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João Luiz Vieira Doutor em Estudos Cinematográficos pela New York University.

Crítico, pesquisador e professor do Departa- REVOLUÇÕES


mento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.

Vanguarda revolucionária: Este ensaio é resultado de pesquisas e anotações de aula dos cursos Cinema soviético, O cinema de Eisenstein e Vertov e a avant-garde
realizados durante o meu doutorado na New York University, oferecidos pela professora Annette Michelson, e também de muitas conversas
informais com o professor Jay Leyda. A eles – Jay Leyda, in memoriam, pelo rigor dos debates, inspirada interlocução e pela amizade,
17

Eisenstein, Vertov dedico este texto.

e o construtivismo cinematográfico

O termo vanguarda, no âmbito do cinema,


refere-se diretamente à tradição de seu uso
a partir da avant-garde francesa, conforme teste-
da causa e efeito. Buscava-se o efeito naturalista
em consonância com as tradições da forma linear
e do espaço ilusionista.
pensada mais como uma maneira de romper com
os limites da própria pintura, encontrará resso-
nância em artistas tão singulares e diferentes quan-
In Mount, Christopher. Stenberg brothers : constructing a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997

munhamos já no final da primeira década do sé- to, por exemplo, Francis Picabia, Marcel Du-
culo XX e, com toda a força, na década seguinte. Por outro lado, enquanto essa forma hege- champ, Man Ray, Moholy-Nagy e Salvador Dali.
De forma mais abrangente, a avant-garde refere- mônica se configurava como regime narrativo do-
se ao conjunto de movimentos artísticos de radi- minante, começavam a surgir reações ligadas a Ainda na década de 1910, período-chave para
cal renovação e profunda ruptura com o passado, outras manifestações artísticas como as artes plás- a configuração dos contornos gerais do cinema
movimentos esses iniciados ainda na primeira me- ticas, a literatura, a poesia, a música e a arquite- dominante clássico e logo após o período de for-
tade do século XIX, que, conforme expõe Linda tura, que colocavam em xeque esse modo de re- mação na produtora American Biograph, levada a
Nochlin, vão equacionar arte revolucionária com presentação. É Fernand Léger, em Funções da pin- cabo por David Wark Griffith entre 1908 e 1913,
uma política também revolucionária depois dos tura, quem parece ter esboçado uma definição surgem duas reações alternativas para o paradig-
eventos de 1848 na França.1 No caso do cinema, bastante particular daquilo que veio a se com- ma hegemônico. Em 1916, enquanto Hollywood
entretanto, esse impulso vanguardista ganhou con- preender como cinema de vanguarda. Diz ele que estreava Intolerância, seu mais ambicioso projeto
tornos diferentes, visto que a mobilização não só cinematográfico até então, na Europa era lançado
era voltada para o então presente da forma cine- o manifesto do cinema futurista, ligado à literatu-
matográfica como, surpreendentemente, para seu “[...] a história dos filmes de vanguarda é muito ra e à poesia, enfatizando a vertigem da vida ur-
próprio futuro. Mal soavam as trombetas do futu- simples. É uma reação direta contra os filmes de roteiro bana moderna ao consagrar a máquina como quin-
rismo italiano, já se configurava uma forma espe- e o estrelismo. É a fantasia e o jogo indo de encontro à tessência do futuro. Muito mais retórico do que
cífica de representação de imagens em movimen- ordem comercial dos outros. E isto não é tudo: é a efetivamente prático – só um filme chegou a ser
to. Tal forma, que vinha se esboçando desde o revanche dos pintores e dos poetas. Numa arte como feito dentro desses parâmetros, Vita futurista, de
limiar do registro das imagens em movimento, esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender Arnaldo Ginna, nesse mesmo ano de 1916 –, o
talvez pela própria natureza mimética da imagem e provar que as artes da imaginação, relegadas a meros manifesto promovia o ritmo e a rapidez dos novos
fotográfica e seu poder de copiar “fielmente” a acessórios, poderiam, sozinhas, por seus próprios meios, tempos, antecipando, de uma certa maneira, o in-
realidade, foi ganhando um contorno que, aliado construir filmes sem roteiro, considerando a imagem vestimento efetuado na montagem pelos soviéticos
à herança de formas narrativas anteriores – em móvel como personagem principal”.2 durante os primeiros anos da década seguinte.
especial o teatro e o romance do século XIX –,
acabou por definir um rumo mais ou menos úni- Na Alemanha, agora vinculado mais às artes
Cartaz do filme O homem da câmera co para o cinema. Identificado com o cinema nar- Léger, por ser fundamentalmente um artista plásticas e à arquitetura, o expressionismo tam-
(1929), criação dos irmãos Vladimir rativo, clássico, cuja matriz é Hollywood, essa for- plástico, trouxe uma interpretação bastante pessoal bém reagia contra a ditadura da chamada “voca-
e Georgi Stenberg
ma dominante, esse modo institucional de repre- para uma forma de expressão do cinema da avant- ção natural” do cinema para o naturalismo, ra-
sentação era calcado na orientação psicológica dos garde, ou seja, aquela mais ligada diretamente às dicalizando a realidade pró-fílmica como forma
personagens, centrados, por sua vez, na busca de funções pictóricas da imagem em movimento e suas de compensar o determinismo mimético foto-
uma continuidade narrativa encontrada na lógica qualidades gráfico-plásticas. A formulação de Léger, gráfico presente no aparato ótico de registro. Já

