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Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho
EFLCH/UNIFESP –Programa de Pós-Graduação em História da Arte

Poéticas do sensível no campo expandido do (pós-) fotográfico/ Gabriel Brito


Bueno de Oliveira. Guarulhos, 2023.
179 pp.

Dissertação (Mestrado em História da Arte) – Universidade Federal de São


Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2023.
Orientação: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho.

1.(Pós-)Fotografia expandida 2. Poéticas do sensível. 3. Ficção 4. Temporali-


dade 5. Inespecificidade. 6. Teoria da Arte. 7. História da Arte
I. Osvaldo Fontes Filho. II. Título.

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Agradecimentos Resumo

Cada palavra grafada a seguir se quer carregada de afeto. Esta pesquisa propõe percorrer certas intermitências visuais promovi-
das pelo digital turn e o trabalho que uma fotografia expandida motiva junto à
Começo por agradecer à minha mãe que, lá atrás, quando caminha- materialidade da imagem e a seu registro do tempo por força do deslocamento
va no início da vida adulta, abraçou-me e incentivou-me a tomar o rumo da que promove de uma indicialidade de fundo. A noção de “campo expandido”
fotografia. Desde então, ela não deixou de me incentivar e apoiar em cada (bem como de seu subconjunto, a “pós-fotografia”) aqui trabalhada aponta
decisão de estudo e profissional. Agradeço também a meu pai que desde para uma encruzilhada entre indeterminações, abre perspectivas de narrati-
muito cedo me mostrou o quanto a cultura é diversa e como uma fotografia vas visuais diferenciadas, cria tensões entre modos diversos de representação,
de sua autoria poderia tanto significar. Assim, sem perceber, aprendi como aponta, enfim, para uma inespecificidade da imagem contemporânea. O que
uma imagem pode dizer tanto, ainda que esquecida no fundo de uma gaveta. se focaliza, pois, é uma mudança de estatuto, de percepção e de possibilidade
formal, indicativa de uma livre migração dos media. Razão porque um dos ob-
Foram muitos os fotógrafos que fizeram parte de minha forma- jetivos desta pesquisa seja examinar um pensar próprio ao manuseio de ima-
ção. A cada um deles sou muito grato. Esta pesquisa, a partir deles cons- gens: reenquadramentos, recuperações de arquivos, lampejos de imaginação,
truída, é parte de minha resposta a tantos conflitos, revoltas, indignações, enfim, procedimentos capazes de criar novas possibilidades estéticas, portan-
prazeres e inquietudes que a fotografia tem me instigado a todo instante. to mundos possíveis, para renovadas sensibilidades e sentidos. As poéticas vi-
Foi por força mesma de algumas inquietações pessoais que fui acolhido por suais aqui percorridas, demonstrativas dessas novas possibilidades formais,
meu orientador, Prof. Dr.Osvaldo Fontes Filho, a quem devo, pois, meu eterno apontam ainda para um trabalho com temporalidades que se entrelaçam, que
agradecimento pela paciência, pelas inestimáveis sugestões e pelas ricas orien- assumem o anacronismo ao tecerem novas redes de produção de memória.
tações. Por força de seus ensinamentos, passei a olhar as imagens com mais Razão porque evocamos a intermitência das imagens pós-fotográficas que re-
generosidade, a renovar meu gosto, agora mais aguçado, por boa parte daquilo lampejam memórias e onde found footage e found photography ecoam imper-
que me forma. Por conta do que jamais saberei agradecer-lhe suficientemente. tinências visuais junto ao frame realocado para fora das “grandes narrativas”
legitimadoras das especificidades artísticas. Este trabalho se quer na forma
Sou grato, ainda, aos artistas que aqui apresento. Suas obras formam o de uma heurística, assentado sobre uma lógica da incerteza - preconizada por
referencial imagético que me fez de certo modo renascer para uma efetiva poética Georges Didi-Huberman para toda escrita em história da arte -, heurística
fotográfica. As conversas que tenho com cada uma delas são sempre incendiárias. que procura dialogar com um campo expandido do fotográfico. A noção de
pós-fotografia, usada aqui como uma das categorias da inespecificidade assu-
Por fim, agradeço a meus amigos. mida pela estética contemporânea, permite falar de uma verdade da ficção,
de uma imagem-ficção, de uma imagem-como-mundo-possível. Para além da
E à fotografia, meio de uma processualidade de vida, afirmo ser negação da fotografia em sua trajetória de linguagem consolidada, busca-se
devedor de um retorno ao tecido sensível de um mundo mais generoso. mostrar como o rompimento teórico (e procedural) de uma imagem-traço
possibilita um olhar generoso para com a imagem em sua fisicalidade, com o
desconcerto inerente ao fato de ali encontrar algo da ordem de uma indeter-
minação e precariedade com dons de potencialidade criativa. Nosso empenho

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será, pois, o de mostrar como o trabalho fotográfico em campo expandido,
com o consequente desassossego das indeterminações presentes nas frontei-
ras da indicialidade fotográfica, permite uma renovada poética do sensível. Abstract
Palavras-chave: (pós-)fotografia expandida; poéticas do sensível; ficção; This research proposes to go through certain visual intermittences
temporalidade; Inespecificidade promoted by the digital turn and the work that a post-photography motivates
together with the materiality of the image and its registration of time by virtue
of the displacement it promotes from a background indexicality. The notion
of post-photography (as well as it’s subset, the post-photography) worked
here points to a crossroads between indeterminations, opens perspectives of
differentiated visual narratives, creates tensions between different modes of
representation. What is focused, therefore, is a change in status, perception
and formal possibility, indicative of a free migration of the media. This is
why one of the objectives of this research is to examine a way of thinking
specific to the handling of images:reframing, file retrievals, flashes of ima-
gination, in short, procedures capable of creating new aesthetic possibilities,
therefore possible worlds, for renewed sensibilities and senses. The visu-
al poetics covered here, demonstrating these new formal possibilities, also
point to a work with temporalities that intertwine, which assume anachro-
nism when weaving new networks of memory production. This is why we
evoke the intermittency of post-photographic images that flash memories
and where found footage and found photography echo visual impertinences
along with the frame relocated outside the “great narratives” that legitimize
artistic practices and propositions. This work takes the form of a heuristic,
based on a logic of uncertainty - advocated by Georges Didi-Huberman for
all writing in art history -, a heuristic that seeks to dialogue with a renewed
theoretical field of photography. The notion of post-photography, by the way,
allows us to speak of a truth of fiction, of an image-fiction, of an image-as-
-possible-world. In addition to the negation of photography in its consoli-
dated language trajectory, it seeks to show how the theoretical rupture of a
trace-image enables a generous look at what is little perceived in the photo-
graphic image, a look at the image in its materiality, with the bewilderment
inherent in the fact of finding there something of the order of an unreasonable
image, an indeterminacy and precariousness with gifts of creative potential.
Our commitment will be, therefore, to show how the concept of post-photo-
graphy; as the consequent uneasiness of the indeterminacies present on the

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frontiers of photographic indiciality allows a renewed poetics of the sensitive.
Lista de Imagens
Keywords: expanded (post-)photography; sensible poetics; fiction; tempora- Figura 1 - Gabriel Oliveira, Ícaro #6 [detalhe], 2022……………...….....13
lity; inespecificity Figura 2 - Gabriel Oliveira, Sem título [detalhe], 2022…………….…... 15
Figura 3 - Gabriel Oliveira. Sem título #1, 2021.…………………......….22
Figura 4 - Gabriel Oliveira. Alfred #1, 2023...........................………. .....25
Figura 5 - Alfred Stieglitz, Equivalentes, 1923-1931 .………………..... 30
Figura 6 - Gabriel Oliveira, Sem título #2, 2022 …...…....…....…....…....28
Figura 7 - Eustáquio Neves. Memória do Filme, 2018………..………... 31
Figura 8 - Rosângela Rennó, da série Corpo da alma, 2003-2009............40
Figura 9 - Rosângela Rennó, A Mulher que Perdeu a Memória, 1988......40
Figura 10 - Rosângela Rennó, Paz armada, 1990/2021……………….. 43
Figura 11 - Rosângela Rennó, Hercule & Hippolyte #2, 2019……......... 45
Figura 12 - Rosângela Rennó, frame de Vera Cruz, 2000……..………... 52
Figura 13 - Gabriel Oliveira, Sem título #1 , 2022.………………...….....60
Figura 14 - Gabriel Oliveira, Teste 1 IA, 2023. .………………………... 63
Figura 15 - Gabriel Oliveira, Teste 2 IA, 2023. .……..…………………. 65
Figura 16 - Letícia Ramos, Polaroids, 2013……………….…………… 71
Figura 17 - Letícia Ramos, Polaroids, 2013…………………………..…71
Figura 18 - Letícia Ramos, Polaroids, 2013. …………………..…..…... 72
Figura 19 - Letícia Ramos, Polaroids, 2013. …………………..…..…... 72
Figura 20 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 73
Figura 21 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 74
Figura 22 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 75
Figura 23 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 75
Figura 24 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 76
Figura 25 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 77
Figura 26 - Eustáquio Neves, Memória do Filme, 2018…....…………... 77
Figura 27 - Elaine Pessoa, do fotolivro Nimbus, 2018………………......79
Figura 28 - Elaine Pessoa, Nimbus [detalhe], 2018………………..….... 81
Figura 29 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a
Guignard, 2009....…………………………………………………...…...84
Figura 30 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a
Guignard, 2009....………………………………………………...……...84
Figura 31 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a
Guignard, 2009....…………………………………………………....….85

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Figura 32 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a Figura 64 - Gabriel Oliveira, Ícaro #1, 2022………………...…......….. 127
Guignard, 2009....…………………………………………………....….85 Figura 65 - Gabriel Oliveira, Ícaro #2, 2022………………...…......….. 128
Figura 33 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a Figura 66 - Gabriel Oliveira, Ícaro #3, 2022……………….........…….. 129
Guignard, 2009....…………………………………………………....….86 Figura 67 - Gabriel Oliveira, Ícaro #4, 2022……………….........…….. 130
Figura 34 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a Figura 68 - Gabriel Oliveira, Ícaro #5, 2022……………….........…….. 131
Guignard, 2009....………………………………………………....…….86 Figura 69 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #1, 2022………......……. 133
Figura 35 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a Figura 70 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #2, 2022……….....….…. 134
Guignard, 2009....…………………………………………………….... 87 Figura 71 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #3, 2022……….....….…. 135
Figura 36 - Cao Guimarães, da série Paisagens Reais - Homenagem a Figura 72 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #4, 2022………….......… 136
Guignard, 2009....………………………………………………....……. 87 Figura 73 - Página de Ansel Adams, A câmera, 2003……………….... 140
Figura 37 - Cristina Amiran, Séries inventadas, 2012…………....….…..89 Figura 74 - Walker Evan. Kitchen Wall, 1936.............. ........……….......146
Figura 38 - Cristina Amiran, Séries inventadas, 2012. ……….....………89 Figura 75 - Rondepierre, Eric. Couple, Passant, 1996-1998.....…..........148
Figura 39 - Cristina Amiran, Séries inventadas, 201.…………....………91 Figura 76 -Frame de Cao Guimarães, Nanofania, 2003. ….....................150
Figura 40 - Óscar Muñoz, Sedimentaciones, 2011……..……....………..92 Figura 77 - Morrison, Bill. Decasia, 2003………...………………….....154
Figura 41 -Dirceu Maués, da série Extremo horizonte, 2013………...….95 Figura 78 - Rondepierre, Eric. The Thirty Embraces, 2001...……….…..155
Figura 42 -Dirceu Maués, da série Extremo horizonte, 2013………...….95 Figura 79 - Morrison, Bill. Decasia, 2003……………………………....157
Figura 43 -Dirceu Maués, da série Extremo horizonte, 2013………...….95 Figura 80 - Captura de tela de vídeo …………………………………...160
Figura 44 -Dirceu Maués, da série Extremo horizonte, 2013……..……..95 Figura 81 - Yara Pina, A beleza é convulsiva, 2017..................................161
Figura 45 - Gabriel Oliveira, Mérida #1 , 2023.………………...………96 Figura 82 - Yara Pina, A beleza é convulsiva, 2017..................................161
Figura 46 -Ana Vitória Mussi, Mergulho na imagem #6 , 2009…....…...98 Figura 83 - Yara Pina, A beleza é convulsiva, 2017..................................164
Figura 47 - Laís Myrrha, Dupla exposição #2, 2022………….………...101 Figura 84 -Iole de Freitas, Embrião, 1973.…...…...…...…..….…...........166
Figura 48 - Rosângela Rennó, Série Matéria de Poesia, 2008-2013........103
Figura 49 - Rosângela Rennó, Série Insólidos [travesseiro], 2014……...104
Figura 50 - Iole de Freitas, O Outro, 1973-2019 .……….………….......106
Figura 51 -Iole de Freitas, frame de Light work, 1972. ….…..…….…..106
Figura 52 - Gabriel Oliveira, Sem título #1, 2022.……………………...111
Figura 53 - Gabriel Oliveira, Sem título #2, 2022.……………………...112
Figura 54 - Gabriel Oliveira, Sem título #3, 2022.……………………...113
Figura 55 - Gabriel Oliveira, Kurutu #1, 2022.…………………….…...115
Figura 56 - Gabriel Oliveira, Kurutu #2, 2022.………………………....116
Figura 57 - Gabriel Oliveira, Kurutu #3, 2022.………………………....117
Figura 58 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #1, 2022……....………..119
Figura 59 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #2, 2022….......…….......120
Figura 60 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #3, 2022…….…….........121
Figura 61 - Gabriel Oliveira, Calder #1, 2022……………….….....….. 123
Figura 62 - Gabriel Oliveira, Calder #2, 2022……………….……....... 124
Figura 63 - Gabriel Oliveira, Calder #3, 2022……………….….....….. 125

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Sumário
Introdução…………………………………………………….……14
“A arte contemporânea [...] abre-nos um regime de pós-imagem,
Indicialidade, medialidade: uma virada tecnológica e uma disposição uma experiência que não é simples preservação, mas, funda-
inicial………………………………………………………………..16 mentalmente, rasura ou dispêndio de uma imagem precedente”.
(Raúl Antelo, Maria com Marcel. Duchamp nos trópicos, 2010,
Parte 1 ………………………………………………………….…..25 p.192)

Pelo tecido sensível do mundo ……………………………………27 “A fotografia não pode, a bem da verdade, deixar de domes-
ticar o referente, mas pode muito bem afastar infinitamente o
1.1. Alguns condicionantes teóricos e imagerias de referência…27 referente perceptível [...] a fricção da imagem com o Outro do
referente aponta sempre à sua negatividade, a seu espectro, à
1.2. A dimensão histórica do pós…..……………………………48
sua dispersão”.
1.3. ”Ìndice” e “ficção”: alguma teoria e alguma polêmica …...54 (Raúl Antelo, “As imagens como Força”, 2008)
1.4. Algumas poéticas visuais ………………………………….69

Parte 2……………………………………………………………....96

Poéticas da trama……………………………………………..….100

2.1. Alguma produção pessoal de “reencantamento” do fotográfico


……………………………………………………………………..100
2.2. Tempos precários, tempos efêmeros …pensatividade…....148

Conclusão………………………………………………………... 166

Política das imagens e ficções……………………………………166

Referências bibliográficas………………………………………..171

Imagem ao fundo:
Figura 1 - Gabriel Oliveira, Ícaro #6 [detalhe] ,2022.

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Imagem da página anterior:


Figura 2 - Gabriel Oliveira, Sem título #1 [detalhe], 2022.

