Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vanguarda revolucionária: Este ensaio é resultado de pesquisas e anotações de aula dos cursos Cinema soviético, O cinema de Eisenstein e Vertov e a avant-garde
realizados durante o meu doutorado na New York University, oferecidos pela professora Annette Michelson, e também de muitas conversas
informais com o professor Jay Leyda. A eles – Jay Leyda, in memoriam, pelo rigor dos debates, inspirada interlocução e pela amizade,
17
e o construtivismo cinematográfico
munhamos já no final da primeira década do sé- to, por exemplo, Francis Picabia, Marcel Du-
culo XX e, com toda a força, na década seguinte. Por outro lado, enquanto essa forma hege- champ, Man Ray, Moholy-Nagy e Salvador Dali.
De forma mais abrangente, a avant-garde refere- mônica se configurava como regime narrativo do-
se ao conjunto de movimentos artísticos de radi- minante, começavam a surgir reações ligadas a Ainda na década de 1910, período-chave para
cal renovação e profunda ruptura com o passado, outras manifestações artísticas como as artes plás- a configuração dos contornos gerais do cinema
movimentos esses iniciados ainda na primeira me- ticas, a literatura, a poesia, a música e a arquite- dominante clássico e logo após o período de for-
tade do século XIX, que, conforme expõe Linda tura, que colocavam em xeque esse modo de re- mação na produtora American Biograph, levada a
Nochlin, vão equacionar arte revolucionária com presentação. É Fernand Léger, em Funções da pin- cabo por David Wark Griffith entre 1908 e 1913,
uma política também revolucionária depois dos tura, quem parece ter esboçado uma definição surgem duas reações alternativas para o paradig-
eventos de 1848 na França.1 No caso do cinema, bastante particular daquilo que veio a se com- ma hegemônico. Em 1916, enquanto Hollywood
entretanto, esse impulso vanguardista ganhou con- preender como cinema de vanguarda. Diz ele que estreava Intolerância, seu mais ambicioso projeto
tornos diferentes, visto que a mobilização não só cinematográfico até então, na Europa era lançado
era voltada para o então presente da forma cine- o manifesto do cinema futurista, ligado à literatu-
matográfica como, surpreendentemente, para seu “[...] a história dos filmes de vanguarda é muito ra e à poesia, enfatizando a vertigem da vida ur-
próprio futuro. Mal soavam as trombetas do futu- simples. É uma reação direta contra os filmes de roteiro bana moderna ao consagrar a máquina como quin-
rismo italiano, já se configurava uma forma espe- e o estrelismo. É a fantasia e o jogo indo de encontro à tessência do futuro. Muito mais retórico do que
cífica de representação de imagens em movimen- ordem comercial dos outros. E isto não é tudo: é a efetivamente prático – só um filme chegou a ser
to. Tal forma, que vinha se esboçando desde o revanche dos pintores e dos poetas. Numa arte como feito dentro desses parâmetros, Vita futurista, de
limiar do registro das imagens em movimento, esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender Arnaldo Ginna, nesse mesmo ano de 1916 –, o
talvez pela própria natureza mimética da imagem e provar que as artes da imaginação, relegadas a meros manifesto promovia o ritmo e a rapidez dos novos
fotográfica e seu poder de copiar “fielmente” a acessórios, poderiam, sozinhas, por seus próprios meios, tempos, antecipando, de uma certa maneira, o in-
realidade, foi ganhando um contorno que, aliado construir filmes sem roteiro, considerando a imagem vestimento efetuado na montagem pelos soviéticos
à herança de formas narrativas anteriores – em móvel como personagem principal”.2 durante os primeiros anos da década seguinte.
especial o teatro e o romance do século XIX –,
acabou por definir um rumo mais ou menos úni- Na Alemanha, agora vinculado mais às artes
Cartaz do filme O homem da câmera co para o cinema. Identificado com o cinema nar- Léger, por ser fundamentalmente um artista plásticas e à arquitetura, o expressionismo tam-
(1929), criação dos irmãos Vladimir rativo, clássico, cuja matriz é Hollywood, essa for- plástico, trouxe uma interpretação bastante pessoal bém reagia contra a ditadura da chamada “voca-
e Georgi Stenberg
ma dominante, esse modo institucional de repre- para uma forma de expressão do cinema da avant- ção natural” do cinema para o naturalismo, ra-
sentação era calcado na orientação psicológica dos garde, ou seja, aquela mais ligada diretamente às dicalizando a realidade pró-fílmica como forma
personagens, centrados, por sua vez, na busca de funções pictóricas da imagem em movimento e suas de compensar o determinismo mimético foto-
uma continuidade narrativa encontrada na lógica qualidades gráfico-plásticas. A formulação de Léger, gráfico presente no aparato ótico de registro. Já
1 NOCHLIN, Linda. The invention of the avant-garde: France, 1830-80. In: HESS, Thomas e ASHBERRY, John. Avant-garde 2 LÉGER, Fernand. Funções da pintura . São Paulo: Estúdio Nobel, 1990.