1 NOCHLIN, Linda. The invention of the avant-garde: France, 1830-80. In: HESS, Thomas e ASHBERRY, John. Avant-garde 2 LÉGER, Fernand. Funções da pintura . São Paulo: Estúdio Nobel, 1990.
art . New York: MacMillan, 1968. p. 3-24.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES

que não se poderia, àquela altura, alterar a con- Essa busca e necessidade de experimentação, de uma vanguarda artística, cineastas como Ser- mente animada pelas condições sociais ditadas pelo 19
figuração ótica que produzia um olhar naturalis- de procurar alternativas para a já então inevitá- guei Eisenstein, Dziga Vertov, Ester Schub, en- pensamento marxista revolucionário. Em franca
ta, que se alterasse, então, tudo o que existia à vel consagração de um modo único de se fazer e tre outros, desempenharam seus papéis de for- oposição à noção de arte como mera expressão iso-
frente das câmeras. Cenários, iluminação, ves- consumir cinema, encontraram seu campo mais ma análoga à vanguarda política de seu país. Cada lada, romântica, individual, natural e emocional –
tuário, interpretação e movimentação de atores fértil na União Soviética nos primeiros anos da um, dentro de perspectivas particulares, desen- indissoluvelmente ligada à teologia, à metafísica e
são investidos de uma radical estilização, crian- Revolução de Outubro. É Alexei Gan, teórico volveu uma prática cinematográfica de acordo com ao misticismo –, a polêmica diatribe de Gan, con-
do-se um visual único, que, anos mais tarde, en- influente desses primeiros tempos, quem explica: as novas necessidades revolucionárias exigidas de forme sua definição, propunha a expressão comu-
tre outros frutos, serviu de inspiração para os fotó- qualquer trabalhador seriamente engajado na cons- nista das construções materiais, do trabalho artís-
grafos e diretores do film noir norte-americano. trução do então novo estado socialista. tico organizado, pertinente à nova era industrial.
“Não podemos nos esquecer de que nossa socieda-
Com o início da década de 1920, outras pos- de atual é de transição, do capitalismo para o comunis- Aqui, a idéia de construção deixa de ser ape-
sibilidades foram sucessivamente experimentadas, mo, e que o construtivismo não pode ser dissociado da nas um mero recurso retórico para se transfor- “A arte está morta... Arte e religião são atividades
sobretudo na França. Analogias com a música, a base, isto é, da realidade econômica de nossa atual soci- mar num projeto maior, incluindo o movimento escapistas, portanto perigosas... Vamos acabar com a nossa
poesia e o sonho foram articuladas dentro de prin- edade; os construtivistas consideram sua única escola a estético que moldou a nova cultura soviética du- atividade especulativa (pintar quadros) e assumir as ba-
cípios mais ou menos comuns. O surrealismo, por realidade prática do sistema soviético, no qual são de- rante os anos 20. As diversas artes, tais como a ses saudáveis da arte – cor, linha, formas e materiais –
exemplo, ao procurar paralelos entre a visão fíl- senvolvidos experimentos sem fim, de forma incansá- pintura, escultura, arquitetura, teatro, desenho no campo da realidade, da construção prática.”4
mica e os mecanismos do inconsciente, capazes vel e persistente”. 3 industrial e cinema, possuíam um idioma comum
de produzir condensações e deslocamentos, con- que refletia a necessidade de reconstrução do todo
tribuiu para subverter a noção tradicional do tem- do organismo social, estabelecendo um forte Dois anos antes do manifesto de Gan, Alexan-
po e espaço e da linearidade entre causa e efeito Esse cinema, em sua prática – e como qual- equilíbrio entre arte e sociedade, que fez dos anos der Rodchenko e sua mulher, a pintora e artista
defendida pelo cinema dominante. É essa verten- quer outro –, só pode ser mais bem compreen- 20 na União Soviética um momento privilegiado gráfica Varvara Stepanova, publicaram o progra-
te, por exemplo, que vai influenciar a primeira dido quando colocado dentro do contexto geral da história da cultura do século XX. ma do grupo produtivista, uma outra instância do
geração de realizadores norte-americanos que des- histórico, sociopolítico e econômico do qual se impulso construtivista em que a influência do pen-
lancharam o New American Cinema no início da originou. Cineastas soviéticos, conforme sabe- Com o objetivo de entender melhor os aspec- samento marxista – em especial da primeira parte
década de 1940, nos trabalhos pioneiros de Maya mos, atuaram num momento histórico decisivo tos mais salientes da prática cinematográfica sovi- de A ideologia alemã (1845) – é seminal. Com os
Deren, Kenneth Anger e Jonas Mekas. para o século XX. Portanto, enquanto membros ética enquanto articulação do projeto geral cons- produtivistas, formula-se um postulado que afir-
trutivista, é necessário ter-se em mente que, em ma o conhecimento e a percepção das tentativas
consonância com outros movimentos de vanguar- experimentais dos soviéticos como resultado de
da que o precederam, as noções prévias de arte um transplante das atividades experimentais do
in art : 1863-1922. New York: Harry Abrams, 1971
In Gray, Camilla, The russian experiment