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finida em sua disposição plástica, enrijecida em seus pressupostos indiciais.
Indicialidade, medialidade: O que me interessa pensar é exatamente o oposto do que foi consa-
grado por fotógrafos que caminharam por essa perspectiva durante boa parte
uma virada tecnológica e uma do século XX. Como fotógrafo, solicitado profissionalmente a ir ter com uma
indicialidade de consenso, é por uma pensatividade da imagem – assumo,
disposição inicial de imediato, o conceito de Jacques Rancière, que mais abaixo explícito –
que parto aqui para dissertar em torno de indeterminações, de aberturas de
possibilidades daquilo que pode vir a ser uma imagem em lugar de impor
o que ela deva ser. São as possibilidades em aberto e que se cruzam que
“O aparelho fotográfico é, por um lado, o puro instrumento, o au-
tómato ao serviço de toda a vontade e em particular ao serviço da me interessa pensar e produzir, nas indeterminações do que pode vir a ser.
arte na medida em que é a realização de uma vontade de fazer arte. Lembro-me, aqui, de imediato, das inúmeras injunções de Georges Didi-Hu-
Por outro lado, é também o instrumento que executa por si mesmo berman contra saberes imobilizadores da imagem. Lembro-o mostrar como
o exercício de representação que era o da arte e liberta deste modo as imagens devem sua eficácia não tanto à transmissão de saberes, mas ao
aquele que a utiliza do desejo de fazer arte e da pretensão de ser entrelaçamento, ao “imbróglio de saberes transmitidos e deslocados, de não-
artista. É a técnica da mimesis: não apenas, como sempre se invoca, -saberes produzidos e transformados” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.23).
a técnica que liberta a arte da mimesis, mas também a técnica que Meu trabalho como produtor de imagens se insere, pois, numa ló-
liberta a mimesis da arte, que permite às coisas dar-se a ver, libertas gica da incerteza que dialoga com um campo teórico renovado no estudo
dos códigos da representação, das relações codificadas entre formas da fotografia. Como assinala Sérgio Mah (2012, p.2). esse momento de um
visíveis e produção de efeitos de
novo paradigma tecnológico da fotografia implica no fato de nós, produto-
significação”.(J. Rancière, 2016, p.33)
res de imagens, estarmos “cada vez menos confinados a um só médium”. O
que caracteriza “uma etapa histórica propícia ao realinhamento e descentra-
Em 1931, a revista Photographies publica a imagem de três crianças
mento das ideias em torno da fotografia”, convite a “pensar a fotografia para
correndo em direção ao lago Tanganica, foto de autoria do hungaro Martin
além da fotografia”. O que forçosamente nos remete à concepção que Ran-
Munkacsi (1896-1963), uma imagem que Cartier-Bresson diz tê-lo influen-
cière evoca ao pensar o médium na fotografia, a ideia de medialidade como:
ciado a fotografar. As três silhuetas negras sobre fundo brumoso da água,
congeladas pelo clique da máquina fotográfica, registram à perfeição um “uma maneira de ligar três coisas: um dispositivo técnico, uma
átimo de tempo, uma fugaz passagem daqueles corpos pelo campo de en- ideia da arte e a formação de um meio sensível específico. Esses
quadramento do olhar. Os desdobramentos desse encontro caminham para materiais e instrumentos da arte que invocamos a título da lei do
a construção narrativa e consolidação da ideia de um momento decisivo da médium são sempre mais que materiais e instrumentos. De fato,
imagem, uma imagem consolidada de certa indicialidade perene, sem grandes são dotados de uma função estética que é a de impor um modo de
questionamentos quanto a outras possibilidades expressivas. Essa concepção apresentação do sensível em vez de outro. Assim, a concepção do
sobre o que deve ser uma fotografia é provavelmente um dos ápices do ato médium é sempre simultaneamente uma concepção da arte e do sen-
fotográfico de como se faz, daquilo que se faz, do que se espera ser feito e sorium que ela contribui para formar.” (RANCIÈRE, 2016, p.35)
do que é entregue pela imagem. Não é arriscado assumir que se tem aqui a
confirmação de uma normativa: o que esperar de uma foto, seja na sua forma, Portanto, relacionar o momento atual da fotografia, onde o mé-
no seu modo de produzir, no seu conteúdo, naquilo que se espera que ela dium não se restringe apenas a uma possibilidade, com a ideia de media-
diga ou mais precisamente no que ela está autorizada a dizer e no que esta- lidade de que trata Rancière fortalece o que o filósofo afirma ser a dádiva
mos autorizados a dela pensar. Vigora uma ideia de pensá-la plenamente de- maior desse momento de virada tecnológica, qual seja, a possibilidade de

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criação de “zonas de neutralização” nas quais as técnicas se indiferenciam Nesse intento em tratar de um olhar mais rente à materialidade do foto-
e permutam seus efeitos. Ou, então, “ zonas de transferência entre modos gráfico, à processualidades em vias de cunhar renovados protocolos de leitura
de abordar os objetos, de funcionamento das imagens e da atribuição das do sensível, num primeiro momento procuro traçar uma conceituação teórica
significações” (RANCIÈRE, 2016, p.40), maneira de apresentar os do que se entende por pós-fotografia e como ela pode contribuir para expandir
produtos expressivos a uma multiplicidade de olhares e de leituras. o entendimento da produção contemporânea da fotografia. Se as questões vol-
Criação, enfim, de uma medialidade aberta, expandida, e de um tadas aos diferentes dispositivos técnicos aguarda para serem tratadas mais à
sensorium para condições muito friáveis de produção de imagens. É frente é porque, num primeiro momento, envolve-me a noção de experiência
justamente a perda de especifici-dade das linguagens, dos meios, que sensível, uma atenção específica ao que podemos chamar de tecido sensível
corrobora a criação em certas visua-lidades recentes do que chamaria do mundo, modo de verificar de imediato as eficácias expressivas de autores
zonas de indeterminação, com a potên-cia de permitir novas formulações atentos a relações sensoriais muito particulares, como se assumissem a ima-
de experiências sensíveis no e do mundo. gem como acontecimento visual, para aquém de suas possibilidades indiciais.
Consequentemente, a noção de campo expandido aplicado à pós-fo- Meu leitor perceberá que inicio meu texto na apologia de cer-
tografia permitirá falar de uma verdade da ficção, de uma imagem- ta lentidão, e mesmo de uma hesitação no trato com o registro fotográfi-
ficção como proposta de mundos possíveis. Em uma construção de co, como se o clique da máquina requeresse uma lenta filtragem do tempo.
mundos pos-síveis, as temporalidades se entrelaçam em evidente Procuro por certa contundência da imagem fotográfica quando o indicial
anacronismo. De fato, parece haver, pairando sobre as mentes dos é deslegitimado. Razão porque evoco de antemão autores que me pare-
fotógrafos de hoje, a figura de uma intermitência/inespecificidade das cem seguir os rastros de uma temporalidade própria às imagens, indepen-
imagens que aponta para renova-das discursividades visuais. Em outras dentemente das intencionalidades expressivas que sobre elas projetamos.
palavras, parece haver em artistas de variada extração estilística tentativas E se convoco o conceito de pós-fotografia é para apontar desde já para o
de levar a imagem para outros luga-res, outros sentidos, outras que assumo ser, em certa produção fotográfica que me serve de referência,
possibilidades, como um dobrar do significante sobre si mesmo, com a predominância de uma indiferenciação dos meios, de uma fragilização
consequentes novas concepções de tempo e espaço. das especificidades expressivas, de uma consequente aposta em práticas hí-
Reter a noção de uma imagem que se dobra e percorre os mais variados bridas que problematizam a arte e seus procedimentos, retiram-na de des-
pontos de uma conectividade rizomática, entre entes técnicos e não técnicos, gastadas normativas. Jacques Rancière, ao analisar a fotografia como meio,
será de certo modo pensar como essas imagens se corporificam, tornam-se nos assinala uma das consequências de um regime de inespecificidade:
vo-lume, epiderme, pulsão. Quando abandonamos a definição da imagem por
sua capacidade de referencialidade, de indicialidade, é uma perda de “Essa indiferenciação, no entanto, não significa a supressão da
translucidez que se verifica. Esses corpos, ou melhor, essas imagens arte em um mundo de energia coletiva que carrega o telos da tec-
sociotécnicas que são afinal as fotografias no regime do pós-fotográfico - nologia. Pelo contrário, implica uma neutralização que autoriza
reivindicamos, aqui, a no-menclatura de algun teóricos, ainda que transferências entre fins, meios e materiais das diferentes artes, a
criação de um meio específico da experiência que não é determi-
controversa - coisificam-se em obje-tos, adquirem ontologias variáveis e
nado nem pelos fins da arte nem pelos da tecnologia, mas que está
concorrem como fluxos e vetores em pro-cessos de subjetivação, e modos de
organizado segundo novas interseções entre arte e tecnologia, as-
existências outros. Tornam-se actantes em uma ficcionalização, que não é o sim como entre arte e o que não é arte”. (RANCIÈRE, 2016, p.40)
reverso de um realismo, como nos mostra Ja-cques Rancière, dotados da
faculdade do agenciamento, dos fluxos e dos mo-vimentos. Aqui, em resumo, Num segundo momento, procuro entender quais as implica-
reside a questão que interessa tratar: entrar numa rede sociotécnica, não mais ções do emprego da ideia de um regime do pós. Interessado na questão
comercial, e percorrer os rastros desses*actantes em seus mais renovados (e do tempo da imagem e da imagem do tempo, examino a fertilidade críti-
inespecíficos) modos de existir, significar e agir.

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ca, em Philippe Dubois, de um pensamento da história das formas e das dominante”, modo de reconfiguração do possível que marca em certa me-
práticas artísticas que seja aberto, paradoxal, ziguezagueante, labirín- dida as sensibilidades atuais. Servem-me de suporte imagerias trabalhadas
tico, anacrônico. Procuro retirar um ensinamento metodológico dessa diretamente no medium entendido como “meio” , “como espessura, como
perspectiva de modo a dar fundamento a minha pesquisa em suas incur- materialidade formal”, nos dizeres de Philippe Dubois (2019, p.27). Nas
sões pelo fotográfico expandido, por sua história e por algumas de suas intervenções de Bill Morrison e Eric Rondepierre parecem então ecoar as
poéticas mais contemporâneas, sem incorrer em algum historicismo raso. indagações de Dubois: “É o efeito da presença de um meio (em um outro
Uma vez estabelecidas algumas bases teóricas da linha argumentativa ou nele mesmo, nas suas variações ‘pós’) que é interessante: como se ma-
do trabalho, percorro em seguida algumas poéticas visuais que me servem de nifesta? Qual é seu grau de pregnância? O que define sua visibilidade ou
referencial. Assim procedendo, penso apontar para um trabalho mais direto de invisibilidade? É na ou pela representação? Sua presença tem valor iden-
enfrentamento da questão da materialidade da imagem fotográfica, assumida titário ou é apenas funcional, instrumental? etc” (DUBOIS, 2019, p.27).
plenamente pelos artistas que convoco. Fato é que, em lugar de uma “história da Por fim, na Conclusão conduzo algumas dicussões em torno de uma
fotografia”, proponho algo que, em termos rancierianos, bem poderia se dizer política das imagens repensada à luz das novas processualidades possibilita-
um “ percurso pelo tecido sensível do mundo”, ou seja, um embate direto com da pelo pós-fotográfico.
artistas comprometidos com o que permito chamar “processualidades-pós”.
Num momento subsequente, passo a apresentar algumas imagens *
de uma produção pessoal. Falo ali de um “reencantamento” do fotográ-
fico pois que as imagens que proponho são produzidas, informadas, a par- Cabem, aqui, algumas explicações sobre a feitura do texto que se se-
tir de dispositivos digitais, como constructos que entendem escapar aos gue. De imediato, procuro compor um texto que compartilhe experiências de
limites da representação, ainda que guardem por vezes referencialidade expansão do universo imagético. Faço-o ainda amarrado a preceitos que regem
na história da arte. Ao longo de minha dissertação, por vezes interrom- a fatura fotográfica em registro profissional, comercial. Assim, o radical pós
po com minhas imagens a textualidade, em seu fluxo argumentativo, como da conceito de pós-fotografia, seguramente ainda um tanto frágil, reveste-se
modo de reivindicar algum espaço de discursividade para semióticas he- para mim de particular conotação. Trata-se nesta dissertação de experimentar
terogêneas, disjuntivas, potenciais . Imageria um tanto experimental, he- outras vozes e outros olhares, a fim de ver legitimadas, por assim dizer, algu-
sitante, cadeias sígnicas atravessadas pelos influxos - estéticos e onto- mas heurísticas próprias, ávidas de se inscreverem nos devires das imagens
lógicos - que me surgem dos teóricos e artistas agenciados em meu texto. contemporâneas em tempos já posteriores ao digital turn que vivemos. Nesse
No capítulo que encerra a dissertação, insisto num sentimento re- intento, imagens serão inseridas aqui e acolá, ao longo do texto, como inscri-
novado do tempo em alguns artistas. Focalizo poéticas sensíveis ao acaso, ções de uma imanência do campo fotográfico que, quero crer, prima por sua
às circunstâncias, às predisposições do momento . Uma vez mais, não é o expansividade e intensidade a-significantes. Essas imagens não entendem ser
instante propício da fotografia analógica que me interessa, nem mesmo o ilustrativas, não têm a função de “acompanhar” o texto de forma direta , não
imaginário pós-humano que por vezes caracteriza a imagem numérica, mas são , de modo algum, apoios iconográficos. Antes, elas operam, em certa me-
os jogos de nuance, a retenção de imagens precárias, quase opacas, em fa- dida como uma “conexão abstrata” com o que é discorrido por entre os capítu-
vor de uma efabulação do olhar. Comento, pois, processualidades que sen- los; são tramas que se propõem como forma de trazer ao texto o apelo de um
tem a necessidade de estar à mercê de características imprevisíveis do sen- olhar háptico, próximo à materialidade do filme, a seus acidentes e, portanto,
sível . Tratar-se-ia, quiçá, de um modo de pensar das/com imagens, para a suas temporalidades. À evidência, nesse intento, as experimentações de Iole
além (ou aquém) da redundância da visão simultaneamente esquizofrênica de Freitas prestaram-me de suporte providencial, modo de assumir proce-
e consensual do dia a dia. Há , nesse momento, uma passagem a registro duralmente o caráter expandido do fotográfico que aqui entendo assimilar.
mais especulativo, quando evoco em Rancière uma “dinamitagem do tempo Em todo o texto que se segue, reconheço insinuada a figura do

20 21
experimentador que sou em matéria fotográfica. Uma figura que se estra-
nha, reconheço, por entre os meandros da teoria, do conceituário. Talvez
isso explique a brevidade desta introdução para um trabalho que se preten-
de um experimento e um esforço em pensar poéticas visuais de meu par-
ticular apreço que, de um modo ou de outro, apontam para uma condi-
ção-pós do fotográfico. Um trabalho em campo expandido do fotográfico,
reconheço, que me leva a deambular por meios e formas diversas, por re-
ferenciais um tanto misturados, extraviados, entre saltos e fragmentos sol-
tos, quiçá desenquadramentos um tanto desautorizados pelas normativas
acadêmicas, sobre fundo de desautorização do pertencimento identificador/
indiciador do fotográfico. Espero, por fim, que este seja um trabalho con-
dizente, ainda que modestamente, com o que me parece ser aceito consen-
sualmente hoje, qual seja, a condição inespecífica da arte contemporânea.

22 23
PELO
TECIDO
SENSÍVEL
DO
MUNDO

Imagem da página anterior:


Figura 3 - Gabriel Oliveira, Sem título #1, Chapa 4x5, 2022.