art . New York: MacMillan, 1968. p. 3-24.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES
que não se poderia, àquela altura, alterar a con- Essa busca e necessidade de experimentação, de uma vanguarda artística, cineastas como Ser- mente animada pelas condições sociais ditadas pelo 19
figuração ótica que produzia um olhar naturalis- de procurar alternativas para a já então inevitá- guei Eisenstein, Dziga Vertov, Ester Schub, en- pensamento marxista revolucionário. Em franca
ta, que se alterasse, então, tudo o que existia à vel consagração de um modo único de se fazer e tre outros, desempenharam seus papéis de for- oposição à noção de arte como mera expressão iso-
frente das câmeras. Cenários, iluminação, ves- consumir cinema, encontraram seu campo mais ma análoga à vanguarda política de seu país. Cada lada, romântica, individual, natural e emocional –
tuário, interpretação e movimentação de atores fértil na União Soviética nos primeiros anos da um, dentro de perspectivas particulares, desen- indissoluvelmente ligada à teologia, à metafísica e
são investidos de uma radical estilização, crian- Revolução de Outubro. É Alexei Gan, teórico volveu uma prática cinematográfica de acordo com ao misticismo –, a polêmica diatribe de Gan, con-
do-se um visual único, que, anos mais tarde, en- influente desses primeiros tempos, quem explica: as novas necessidades revolucionárias exigidas de forme sua definição, propunha a expressão comu-
tre outros frutos, serviu de inspiração para os fotó- qualquer trabalhador seriamente engajado na cons- nista das construções materiais, do trabalho artís-
grafos e diretores do film noir norte-americano. trução do então novo estado socialista. tico organizado, pertinente à nova era industrial.
“Não podemos nos esquecer de que nossa socieda-
Com o início da década de 1920, outras pos- de atual é de transição, do capitalismo para o comunis- Aqui, a idéia de construção deixa de ser ape-
sibilidades foram sucessivamente experimentadas, mo, e que o construtivismo não pode ser dissociado da nas um mero recurso retórico para se transfor- “A arte está morta... Arte e religião são atividades
sobretudo na França. Analogias com a música, a base, isto é, da realidade econômica de nossa atual soci- mar num projeto maior, incluindo o movimento escapistas, portanto perigosas... Vamos acabar com a nossa
poesia e o sonho foram articuladas dentro de prin- edade; os construtivistas consideram sua única escola a estético que moldou a nova cultura soviética du- atividade especulativa (pintar quadros) e assumir as ba-
cípios mais ou menos comuns. O surrealismo, por realidade prática do sistema soviético, no qual são de- rante os anos 20. As diversas artes, tais como a ses saudáveis da arte – cor, linha, formas e materiais –
exemplo, ao procurar paralelos entre a visão fíl- senvolvidos experimentos sem fim, de forma incansá- pintura, escultura, arquitetura, teatro, desenho no campo da realidade, da construção prática.”4
mica e os mecanismos do inconsciente, capazes vel e persistente”. 3 industrial e cinema, possuíam um idioma comum
de produzir condensações e deslocamentos, con- que refletia a necessidade de reconstrução do todo
tribuiu para subverter a noção tradicional do tem- do organismo social, estabelecendo um forte Dois anos antes do manifesto de Gan, Alexan-
po e espaço e da linearidade entre causa e efeito Esse cinema, em sua prática – e como qual- equilíbrio entre arte e sociedade, que fez dos anos der Rodchenko e sua mulher, a pintora e artista
defendida pelo cinema dominante. É essa verten- quer outro –, só pode ser mais bem compreen- 20 na União Soviética um momento privilegiado gráfica Varvara Stepanova, publicaram o progra-
te, por exemplo, que vai influenciar a primeira dido quando colocado dentro do contexto geral da história da cultura do século XX. ma do grupo produtivista, uma outra instância do
geração de realizadores norte-americanos que des- histórico, sociopolítico e econômico do qual se impulso construtivista em que a influência do pen-
lancharam o New American Cinema no início da originou. Cineastas soviéticos, conforme sabe- Com o objetivo de entender melhor os aspec- samento marxista – em especial da primeira parte
década de 1940, nos trabalhos pioneiros de Maya mos, atuaram num momento histórico decisivo tos mais salientes da prática cinematográfica sovi- de A ideologia alemã (1845) – é seminal. Com os
Deren, Kenneth Anger e Jonas Mekas. para o século XX. Portanto, enquanto membros ética enquanto articulação do projeto geral cons- produtivistas, formula-se um postulado que afir-
trutivista, é necessário ter-se em mente que, em ma o conhecimento e a percepção das tentativas