foram rejeitadas ao se estabelecerem novos papéis abstrato (transcendental) para o real.5 A tarefa exi-
para o artista e para o objeto de arte. A articulação gida por aquele novo posicionamento implicava,
daquele projeto cultural originava-se dentro dos no- entre outras coisas, a participação real da produ-
vos parâmetros socioeconômicos mais amplos pos- ção intelectual como elemento importante na cons-
sibilitados pela Revolução de Outubro, que, sob trução da nova cultura comunista. Isto significou,
condições muito especiais, permitiram a conver- principalmente, um contato direto com todos os
gência de objetivos práticos e criativos. Em mani- centros produtivos e órgãos principais do meca-
festo publicado em 1922, intitulado Construtivis- nismo soviético unificado, que tornou possível,
mo, Alexei Gan já declarava guerra à arte. Tal ati- na prática, novas formas de vivência e experiên-
tude não era de forma alguma inédita, especial- cia. A ordem, então, era sair para as ruas, para as
mente durante a segunda metade da década anteri- fábricas, únicos locais onde os artistas poderiam
or, como já vimos, rica numa profusão de mani- reformular os conceitos materialistas e realizá-los
festos propondo novos objetivos para a arte, de na vida prática, sintetizando as idéias de Marx
Cenografia desenhada por Varvara Stepanova para a peça A morte de Tarelkin ,
produção de Meyerhold, Moscou, 1922 acordo com agendas variadas e muito específicas. referentes aos cientistas, ou seja, os artistas, nas
Nas palavras de Gan, porém, o ataque ao conceito mais variadas formas, têm interpretado o mundo,
de arte ganhava uma perspectiva diferente, clara- mas sua tarefa é transformá-lo.