24 25
PARTE I

Pelo tecido sensível do mundo


“Como reencontrar essa extravagância, essa insolente liberdade que
foram contemporâneas do nascimento da fotografia? As imagens,
então, corriam o mundo sob identidades falaciosas. Nada as repug-
nava mais do que permanecer cativas, idênticas a si, em um qua-
dro, uma fotografia, uma gravura, sob o signo de um autor. Nenhum
suporte, nenhuma linguagem, nenhuma sintaxe estável poderiam
retê-las; do seu nascimento ou de sua última paragem, elas sem-
pre podiam se evadir através de novas técnicas de transposição”.
(Michel Foucault, 2009)

1.1. Alguns condicionantes teóricos e algumas imagéticas de refe-


rência

Como fotógrafo, interessam-me as imagens de autores que descuram


das indicialidades em favor de um mundo monocromático e granulado, aberto
a uma percepção marcada pela lentidão, pelas hesitações no desvelamento dos
segredos de uma imagem, de seus modos de se depositar ao longo do tempo,
no acúmulo das nuances. Razão porque constituirão paradigmas visuais nesta
pesquisa obras emblemáticas de um flerte requerido com as latências do tempo.
É fato que o tempo se faz presente em todo o meu trabalho, seja por
apropriação de tempos passados seja pelo interesse em fazer falar as diferen-
tes temporalidades junto à variações da luz. Trata-se de um trabalho que joga
constantemente com os tempos exigidos pela fotometria, com o quanto de
matéria luminosa disponho e com os tempos que podem se sobrepor na fatura
imagética. O próprio trato do precário, muitas das vezes, exige um tempo
estendido para se consumar. A própria deterioração das superfícies e dos acú-
mulos de camadas exigem o tempo como aliado na observância das formas
sensíveis em seu devir. O trabalho com o tempo, diga-se, tende a se sedimen-
tar na relação direta com as texturas e superfícies que vão se impregnando
Imagem da página anterior ao sabor da deposição do sensível. Cada camada tende a indiciar um tempo,
Figura 4 - Gabriel Oliveira, Alfred #1, 2023. mas cada tempo abre múltiplas possibilidades. O fotógrafo procura transpor

26 27
o tempo de uma fotografia a um tipo de imagem que pode apresentar algum mais orientação ‘natural’ em relação aos eixos do mundo real” (KRAUSS,
futuro, um futuro não indicial, um futuro de imagens libertas tanto quanto um 2002, p. 143). Digamos, pois, que a fotografia aqui não se conforma a uma
passado que se atualiza ao relampejar constelações de imagens abandonadas “categoria a priori”, não demonstra uma essencialidade, ou melhor, uma es-
ou esquecidas, para reter os termos de Benjamin. Penso em um fotógrafo-tra- pecificidade como médium – algo que aliás as leituras de Rancière ajudam a
peiro, instado a percorrer um passado de fissuras e ruínas, de dejetos quiçá confirmar –, mas um “trabalhar às cegas”, um trabalho que comporta o “risco
prometidos a um experimento vivo de reconstrução de tecidos sensíveis insus- inerente à criação de toda obra de arte” (KRAUSS, 2002, p. 143). O risco
peitos por força da ação de dispositivos diversos na hibridização dos meios. a que não ouso incorrer em minha produção fotográfica profissional talvez
Uma das forças desses acontecimentos de imagens reside justamente possa ser nesta pesquisa visto com olhos mais generosos. Esperando que um
no fato de a imagem não se substancializar, de modo que se pode procurar pela “trabalhar às cegas” não migre de minha produção imagética mais artísticas,
ressonância em um aparente emudecimento de sua pertença canônica . Procuro digamos, às presentes páginas de alguma argumentação mais concertada.
entender em vozes inauditas certa contundência que o indicial se presta a calar;
procuro preservar, na medida do possível, o espanto e impacto que cada imagem
pode promover uma vez saída da especificidade, do próprio, da propriedade.
Forneço, pois, a seguir um exemplo dessa heurística pes-
soal, uma imagem que ruidosamente expressa o esgotamento do pró-
prio dispositivo, como sugeriu Vilém Flusser, um intento de promover
o encontro com a potência do tempo e a precariedade de sua apreensão.
De imediato, localizo um paradigma visual ao mesmo tempo em que
teórico. Refiro-me ao estudo que Rosalind Krauss, em O Fotográfico, dedica
à série Equivalentes (1923-1931) de Alfred Stieglitz. Ali, a “composição im-
prevista, fortuita, ao acaso de algum agenciamento acidental” do americano
permite perceber um fotográfico infenso a uma rigorosa fundamentação da
composição. A imagem parece propositalmente arrancada de sua ancoragem
no mimetismo ( e seus modos de orientação espacial), mimetismo que o re-
corte fotográfico a princípio contemplaria. Desbaratada a representatividade
das nuvens em Equivalentes, indicialização do atmosférico, as nuvens são
transformadas em “signos não naturais”, afirma Krauss, transpostos para a
“linguagem cultural da fotografia” (KRAUSS, 2002, p.142). Assim, o recorte
deixa de ser “mero fenômeno mecânico”, e passa a ser elemento constitutivo
da imagem, o fator que torna a fotografia “uma absoluta transformação da
realidade”. O que deixamos para trás nessa perspectiva? O que precisamente
penso estar presente na fotografia de minha produção pessoal, qual seja, o fato
de elas deixarem de ser o que “sempre pensamos que fosse – o possível pro-
longamento da experiência de nossa presença material no mundo” (KRAUSS,
2002, p. 142). Não será caso, pois, de ver que as imagens aqui veiculadas, à
semelhança do que esclarece a teórica americana, são imagens que perde-
ram o seu fundamento, sua especificidade? Ou melhor, que “não possuem

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É por conta do que aqui registro que constituirão igualmente referencial
os trabalhos de Rosângela Rennó e Óscar Muñoz, em trabalhos onde a memória
se constrói sobre os signos do apagamento. Vejo em ambos processualidades
como modos de pensar das/com imagens, para além (ou aquém) da redundân-
cia da visão simultaneamente esquizofrênica e consensual do dia a dia. Razão
porque haverá também que se evocar os trabalhos de Eric Rondepierre e de Bill
Morrison junto a opacidades das imagens enquanto materialidade: trabalhos
que procuram pelos rastros de uma temporalidade própria às imagens, inde-
pendentemente das intencionalidades expressivas que sobre elas projetamos.
Leio em Philippe Dubois, a propósito do conceito de pós-fotografia,
que ele “propõe pensar as imagens através de conceitos ligados a uma ideia
de história ferida, que olha, observa e recicla tempos e imagens em dinâmicas
de avanços e recuos onde o futuro pode reencontrar, cruzar ou reunir-se ao
passado” (DUBOIS, 2019, p. 22). Este trabalho, que aqui se inicia, sobre o
signo das indeterminações, vê-se refletido nessa dinâmica temporal assumida
por um renovado dispositivo fotográfico, modo expandido por excelência.
A proposta, como já se disse, é aquela de uma heurística junto às intermitên-
cias visuais, a partir do retrabalho que a expansividade dos meios e suportes
artísticos promove da materialidade da imagem e da historicidade particular
que esta enseja quando deslocada de sua indicialidade de fundo. Em certa
medida, como afirma Vilém Flusser, “o fotógrafo age em prol do esgotamento
do programa e em prol da realização do universo fotográfico” (FLUSSER,
2009, p.23). Esgotar um programa implica, entende-se, ir em busca daquilo
que está além do premeditado, além daquilo que se espera que a fotografia
diga, abrir-se mesmo a alguns imprevistos. Talvez nas paragens da pós-foto-
grafia encontremos experiências visuais dessa ordem, consequências diretas
da crise da especificidade do meio durante as últimas décadas.

Nesse sentido, vejo minha produção pessoal - que comparece-


rá aqui em diálogo com a teoria - próxima do que nos fala Dubois acer-
ca de uma historicidade construída não mais sobre a linearidade contínua
(antes/depois), mas sobre circunvoluções, disseminações, transversali-
dades. “Numa historicidade”, diz ele, “a questão da sobrevivência das for-
mas e do retorno das configurações de outros tempos é pensada e mesmo
indispensável”. Assim, a noção de pós-fotografia permitirá transpor os li-
mites de minha mesa de trabalho como fotógrafo profissional para procu-
rar a frequentação, para mim inusual, das encruzilhadas dos conceitos e

Figura 5 - Alfred Stieglitz, Equivalentes, 1923-1931.


Ilustração em R. Krauss, O fotográfico, 2002, p.139.
30 31
argumentos, uma proposta que motiva abrir perspectivas e não fechar con- .
ceitos, que permite um caminho entre planos argumentativos e visuais di-
versos, de modo a criar tensões entre variegados modos de representação.
Para tanto, tomo de outro referencial importante do pensamento de
Georges Bataille: o contra-conceito do informe. Um fator de desclassificação,
de rebaixamento das formas em suas usuais evidências poderá enriquecer
essa posição de alargamento que busco em minha pesquisa. “Informe não
é apenas um adjetivo que tem este ou aquele sentido, mas um termo que
serve para desclassificar, exigindo geralmente que cada coisa tenha sua for-
ma” (BATAILLE, 2018, p.147). Pensarei, pois, minha própria produção fo-
tográfica como um desmonte de conformidades e, mesmo, procurarei fazer
falar a forma em seus acidentes internos, em sua incapacidade de “envelhecer
honestamente no céu das universalidades”, para reter passagem de Bataille.
Nesse contexto do esgotamento, onde a precariedade toma forma
e os erros e acasos são caminhos vitais para apreensão de novos-mundos-
-possíveis, a imagem a seguir me aponta sinais do quão rica essa trilha pode
ser. Ela evidencia a resultante de uma chapa 4x5 ILFORD HP5 PLUS 400
mal encaixada em seu chassi. Não se trata de referenciar a retidão de todo
o ato fotográfico; não se encontra na heurística aqui preconizada a exatidão
mecânica dos processos usuais. O que não significa que o método de pro-
dução seja menos cuidadoso e rigoroso. A permissividade que as imagens
oferecem, de serem outra coisa além do esperado, transborda para todo o
processo. Nesse sentido, retenha-se que as chapas 4x5 são armazenadas em
chassis encaixados de forma a ficarem rentes e paralelos ao ponto de inci-
dência da luz onde a imagem se forma. Razão porque qualquer desvio nesse
paralelismo resulta em deformações e grande imprevisibilidade na imagem
a ser formada. É possível, pois, constatar o desvio no presente caso: na par-
te inferior da imagem, ela encontra-se abaulada, diferente do usual. Não se
trata, diga-se, de um erro que o laboratório poderia ter identificado: é, antes,
um desejável desacordo, um feliz desentendimento acerca do fotográfico.

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Assim pautado meu olhar de fotógrafo e, agora, de pesquisador, a dis-
posição de espírito se fará particularmente desafiadora. Olhar para as bordas
entre uma coisa e outra, como lugares desclassificados, onde os limites não
estão necessariamente bem definidos, bem “encaixados”, olhar para os extra-
campos insinuados, para usar um termo da própria fotografia, seria algo quiçá
próximo ao que chamamos em teoria fotográfica círculos de confusão. Seria
frequentar paragens onde a imagem não se forma com premeditada nitidez,
deitar olhos sobre pontos onde a imagem focaliza, em maior ou menor grau,
a profundidade indefinida de seu campo. Sabe-se que quanto menores forem
esses ciclos de confusão maior a nitidez que chega ao olhar. Focalizar o que
merece ou não destaque de maneira alguma implica em se ater ao ponto fo-
cal da imagem, embora a característica desta passe pela distinção do que se
torna mais ou menos visível. Uma característica que invade outros domínios
e os modifica substancialmente sem pertencer exatamente a eles: eis o que
mais corretamente se diria em termos de indeterminação no registro do fo-
tográfico. O ponto merecerá, oportunamente, os devidos desdobramentos.
Se convoco aqui o conceito de pós-fotografia é porque en-
tendo que na posteridade de toda indicialidade dominante, tem-
po que já vivemos inequivocamente, ganha predominância cer-
ta pensatividade da fotografia, bem caracterizada por Rancière:

“A pensatividade da fotografia poderia [...] ser definida como


esse nó entre várias indeterminações. Poderia ser caracteri-
zada como efeito da circulação entre o motivo, o fotógrafo e
nós, do intencional e do não intencional, do sabido e do não
sabido, do expresso e não expresso, do presente e do passa-
do. [...] A pensatividade da fotografia seria, então, a tensão en-
tre vários modos de representação.” (RANCIÈRE, 2012, p. 110)

Uma tensão e uma heterogeneidade que levam a pensar inicialmen-


te algumas postulações que corroem uma taxonomia impeditiva da flui-
dez dos conceitos entre a materialidade do grão e a imaterialidade da luz,
ou então da relação com tempos entendidos em suas intermitências. O que
leva, por fim, a desautorizar especificidades que possam valer como ca-
bedal estruturante para definir o que é ou o que não é arte. Rancière nos
lembra que há uma exigência de que a arte seja sempre ao mesmo tempo
Imagem da página anterior: outra coisa diferente da arte. Neste trabalho, já se disse, procurar-se-á fa-
Figura 6 - Gabriel Oliveira, Sem título #2, Chapa 4x5, 2022 zer com que a fotografia apareça como outra em relação ao que constitui

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Olhar para a imagem e perceber as suas espessuras físicas talhadas mostra Rosângela Rennó, com seu trabalho constante de apropriação e ressig-
pela luz e cobertas por inúmeras temporalidades é uma pista de como a foto- nificação de imagens anônimas. Das gavetas e seus odores de naftalinas que
grafia pode ser entendida como algo vivo e dinâmico. E a atenção a esse olhar saúdam um passado e uma forma de se relacionar com as imagens totalmen-
se detém menos a um todo acabado do que ao que sobra e ao que resta dessa te distintas da percepção atual, ressurgem certas fantasmagorias com força
experiência visível, um interlúdio a apontar para círculos de confusão onde a de revigorar uma potência recalcada da imagem com virtude de crítica da
indeterminação se torna mais latente. Essa é uma perspectiva que inevitavel- ideologia visual contemporânea. Com o que compreendemos que o que ga-
mente implica numa reconsideração das materialidades da imagem - como nha opacidade toma mais importância do que aquilo que se retém na nitidez.
o faz Eustáquio Neves ao produzir a migração da questão da memória ao
trabalho com os negativos em suas deliquescências. Assim, suas imagens são
exemplares de uma migração dos meios, relacionando-se de forma concreta
com a constituição física do meio digital e analógico. A característica informe
que elas produzem, manipulação direta dos pixels (ou das químicas), pode ser
vista como um desmonte, uma forma de abrir caminho para o fim de uma ser-
vidão temática, e como uma forma de liberar o olhar para outras formas cons-
tituintes, junto à materialidade mesma da imagem. Como sustenta Susan Son-
tag, o ato de fotografar pode ser interpretado como “forma de conhecimento
lúcida e precisa, de inteligência consciente”, mas também pode ser tomada
como “modo de encontro pré-intelectual e intuitivo” (SONTAG, 1981, p. 112).
Se imaginarmos uma porta entreaberta por onde passam alguns ras-
tros de luz, a condição pós do fotográfico é responsável por arrancar o parco
fecho que a mantinha encostada. Ao escancararmos essa porta, permitimos
que a imagem não fique refém de caminhar somente por essas frestas que
um saber particular autoriza, instrumentaliza e normatiza. E essa luz que nos
convida a olhar para além da porta é o digital, que cumpre o papel de es-
cancarar a força luminosa de outras potências que estiveram presentes no
percurso fotográfico e estão em constante manifestação. Cumpre, porém, as-
sumir, que esse renovado entendimento do sensível que o pós apresenta não
fica restrito às imagens digitais; estas são a ponta do novelo para identificar
como a lógica do pós está presente do digital ao analógico, dos grãos aos
pixel. Numa contumaz ida e vinda, avanço e recuo, em trabalhos de tempos
e media diversos, a luz do presente inespecífico reforça persistentes formas
de lidar com a imagem do fotográfico descoladas de uma estabelecida nor-
mativa. Pode-se mesmo assumir um perambular por um anacronismo, como
apregoado por Didi-Huberman (2013) para todo envolvimento com imagens.
Assim, observamos como imagens dos álbuns de família, que têm garanti-
da sua função afetiva de registro do tempo, são reconvocadas para afetar a
própria estrutura do que as configuram como imagem. É, afinal, o que nos