consonância com outros movimentos de vanguar- experimentais dos soviéticos como resultado de
da que o precederam, as noções prévias de arte um transplante das atividades experimentais do
in art : 1863-1922. New York: Harry Abrams, 1971
In Gray, Camilla, The russian experiment
foram rejeitadas ao se estabelecerem novos papéis abstrato (transcendental) para o real.5 A tarefa exi-
para o artista e para o objeto de arte. A articulação gida por aquele novo posicionamento implicava,
daquele projeto cultural originava-se dentro dos no- entre outras coisas, a participação real da produ-
vos parâmetros socioeconômicos mais amplos pos- ção intelectual como elemento importante na cons-
sibilitados pela Revolução de Outubro, que, sob trução da nova cultura comunista. Isto significou,
condições muito especiais, permitiram a conver- principalmente, um contato direto com todos os
gência de objetivos práticos e criativos. Em mani- centros produtivos e órgãos principais do meca-
festo publicado em 1922, intitulado Construtivis- nismo soviético unificado, que tornou possível,
mo, Alexei Gan já declarava guerra à arte. Tal ati- na prática, novas formas de vivência e experiên-
tude não era de forma alguma inédita, especial- cia. A ordem, então, era sair para as ruas, para as
mente durante a segunda metade da década anteri- fábricas, únicos locais onde os artistas poderiam
or, como já vimos, rica numa profusão de mani- reformular os conceitos materialistas e realizá-los
festos propondo novos objetivos para a arte, de na vida prática, sintetizando as idéias de Marx
Cenografia desenhada por Varvara Stepanova para a peça A morte de Tarelkin ,
produção de Meyerhold, Moscou, 1922 acordo com agendas variadas e muito específicas. referentes aos cientistas, ou seja, os artistas, nas
Nas palavras de Gan, porém, o ataque ao conceito mais variadas formas, têm interpretado o mundo,
de arte ganhava uma perspectiva diferente, clara- mas sua tarefa é transformá-lo.
3 GAN, Alexei. Constructivism. In: BANN, Stephen (ed.). The tradition of constructivism . New York: Viking, 1974, p. 40. 4 Idem. 5 RODCHENKO, Alexei e STEPANOVA, Varvara. Program of the productivist group. In: The tradition of constructivism, p. 19.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES
norte para as regiões algodoeiras da Ásia Central; essencial de produto voltado para as massas,
e a mecanização da agricultura com a construção formaram os outros canais por meio dos quais
da fábrica de tratores de Stalingrado. Foi emoldu- Por meio da liderança iluminada de Anatoli a visão construtivista do artista ordenando o
rado dentro desse panorama geral que se desen- Lunacharsky, Comissário do Povo para a Edu- mundo tornou-se realidade. Foi através do te-
volveu o trabalho cultural, e artistas, escritores e cação, no período compreendido entre 1918 e atro que Eisenstein, então trabalhando como
cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigi- 1929, o novo sistema político e social continu- cenógrafo para Meyerhold, teve um contato
ram suas atenções e energias para a construção da amente confrontava artistas com esse novo pa- mais próximo com outros artistas, como Ves-
então nova sociedade. pel para a arte. As ruas são os nossos museus , nin, Popova e Stepanova, todos mergulhados
arte dentro da vida e arte para as massas torna- na busca dos meios mais radicais de expres-
Na medida em que qualquer processo de de- ram-se os slogans principais adotados por artis- são criativa. Uma instância que hoje restaura
senvolvimento econômico e social necessita de tas que trabalharam materiais diferentes tirados um bom exemplo ilustrativo do visual de um
graus extremos de organização e planejamento, de setores diversos da produção industrial, tais projeto construtivista de cenografia pode ser
o mesmo acontece com as formas culturais, e o como ferro, vidro, metal ou madeira. Voltan- observada no filme Aelita (1924), de Yakov
conceito de arte seria, rapidamente, amalgama- do-se para outros domínios da vida em que a Protazanov, em que as seqüências imaginárias
do às idéias de produção e utilitarismo. O papel síntese entre arte e tecnologia tornava-se mais no planeta Marte foram acentuadas pelo uso
do artista ganha novos contornos com a idéia de palpável, artistas como Varvara Stepanova e Liu- de um palco gigantesco, cenários que privile-
um “artista-engenheiro”, sublinhando a nova sín- bov Popova preocupavam-se com aspectos prá- giavam diagonais e um vestuário futurista cri-
tese entre arte e tecnologia. A preocupação com ticos e industriais como, na área têxtil, a es- ados por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich.