3 GAN, Alexei. Constructivism. In: BANN, Stephen (ed.). The tradition of constructivism . New York: Viking, 1974, p. 40. 4 Idem. 5 RODCHENKO, Alexei e STEPANOVA, Varvara. Program of the productivist group. In: The tradition of constructivism, p. 19.
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In Gray, Camilla, op. cit.


A ênfase na produção e na produtividade en- pografia. Kasimir Malevich, além de ser o 21
contrava-se profundamente enraizada na determi- mestre do suprematismo, desenhava peças de
nação geral que caracteriza a primeira década da porcelana enquanto os irmãos Stenberg logo
então nova sociedade soviética. A construção do se especializaram no design de cartazes para
Bule de chá desenhado por Kasimir
Malevich em 1920 para a Cerâmica do
socialismo passava pela reconstrução da econo- filmes. Foi o trabalho conjunto desse grupo
Estado, Leningrado mia e da indústria, profundamente abaladas des- de artistas que lançou os fundamentos do mo-
de a I Guerra Mundial. De uma maneira geral, derno desenho industrial e gráfico, provocan-

In Gray, Camilla, op. cit.


essa tarefa implicava um competente planejamen- do um impacto forte e decisivo no desenvolvi-
to e administração da modernização econômica, mento de uma tipografia européia nos anos de
através de um processo de industrialização em que 1920, com ressonâncias até os nossos dias.
as máquinas desempenhariam um papel fundamen- Grandes áreas chapadas de cor sob formas ge-
tal. O país precisava desesperadamente satisfazer ométricas básicas, a imagem agressiva e fron-
três condições básicas que levariam à recupera- tal das fotomontagens, a dinâmica das compo-
ção econômica, a saber: a necessidade de energia sições em diagonal e a utilização de letras va-
elétrica – cujo projeto principal seria a constru- zadas em cartazes, capas de livros e revistas
ção da hidrelétrica de Dnieprostroi; a construção Os grandiosos cenários construtivistas tornaram-se marcas visuais características de
de estradas de ferro – o projeto Turksib seria a concebidos por Alexandra Exter e Isaac toda uma época. 7 Tanto o teatro quanto prin-
Rabinovich para o filme Aelita (1924)
meta principal, pois possibilitaria levar cereais do cipalmente o cinema, em razão do seu caráter
In Gray, Camilla, op. cit.