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Ou melhor, o modo como o presente solicita seus próprios dispositivos “A fotografia-documento torna-se parede cega: local de pro-jeção de
de expressão por força da viragem técnica que o caracteriza. Nesse tocante, e fantasmas e desejos – local do desaparecimento, da ausência e não
por ser eu mesmo um profissional do fotográfico que vivencia da presença, como costumamos ver as fotos. Es-tamos, talvez,
cotidianamente tal viragem, talvez eu deva, de imediato, assumir a diante do nascimento, de dentro da fotografia analógica, da
pós-fotografia”.(SELIGMANN-SILVA, 2014, p.16)
perspectiva de Rancière. Mesmo porque o filósofo pensa a técnica como um
“processo global que dissol-ve a especificidade da arte”, bem como recusa
para a materialidade “o simples modelo instrumental” (RANCIÈRE, 2016, Poderíamos, ainda, reter o que se passa na instalação Imemorial,
p.40). Minha adesão a Rancière se deve precisamente a essa ideia de de 1994, onde o olhar contemporâneo é convidado a frequentar uma
“desespecificação” que sua perspectiva da modernidade apresenta, Tal cena invisível, jamais referenciada: a morte de operários na construção
aponta para uma indiferenciação das diferen-tes técnicas , “uma de Brasília. Na parede, a artista pendura fotografias em película ortocro-
neutralização que autoriza as transferências entre fins, os meios e os mática. O arquivo-morto é ali convocado em remontagem de imagens
materiais das diferentes artes, a criação de um meio próprio de desconstruídas, evitadas em sua referencialidade rasa, na transparência
experiência que não é determinado nem pelos fins da arte, nem pelos da ofuscante da indicialidade oficial da capital monumental. Um desvio da
técni-ca, mas organiza-se segundo os novos recortes entre as artes e as condição escópica de um lugar arquiconhecido em favor de uma ope-
técnicas, tal como entre o que é arte e o que não é arte” (RANCIÈRE, 2016, ração “de não ver para crer” (PEDROSA, 2018, p.213). Evidência do
p.40). O que apresento aqui como uma “perspectiva do pós” talvez seja caráter inespecífico d e u m r egime-pós d a i magem f otográfica, on de ela
diretamente tribu-tária da posição rancieriana que privilegia a se esvazia de todo registro de pertencimento a procedimentos regula-
indiferenciação dos media, mais que propriamente uma especificidade do tórios. O presente estudo entende explorar o potencial sugestivo de tal
pós-fotográfico. A dita “pós-fotogra-fia”, ou mesmo a noção de “pós-
inespecificidade d o f otográfico, se u ca ráter ex pandido , nã o no sentido
imagem”, talvez não seja mais que “uma me-dialidade que escapa às
de uma ampliação dos efeitos, como ressaltou acima Rancière , mas de
teleologias da finalidade imperiosa ou do meio devo-rando o fim, que não
um “questionamento da relação causa-efeito” em favor do cruzamen-
reconduzem nem a uma ideia da soberania da arte, nem a uma ideia da
to dos suportes e matérias, dos tempos e espaços, do real e do ficcional.
dissolução da arte no mundo técnico” (RANCIÈRE, 2016, p.40).
Se apontamos desde já a uma indiferenciação de meios e a uma de-
Notável, nesse sentido, como o dispositivo fotográfico pode
sespecificação da arte contemporânea, características do pós, então talvez
remeter a uma espécie de cegueira que envolve também a recepção da
seja caso de retermos, antes de avançar, como Rancière assinala uma das
fotografia. Na série Parede cega (1998-2000), de Rosângela Rennó,
consequências dessa arte inespecífica que aqui intitulamos pós-fotografia:
vemos dispostas na conhecida disposição em grade várias molduras
fotográficas tradicio-nais desprovidas de qualquer imagem. A
“Essa indiferenciação, no entanto, não significa a supressão da
superfície da verticalidade de exposição se recusa a abrir como uma arte em um mundo de energia coletiva que carrega o telos da tec-
janela no espaço-tempo. A mediali-dade muda de função. Como assinala nologia. Pelo contrário, implica uma neutralização que autoriza
Seligmann-Silva (2014, p.15), “tudo é cego nessa obra que revela o transferências entre fins, meios e materiais das diferentes artes, a
ponto cego da nossa visão fotográfica. Ao olharmos essa série vemos criação de um meio específico da experiência que não é determi-
apenas a falta, a desaparição, sem seu avesso de presença, sem o nado nem pelos fins da arte nem pelos da tecnologia, mas que está
enfático “isto foi– isto é” que toda fotografia parece di-zer”. O que se vê, organizado segundo novas interseções entre arte e tecnologia, as-
complementa, é a imagem como pura performance, sem qualquer lastro sim como entre arte e o que não é arte.” (RANCIÈRE, 2016, p. 42)
de referencialidade. Tomemos essa imagem de uma crise da
representação no seu sentido documental como derradeira referência.

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1.2. A dimensão histórica do pós metros estéticos (DUBOIS, 2019, p.26). Assim como um desafio a se tra-
balhar com uma “lógica do pós” com particular “potência operatória”.
Precisamos entender, agora, quais as implicações do emprego da Somos levados então a observar uma “migração dos dispositivos”,
ideia de um regime do pós. Para tanto, não podemos senão nos acautelar que identifico de imediato com o que Rancière nos fala sobre uma “sub-
tendo em vista a lição de Didi-Huberman: “a relação unilateral entre o post versão das hierarquias da representação” e uma “focalização fragmenta-
e o ante - em que se supõe que o primeiro torna o segundo obsoleto - tem a da” contra os “encadeamentos racionais da história’ (RANCIÈRE, 2018,
simplicidade, e mesmo a arrogante trivialidade, das falsas evidências” (DIDI- p.35). Vejo também reflexos no modo como , em O espectador emanci-
-HUBERMAN,2019, p.66). Com Philippe Dubois, vemos como “as ligações pado (2012, p. 118), Rancière comenta a “presença latente de um regime
entre o pós e o pré vêm informar um pensamento da história das formas e das de expressão em outro”, o que o leva a falar de uma “pensatividade” das
práticas artísticas, aberto, paradoxal, ziguezagueante, labiríntico’, anacrôni- imagens, ou melhor, de uma “lógica expressiva indeterminada”. Ressalto
co” (DUBOIS, 2019, p.23). Há um ensinamento metodológico a se retirar que Rancière foi minha inicial referência ao começar este estudo. De modo
disso, e que tem fundamentado esta pesquisa em suas incursões pelo fotográ- que procuro cotejar aqui sua leitura da modernidade e o discurso do pós em
fico, por sua história e por algumas de suas poéticas mais contemporâneas. sua retórica do novo por ruptura. Há que se fazer o devido balanço, desde
“Se a linearidade cronológica e seu finalismo não ordenam a tempo- já, entre as duas perspectivas. Mas também cumpre perceber como a cate-
ralidade do pós, então a qual tipo de historicidade ela se abre?” A pergunta é goria do pós tem despertado, como mostra Dubois, algumas turbulências.
feita por Dubois, ciente que o discurso do pós tem suscitado polêmicas. A in- O que me parece o cerne dessas primeiras críticas à ideia de pós-foto-
dagação talvez deva se fazer acompanhar de uma outra, voltada à natureza de grafia está mais ligado a uma querela epistemológica na qual o materialismo
uma imagem em perda de indicialidade. De fato, ao discorrer sobre a passagem histórico enfrenta os pensamentos pós-modernos. Identifico uma vociferante
de uma imagem-traço a uma imagem-ficção, Dubois se pergunta sobre a natu- crítica ao que o termo pós carrega mais do que a esse recente campo que pro-
reza de um novo regime icônico que caracterizaria, a princípio, a atualidade: põe olhar para a fotografia por novos prismas. Ao utilizar o termo pós a crítica
desponta como algo mais da ordem de um embate epistêmico do que propria-
“A partir do momento em que a fotografia não é mais definida ‘ab- mente como uma posição contrária ao que Dubois sugere. Seja como for, esse
solutamente’, em seu princípio ‘original’, como uma captação do embate que movimenta paixões não é uma questão a ser pensada nessa pesquisa.
real; a partir do momento que sua identidade não tem mais rela- No entanto, por se tratar de um campo renovado, expandido em sua
ção com sua natureza de simples ‘captura’ de um lampejo do mun- capacidade de “desdobramento ou transbordamento específico”, para reter a
do, mas com alguma coisa que faz dela uma representação que expressão de Didi-Huberman (2013, p.12), torna-se natural o emprego de
pode não corresponder a uma coisa real, ou seja, que pode (essa
novas palavras, conceitos e categorias que deem conta de entender e explicar
é apenas uma possibilidade, não uma necessidade) ter sido ‘inven-
o que se propõe. O pós encontra-se exatamente nesse ponto, em um lugar de
tada’ (no todo ou em parte) por uma máquina de imagem, então
como podemos pensar essa tal imagem?”(DUBOIS, 2017, p. 44) disputa, de entrecruzamentos dos motivos, modo de movimentá-los. Cumpre,
pois, aceitá-lo em sua eficácia crítica. Como se depreende do curto texto de
As práticas contemporâneas do fotográfico, como se disse, permi- Fontcuberta Por un manifiesto posfotográfico, publicado no jornal La Van-
tem falar de uma “história em ziguezague”, labiríntica, afeita a anacronis- guardia (11/05/2011). Esse ensaio faz um levantamento rápido de como a
mos. Uma clara contraposição ao tempo linear unidirecional, aquele das fotografia em suas distribuições e veiculações se transforma com o digital,
sequências fílmicas frame a frame, cedem terreno em muitos artistas con- propondo um decálogo de novas bases acerca do pós. Mas estou mais inte-
temporâneos a modos de descontextualização, de desenquadramento. Não ressado na resposta que esse manifesto suscitou no texto de Michel Oliveira
por acaso Dubois evoca uma força desejante em perda de organicidade. De “Pós-fotografia? Que nada: hiperfotografia”. Por um lado, grande parte dos
imediato, temos aqui uma inicial caracterização de um desmonte de parâ- argumentos empregados para criticar Fontcuberta são os mesmos que coa-

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dunam com a noção de pós em Dubois. Nas palavras de Oliveira, a crítica sistamos, é como uma imagem inespecífica, produto ou não do digital,
ao pós se mobiliza em torno de certa defesa do materialismo e, nesse caso, independe do desdobramento tecnológico do dispositivo. Para funda-
o pós de Dubois se afasta. Entendo que se trata mais de uma abertura a no- mentar minha posição, impõe-se um percurso temporal que possibili-
vas possibilidades expressivas do que uma defesa ontológica do que a foto- te percepções para além da possibilidade indicial da imagem fotográfica.
grafia deva ser. E, nesse recorte, a diferença aparece de forma mais precisa. Longe do que pode parecer, esse pós-fotográfico não encampa a re-
tórica do fim da história e tão pouco do fim da fotografia. Parece-nos que
“Dizem que a fotografia é outra coisa, como se o artefato fos- o digital tão somente renova aquilo que a imagem sempre nos proporcio-
se definido pelo uso, e não por sua ontologia. E, nesse ponto, nou. Uma ressalva importante é que a disputa de quais palavras serão usadas
sou materialista. Porventura mudou a matéria-prima da foto- não é algo irrelevante. No entanto, dentro de tantas possibilidades que esse
grafia? Não. Continua a ser produzida pela ação luminosa fixada campo expandido apresenta, o termo pós é algo que a história dirá se foi o
em uma superfície, que já foi metal, vidro, celulose, papel, até
mais bem empregado. Atualmente, penso que ele ajuda a entender por onde
se desmaterializar como código binário, afinal, vivemos tem-
caminha essa imagem que fratura a indicialidade, com as consequentes mu-
pos informáticos. Mas a luz – com sua companheira inseparável,
a sombra – continua sendo a base primordial das imagens estáti- tações na fatura visual e nos modos de recepção das experiências sensíveis.
cas registradas pela câmera, agora digital”. (OLIVEIRA, 2021) Tomemos do trabalho Vera Cruz de Rosângela Rennó, quando a
artista trata de mobilizar a “máquina de fazer imagens” para cumprir, so-
Voltando a essa disputa nominalista, o texto de Ronaldo Entler “Pa- bretudo, seu papel de produzir, inventar e ficcionalizar imagens. Aqui-
radoxos e contradições da pós-fotografia” traz um panorama dos usos desse lo que ela pode retratar se apresenta numa outra forma de representação,
pós ao sustentar: em um “documentário do impossível” sobre a chegada dos navegantes
na terra de Vera Cruz, o que quebra uma linha cronológica por ficciona-
“A fotografia das últimas décadas já foi construída, híbrida, pen- lizar um registro fílmico de evento anterior à existência desse recurso.
sante, contaminada, expandida, plástica etc. O termo pós, com
seu sentido de ultrapassagem, surge como uma retórica tur-
binada nessa corrida que, nos últimos trinta anos, a fotogra-
fia contemporânea disputa consigo mesma para afirmar que o
momento mais disruptivo é sempre agora”. (ENTLER, 2020)

Fato é, ressaltemos, que o disruptivo já está em autores do analógi-


co - como a fotografia expandida de Eustáquio Neves, ou a fotografia apro-
priativa de Rennó, para ficar apenas em dois exemplos. O que justifica certa
ressalva à linha de Dubois a respeito da questão do pós acima insinuada.
Se, em muitos momentos, determinadas palavras nos apontam o caminho,
os arcabouços teóricos e as chaves de entendimentos por onde a pesquisa
entende passar, fato é que a ideia de pós está longe de garantir unanimidade .
E para entender as inquietudes que isso gera torna-se relevante apontar para
as críticas suscitadas pelas propostas girando em torno do pós-fotográfico.
A abrangência que minha perspectiva assume, ao optar pela no-
ção de campo expandido, coloca-a ao abrigo de qualquer entendi-
mento totalitário das imagens contemporâneas. O que está posto, in-

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1.3.Ìndice e ficção: alguma teoria e alguma polêmica pecificidade de natureza” pautada na indicialidade do real . Lemos:

Tendo apontado para essa polêmica geral em torno do pós, cabe “A transformação é radical, primeiramente, porque todas as teorias
ingressar numa leitura mais precisa dos textos de Dubois, onde eviden- do ‘Fotográfico’ dos anos 1980 repousavam sobre um princípio fun-
ciar um embate entre o dispositivo fotográfico e a própria história da arte. damental, primordial já que genético (ligado à gênese da imagem,
a seu processo mesmo de constituição, a seu dispositivo – e foi por
Antes de nos ocuparmos da “ultrapassagem do “índice” pela “fic-
isso que ele foi ‘ontologizado’): o princípio do traço, da impres-
ção”, tão debatida atualmente, seria caso de mencionarmos uma “insis- são, do ‘isto foi’, do índex (índice). A partir do momento em que
tência no caráter indexical das imagens fotográficas”, uma “feroz tenaci- este princípio genético da ligação orgânica com o real se torna o
dade do índice” de que fala, dentre outros, o teórico Benjamin Picado. Há fundamento da pretendida identidade do médium, uma especifici-
nesse autor uma defesa do “argumento do dispositivo” que merece mi- dade ‘de natureza’, fica claro que o digital ameaça diretamente essa
nha atenção como fotógrafo. É fato que ele associa a fotografia à “estru- ligação entre a imagem e seu ‘referente real’. Ele vem cortar a li-
turação dos gêneros de experiência de testemunho visual consagrados gação ‘visceral’ da imagem com o mundo. A imagem digital não
por instituições, modelos e práticas culturais em torno da imagem pic- é mais, como a imagem fotoquímica (analógica) uma ‘emanação’
tórica” (PICADO, 2017,p.63) . O que enseja uma proposta de tratar a fo- do mundo, ela não é mais ‘gerada’ por ele, ela não se beneficia da
tografia junto à história da arte e não pelo “argumento do dispositivo”. ‘transferência de realidade’ (para retomarmos a expressão de An-
Para acompanhar a linha de argumentação de Picado, cumpre passar dré Bazin) da coisa até a representação. E assim, tudo muda, tudo
oscila, e tem que ser reconsiderado.” (DUBOIS, 2017, p. 41-42).
pela crítica que ele move a Dubois, um dos defensores da ideia de um pós-fo-
tográfico triunfante como disposição contrária às indicialidades ortodoxas.
Minha tendência é corroborar a leitura de Dubois. Mas há que se
Em dado momento, lemos: “o gesto pelo qual Dubois salienta as ‘potências
considerar o juízo de Picado segundo o qual Dubois não inscreve as “po-
ficcionais’ da fotografia [...] é não apenas equivocado em sua motivação (ao
tências ficcionais” da fotografia nos “movimentos em curso no mundo da
associar essa nova inflexão às mudanças acontecidas nos dispositivos fotográ-
arte” (PICADO, 2017, p. 65). Nesse debate sobre o caráter representacio-
ficos), como é também anacrônico”(PICADO, 2017, p. 65) . Picado, diga-se,
nal da fotografia, importaria quiçá, como defende Picado, considerar uma
corre a favor de uma “compreensão ‘histórica’ de uma cultura visual que não
fenomenologia da experiência visual que dê conta das mudanças nos “modos
faz tamanha distinção entre modalidades tecnológicas da produção da ima-
de ver” (PICADO, 2017, p. 69). Entendo que o presente texto propõe algo
gem”, apontando “em outra direção da valorização das alegadas ‘potências fic-
nesse sentido, ainda que indiretamente, a partir de minha experiência profis-
cionais” da imagem fotográfica’ (PICADO, 2017, p. 66). Na verdade, em seu
sional na fotografia. Mas retornemos, antes, à perspectiva de Dubois, posto
texto, Picado propõe a crítica em duas frentes. Primeiramente, por um enten-
que ela , a julgar pelo texto Pós-fotografia, Pós-cinema, sente-se adequa-
dimento maior dos “quadros históricos das práticas fotográficas”. Em segui-
da a explorar a “expansão do universo imagético” na contemporaneidade.
da, pela valorização de uma “experiência da imagem” de modo a contrapor a
Da imagem-traço à imagem-ficção, temos um percurso de peso a ex-
hegemonia do índice e do dispositivo, sobretudo para afirmar uma ficcionali-
plorar. A se iniciar com um balanço acerca das teorias do fotográfico feitas nos
dade já presente no percurso do fotográfico, independente da mudança do dis-
anos 1980. Comparativamente, os anos 80 e os anos 2010, com a ideia de pós-
positivo do analógico para o digital. Essa análise parece bem ajustada ao que
-fotográfico, constituem períodos de descobertas de novos territórios teóricos,
entendemos sobre a processualidade de um fotográfico em campo expandido.
ainda que mobilizando argumentos distintos. No período em que a fotografia
Vejamos como Dubois apregoa a ultrapassagem do “índice”
era apenas analógica, a ideia de uma especificidade tornara-se importante para
pela “ficção” identificando-a tão somente com a mudança histórica ocor-
afirmar e demarcar esse novo campo, distinguir a diferença entre os meios como
rida no interior dos dispositivos tecnológicos da fotografia – “com a
a pintura e o cinema. Tratava-se de um “período de invenção da ‘fotografia como
passagem do paradigma argêntico para o digital” e o fim de uma “es-
questionamento de um objeto teórico’” diz Dubois (2017, p.34), um momento

