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PLUTARCO. Como ouvir. Prefácio e notas Pierre Maréchaux. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Prefácio *

Silêncio dos sábios e Música das esferas 

"Os homens não gostam de vos admirar, eles querem agradar; procuram menos ser
instruídos, e mesmo divertir-se, do que serem apreciados e aplaudidos." Este julgamento de La
Bruyère1 parece provir diretamente do Como ouvir, de Plutarco. Com efeito, se aprender a falar
é o primeiro passo, supondo que o estudo das palavras se conclui do das idéias, aprender a ouvir
deve ser a segunda preocupação do aprendiz de filosofia, e com [p.6]  toda a certeza uma das
questões centrais da educação, da paidéia.
Plutarco, no seu curto ensaio datado do ano 100 d.C., quis remediar esse vazio
constitutivo da história de uma retórica do ouvir. Pois a arte de ouvir, nas teorias ocidentais
sobre a linguagem, é própria do extremo isolamento.
A cultura do ouvir supõe a aliança da eloqüência e da filosofia. Pois a paidéia auditiva
seria uma reles auxiliar da arte oratória se não tivesse a intenção de servir aos desejos
secretos da meditação filosófica. Ao ouvir, aprendemos mais a pensar do que a falar, pois
esta audição é feita da própria substância das palavras, tendo a retórica, por assim dizer,
apenas uma função reguladora e exterior. Deste modo, a primeira dificuldade que compete ao
professor resolver é fazer o discípulo ávido de frases e que sucumbe à vertigem das palavras
compreender a necessidade formadora do silêncio. É que a propedêutica  per aures não está
isenta de perigo: a linguagem é semelhante à fita sonora, que dá voz às coisas ausentes e lhes
confere um acres-[p.7]cimo de presença, de sorte que o ouvido não passa de um lugar de
fascinação, em cuja oficina o espírito encantado fabrica simulacros, pela meditação de
 palavras-miragens. Criar para os "sentidos interiores", animar com cor, sabor, odor, e prover
com uma carnação humana quase real um teatro de palavras cuja fecundidade rivalize
vitoriosamente com a lembrança dos espetáculos naturais, unir as paixões e o querer a estes

1
 Os caracteres, "Sobre a sociedade e a conversação", 16.
 

espetáculos mais verdadeiros que a natureza, tal é o poder da retórica dos primeiros mestres;
pois a  paidéia dos gregos supõe além de uma taciturnidade ascética, uma retórica da fábula.
Ora, quando alguém se atém exclusivamente ao agrado em lugar de tirar dela um proveito
moral, esta retórica pode ser perniciosa. Assim, a  phantasia-memoria, que entorpece a
vontade no mundo das imagens, pode prender perigosamente o seu servidor imediato ao solo
aderente do sentido literal, impedindo realizar esta conversão das imagens em proveito do
invisível. É preciso, portanto, uma grande força de desapego para substituir esta pedagogia
agradável [p.8] por uma contensão muda. O silêncio, conforme Plutarco, é portanto uma
propedêutica na esteira da qual o iniciado, jovem Proteu ávido de perfeição, se constrói e se
desprende dos poderes duma retórica primitivista sob o controle da palmatória.
Contudo, além da sua capacidade de fazer nascer no aprendiz de filósofo esta ponderação
do ouvir, que é a condição primordial de toda a meditação, o silêncio, escreve Plutarco, é um
"adorno seguro" (kósmos asphalés2). Com efeito, calar-se é o meio mais seguro de não cair na
surdez relativa à sua própria linguagem, o que leva o narrador de  Roland Barthes por Roland
3
 Barthes   a dizer sobre alguns faladores lisonjeiros: "Ele ouvia que eles não se escutavam." No
âmago desta dinâmica solipsista da linguagem, cada um, portanto, constitui para si mesmo uma
obcecação auditiva. Mas a crítica plutarquiana deste estado, na realidade, concerne menos
diretamente ao desabafo pessoal, ao desejo de confidência que à tirania herme-[p.9]nêutica de
toda a  paidéia. Audições, exposições, dissertações, discursos, exegeses, tais são as numerosas
palavras que, em Como ouvir, descrevem o próprio objeto da palavra. Nunca livre, ela está, quer
diretamente submetida às especialidades da arte oratória quer indiretamente, implicada no jogo
imperioso do comentário. Se Plutarco respeita a primeira atividade, é porque ela emana de um
mestre responsável, mais ou menos consciente dos efeitos de sua linguagem, mas necessaria-
mente constrangido a um rigor retórico. Em compensação, a segunda das manifestações lingüísti-
cas depende mais freqüentemente de jovens ouvintes, desejosos de sobrepor à palavra do mestre
a rede anárquica de suas perguntas e glosas. À retórica autorizada do orador profissional Plutarco
opõe a confusão adolescente e a mania compulsiva que dela deriva. Mas não se deve pensar que
os costumes em voga nas sociedades de consumo do Ocidente sejam tão estranhos ao mundo
helenístico. Se nós estamos, numa escala infinitamente mais considerável, submersos pelo