norte para as regiões algodoeiras da Ásia Central; essencial de produto voltado para as massas,
e a mecanização da agricultura com a construção formaram os outros canais por meio dos quais
da fábrica de tratores de Stalingrado. Foi emoldu- Por meio da liderança iluminada de Anatoli a visão construtivista do artista ordenando o
rado dentro desse panorama geral que se desen- Lunacharsky, Comissário do Povo para a Edu- mundo tornou-se realidade. Foi através do te-
volveu o trabalho cultural, e artistas, escritores e cação, no período compreendido entre 1918 e atro que Eisenstein, então trabalhando como
cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigi- 1929, o novo sistema político e social continu- cenógrafo para Meyerhold, teve um contato
ram suas atenções e energias para a construção da amente confrontava artistas com esse novo pa- mais próximo com outros artistas, como Ves-
então nova sociedade. pel para a arte. As ruas são os nossos museus , nin, Popova e Stepanova, todos mergulhados
arte dentro da vida e arte para as massas torna- na busca dos meios mais radicais de expres-
Na medida em que qualquer processo de de- ram-se os slogans principais adotados por artis- são criativa. Uma instância que hoje restaura
senvolvimento econômico e social necessita de tas que trabalharam materiais diferentes tirados um bom exemplo ilustrativo do visual de um
graus extremos de organização e planejamento, de setores diversos da produção industrial, tais projeto construtivista de cenografia pode ser
o mesmo acontece com as formas culturais, e o como ferro, vidro, metal ou madeira. Voltan- observada no filme Aelita (1924), de Yakov
conceito de arte seria, rapidamente, amalgama- do-se para outros domínios da vida em que a Protazanov, em que as seqüências imaginárias
do às idéias de produção e utilitarismo. O papel síntese entre arte e tecnologia tornava-se mais no planeta Marte foram acentuadas pelo uso
do artista ganha novos contornos com a idéia de palpável, artistas como Varvara Stepanova e Liu- de um palco gigantesco, cenários que privile-
um “artista-engenheiro”, sublinhando a nova sín- bov Popova preocupavam-se com aspectos prá- giavam diagonais e um vestuário futurista cri-
tese entre arte e tecnologia. A preocupação com ticos e industriais como, na área têxtil, a es- ados por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich.
formas e materiais – exemplos claros no trabalho tamparia de tecidos, enquanto outros, como Dziga Vertov também trabalhou com Rod-
de Vladimir Tatlin e de Rodchenko – ligava-se Rodchenko ou os irmãos Vladimir e Georgii chenko na série de cinejornais Kino-Pravda
diretamente à indústria e os artistas tornavam-se Stenberg, criavam cartazes de propaganda e tra- (1922-25). Ambos – Eiseinsten, mais diretamen-
Capa de Construtivista , revista internacio- técnicos, aprendendo a usar ferramentas e mate- balhavam com fotografia, fotomontagem e ti- te, e Vertov – foram, por sua vez, influenciados
nal de artes, desenhada por El Lissitzky e
editada, em Berlim, em 1922
riais da produção moderna com o objetivo de
canalizar todas as energias em benefício do pro- 6 Afirmação atribuída a Gan, segundo o crítico Standish Lawder em Eisenstein and constructivism. In: The essential cinema .
letariado. Esta era a função da arte, almejada pela New York: Anthology Film Archives/NYU, 1975, p. 60. 7 Além dos cartazes, um ótimo exemplo da forma como a tipografia
afetou o cinema pode ser observado nos letreiros dos filmes. Vertov usou letreiros de forma sofisticada através de um cuidado
nova cultura revolucionária. Alexei Gan diria: extremo com a composição formal dos títulos, baseada geralmente em grandes blocos de letras que enchem toda a tela. Na série
“nada ao acaso, não calculado, partindo de um de cinejornais Avante Sovietes! (1926) a função dessas composições gráficas era reforçar os elementos que carregavam os
significados mais fortes, de forma a combiná-los numa cadeia sintagmática que reduplicava o sentido das imagens. Como
gosto cego, e de uma arbitrariedade estética. Tudo exemplo podemos citar as cartelas de números 39, 40, 41 e 42, compostas em letras maiúsculas e minúsculas da seguinte forma:
deve ser tecnicamente e funcionalmente dirigido”.6 LENINE no balcão dos SOVIETES clama/ por grandes SACRIFÍCIOS.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES

In Michelson, Annette (org). Kino-eye, the writings of Dziga


Vertov. Berkeley: The University of California Press, 1984
por uma outra cineasta, Esther Schub, companhei- necessidade de preservação da memória cinema- fo, sobreposto em fusão a imagens da represa 23
ra do principal teórico do construtivismo, Alexei tográfica, localizava-se na fase de montagem.10 hidrelétrica e da fábrica têxtil. A câmera-máqui-
Gan. O trabalho destes três cineastas só pode ser na, através dos olhos de Vertov, olhava para ou-
mais bem compreendido e analisado dentro dos A “interpretação da vida”, segundo a leitura tras máquinas como algo vivo, não apenas mecâ-
parâmetros estabelecidos pela moldura construti- de Marx feita por Vertov, implicava uma crença nico e sim animado, orgânico, em conjunto com
vista, não apenas no que diz respeito às exigênci- de que a câmera era um meio poderoso de reve- certos princípios construtivistas.
as sociais cobradas ao artista revolucionário, como lação da verdade e do conhecimento. Indo ao
também, e principalmente, em relação às formas encontro de um forte preceito construtivista, Ver- De forma brilhante, Eisenstein também nos
específicas pelas quais ambos realizaram sua prá- tov era igualmente fascinado pelas máquinas. Para dá um ótimo exemplo de como impregnar a má-
tica cinematográfica. Vertov corporifica um de- ele, a câmera seria o olho aperfeiçoado que os quina com vida, na famosa seqüência do separa-
sejo de desenvolver os princípios do construtivis- homens não possuíam. A câmera era um novo dor de creme em A linha geral (1929). A câmera
mo em todos os níveis de expressão cinematográ- olho, uma nova máquina para se ver e entender de Eisenstein, já no plano de abertura do seu pri-
fica, do formal e técnico ao social e ideológico. melhor o mundo. Tal qual os mais influentes ar- meiro longa-metragem, está montada numa grua
O cine-olho de Vertov em O homem da
Assim como Alexei Gan, ele rejeitava a noção de câmera (1929) tistas construtivistas, Vertov buscava entender o
um cinema de “arte” que, para ele, sempre estive- mundo pelo prisma de sua própria técnica e,
ra associado à burguesia da Rússia pré-revolucio- como Tatlin, exercer, através de seu material de Sergei Eisenstein, na plataforma superior,
ensaiando a peça Máscaras de gás
nária através de um cinema definido exatamente trabalho, o controle sobre todas as formas en-