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de afirmação que, segundo o autor, se apresentava a partir de três categorias: “o digital, em termos de dispositivo, literalmente aplainou, apagou,
anulou as diferenças ‘de natureza’ entre os diversos ‘tipos’ de imagens
“[...] de início a ideia de um “noema” da fotografia (termo utili- (pintura, fotografia, filme, vídeo etc.) - e mesmo entre textos, imagens
zado por Roland Barthes para propor uma essência do médium), e sons, todos alojados sob a mesma insígnia digital indiferenciada da
noção que sustenta a fórmula do “isso foi”. Sobretudo (pois a sua reprodução e da transmissão dos ‘sinais’ da informação. Finda a car-
utilização foi massiva - mesmo que ainda não inteiramente domi- tografia dos tipos de imagem, não há mais uma terra incognita. Do
nada - por mais de dez anos), o conceito de índex (ou índice - por ponto de vista do digital, não há diferença entre um texto, uma imagem
distinção com o ícone e o símbolo), termo emprestado do semióti- e sons; tudo é reduzido à base ‘informacional’ dos data, ao mesmo
co americano Charles Sanders Peirce e que é convocado sucessiva- substrato de sinais codificados digitalmente.” (DUBOIS, 2017, p.41)
mente por Dubois, Van Lier, Schaeffer, Brunet). E, finalmente, ao
término da década, esse movimento invoca a conhecida noção do Inicialmente, o pensamento do fotográfico trabalhou custosamente
“Fotográfico” (é o título do livro de Rosalind Krauss que fecha os para criar bases sólidas a respeito de sua especificidade ontológica, seu modo
anos 1980) como categoria em si e para si.” (DUBOIS, 2017, p.38) de ser indelével. Visava-se inserir na bibliografia da arte o ato fotográfico
(para aludir ao livro do próprio Dubois, publicação incontornável desse pe-
A perspectiva de Barthes corresponderia à fotografia como pensa- ríodo), a fotografia e suas imagens. No entanto, o digital e a força do contem-
da inicialmente, com a operação do isto-foi pelo qual toda fotografia re- porâneo forçaram nova perspectiva a partir de um Real doravante sob uma
vela-se uma imagem da morte, portanto do passado. A categoria do índi- “insígnia digital indiferenciada”. É aqui que se insere o pós-fotográfico, com
ce estabelece um traço incontornável que liga a imagem com a realidade. a questão: de que maneira podemos pensar a imagem que abandona o traço
A década seguinte se depara com a entrada em cena do dispositivo digital. e parte para a ficção? Em resposta, Dubois passa a apontar para a “represen-
Essa novidade gera inicialmente duas respostas antagônicas e ao mesmo tação de um ‘mundo possível’, e não de um ‘ter-esta-ali’ necessariamente
tempo complementares. A primeira trata de entender que o “futuro será di- real”. O isto-foi de Barthes não responderia mais à urgência que se insere num
gital”, que estamos em face de uma “revolução copernicana”: um entusias- “está-aqui”, algo presente que podemos aceitar ou recusar na mesma medi-
mo que passa a negar o analógico como algo que não tem mais espaço nes- da. Não se trata mais da imagem-traço, mas de algo que é da ordem de um
se futuro digital. Philippe Quéau é o responsável por essa percepção. Jean
Baudrillard e Paul Virilio encabeçam o outro lado, ao entenderem esse dis- “ mundo plausível, que possui sua lógica, sua coerência, suas
positivo como um apocalipse digital. O digital que tudo ameaça, transfor- próprias regras. Não se trata de um mundo ‘à parte’, que tem
ma tudo em falso, “nos faz perder nossas referências, suspende toda liga- como referência algo para além, mas de um mundo tão aceitá-
ção com o real, dissolve o mundo na Simulação” (DUBOIS, 2017, p.43). vel quanto recusável, sem critério de fixação e que existe no seu
Num primeiro momento, frente à novidade do digital, é esperado ato mesmo de mostrar-se, presentificado e presente, sem ser ne-
certo espírito de entusiasmo assim como as vozes daqueles que irão denegar cessariamente o traço de um mundo revelado, contingente e an-
terior. Uma imagem pensada como um universo de ficção e não
a novidade. De fato, passada a euforia, os embates dos primeiros momentos,
mais como um ‘universo de referência’.” (DUBOIS, 2017, p.45)
Dubois assinala que, no momento presente, não se trata nem de um caminho
nem de outro. O digital turn proporciona , acima de tudo, a relativização do
O que a imagem-ficção carrega é uma mudança de estatuto na forma
discurso ontológico. Dubois assume todo desmonte como um próprio acerto
pela qual trabalhamos com as imagens vindas do fotográfico. Imagens que
de contas com aquilo que vigorou e tomou fôlego na década de oitenta. Afinal,
são postas em circulação não mais por referenciarem um passado, mas por
ele fez desfalecer todo assentamento da fotografia como traço, apartou a gê-
reconfigurá-los às urgências do presente. Por virem à tona solicitando novos
nese de um princípio original, como captação do real. Nos termos de Dubois:
entendimentos , é de se esperar que essas imagens-ficções utilizem vocábu-
los imagéticos poucos usuais. Restos, rastros, ruídos, sobras, apagamentos,

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fantasmagorias e luminescências : todos esses termos talvez indiciem que as *
poéticas visuais contemporâneas são mais performáticas que retóricas, isto é,
que seu funcionamento (diríamos, sua cenografia) importa mais que sua signi- Um adendo oportuno: uma das movimentações mais recentes e im-
ficação. Lembremos como Flusser (2012, p. 56) fala da fotografia, não como pactantes do digital turn parece ser a criação de imagens através da Inte-
uma prova, mas como a produção de uma superfície aparente e imaginada ligência Artificial (IA). O que parece de maior interesse nessas imagens é
que carrega os rastros de uma gestualidade assim como as disposições de um sua propriedade de produzir de maneira muito fidedigna aproximações de
aparato técnico. Assumidas como um acontecimento em si, as imagens foto- imagens indiciais. Assim, o fascínio que elas exercem, nessa sua faculda-
gráficas, pelo menos essas que aqui referenciamos, parecem liberar seus es- de de simulação, parece justamente o avesso pelo qual essa pesquisa per-
pectadores de qualquer regra de espectatorialidade: elas podem ser vistas para meia suas indagações. No entanto, é justamente esse contraponto que reforça
aquém de qualquer noção de pertencimento, especificidade, singularidade. esse adendo. Novamente, a referência de tais processualidades permanece
atrelada ao que estamos acostumados a ver e desejantes de ver. Essas ima-
gens feitas sem dispositivos, criadas a partir de curtos parágrafos escritos
em língua inglesa, geram imagens surpreendentemente próximas a uma
realidade da qual tanto somos saturados. Um ineditismo no interior de uma
mesma abordagem. Se é possível dizer que o novo sempre vem e que ele
te assombra pelo desconhecido, esse novo não parece ser tão novo assim.
É o seu caráter de entregar aquilo que se espera que fortalece seu espanto.
A IA entrega um processo algorítmico no qual alimentamos algumas
informações e do qual retiramos algo novo e necessariamente esperado. O
tema, o gênero, o objeto são dados antes, como num prato no qual se identifica
os ingredientes e se espera determinado sabor. Nesse sentido, a IA não propõe
novos regimes de visibilidade : ela reforça a validação do que já conhecemos.
Nas imagens que produzo, procuro trabalhar com essa nova ferramen-
ta de IA para observar o que ela pode atribuir a imagens mais abstratas, como
modo de saborear certas indeterminações, como investigação do poder do
acaso e do não indicial. Contudo, uma base de dados por mais completa que
seja entregará sempre uma resultante com o que foi abastecida. Não poderá ir
além do pré-determinado. Razão porque me parece pouco provável que ela
abra para a construção de novos tecidos sensíveis. Vejamos o exemplo abai-
xo: a recriação de uma imagem já apresentada no começo desta dissertação.

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Imagem da página anterior:
Figura 13 - Gabriel Oliveira, Sem título #1 – Hahnemühle William Tur-
ner 310gsm, 100% algodão, 2022.

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Em conclusão, podemos assumir que a IA serve muito bem para criar
imagens que carregam certo teor de expectativa, Entretanto, ela não apare-
ce como caminho adequado para o ficcionalizar que preconizamos nesta
pesquisa. É certo que sua possibilidade reforça o caráter imbricado e pouco
taxonômico por onde passa o pensamento das imagens e seus novos pro-
cessos nesse inicio de século. E se por um lado essa indeterminação é base
importante do pós, por outro reforça a impossibilidade de criação de novos
espaços relacionais, de novas visibilidades, dado que sua constituição parte
de uma base de dados alimentada por quem viabiliza, autoriza e fornece visi-
bilidade para um determinado tipo de imagem que aqui tentamos desmontar.
Lembro aqui o manifesto From Here On, produzido por ocasião
das Rencontres de la Photographie d’Arles em 2011. Esse acontecimen-
to, um dos primeiros consagrados à imagem numérica na era da inter-
net, não podia deixar de ser polêmico ao consagrar o valor de obras con-
cebidas a partir de imagens recicladas da internet, numa celebração da
mídia precisamente responsável pela asfixia dos profissionais da fo-
tografia. O que se depreende do manifesto assinado por Joan Fontcu-
berta, Clément Chéroux, Erik Kessels, Martin Parr e Joachim Schmid:

Imagem da página anterior:


Figura 15 - Gabriel Oliveira, Teste 2 IA, 2023.

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Como explicação da presença da imagem acima no livro de um fi- do aos fechamentos entre o ver e o saber), e vem inquietar/perturbar
lósofo da imagem que se impaciente com a lógica da certeza em histó- as categorias canônicas da representação”. (LAVAUD, 1999, p. 237)
ria da arte, retenho o modo como Didi-Huberman passa da noção habi-
tual do visível para o conceito de visual. Haveria em Nimbus a criação Parece-me exemplar o fato de encontrar mesmo um artista do
de um espaço como princípio de incerteza, “uma proposta de desloca- narrativo atentar à questão do visual. É, pois, Aumont que afirma ha-
mento da nossa posição confortável para uma instável, uma dicotomia ver em todas as imagens, figurativas ou não, “outra coisa além da re-
entre representação e apresentação” que parece legitimar nossa particu- produção do visível; existe a ação do visual - ação direta, imediata, por
lar proposta de reexaminar a legibilidade das imagens. Sobre o concei- menos que a obra tenha se empenhado sobre a sensação em compreen-
to de visual, instância de potencialidade das imagens que nos interessa dê-la, em nela identificar as forças presentes e em encontrar um meio
aqui, retenho a seguinte passagem, na tradução feita por meu orientador: de lhes atribuir uma existência em Figura” (AUMONT, 2009, p. 25).
Por força dessa noção de visual, no contrapé da visibilidade, evoque-
“O conceito de ‘visual’ foi elaborado [para provocar] um desapos- mos um artista que se presta em Dubois a exemplificar o registro do pós.
samento em relação às categorias correntes, cotidianas, nas quais se Cao Guimarães é um artista que transita entre o cinema e as artes plásti-
elabora o visível: o olhar perde seus referenciais, encontra-se de cer- cas. Em sua série Paisagens reais - Homenagem a Guignard, de 2009,
to modo desnudado, desamparado. É aí o que Didi-Huberman cha- retemos pois esse reflexo não usual do artista que se sente atraído pela
ma o ‘trabalho negativo’ da imagem, que supõe a desconstrução ou a paisagem em perda de nitidez, um olhar que se dirige à nuances e às de-
ruína do aparecer fenomênico imediato. Mas esse primeiro momen-
licadezas do mundo nos seus aspectos mais ínfimos. Um desvio dos acon-
to, negativo, do visual é apenas preparatório. Ele anuncia a emergên-
cia de um outro modo de visão, onde não é mais o fenômeno mesmo, tecimentos do mundo para os acontecimentos da imagem? Seja como for,
já constituído, que se manifesta, mas sua virtualidade, o momento “uma atenção específica ao que podemos chamar o tecido sensível do mun-
em que se elabora a possibilidade do visível. Essa potência do visual do, [...] a dimensão sensorial da vida de todo dia”(LINS, 2019, p. 289) .
reenvia a um ‘para-aquém’ da representação, onde o puro aparecer
de uma cor ou de uma forma ainda nada refere senão ela própria, e
onde o olhar ainda não se fixou sobre uma determinação precisa do
que se espera que o quadro represente”.(LAVAUD, 1999, p. 236)

A intenção de Didi-Huberman, prossegue o autor, é trabalhar num


aquém do objeto visível, ali onde algo advém, apresenta-se, algo que
o olhar é instado a acolher em sua imediatez, em sua simplicidade pri-
mitiva. O conceito de visual evita que, uma vez mais, se reduza a ima-
gem a uma quase-coisa, um duplo fantasmático e na maior parte do tem-
po ilusório do real. O que permite que a imagem passe a ser tomado
como um acontecimento, “um elemento a fabular e a confabular a rea-
lidade que representa” (LISSA et alli., 2023, p. 232). Em outras palavras,

“uma irrupção de um modo novo de visibilidade – afeito às incertezas,


flutuações e deslocamentos que a psicanálise identifica nas imagens
oníricas –, irrupção que rasga o horizonte ‘normal’ do olhar (habitua

82 83
POÉTICAS
DA
TRAMA

Imagem da página anterior:


Figura 45 - Gabriel Oliveira, Mérida #1 , 2023.