formas e materiais – exemplos claros no trabalho tamparia de tecidos, enquanto outros, como Dziga Vertov também trabalhou com Rod-
de Vladimir Tatlin e de Rodchenko – ligava-se Rodchenko ou os irmãos Vladimir e Georgii chenko na série de cinejornais Kino-Pravda
diretamente à indústria e os artistas tornavam-se Stenberg, criavam cartazes de propaganda e tra- (1922-25). Ambos – Eiseinsten, mais diretamen-
Capa de Construtivista , revista internacio- técnicos, aprendendo a usar ferramentas e mate- balhavam com fotografia, fotomontagem e ti- te, e Vertov – foram, por sua vez, influenciados
nal de artes, desenhada por El Lissitzky e
editada, em Berlim, em 1922
riais da produção moderna com o objetivo de
canalizar todas as energias em benefício do pro- 6 Afirmação atribuída a Gan, segundo o crítico Standish Lawder em Eisenstein and constructivism. In: The essential cinema .
letariado. Esta era a função da arte, almejada pela New York: Anthology Film Archives/NYU, 1975, p. 60. 7 Além dos cartazes, um ótimo exemplo da forma como a tipografia
afetou o cinema pode ser observado nos letreiros dos filmes. Vertov usou letreiros de forma sofisticada através de um cuidado
nova cultura revolucionária. Alexei Gan diria: extremo com a composição formal dos títulos, baseada geralmente em grandes blocos de letras que enchem toda a tela. Na série
“nada ao acaso, não calculado, partindo de um de cinejornais Avante Sovietes! (1926) a função dessas composições gráficas era reforçar os elementos que carregavam os
significados mais fortes, de forma a combiná-los numa cadeia sintagmática que reduplicava o sentido das imagens. Como
gosto cego, e de uma arbitrariedade estética. Tudo exemplo podemos citar as cartelas de números 39, 40, 41 e 42, compostas em letras maiúsculas e minúsculas da seguinte forma:
deve ser tecnicamente e funcionalmente dirigido”.6 LENINE no balcão dos SOVIETES clama/ por grandes SACRIFÍCIOS.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES
cit.
(1924), dentro da Usina de Gás
In Leyda, Jay & Voynov, Zina. Eisenstein at work . New York: Pantheon/The Museum of Modern Art, 1982
pretação de atores. No primeiro manifesto do Assumindo o fato de que o cinema seria um
grupo liderado por Vertov, os kinoks, também ha- instrumento filosófico que nos revelaria mais so-
via, logo de início, a inevitável decretação da bre a vida do que qualquer outra forma de arte,
morte do “cinema de arte”: “Declaramos que os Vertov iria, então, elaborar todo um projeto de
velhos filmes dramatizados são leprosos! Não se filmes calcado no desenvolvimento de estratégi-
aproxime deles! Não os veja! Perigo de morte! Con- as específicas de filmagem, que materializariam
tagioso! Declaramos que o futuro da arte cinema- os poderes epistemológicos daquele meio. Se exis-
tográfica está na negação do seu presente!”8 te um filme que literalmente ilustra a inscrição
Fotograma de O homem da câmera direta da câmera-máquina dentro do seu modo
Entre as anotações retiradas de seu diário, (1929), dirigido por Dziga Vertov de produção é O homem da câmera (1929), que
podemos, igualmente, encontrar uma melhor de- mostra imagens do operador de câmera e sua
finição e proposição para o ataque à idéia de um máquina sobrepostas a diferentes cenas de rua e
cinema de “arte” e aos roteiros: da vida de uma cidade. A presença da câmera
também aponta para o fato de que estamos dian-
O trabalho de Esther Schub também defen- te de um filme que está sendo feito, em proces-
“Opomo-nos ao cinema de ‘arte’. Com as migalhas dia a perspectiva de um cinema sem atores, na so, incorporando em si um discurso sobre seu
que sobram dos recursos utilizados pelo cinema de arte e medida em que ela privilegiava apenas a realida- modo de produção específico e, com isso, defi-
sem recursos de espécie alguma, às vezes construímos nos- de intrínseca do material documental, trabalha- nindo o cameraman como mais um produtor-tra-
sos filmes. Naturalmente, preferimos os cinejornais secos do na mesa de montagem a partir de sobras e balhador, simetricamente nivelado aos outros
