gênero e na
promoção de ações de enfrentamento da violência contra as
mulheres. Atualmente, coordena um Serviço de Acolhimen-
to para Mulheres na cidade de São Paulo.

SANDRA MONICA DA SILVA SCHWARZSTEIN – As-


sistente Social (UFPE); Mestra em Planejamento para o De-
senvolvimento (NAEA/UFPA) e Doutora em Política Social
(UFF). Membra do Núcleo de Pesquisa sobre Direitos Huma-
nos, Sociais e Cidadania – NUDHESC/UFF.

SHEILA BRUM – Mestre Profissional em Psicanálise e Po-


líticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro- UERJ. Pós-Graduada em Psicologia Jurídica Pela Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. Pesquisadora do
Grupo de Estudos sobre Alternativas Penais e Políticas de
Desencarceramento – GEAPD/UFF. Pesquisadora do Núcleo
de Pesquisas sobre Direitos Humanos e Cidadania – NU-
238 Direitos Humanos, Interseccionalidade e Isolamento

DHESC/UFF. Psicanalista em formação pelo Laço Analítico-


Sede Rio de Janeiro. Psicóloga da Justiça Federal do Rio de
Janeiro desde 2004.

VANIA MORALES SIERRA – Socióloga. Mestra e Douto-


ra em Sociologia. Professora Associada da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Coordenadora o Programa
sobre Infância e Juventude (PIARJ) e o Núcleo de Estudo em
Gestão e Informação (NEGI) da UERJ.

VÂNIA QUINTÃO - Graduação em Serviço Social (UFF


- 2000), mestranda do Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Política Social da Universidade Federal Fluminense
– UFF. É assistente social do Núcleo de Apoio Psicopeda-
gógico da Universidade de Vassouras no Campus Maricá e
diretora de Consultoria de Projetos na Meta Assessoria em
Desenvolvimento Humano.

WILMA PESSÔA – Socióloga. Mestra em Sociologia, dou-


toranda em Política Social -UFF. Professora do Departamen-
to de Sociologia da Universidade Federal Fluminense, mem-
bro da equipe do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania
– UFF, Membro do Programa UFF Mulher, Pesquisadora do
Núcleo de Pesquisas em Identidade, Movimentos Sociais e
Trabalho da UFF.

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