96 97
prática fotográfica. O que não deixa de incorrer em um certo desmonte da emblemáticas de uma disposição do olhar ficcional pelas granulações, tex
imagem, um inquietar do olhar diante de imagens em parte devedoras de uma turizações e pixelizações de imagens em perda de indicialidade, ainda que
inespecificidade dos meios (RANCIÈRE, 2014, p. 118.) e em parte reve- algumas delas permaneçam vinculadas a referenciais de base das artes vi-
ladoras de seu “desdobramento ou transbordamento específico” (DIDI-HU- suais. O trabalho que se verá está ancorado num processo que iniciei em 2016
BERMAN, 2013, p.12). Talvez eu possa assumir, aqui, o filão teórico pro- e que foi tomando forma ao longo de aproximadamente três anos. O prin-
posto por Didi-Huberman em torno do conceito de visual. Mesmo porque cípio dele consistia em fotografar imagens de tons muito sutis para tornar
o que se propõe a seguir não se esclarece por uma “telescopia fotográfica” mais brusca a intervenção do tempo e de cada textura sobreposta na ima-
(2013, p.39), capaz de municiar o que o filósofo chama de “tirania do le- gem. Os procedimentos foram diversos ao longo do tempo: lambe-lambes
gível”. Talvez a matéria imagética seja bem isso, um matérico, um territó- grudados pela cidade de São Paulo e Rio de Janeiro, ou em meu próprio
rio movediço, do campo do indeterminado, de um “não saber”, como diz o quintal; imagens fixadas em chapa de madeiras expostas às intempéries do
filósofo. Por isso mesmo, e para reter outra figura teórica que evoco nesta clima. Por fim, o simples embate do papel com o papel é o que proponho
pesquisa, talvez seja incontornável o conceito de pensatividade da imagem nas imagens aqui apresentadas. No entanto, importa ressaltar que todas essas
em Rancière como perspectiva de indeterminação, de imbricação entre os di- processualidades nunca constituem receituário; são experimentações deli-
versos meios e linguagens. E de trânsito anacrônico entre os tempos, diga-se . beradas de modo a abrigar o acaso. Desapegar daquilo que esperava encon-
Nesse sentido, a imageria que se segue entende compor um sensorium trar em cada investida foi o passo mais libertador para dar margem a uma
que ensaia perguntas passíveis de propor novos emaranhados sensíveis de conversa mais franca com as texturas e com o tempo suportado por cada
conexões pelos quais pareçam improváveis as respostas de uma indicialida- grão, por cada pixel. A propósito, a carga de tempo que cada imagem carre-
de exangue. Esse exercício, diga-se, não deixa de reivindicar igualmente ga pode ser vista num flagrante desaparecer das imagens mais claras, numa
o figural, essa parte da visualidade alheia ao figurativo. O que não implica fusão daquilo que foi registrado e quase não se vê com o tom do papel. Uma
em meramente optar pelo abstrato. Trata-se, antes, de criar possibilidades sobrecarga em cima da imagem que torna quase impossível a sua permanên-
visuais, potencialidades do visual que autorizam de forma menos margi- cia. Ao imaginar que ela nunca se forma, seja pela textura que a rasga ou
nal: uma heurística propensa a surpresas, ao acaso, aos encontros fortui- pelo branco que a torna quase desinteressante, talvez se possa, ao menos é
tos. O abstrato, diga-se, é algo já bem definido para situações nas quais essa minha intenção, desdobrar interpretações que o indicial pouco permite.
não encontramos aquilo que é referido. Talvez eu possa arriscar a afirma- Forço-me a retomar, aqui, uma perspectiva já um tanto datada, mas
ção de que se trata de um trabalho com a luz, seguindo nesse sentido um que guarda alguma pertinência. O fascínio pelas imagens técnicas, segun-
trabalho como aquele de Iole de Freitas que assume serem seus filminhos do Baudrillard (2005), é inseparável do “verdadeiro trabalho de luto” em
em super-8 “vivências que não somente captam a luz, mas que são luz”. curso, não apenas pela “morte do real”, mas por um déficit ontológico, uma
“Mesmo as imagens produzidas diretamente por computadores”, nos lem- falta ou falha irredimível, inerente a nossa cotidiana percepção sensorial.
bra Scansani (2018, p.221), “são dependentes da luz e de como cada siste- Fato é que permanecemos fascinados pelas imagens na tela total. “Toda coi-
ma interpreta e recria suas qualidades”. Uma luz moldada, pois, modo de sa, todo acontecimento, qualquer lugar precisa ser fotografado”, dizia Bau-
reivindicar o trabalho de artesanato exigido. Um trabalho, quiçá, nos trave- drillard (1991, p. 153), antecipando a era atual da compulsão por imagens
ses da matéria, para reivindicar uma vez mais a perspectiva de Didi-Huber- que agregam mais realidade à percepção vivida no mundo. Ora, a me-
man, Minhas imagens talvez possam ser tomadas como imagens-ocasiões diação do aparato técnico pode bem produzir o que essa perspectiva cha-
: “imagens para suspender toda univocidade” (DIDI-HUBERMAN, 2018, ma de contraimagens, imagens sem lastro no dito “mundo real” , imagens
p.27), um investimento nas circunstâncias do olhar, um trabalho intermiten- marcadas por uma “estética da imperfeição”. A propósito, Philippe Dubois
te sobre “lascas de imagens que passam” (DIDI-HUBERMAN, 2018, p.7). e Raymond Bellour encontram legitimidade na “imagem floue, de cores es-
Isto posto, forneço a seguir algumas imagens de minha produção, maecidas; de contornos esbatidos, gauches, dubitativas, intencionalmente

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amadoristas, desglamorizadas, não edulcoradas, que muita vez incorporam
o acaso, a possibilidade de devolver à imagem, seu referente, e à fruição, o
‘imprevisto’ (ou seja, aquilo que de súbito irrompe: a mirabilia)”(FABBRI-
NI, 2016, p.84). Seguem-se, pois, contraimagens, de modo a manifestar
o real com toda sua potência aberta, errante, amorfa e multidimensional.

Figura 52 - Gabriel Oliveira, Sem título #1 – Hahnemühle William Turner


310gsm, 100% algodão, 2022.

110 111
Figura 53 - Gabriel Oliveira, Sem título #2 – Hahnemühle William Turner Figura 54 - Gabriel Oliveira, Sem título #3 – Hahnemühle William Turner
310gsm, 100% algodão, 2022. 310gsm,100% algodão, 2022.

112 113
As imagens da série intitulada Kurutu, ao lado e abaixo, registram
parte do modo de vida de uma aldeia incrustada ao pé a represa Guarapiranga.
Aldeia bem estruturada nos moldes ocidentais, com assistência social e mé-
dicos de atendimento direto aos povos originários. O tema já tão bem tratado
por outros artistas pareceu-me relevante por dois motivos. O primeiro, por me
desafiar a tratar de um tema tão sensível e explorado de uma maneira não dita,
de capturar através do desmonte, de desfigurar e remontar o tempo de ma-
neira mais etérea, como se o vento soprasse pedaços que formam a imagem.
Essas imagens foram feitas em suporte digital de 35mm. Portanto,
é evidente que as imagens não se formaram no formato quadrado. Essa es-
colha visava possibilitar que cada imagem pudesse ser vista em qualquer
posição. Imagem, diga-se, de caráter tátil, para ser manipulada, sentida e
entendida ao bel prazer do espectador. A predominância do verde carrega
certa alusão idílica, já o tom dramático das imagens mais escuras alude a
algo um tanto fora da ordem e caótico. E essa é a razão do segundo motivo.
Fiz esse trabalho durante o processo de pesquisa. Ao tratar das inde-
terminações, busquei focar povos originários residentes entre uma represa
e um polo urbano , no que me pareceu um certo não lugar, um espaço que
conjurava tantos questionamentos, com moradores a meio caminho entre o
primitivo e o urbano.
Não é sem importância frisar que, ao longo desse trabalho, ecoa-
va em mim a perspectiva de Bruno Latour segundo o qual os objetos téc-
nicos , os produtos das práticas em ambiente digital, devem ser entendidos
como elementos constituintes de ontologias e cosmologias. Afinal, diz ele,
podemos explorar “os rastros digitais não mais como evidências atreladas
à identificação de indivíduos ou à previsão de padrões comportamentais, tal
como querem a polícia e o comércio”, mas eles “podem falar agora a in-
fra-linguagem da fabricação de coletivos, redes, mundos, permitindo com-
preender e descrever esta fabricação em seu movimento” (BRUNO, 2012,
p.15). De certo modo Kurutu investe nos matizes de um modo de ser que
se insinua como composta por uma rede de atravessamentos, intersticia-
lidades que fazem existir devires e potências inauditas e indizíveis. Afi-
nal, as contraimagens em ambiente digital não são capazes de fazer vir
à tona toda uma gama de processos de subjetivação, de territorialização?

Figura 55 - Gabriel Oliveira, Kurutu #1 – Hahnemühle William Turner


310gsm, 100% algodão, 2022.

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Figura 56 - Gabriel Oliveira, Kurutu #2 – Hahnemühle William Turner Figura 57 - Gabriel Oliveira, Kurutu #3 – Hahnemühle William Turner
310gsm, 100% algodão, 2022. 310gsm, 100% algodão, 2022.

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As imagens da série Klein e Godard surgiram após extensa pesquisa
nos filmes de Godard, pesquisa mais precisa sobre frames e sequências de
seus filmes. A procura não tratou do enredo ou da relevância de sua obra. O
que me reteve foram momentos e movimentos que trariam alguma vitalidade
para o que estava recriando. O processo de significância é, pois, permeado por
velocidades e rítmicas outras, outros mundos possíveis. As imagens foram
retiradas do filme através de um projetor extremamente precário e ruidoso
que entregava suas projeções num tom de azul quase uniforme. Fui perce-
ber esse encontro quando já selecionava e editava as imagens. Nesse mo-
mento, pareceu-me justo aglutinar no título dois artistas de áreas distintas
que de certo modo se encontram nessa reapropriação de uma imagem-ficção.

Figura 58 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #1 – 2022.


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Figura 59 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #2 – 2022. Figura 60 - Gabriel Oliveira, Klein & Godard #3 – 2022.

120 121
A série Calder é a que mais se distancia em tonalidade das de-
mais. Ela é quase que uma contra-resposta do trabalho seguinte Ícaro, ou
vice-versa. Busquei nesse momento trabalhar com as minhas câmeras ex-
plorando seus limites de registro do figural. Nas primeiras fotos, perce-
bi que o breu absoluto não me interessava, explorei tanto em 35mm como
em médio-formato da 4x5, tanto o digital quanto o analógico. Após mui-
tas experimentações, entendi que naquele momento o que objetivava era
a interação dos pixels com ao menos alguns pontos de luz. Por que não
dizer que de certo modo buscava pelos vaga-lumes de Didi-Huberman?
E foi numa relação direta entre levar a imagem ao limite e pixe-
lar a sua estrutura que observei algo que me pareceu valioso, qual seja, o
que chamo de indeterminação cromática. O que quero dizer com isso é o
quanto nessa junção as cores parecem tentar saltar de um “aprisionamento
pixelar”. O amarelo, ou qualquer outra cor, quanto mais saturado mais se
fixa ao pixel. Contudo, a partir do momento em que se aproxima do espec-
tro do branco ele parece fugir dessa trama, ainda que por vezes de modo
fugidio, efêmero . No movimento de saltar e reter esses momentos lumi-
nosos, a cor vagueia em meio às tênues luzes da imagem e se desdobra.

Figura 61- Gabriel Oliveira, Calder #1 – 2022.


122 123
.

Figura 62- Gabriel Oliveira, Calder #2 – 2022. Figura 63- Gabriel Oliveira, Calder #3 – 2022.

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Na série Ícaro, a imagem é levada, uma vez mais, a seu limite, po-
rém desta feita num outro extremo. Fui ao literal e queimei a imagem, fui
em busca da falena de Didi-Huberman, essa metáfora das aparições incer-
tas, intermitentes. Foi nesse ímpeto que estourei, queimei minhas imagens.
Esses termos são comumente usados na fotografia para referir a imagem
que não tem mais informação nas altas luzes. Rumo ao limite, com remi-
niscências de algo que já esteve ali, essas imagens se constituem, e de cer-
to modo desautorizam seu uso sobre a folha branca desta dissertação. Não
é despropositado dizer que o lugar onde esses despojos de imagem apa-
recem com mais força são em suas bordas, quase que como se estives-
sem caindo para fora da estrutura, fugindo do olhar de quem os procura.

Figura 64- Gabriel Oliveira, Ícaro #1 – 2022.


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Figura 65- Gabriel Oliveira, Ícaro #2 – 2022. Figura 66- Gabriel Oliveira, Ícaro #3 – 2022.
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Figura 67- Gabriel Oliveira, Ícaro #4 – 2022. Figura 68- Gabriel Oliveira, Ícaro #5– 2022.
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De todos os trabalhos, a série Beleza Fílmica é certamente a mais físi-
ca. Por tratar de negativos revelados em 2018, parte de um acervo pessoal de
fotógrafos de autoria desconhecida, centenas de rolos, de presença material
robusta. E por demandar um exaustivo trabalho de busca, encaixe, sobre-
posição de imagens sobre uma mesa de luz de modo a avaliar cada frame.
Esse processo mostra-se igualmente sensível à memória de outras pessoas,
anônimas, quiçá desconhecedoras da possibilidade de desfrutar de uma ima-
gem através de algo palpável. Esse arquivo é parte de um resgaste que faço
de tempos em tempos de laboratórios que digitalizam filmes. Após algum
tempo, quando seus donos não vão resgatar suas películas recolho-as para
incorporá-las a renovada trama . A obra de Eric Rondepierre, bem como aque-
la de Rosângela Rennó são , aqui, balizas para um esforço de remontagem.

Figura 69 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #1 – 2022.

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Figura 70 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #2 – 2022. Figura 71 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #3 – 2022.

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De um modo geral, todos os trabalhos têm como fio condutor
o ficcionalizar novas possibilidades de mundo. Desmontar o indicial ,
que tanto seduz ainda a fotografia, é um transitar por terras pouco habita-
das. Razão para evocar artistas como sugestão de diagonalidades, novas
recomposições, independentemente das similaridades de estilo. Assim,
Sem Titulo, Klein e Godard e Calder dialogam francamente com os artis-
tas implicados nas latências do tempo (Leticia Ramos, Elaine Pessoa Cao
Guimaraes). Kurutu, Ícaro e Beleza Fílmica aproximam suas falas dos sig-
nos do esquecimento de Muñoz e de Rennó. As imagens da série Sem Ti-
tulo, Ícaro e Beleza Fílmica não deixam de apontar para a questão das
opacidades da matéria , como as vemos em Rondepierre e Bill Morrison.
Kurutu, Klein e Godard e Calder entendem-se imagens-ruído como aque-
las de Maués, Myrrha ou Amiran. Essas são apenas algumas das possi-
bilidades de analogia. A pensatividade das relações, diga-se, são diver-
sas. É possível ser outra coisa além do que qualquer outras coisas e ser ao
mesmo tempo as duas coisas ou mais. Para quase parafrasear Rancière.
Meu trabalho, enfim, entende deter um viés político, ao for-
çar novas tramas, esgarçar tecidos e ligar novos fios; ao possibi-
litar que os que venham depois tenham mais espaços relacionais
para ficcionalizar outras possibilidades. Trabalho de ruptura e de
expansão, fruto de muitas forças que me cruzaram e me formaram.

Figura 72 - Gabriel Oliveira, Beleza Fílmica #4 – 2022.

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O primeiro desvendava as possibilidades do dispositivo, tudo quanto podiam
* oferecer as câmeras e objetivas. Páginas que eram devoradas até que fizes-
Falei acima da noção de informe. Posso agora revisitá-la para algumas sem sentido as relações do diafragma e seus números com a profundidade de
considerações em torno do que mostro acima. Creio que, para tanto, posso campo, até que a velocidade do obturador e suas marcações constituíssem
evocar as características estéticas que Jacques Aumont vê engendradas pelo alguma lógica para as intencionalidades que se tinha; esperava-se entender
informe: “momentos de surgimento, a plasticidade é sua marca; a cor, a vio- com precisão como congelar ou tremer as imagens com T, B, 1/2, 1/4, 1/8,
lência de certo preto-e-branco, é seu veículo privilegiado, e sobretudo a cor em 1/15, 1/30, 1/60 e assim por diante, com todas suas as variáveis para maior
movimento, aquela que parece se soltar dos objetos para se tornar singular” ou menor tempo de exposição. O básico era entender o funcionamento me-
(AUMONT, p. 209). Alguns momentos de surgimento estão, pois, aí dados, cânico de uma câmera 35mm, ter ela em mãos como extensão do seu próprio
por vezes como modos de arrancar alguma singularidade anterior à forma: corpo para que os recursos empregados fluíssem de forma orgânica. Havia,
uma cor que se liquefaz, ou então que explode; negrumes que parecem fugir naturalmente, alguns manuais no mercado que ensinavam esse beabá, mas
do enquadramento para que o suporte de algum modo seja localizado em seu até para um leigo, na época, as imagens que vinham ilustrando aquele li-
vazio; arrastos pixelizados que traem um gesto incerto ou decisivo, etc. Há ali vro azul de Adams eram impactantes: a densidade e clareza dos pormenores
fragmentos que sobrevivem como vestígios, como restos da volatilidade das eram isca que fazia com que não se pudesse prescindir daquele ensinamento.
formas representacionais. Uma representação obliterada, ou incompleta, esva- Mesmo porque, uma vez entendido minimamente o funcionamento do dis-
ziada, não deixa de apontar para a questão do tempo, ainda que como consciên- positivo, o passo seguinte era partir para outros dois mundos: o do negati-
cia de um regime de perda. Nessa minha produção, o informe é determinação vo, onde as texturas, interferências e granulações ganham potência, e aquele
do incerto, do casual, do que foge às normas técnicas de que falarei abaixo. das ampliações, que entregam o acabamento que favorece o teor artístico do
Mas, antes, gostaria de expor o que foi pensado com meu orientador, a pro- trabalho fotográfico. Tecnicamente não creio desprovido de interesse reter,
pósito dessa sucessão de imagens que se oferecem ao folhear. Haveria , nessa a seguir, o momento em que Adams nos explica a profundidade de campo:
minha exposição, um risco a assumir: que esses fragmentos de visualidade,
mais que de visibilidades, revelem tão somente um padrão disjuntivo, uma su- “Não devemos esquecer que profundidade de campo está associada
cessão de formas inconstantes. Ora, a esse respeito, assimilo aqui, com gosto, a um grau aceitável de nitidez. Na realidade, somente o plano foca-
o aprendizado acerca de uma obra irredutível à unidade, que me vem de Mau- lizado fica verdadeiramente nítido. [...] A razão pela qual aberturas
rice Blanchot, com o qual encerro a apresentação de minhas processualidades: menores aumentam a profundidade de campo é demonstrada na fi-
gura 5-6. A imagem de um ‘ponto’ no objeto deveria ser ‘um ponto’
no filme. Mas se o objeto não se encontra exatamente no plano do
“um arranjo de tipo novo, que não seria o de uma harmonia, de uma
foco nítido, essa imagem torna-se um pequeno disco borrado, que
concórdia ou de uma conciliação, mas que aceitará a disjunção ou di-
é chamado de círculo de confusão. O tamanho dos círculos de con-
vergência como o centro infinito a partir do qual [...] uma relação deve
fusão torna-se menor à medida que a abertura é reduzida, fazendo
estabelecer-se: um arranjo que não compõe, mas justapõe, isto é, dei-
a imagem aparecer mais nítida. Nós definimos os limites de tama-
xa de fora uns dos outros os termos que vêm em relação, respeitando
nho desses círculos de confusão, que podem ser considerados como
e preservando essa exterioridade e essa distância como o princípio
foco nítido aceitável. Se, ao selecionarmos determinada abertura,
-sempre destituído -de toda significação”.(BLANCHOT,2010, p.43 )
produzimos um círculo borrado menor que esse tamanho conside-
rado ‘razoavelmente nítido’, então esse ponto cai dentro da região
Permito-me, em seguida, algumas ponderações mais técnicas. No de profundidade de campo nessa abertura.” (ADAMS, 2003a, p.65)
tempo do analógico, quando se iniciava estudos em fotografia, três livros
eram apresentados, de autoria de Ansel Adams: A câmera, O negativo e A có-
pia. Cada qual apresentava meticulosamente cada etapa do fazer fotográfico.