à interferência do roteiro na vida diária dos seres vivos. fragmentos de filmes abandonados e resgatados setores da produção econômica, como a indús-
Não interferimos na vida de ninguém. Filmamos os fatos de depósitos e arquivos. Sua própria contribui- tria têxtil. Em determinada seqüência do filme,
e os organizamos para apresentá-los, na tela, diretamente ção, além de ter sido provavelmente a primeira fica mais clara a posição mediadora do fotógra-
à consciência dos trabalhadores. Nossa tarefa principal, pessoa a chamar atenção para o material fílmico
conforme a entendemos, é a interpretação da vida”.9 como documento e, conseqüentemente, para a
10 Esther Schub (1894-1959) foi uma pioneira do chamado filme de compilação, de acordo com o historiador Jay Leyda em Film
beget films (New York: Hill and Wang, 1971). Segundo Leyda, ela era uma excelente e talentosa montadora, responsável por dar ao
jovem Eisenstein o seu primeiro emprego em cinema. Schub defendia ardorosamente em sua prática as noções construtivistas de
8 VERTOV, Dziga. Textes et manifestes, Cahiers du Cinéma , n. 220-221, edição especial de maio-junho de 1970. Paris: Éditions uma atitude analítica frente à verdade dos materiais e à destruição de objetivos puramente estéticos. De sua filmografia, vale a pena
de l’Étoile, 1970. A tradução é de minha autoria. 9 MICHELSON, Annette (ed.). Kino-eye : the writings of Dziga Vertov. Berkeley: destacar A queda da dinastia dos Romanov (1927), O grande caminho (1928) e A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstoy (1928). Junto
University of California Press, 1984, p. 49. A tradução é de minha autoria. com Vertov, ela é uma das mais influentes realizadoras no desenvolvimento do documentário no período pós-revolucionário.
VANGUARDA REVOLUCIONÁRIA: EISENSTEIN, VERTOV E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO REVOLUÇÕES
mecânica que avança por dentro do espaço de uma íntimo entre artista, trabalhador e máquina, são De igual modo, Eisenstein desenvolveu es- ço espectatorial semelhante às esculturas cons- 25
fábrica, afinal o lugar mais natural para a arte, apresentadas, nesse filme, imagens da moviola tratégias específicas no sentido de provar o po- trutivistas de Tatlin, com seus contra-relevos ou
como o próprio Eisenstein já havia experimenta- e do montador organizando o material fílmico tencial fílmico ao expor o ilusionismo em ter- relevos-de-canto, construídos a partir de uma su-
do antes, ao montar a produção da peça Másca- dentro da sala de montagem, onde o filme está mos da violação de uma cronologia pró-fílmica, perfície bidimensional, mas que se projetavam
ras de gás (1924), também no espaço interno de sendo editado. Tal nível de reflexividade se cons- através das distensões temporais, como na fa- para a frente do espectador, numa galeria de arte
uma fábrica. É interessante observar aqui a for- trói diante do espectador, apresentado na ma- mosa seqüência do levantamento da ponte em ou num museu. No filme O 11° ano, Vertov tam-
mulação concreta dessa nova ordem construtivis- terialidade ótica das tiras de filme que Elizave- Outubro (1927). Os resultados das formulações bém “seqüestra” o espectador sentado em sua
ta de “sair para as fábricas” animando diversas ta Svilova, a montadora do filme (e companhei- específicas, tanto de Vertov quanto de Eisens- poltrona em termos puramente visuais. Um pla-
propostas artísticas soviéticas que, embora em ra de Vertov), mantém penduradas lado a lado, tein, com relação a um cinema que procurava no, logo no início do filme, mostra a enorme pá
contextos e com significados diferentes, testemu- e das quais seleciona, isola, fragmentos e pla- decisões intelectuais por parte do espectador, mecânica de uma escavadeira que avança em sen-
nham a apropriação da presença industrial da fá- nos específicos (como o da garotinha olhando estavam em perfeita consonância com o credo tido frontal para a platéia e invade o espaço do