cit.
(1924), dentro da Usina de Gás

In Michelson, Annette (org.), op.


pelos seus padrões hegemônicos, clássicos, exces- contradas no novo cotidiano. de Moscou

sivamente teatrais e narrativos, calcado na inter-

In Leyda, Jay & Voynov, Zina. Eisenstein at work . New York: Pantheon/The Museum of Modern Art, 1982
pretação de atores. No primeiro manifesto do Assumindo o fato de que o cinema seria um
grupo liderado por Vertov, os kinoks, também ha- instrumento filosófico que nos revelaria mais so-
via, logo de início, a inevitável decretação da bre a vida do que qualquer outra forma de arte,
morte do “cinema de arte”: “Declaramos que os Vertov iria, então, elaborar todo um projeto de
velhos filmes dramatizados são leprosos! Não se filmes calcado no desenvolvimento de estratégi-
aproxime deles! Não os veja! Perigo de morte! Con- as específicas de filmagem, que materializariam
tagioso! Declaramos que o futuro da arte cinema- os poderes epistemológicos daquele meio. Se exis-
tográfica está na negação do seu presente!”8 te um filme que literalmente ilustra a inscrição
Fotograma de O homem da câmera direta da câmera-máquina dentro do seu modo
Entre as anotações retiradas de seu diário, (1929), dirigido por Dziga Vertov de produção é O homem da câmera (1929), que
podemos, igualmente, encontrar uma melhor de- mostra imagens do operador de câmera e sua
finição e proposição para o ataque à idéia de um máquina sobrepostas a diferentes cenas de rua e
cinema de “arte” e aos roteiros: da vida de uma cidade. A presença da câmera
também aponta para o fato de que estamos dian-
O trabalho de Esther Schub também defen- te de um filme que está sendo feito, em proces-
“Opomo-nos ao cinema de ‘arte’. Com as migalhas dia a perspectiva de um cinema sem atores, na so, incorporando em si um discurso sobre seu
que sobram dos recursos utilizados pelo cinema de arte e medida em que ela privilegiava apenas a realida- modo de produção específico e, com isso, defi-
sem recursos de espécie alguma, às vezes construímos nos- de intrínseca do material documental, trabalha- nindo o cameraman como mais um produtor-tra-
sos filmes. Naturalmente, preferimos os cinejornais secos do na mesa de montagem a partir de sobras e balhador, simetricamente nivelado aos outros
à interferência do roteiro na vida diária dos seres vivos. fragmentos de filmes abandonados e resgatados setores da produção econômica, como a indús-
Não interferimos na vida de ninguém. Filmamos os fatos de depósitos e arquivos. Sua própria contribui- tria têxtil. Em determinada seqüência do filme,
e os organizamos para apresentá-los, na tela, diretamente ção, além de ter sido provavelmente a primeira fica mais clara a posição mediadora do fotógra-
à consciência dos trabalhadores. Nossa tarefa principal, pessoa a chamar atenção para o material fílmico
conforme a entendemos, é a interpretação da vida”.9 como documento e, conseqüentemente, para a
10 Esther Schub (1894-1959) foi uma pioneira do chamado filme de compilação, de acordo com o historiador Jay Leyda em Film
beget films (New York: Hill and Wang, 1971). Segundo Leyda, ela era uma excelente e talentosa montadora, responsável por dar ao
jovem Eisenstein o seu primeiro emprego em cinema. Schub defendia ardorosamente em sua prática as noções construtivistas de
8 VERTOV, Dziga. Textes et manifestes, Cahiers du Cinéma , n. 220-221, edição especial de maio-junho de 1970. Paris: Éditions uma atitude analítica frente à verdade dos materiais e à destruição de objetivos puramente estéticos. De sua filmografia, vale a pena
de l’Étoile, 1970. A tradução é de minha autoria. 9 MICHELSON, Annette (ed.). Kino-eye : the writings of Dziga Vertov. Berkeley: destacar A queda da dinastia dos Romanov (1927), O grande caminho (1928) e A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstoy (1928). Junto
University of California Press, 1984, p. 49. A tradução é de minha autoria. com Vertov, ela é uma das mais influentes realizadoras no desenvolvimento do documentário no período pós-revolucionário.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES

mecânica que avança por dentro do espaço de uma íntimo entre artista, trabalhador e máquina, são De igual modo, Eisenstein desenvolveu es- ço espectatorial semelhante às esculturas cons- 25
fábrica, afinal o lugar mais natural para a arte, apresentadas, nesse filme, imagens da moviola tratégias específicas no sentido de provar o po- trutivistas de Tatlin, com seus contra-relevos ou
como o próprio Eisenstein já havia experimenta- e do montador organizando o material fílmico tencial fílmico ao expor o ilusionismo em ter- relevos-de-canto, construídos a partir de uma su-
do antes, ao montar a produção da peça Másca- dentro da sala de montagem, onde o filme está mos da violação de uma cronologia pró-fílmica, perfície bidimensional, mas que se projetavam
ras de gás (1924), também no espaço interno de sendo editado. Tal nível de reflexividade se cons- através das distensões temporais, como na fa- para a frente do espectador, numa galeria de arte
uma fábrica. É interessante observar aqui a for- trói diante do espectador, apresentado na ma- mosa seqüência do levantamento da ponte em ou num museu. No filme O 11° ano, Vertov tam-
mulação concreta dessa nova ordem construtivis- terialidade ótica das tiras de filme que Elizave- Outubro (1927). Os resultados das formulações bém “seqüestra” o espectador sentado em sua
ta de “sair para as fábricas” animando diversas ta Svilova, a montadora do filme (e companhei- específicas, tanto de Vertov quanto de Eisens- poltrona em termos puramente visuais. Um pla-
propostas artísticas soviéticas que, embora em ra de Vertov), mantém penduradas lado a lado, tein, com relação a um cinema que procurava no, logo no início do filme, mostra a enorme pá
contextos e com significados diferentes, testemu- e das quais seleciona, isola, fragmentos e pla- decisões intelectuais por parte do espectador, mecânica de uma escavadeira que avança em sen-
nham a apropriação da presença industrial da fá- nos específicos (como o da garotinha olhando estavam em perfeita consonância com o credo tido frontal para a platéia e invade o espaço do
brica em, pelo menos, três momentos emblemáti- para a câmera, ou o da velha senhora), trazen- construtivista que definia o racionalismo e o axi- espectador. Numa perspectiva inteiramente cons-
cos: a fábrica de atrações, de Eisenstein, a fábrica do-os à vida, outra vez, na fluidez da cadência oma do controle consciente do processo criativo trutivista, esse movimento cinético enfatizava
de fatos, de Vertov, e a fábrica do ator excêntrico- dos fotogramas agora em movimento. como elementos a serem refletidos na obra de dois fatos principais. Primeiro, que o cinema
FEKS, de Grigori Kosintsev e Leonid Trauberg. arte. Assim, inseridos na paisagem histórica da soviético, em sua fase considerada heróica, lan-
Num processo idêntico ao da pintura cons- primeira década da sociedade soviética, os fil- çou mão e ampliou consideravelmente o reper-
O desenvolvimento de estratégias de reali- trutivista, iniciado no momento em que os artis- mes desse período, no plano formal, também fi- tório de movimentos de câmera existente até
zação do projeto vertoviano de dimensões epis- tas deixaram de representar em suas telas a apa- zeram a crônica de temas originados da recons- então no cinema. Segundo, que a qualidade des-
temológicas insistiria, sobretudo, na materiali- rência externa do mundo, privilegiando as for- trução da economia soviética, em sintonia com se movimento em Vertov é um correspondente
dade concreta do cinema, por meio de uma or- mas construtivas que repousam na base da reali- a base construtivista para o trabalho teatral, ou formal do próprio movimento de construção da