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Mudemos agora um pouco o foco. Em sua dissertação de mestrado, beradamente esquecido de sua indicialidade para dar força à materialida
Laís Myrrha (2007, p. 29) faz alusão a Susan Sontag ao tratar do tempo da de que a constitui. E ao tratar dessas superfícies despixelizadas, aproxi-
atividade fotográfica como um “ tempo deslocado, fragmentado e descontí- mo minhas conjecturas brevemente da frase de Paul Valéry de que o mais
nuo das modernas sociedades capitalistas”, tempo associado ao conceito de profundo é a pele. O que me induz a aproximação de uma materialida-
“vivência”, razão porque se justifica vir ter, nesse momento, com imagens de de superfície que, ao contrário de estabelecer limites, se torna ponto de
de fatura pessoal. Essas imagens apresentam em grande medida um olhar intersecção, de porosidade, contato e afecção. Superfície como ponto de
que busca ampliar um sentido do fotográfico. É uma busca pessoal, íntima, indeterminação e intermitência que ajuda a formar as possibilidades fic-
incansável e inalcançável no pressuposto que são imagens que estão sempre cionais (não consensuais, diria Rancière) a que aspira a sensibilidade pós.
no processo de se tornar alguma outra coisa diferente daquilo que espera- Entenda-se aqui a superfície em toda sua, por assim dizer, pro-
mos que ela possa oferecer. Uma força que singra caminhos pelo seu aspec- fundidade. O filósofo Didi-Huberman ao refletir sobre o que as cascas de
to inacabado e irresoluto. Quiçá se trate de uma fatura em oposição ao que uma árvore podem apresentar em um exercício de reminiscência traz o jus-
Adams preconiza em suas regras. Um embate com a matéria e suas vicissi- to entendimento do que essa imagem a princípio precária pode reivindicar.
tudes, em certa desavença para com a física que a determina analiticamente.
Trata-se, enfim, de desintoxicar um léxico imagético que o trabalho “A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca
comercial exige cotidianamente que eu apresente. Manifestar imagens que que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime. Em todo caso, apresen-
extrapolam a exigência de referência com o real nitidamente perceptível é ta-se a nós. Aparece de aparição e não apenas de aparência. A casca é
sempre comovente. E esse encantamento e sedução que a imagem propor- irregular, descontínua, acidentada. Aqui ela se agarra à árvore , ali se
desfaz e cai em nossas mãos. Ela é a impureza que advém das coisas
ciona transita em diversos contextos. Lembro, a propósito, de uma das ima-
em si. Enuncia a impureza - a contingência, a variedade, a exube-
gens mais icônicas do século XX, o retrato feito pelo fotógrafo estaduni-
rância, a relatividade - de toda coisa. Mantém-se em algum lugar na
dense Steve McCurry da menina afegã, de 1984. Menina de olhos verdes interface de uma aparência fugaz e de uma inscrição sobrevivente.
arregalados, que um lenço carmim emoldura o rosto sobre fundo de um Ou então designa, precisamente, a aparência inscrita, a fugacidade
tom neutro que destaca ainda mais os dois faróis verdes esmeralda do rosto sobrevivente de nossas próprias decisões de vida, de nossas expe-
infantil. Um rosto que suscitou incontáveis manifestações de empatia. Essa riências sofridas ou promovidas.” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.70)
proximidade e sensação de intimidade com o retratado é força motriz que
fornece tanta autoridade para as imagens resultantes da incidência luminosa Os termos estão dados, relativamente a um flerte com superfícies ima-
no objeto. Seja o que for que nos mobilize, as imagens nos afetam. Seja géticas: contingência, variedade, relatividade. Haveria mesmo a insinuação
essas imagens de caráter jornalístico, as imagens comerciais de moda e pu- de uma “exuberância” do que não se apresenta cabalmente, do que escapa.
blicidade (que produzo menos por gosto e mais pela demanda) ou as imagens Didi-Huberman fala de camadas de latência. Camadas de tempo podem se
indiciais da arte do vasto mundo da Fine Art que decoram salas, salões e insinuar de modos diversos. Pela repetição temática, por imagens que se pro-
galerias. Independente de qual for o contexto, elas trabalham exatamente na duzem em momentos distintos, por imagens à mercê dos devires da mate-
mesma chave de certo sublimatório. Quanto às imagens de minha fatura aqui rialidade ou da luminosidade. Ao nos deslocarmos da ideia de uma imagem
apresentadas, fica claro que elas transitam por uma outra lógica, e, particu- instantânea, aproximamo-nos de algo mais próximo de uma artesania. Fato é
larmente, por uma tessitura temporal que suscita diverso registro do senso- que as imagens são chamadas à vida em registros que, por vezes, misturam
rium. Arriscaria dizer, desde já, que essas imagens se formam numa superfí- longas exposições assemelhadas ao registro do filme, (vemos, nessa visão
cie recoberta de tempos e temporalidades diversas, que ali encontram modos do pós, que a distinção das media perde efeito formativo), suportes analó-
de friccionar qualquer referente que por acaso estivesse em suas origens. gicos, suportes digitais, suportes sensíveis mais ou menos rápidos a intera-
Assim, encaro minha produção como parte de um todo que é deli- ção com a luz e exposições que dão de ombros para o julgo da fotometria e

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sua exatidão. Pode-se, ainda, falar de uma imagem que não necessariamente enquadramento de uma modesta parede de cozinha de um proletariado de-
nasce de algo atual, mas de um ziguezaguear temporal, de um anacronismo pauperado do Alabama. Rancière o analisa em termos do que precisamente
processual que não deixa de traduzir um enlouquecer das superfícies. Uma detém o olhar: mais que os signos de uma condição social baixa, “certa dis-
versão digital, quiçá, do “enlouquecer do subjétil” de que fala Jacques Der- posição estética marcada pelo desequilíbrio: as paralelas não são paralelas, os
rida (1998) a propósito dos desenhos embrutecidos de Artaud, em ruptura da talheres estão reunidos numa desordem, os objetos sobre a tábua ao alto
“hábil mão” e mesmo do papel. Uma reivindicada “inabilidade lastimável estão colocados de modo dissimétrico”(RANCIÈRE, 2016, p.39). Uma
das formas”, um desimpedimento das grafias organizadas (FONTES, 2013). dissimetria, continua Ranciére, cuja causa permanece incerta: será ́ o efeito
A imagem é um processo, ao menos nas imagens que aqui trabalhamos, do acaso, por as coisas lá se encontrarem assim diante da objetiva? Será ́ do
que enfrentam diversas temporalidades, materialidades e tessituras. Pensar es- olhar do fotó-grafo que escolheu um enquadramento perto de um detalhe,
sas imagens moldadas pela luz parece impor particular linha de entendimento, transformando assim em qualidade artística uma disposição completamente
afeita a alguma vacuidade requerida como força de potencialidade , como deixa aleatória ou sim-plesmente funcional? Ou então será o gosto estético de um
supor a categoria rancieriana da pensatividade . Um entendimento, digamos, habitante destes lugares, fazendo arte com os meios disponíveis pregando
que constrói “seu itinerário no encadeamento da luz”. Quem assim se expressa um prego ou colo-cando uma lata aqui em vez de ali?” (RANCIÈRE,
também nos assegura em nossa linha de enfrentamento do fotográfico enquan- 2016, p.39) Dessa ma-neira, ocorre uma análise, generosa em seu viés
to processualidade, antes de partirmos para enfrentamentos mais teorizantes: dubitativo, de uma imagem fotográfica. As questões surgem e ganham
amplitude. A sugestão ficcional para as imagens que aqui aparecem está a
“concentrar nossos esforços de análise da imagem… através da mate- um instante antes ou após qualquer substancialização da imagem. O olhar
rialidade de uma substância tão recoberta pela efemeridade, serve-nos, investigativo é conotativo de seu de-vir de formação ou de dissolução. A
não apenas para despertar algumas questões sobre sua própria cons- imagem desmontada de sua obviedade indicial, de sua eficácia denotativa,
tituição física, como também nos coloca frente a uma problematiza- não permite a imediatez da mirada. Ela forçosamente nos obriga a
ção que, de diversas formas, é enfrentada pela fotografia, instrumento
implicar e estabelecer um tempo, um tanto mais estendido, frente ao que
primário de construção da imagem.” (SCANSANI, 2018, p.221-222)
ela mobiliza. Razão porque o tempo se faz presente em muitas instâncias
desta pesquisa. Fato é que a corporificação de imagens que tomam formas
No intuito de colocar em destaque questões inerentes às processuali-
escandescentes dobram-se em sua própria existência, des-dobram um
dades fotográficas, cumpre apontar para a imagem abstrata como um lugar de
rizoma de acontecimentos que torna o tempo o desvairado com-panheiro
ressonância de muitas de nossas perspectivas. Ao mencionarmos a diferen-
anacrônico por excelência. Frequentamos imagerias que se dobram a
ça entre uma imagem colorida e outra em P&B, é comum escutarmos que a
potências inauditas e indizíveis. Nessa espessura de tempo particular, pro-
ausência de cor aporta maior intensidade ao objeto fotografado, justamente
curamos pelo que dê relevância a um pensamento expandido do fotográfico.
por oferecer uma quantidade menor de acontecimentos que podem desviar a
atenção do tema. Nesse tocante, acredito ser possível traçar um paralelo entre
a imagem figural e a imagem abstrata. Quando olhamos para uma imagem,
mesmo de relance, e identificamos o que está ali representado, os juízos de
gosto parecem naturalmente facilitados. Ora, uma imagem que renega a in-
dicialidade de imediato convida a que o olhar se detenha sobre a superfície
de deposição da imagem, ela não sendo uma mera zona de transição para
o “fundo”, o “substrato”. Talvez se possa afirmar que o olhar que se detém
abraça outras vias de peregrinação por sobre a imagem. Tomemos o exemplo
da famosa fotografia que produz Walker Evans na América da Depressão. O

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Imagem da página anterior:
Figura 74 - Walker Evan. Kitchen Wall, 1936.

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pediente parcial ou intermitentes. É também um tempo em que do referencial, como um discurso impositivo e comprobatório, articulando a
os sujeitos vivem uma mistura de diversas temporalidades he- ideia de passado a uma ideia de verdade uníssona a tudo aquilo que a imagem
terogêneas - a do trabalho assalariado e a dos estudos, e da cria- pode comprovar devido ao seu “toque sagrado” numa realidade inconteste.
ção artística e a de diversos pequenos trabalhos do dia a dia, por Assim, entender uma partilha dos tempos que autoriza determinadas deman-
exemplo - um tempo em que se multiplicam os que foram for- das e falas de determinados homens e desautorizam aquelas de outros é cha-
mados por um trabalho e trabalham em outro, dos que trabalham
ve para compreensão de qual fotografia pode emergir num espaço incerto.
num mundo e vivem noutro. Podemos dizer que esse tempo é fei-
to de intervalos, no duplo sentido do termo: intermitências do tra- Retenho, por fim, que Dubois (2019, p.290) fala da exploração sen-
balho e intervalo entre diversas temporalidades. É sem dúvida a sorial da vida de todo dia. Novamente, a questão aqui me parece ser de so-
partir desses intervalos que é possível pensar as novas formas de licitação de uma diversa temporalidade, afeita a uma sensibilidade junto aos
interrupção do tempo dominante”. (RANCIÈRE, 2021a, p.45) elementos constitutivos do sensível – cores, linhas, texturas, formas, ritmos,
movimentos, durações. De fato, a precarização do material imagético, pode-
Essa precariedade é um tanto paradoxal. Ao mesmo tempo em que mos assim dizê-lo, talvez favoreça um sentimento particular de temporalida-
é a ferida de um tecido temporal, no qual o tempo é articulado de maneira de. É o que poderemos ver em artistas dedicados ao tempo mesmo da ima-
hierárquica e desigual entre aqueles que possuem maior ou menor qualidade gem, como o norte-americano Bill Morrison ou o francês Eric Rondepierre.
para usufruir o próprio tempo, é também uma chave que possibilita o surgi- Bill Morrison, aliás, permite que evoquemos uma imagem passível de emble-
mento de novas relações com aquilo que está colocado. Rancière comenta-a matizar este trabalho de pesquisa. A figura do boxeador, recuperado de algum
nos termos de uma “dinamitagem do tempo dominante”, modo de reconfi- found footage qualquer, anônimo, parece lutar contra a invasão inexorável
gurações do possível que estão sempre aí , junto às sensibilidade modernas. da matéria mesmo do fotográfico em sua deliquescência química. Ao avançar
contra o figurativo, a usura da imagem parece abrir um registro auspicioso
“Trata-se da abertura de um outro tempo comum, nascido nas bre- de sugestividades figurais, abertura de um visual na tessitura mesma do visí-
chas efetuadas do anterior. Esse tempo comum não é um tempo do vel, para empregar os termos de Didi-Huberman. A imagem como rasgadura.
sonho, que faria esquecer o tempo padecido ou projetaria um paraí-
so futuro, mas um tempo que se escande de outra maneira e se dá
outros referenciais do passado, que constrói para si uma memória
e, assim, se cria até outros futuros. Redistribuindo o peso de certos
instantes e ligando-os de outras maneiras, esse tempo faz com que
toda distribuição do possível seja reconfigurada e, com ela, o po-
der daqueles que habitam no tempo”. (RANCIÈRE, 2021a, p.38)

Ora, ousarei assumir aqui que a fotografia vem sendo narrada pela
visão desses homens possuidores de tempo, para ficarmos nos termos que
Rancière evoca. E tais homens apresentaram e construíram um saber sobre
a fotografia homogêneo e bem definido em sua ontologia e ajuizamentos de
gosto. Talvez pudesse ousar falar da criação de um referencial visual de con-
senso, algo como o “bom tom” dentro das liberdades assumidas pela forma
moderna em seus espaços expositivos. Ora, talvez a história que tenha pre-
valecido sobre o fotográfico não seja mais que uma possibilidade entre tantas
outras. Talvez a indicialidade tenha exigido pensar a experiência inseparável