brica em, pelo menos, três momentos emblemáti- para a câmera, ou o da velha senhora), trazen- construtivista que definia o racionalismo e o axi- espectador. Numa perspectiva inteiramente cons-
cos: a fábrica de atrações, de Eisenstein, a fábrica do-os à vida, outra vez, na fluidez da cadência oma do controle consciente do processo criativo trutivista, esse movimento cinético enfatizava
de fatos, de Vertov, e a fábrica do ator excêntrico- dos fotogramas agora em movimento. como elementos a serem refletidos na obra de dois fatos principais. Primeiro, que o cinema
FEKS, de Grigori Kosintsev e Leonid Trauberg. arte. Assim, inseridos na paisagem histórica da soviético, em sua fase considerada heróica, lan-
Num processo idêntico ao da pintura cons- primeira década da sociedade soviética, os fil- çou mão e ampliou consideravelmente o reper-
O desenvolvimento de estratégias de reali- trutivista, iniciado no momento em que os artis- mes desse período, no plano formal, também fi- tório de movimentos de câmera existente até
zação do projeto vertoviano de dimensões epis- tas deixaram de representar em suas telas a apa- zeram a crônica de temas originados da recons- então no cinema. Segundo, que a qualidade des-
temológicas insistiria, sobretudo, na materiali- rência externa do mundo, privilegiando as for- trução da economia soviética, em sintonia com se movimento em Vertov é um correspondente
dade concreta do cinema, por meio de uma or- mas construtivas que repousam na base da reali- a base construtivista para o trabalho teatral, ou formal do próprio movimento de construção da
ganização extrema dos recursos cinematográfi- dade visual, Vertov, na tentativa de desmistificar seja, movimento e ação. A câmera, montada nas indústria e da sociedade. Desta maneira pode-
cos e da posição-chave desempenhada nesse pro- o ilusionismo cinematográfico, também desen- mais diversas ferramentas industriais, tais como mos afirmar que os cineastas soviéticos nos anos
cesso pela montagem. A ênfase na organização volveu um conjunto de procedimentos materiais gruas e guindastes, trens suspensos, vagões ou de 1920 literalmente escreveram, de maneira ci-
encontrava eco na noção construtivista de uma com o objetivo de revelar a verdade que existe roldanas, seria um olho privilegiado que se move nematográfica, e numa perspectiva construtivis-
arte de produção introduzida na vida como um por trás da ilusão. E chegou à conclusão de que, por cima de uma hidrelétrica, nas mãos do ope- ta, o processo de industrialização da União So-
aspecto maior do esforço criativo do artista em de todos os artifícios disponíveis ao cineasta, os rador, ou avança através da extensão da fábrica, viética. Revendo o passado desses mais de cem
estabelecer, sob novas formas, a aparência ex- mais poderosos eram aqueles ligados às caracte- quase junto ao teto, movendo-se da frente para anos de existência das imagens em movimento,
terna da vida e da complexidade dos objetos rísticas do cinema enquanto um meio temporal, o fundo, tal como em A greve (1925), ou em O e talvez com uma ultrapassada, porém quase que
que circundam o nosso ambiente. Segundo in- ou seja, o congelamento da imagem e o movi- 11° ano, de Vertov (1928). Outra peça montada inevitável nostalgia, me dou conta, de repente,
teresses específicos, os artistas também conse- mento reverso, como se você estivesse vendo por Eisenstein, intitulada O sábio (1923), tam- de como o cinema já esteve muito mais interliga-
guiram transformar em prática a análise em la- tudo de trás para frente. Tais conclusões devem- bém projetava um ator sobre as cabeças dos es- do com a sociedade, refletindo, construindo e,
boratório dos materiais que constroem as for- se ao fato de que os dois procedimentos, ao re- pectadores, numa espécie de “invasão” do espa- sobretudo, transformando a História do século XX.
mas. Para Vertov, a questão principal localiza- presentarem o conhecimento, enfatizam exata-
va-se no significado real da montagem. A res- mente processos cognitivos encontrados direta-
posta vinha mediante uma radicalização do pro- mente no cinema. A primeira série dos cinejor-