ganização extrema dos recursos cinematográfi- dade visual, Vertov, na tentativa de desmistificar seja, movimento e ação. A câmera, montada nas indústria e da sociedade. Desta maneira pode-
cos e da posição-chave desempenhada nesse pro- o ilusionismo cinematográfico, também desen- mais diversas ferramentas industriais, tais como mos afirmar que os cineastas soviéticos nos anos
cesso pela montagem. A ênfase na organização volveu um conjunto de procedimentos materiais gruas e guindastes, trens suspensos, vagões ou de 1920 literalmente escreveram, de maneira ci-
encontrava eco na noção construtivista de uma com o objetivo de revelar a verdade que existe roldanas, seria um olho privilegiado que se move nematográfica, e numa perspectiva construtivis-
arte de produção introduzida na vida como um por trás da ilusão. E chegou à conclusão de que, por cima de uma hidrelétrica, nas mãos do ope- ta, o processo de industrialização da União So-
aspecto maior do esforço criativo do artista em de todos os artifícios disponíveis ao cineasta, os rador, ou avança através da extensão da fábrica, viética. Revendo o passado desses mais de cem
estabelecer, sob novas formas, a aparência ex- mais poderosos eram aqueles ligados às caracte- quase junto ao teto, movendo-se da frente para anos de existência das imagens em movimento,
terna da vida e da complexidade dos objetos rísticas do cinema enquanto um meio temporal, o fundo, tal como em A greve (1925), ou em O e talvez com uma ultrapassada, porém quase que
que circundam o nosso ambiente. Segundo in- ou seja, o congelamento da imagem e o movi- 11° ano, de Vertov (1928). Outra peça montada inevitável nostalgia, me dou conta, de repente,
teresses específicos, os artistas também conse- mento reverso, como se você estivesse vendo por Eisenstein, intitulada O sábio (1923), tam- de como o cinema já esteve muito mais interliga-
guiram transformar em prática a análise em la- tudo de trás para frente. Tais conclusões devem- bém projetava um ator sobre as cabeças dos es- do com a sociedade, refletindo, construindo e,
boratório dos materiais que constroem as for- se ao fato de que os dois procedimentos, ao re- pectadores, numa espécie de “invasão” do espa- sobretudo, transformando a História do século XX.
mas. Para Vertov, a questão principal localiza- presentarem o conhecimento, enfatizam exata-
va-se no significado real da montagem. A res- mente processos cognitivos encontrados direta-
posta vinha mediante uma radicalização do pro- mente no cinema. A primeira série dos cinejor-

In Michelson, Annette (org.), op. cit.


cesso a partir da filmagem do material, em que nais Kino-Glaz (1924) sintetiza muito bem tais
já se pressupunha uma seleção de temas, luga- procedimentos ao mostrar os modos de produ-
res, tamanho dos planos, enquadramento, e daí ção de carne e pão através da negação do tempo,
para a sala de montagem, com a articulação de onde os espectadores são capazes de recompor
seus diferentes estágios, tais como a avaliação todo o desenvolvimento inverso do processo, do
dos documentos, planejamento e duração dos produto final até suas origens. Nesse movimen-
planos (síntese da montagem), discussão das re- to ao contrário, a ligação entre campo e cidade
lações gráficas da justaposição de diferentes ima- fica também estabelecida, reiterando na socie-
gens, entre outros procedimentos. O homem da dade soviética a natureza da produção de um bem
câmera, mais uma vez, é o filme-chave, no qual material. A lição é clara para quem ainda não des-
aparece uma exposição literal do processo. En- confiava: o pão comido em Moscou é feito do O trabalho da montagem explicitado em
fatizando a noção construtivista do contato mais trigo que vem de outras regiões mais distantes. O homem da câmera (1929)

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