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Como se vê, há um entendimento a se fazer a respeito dos usos dos combinações singulares de trocas, fusões e afastamentos [...] um jogo de tro-
tempos da imagem fotográfica, importante para se pensar o ponto no qual cas entre os poderes de mídias diferentes.” (RANCIÈRE, 2012, p. 119).
esses discursos se tornam visíveis, dizíveis e inteligíveis para um entendi-
mento comum a respeito de certas práticas e sensibilidades contemporâneas. Acerca do tempo, e ainda na chave de Rancière, podemos afir-
A questão seria: como essas escolhas passam pela construção formativa do mar que a composição fotográfica é uma composição do tempo, uma
tecido sensível que as apresenta e legítima? composição forma-tempo mais do que disposição de formas no espaço.
Uma composição que se inscreve no tempo do olhar, no tempo da máqui-
Lê-se, a respeito : na e no tempo do mundo. Nas palavras do autor: “o ato fotográfico se de-
fine na concordância de três tempos: o da espera que circunscreve o en-
É lícito considerar que toda imagem esteja carregada de tempo- quadramento de um possível advento; o tempo em que esse advento se
ralidade; sendo fundamento para o cinema onde o transcorrer individualiza na expressão de uma figura na luz; ainda o tempo do mun-
do tempo é o código Inicial e onde coabitam tempos de diferen- do e dos homens que se cristaliza nessa figura”(RANCIÈRE, 2021b, p.245).
tes naturezas: o tempo histórico de suas determinantes técnicas, Permito-me, aqui, uma derradeira incursão por uma “figura de
o tempo imediato capturado em filme, o tempo ritmado na mon-
luz”, junto à materialidade mesma da imagem fílmica tornada fotográfi-
tagem, o tempo diegético, o tempo da idade da obra, o tempo de
ca. Antes de mais nada, lembro-me do ensinamento de Didi-Huberman:
sua reflexão teórica e as infindáveis sensações corporais ativadas
no corpo do espectador. Tempos mensuráveis e tempos efême- saber olhar uma imagem seria da ordem de um discernimento do lugar
ros. Uma obra cinematográfica naturalmente, transitará entre es- “onde ela arde”. Uma vez mais, parece-me ser algo da ordem de uma ful-
ses diferentes universos temporais fazendo com que tenhamos gurância, de um contato mais visceral com certa urgência que não se de-
a experiência de suas conexões. (SCANSANI, 2018, p.241) posita necessariamente no que se deposita cabalmente sobre a imagem.
Didi-Huberman fala que “uma das grandes forças da imagem é criar ao mesmo
A perspectiva, como temos visto, é corroborado pela teoria da pós- tempo sintoma (interrupção no saber) e conhecimento (interrupção no caos)”
-fotografia e do pós-cinema, assim como por Rancière em Partilha do sensí- (DIDI-HUBERMAN, 2012).Pois bem: saber olhar uma imagem seria da or-
vel, quando ele trata da “subversão das hierarquias da representação” e da dem de um discernimento do “lugar onde sua eventual beleza reserva um
“focalização fragmentada”, em contrapartida dos “encadeamentos racionais espaço a um ‘sinal secreto’, uma crise não apaziguada, um sintoma”. Talvez
da história” (RANCIÈRE, 2017, p.35). Como se viu, a propósito do que diz uma mera fotografia tirada no tempo fuga, “precário”, de uma manifestação
ser o nosso vigente “regime estético da arte”, Rancière nos fala de “mistura de revolta popular nos mostre algo nesse sentido. para reter ainda as palavras
de gêneros e suportes” (RANCIÈRE, 2017, p.38) e de uma “presença latente de |Didi-Huberman, uma “nova capacidade para ‘desmascarar o real[...], uma
de um regime de expressão em outro” (RANCIÈRE, 2012, p. 118). Circular marca fundamental de ‘autenticidade’ devida a uma ‘extraordinária faculdade
por esses lugares reflexivos talvez nos corrobore em nossa aspiração a pensar para fundir-se nas coisas’”. Vejamos a fotografia de um gesto de fotografar.
a imagem a partir de sua “pensatividade” e de sua “lógica expressiva inde-
terminada”. Afinal, a pensatividade apregoada por Rancière percorre modos
e gêneros das artes para indicar um quadro maior que permita pensar como
o regime estético constrói essa perspectiva de análise não como uma simples
“recusa da figuração”, mas como a “destruição dos limites dentro dos quais
[a mímesis] funcionava” (RANCIÈRE, 2017, p.35) . Filmes, fotografias, de-
senhos, poemas, afirma Rancière, misturam seus poderes, intercambiam suas
singularidades. “São os regimes de expressão que se entrecruzam e criam

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uma figura desfigurante, desfigurada, ele engaja uma lógica das “semelhan-
O corpo (de dor) se assume então, não como uma expres- ças dessemelhantes”, como diria Rancière. Razão porque nos parece apon-
são vitalista, mesmo espiritual, ou então como representativo de algu- tar a uma pensatividade da imagem, própria, pois, a encerrar esta pesquisa.
ma condição social ou identitária; mas como uma inquietante e móvel
forma em trabalho (de abertura, fissuração) – energia e esgotamento mis-
turados, morfogênese e decomposição confundidos ou, antes, ritmica-
mente vinculados. Isto por força dessa evisceração da superfície ima-
gética, no afã de flertar com os grãos. Como leio em uma análise lúcida:

“Esta [imagem] faz do espectador um sujeito ativo na relação,


retira-o do lugar daquele que lê códigos, que reconhece sua po-
sição em uma cena dada e que se conforma a um lugar dian-
te do sofredor, para deslocá-lo, agitá-lo, inquietá-lo [...] pela
perturbação e desconforto provocadores. Trata-se de um raro
corpo-a-corpo explícito entre aquele que vê e o que se vê no
fotojornalismo, pois este corpo não se encontra no lugar da fi-
gura legível, mas em sua abertura”. (GOMES BIONDI, 2013)

Nesse corpo-a-corpo, temos o olhar preso entre um preto profundo


e um branco reverberante. Um olhar recondicionado à explosão da maté-
ria fílmica, implicado em uma face no limite de sua desintegração. Estra-
tos de grãos, pixels, rosto, luz, movimento (sincopado) explicitam as par-
tículas que compõem a imagem e reverberam de algum modo no corpo do
observador. Em meio ao paradoxo da visibilidade da matéria através de
sua aparente desmaterialização, não apenas dá-se a ver a violência sofri-
da, mas a senti-la na própria carne. Entre os campos da figura e da desfigu-
ração, o corpo fílmico apresenta suas vísceras, suas fendas, sua vacuidade.
Talvez não seja sem pertinência lembrar como Roland Barthes des-
legitima a “fotografia literal em sua indicialidade evidente: “[ela] apresen-
ta-nos o escândalo do horror, não o horror propriamente dito”( BARTHES,
2009, p 11). O que justifica que acima tenhamos empregado a noção de fi-
gural para tratar de uma imagem que de certo modo arrancamos a sua refe-
rencialidade banal e à “purgação emotiva” que a seu respeito fala Barthes.
O figural, diga-se, é uma “figura puramente visível, autônoma, liberta de
todo referencial externo, da ordem discursiva (conceito, história, narração)”
(SCHEFER, 1999). O figural alude a um transbordamento das figuras, a
uma lógica de transgressão em relação ao fechamento sistêmico do discurso.
Trata-se de uma força dinâmica rítmica e pulsional. Por ser paradoxalmente

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ce e exposição, as formas de circulação e reprodução –, mas também
Conclusão modos de percepção e regimes de emoção, categorias que as iden-
tificam, esquemas de pensamento que as classificam e interpretam.
Essas condições tornam possíveis que palavras, formas, movimen-
tos, ritmos sejam vivenciados e pensados como arte. Por mais que

Política das imagens e ficção alguns enfatizem a posição entre, de um lado o acontecimento artís-
tico e o trabalho criador dos artistas e, de outro o tecido composto de
instituições, práticas, modo de afeto esquemas de pensamento, é este
último que permite que uma forma, o brilho de uma cor, aceleração
de um ritmo, um silêncio entre palavras, um movimento ou um cin-
Minha pesquisa, que agora se encerra, inscreve-se em uma linha de
tilar sobre uma superfície sejam sentidos como acontecimentos e
pesquisa do Programa de Mestrado em História da Arte da UNIFESP onde é associados à ideia de criação artística”. (RANCIÈRE, 2021b, p.7)
enfatizada a relação entre arte e política. Nesse sentido, penso que ela poderá
ter seu natural desaguadouro em paragens rancierianas, nos registros que ali Se, por um lado, com a fotografia, a prática de uma des-hierarqui-
vejo de um esgarçamento do tecido sensível, o que solicita, como tantas vezes zação dos temas e dos gêneros da arte é posto em movimento juntamente
afirma o filósofo, uma nova política das imagens. Afinal, meu desafio terá sido com a ideia de um regime estético, rompendo com uma lógica representativa,
inscrever meu corpus imagético em uma renovada fenomenologia do sensível por outro o mesmo não ocorre com relação ao tipo de imagem indicial que
que parece apta a abrigar de modo menos excludente as rupturas com o in- a fotografia está autorizada a exercer. Esse esgarçamento do indicial toma
dicial e as experiências ficcionais que a ideia de pós-fotografia enseja. Nesse maiores contornos nesse instante da fotografia digital. Retenho a expressão
sentido, a noção de imagéité formulada por Rancière permite não descartar “esgarçamento do indicial”, assim como momentos em que o autor comenta
a noção de realismo, nem recair contudo numa lógica indiciária, assim como sobre índice, virada digital, o isso-foi barthesiano. Mas, em uma chave pró-
permite entender “como as relações entre o visível, o dizível e a comunidade, xima do caráter mais sintético que esses temas assumem no texto de Rafael
ou seja, a partilha do sensível, está no centro das relações entre arte e política” Souza de Oliveira acima citado, isso permite evoluir , uma vez mais, em
(SOUZA, 2016, p. 83). Penso que haveria o que fazer com essa perspectiva. torno da “verdade da ficção” , sobretudo em torno da passagem seguinte:
Mesmo porque certa preservação da ideia de indicialidade, como observada em
um autor como Rouille, não impede de se chegar a um ponto bastante rancie- “Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que
riano: “não se trata de remeter a imagem a um real, nem o real a uma imagem, a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresen-
mas de afirmar a realidade real de cada forma imagética” (SOUZA, p.89), ou tação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida
seja, a realidade de algumas ficções que o pós libera, sem recair no indicial. a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses mo-
As reflexões de Rancière em torno da ideia de regimes permite dos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da
pensar o tecido sensível sobre o qual as idealidades se constroem como realidade social. Escrever a história e escrever histórias pertencem
uma trama viva na qual as respostas não estão acabadas. Nesse sentido, a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com ne-
nhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas. Em compensa-
olhar para a pós-fotografia é olhar para mais uma possibilidade de infle-
ção, é claro que um modelo de fabricação de histórias está ligado a
xão desse tecido, é um fio a mais nesse tecido vivo que é feito e refeito ao uma determinada ideia da história como destino comum, com uma
sabor das forças que animam as realizações, práticas, visibilidades, per- ideia daqueles que “fazem história”, e que essa interpenetraçao en-
cepções e inteligibilidades que as formam. Nas palavras de Ranciére: tre razão dos fatos e razão das histórias é própria de uma época em
que qualquer um é considerado como cooperando com a tarefa de
“Trata-se do tecido de experiência sensível no seio do qual são pro- “fazer” a história. Não se trata pois de dizer que a “História” é fei-
duzidas. Condições inteiramente materiais – os locais de performan- ta apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente

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que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agen- *
tes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os sa- Sabemos que as superfícies de nossas imagens estão sempre
beres, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos pré-habitadas simbolicamente, seja pela própria materialidade de que é feita
e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, en- (ainda que seja feita de pixels), seja pelo arquivo de imagens de sua história.
tre o que se faz e o que se pode fazer”. (RANCIÈRE, 2018, p.58) Pode-se assumir que a contemporaneidade tem incentivado o artista a traba-
lhar esses fantasmas que persistem em perpassar seus gestos. Minha produ-
Não se trata de explicar o passeio que Rancière faz dos regimes de ção mesma, quero crer, deu provas disso. O devir dos tempos presentes, em
representação ético, poético até a chegada do que ele enxerga na contem- sua precariedade, parece-nos levar a uma temporalidade transtornada pelas
poraneidade como regime estético. O que está colocado é como que dentro mesclas de materialidades e imaginários; uma temporalidade outra, portanto,
de uma possibilidade de pensar o real este precisa ser ficcionado. E como afastada de seus compromissos no passado e reposta em uma relação dinâ-
essa ficção se entremeia para visibilizar e viabilizar determinadas práti- mica com o presente.Uma ficcionalidade repensada em suas eficácias críticas
cas e efeitos. Reconfigurações do tecido sensível, mostra o filósofo, são emblematiza o fato. Em termos de espacialidade, talvez se possa afirmar que o
feitas de “variações das intensidades sensíveis, das percepções e capaci- espaço se projeta em dobra sobre si, como se corresse atrás de uma profundi-
dades dos corpos”. Nesse sentido, talvez se possa concluir que o fotógra- dade perdida. Uma geometria em suspensão da cor e da luz, não mais da linha?
fo do pós deixa de ser uma sensibilidade privilegiada, em seus jogos de Neste arremate, não falemos de uma virada pós-moderna, ainda que
apropriação do sensível, para se caracterizar, ele também, como aquele as imagens que aqui frequentamos pareçam apontar para a realização ple-
“qualquer um” de que trata Rancière, efetivo depositário de nossa moder- na da autonomia moderna das linguagens no sentido de que não mais são
nidade. E o que faz esse singular indeterminado não é mais que cavar dis- guiadas por algum parâmetro de realidade (a realidade do sensível a ser des-
tâncias, abrir derivações, modificar as maneiras, as velocidades, os traje- velada). Tudo o que se vê, é certo, está constituído a partir da superfície fo-
tos de reconhecimento de suas próprias imagens (RANCIÈRE, 2018, p.59). tográfica, imersa ou não na química dos estabilizadores.Trata-se de afirmar
Em outros termos, e uma vez mais insistindo no potencial de ficciona- o regime estético no qual vivemos, mas sem a teleologia modernista e sua
lização do real, talvez estejamos apenas, e modestamente, apontando para os lógica das sucessões de rompimentos É certo que a “tradição da ruptura”
instantes imagéticos que frequentamos, para nossas práticas em fluxo – o real ajudou a modernidade a elaborar novos horizontes de possibilidades para
há muito deixou de ser um enunciado estabilizado, uma caixa-preta cujo esfor- a arte, novos patamares de ficcionalização de suas próprias processualida-
ço de abertura é ininterrupto. É desse meio embaralhado, imanente per si, que des. Uma visão utópica do futuro esteve por detrás disso, como se sabe,
o percurso, nosso percurso que aqui se encerra, teve de ser pensado sempre um horizonte de expectativas, que, no caso da fotografia, foi grandemente
como contingencial, acidental, ocasional. E, sobretudo , como um esforço po- alargado pelo olhar tecnológico. Contudo, uma vez desmobilizados os es-
lítico, mais que propriamente epistemológico, de levar a própria expressão fo- píritos nesse sentido, restou ao artista contemporâneo, para o bem ou para o
tográfica aos seus limites - sem a arrogância que a frase possa insinuar. Entrever mal, a liberdade poética de um como se, de algo a um tempo real e ficcional.
as práticas fotográficas em ambiente digital, a partir das questões que aqui me Num espírito acirrado de indistinção, as medialidades postas em curso mais
conduziram, quase de solavanco, exigiram refletir sobre uma heurística gene- recentemente falam ao mesmo tempo da arte e do mundo, parecem traba-
ralizada, e sem dúvida, radical em sentido amplo. Aqui não se tratou de traduzir lhar sob o tensionamento entre o que já foi e o que ainda não é. Em outros
narrativas estáveis, sujeitos estáveis, objetos estáveis, e muito mais de susci- termos, penso que o que hoje se produz em muitos registros do fotográfico
tar a questão das imagens mecânicas como elementos constituintes de ontolo- parece se orientar pelo que está sempre se tornando outro. Não mais vemos
gias e cosmologias inusitadas. Poéticas do sensível e seus mundos possíveis. uma historicidade pautada por uma lógica revolucionária, apontando para
um horizonte de expectativas ideologicamente fechado. Ao tratarmos aqui
do pós-fotográfico quisemos fazer falar possibilidades expressivas desenga-

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jadas de qualquer modelo formal ou iconográfico hegemônico. Nesse senti-
do, uma imagem “abstrata” fala tanto do real quanto uma imagem figurativa.
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