2
 Como ouvir, 4.
3
 Paris, Seuil, "Écrivains de toujours", 1975, p. 174.
 

comentário, [p.10] solicitados por milhões de palavras, tratando de livros que jamais abriremos,
ou obras musicais de que nossos ouvidos permanecerão virgens, a atmosfera antiga não era
menos saturada pelo zumbido perpétuo dos tribunais e de apressadas sentenças "ex catedra".
Deste modo, quando Plutarco estigmatiza a anarquia juvenil, ele visa essencialmente a
inconseqüência da espontaneidade. E por esta mesma razão ele censura esta miragem de signi-
ficação, atrás da qual uma pseudo-retórica dissimula o despreparo filosófico. Pois um bom
número de oradores pedagogos giróvagos, ávidos de glória e de dinheiro, não recuam diante da
mentira para louvar ou vituperar mais brilhantemente. Com efeito, a Segunda Sofística, a
despeito de sua importância na história da res literaria, favoreceu, como demonstrou muito bem,
4
no século XVII, o Pe. Cressolles, certos fanfarrões da palavra (gloriosi Thrasones Verbi ), cuja
arte declamatória, por [p.11] mais refinada que se considerasse, tendia à ostentação, à pompa, à
 jactância frívola. Os temas de seus panegíricos, como de suas injúrias, eram tanto personagens
ou objetos reais, como ficções ou assuntos fúteis e paradoxais. Freqüentemente muito ricos, e
pagos generosamente pelas cortes imperiais ou autoridades provinciais, tais estetas ostentavam
celebrar os heróis republicanos, mortos como mártires em Salamina ou Maratona, ou faziam o
elogio da febre quartã, do vômito, da calvície, da surdez, de tersites, da mosca ou do ácaro. Para
proferirem comodamente os seus discursos de aparato, eles dispunham de verdadeiros teatros:
odeões, ateneus, museus, onde o declamador do dia, assentado como uma "vedete" num trono
muito alto e às vezes debaixo de um dossel (canopeus), arengava a multidão cuidadosamente e
não deixavam de experimentar o medo. Adiantavam-se com suntuosa equipagem, levando
reunida na orquestra. Estas sessões oratórias eram precedidas de convites à assistência sob
formas publicitárias: os sofistas preparavam-se para isto [p.12] no dedo um anel realçado com
pedras preciosas, "tanto que eles consideravam este ornamento como necessário à luz e à
dignidade da eloqüência5". Às vezes se opunha a esta escola de esplendor uma facção que
alardeava miséria e preferia apresentar-se com andrajos, de pés descalços, afetando desprezo pela
elegância. Tanto contra o brilho dos asiáticos como a negligência ostensiva dos cínicos é que
Plutarco se exalta; pois, através de um processo de efeitos literários, ele visa os declamadores
demasiado apressados, que se põem afoitamente a tratar da elocução antes de começar pela

4
  Theatrum veterum rhetorum, oratorum, declamatorum quos in Graecia nominabant σοφιστα . Paris, S. Cramoisy,
1620, p. 91.
5
 Ibid., p. 239.
 

invenção6:
"Por isso se deve suprimir a prolixidade e a superfluidade do discurso e procurar somente
o [p.13] fruto, imitando, não as trançadoras de coroas, mas as abelhas. As primeiras, de fato,
considerando os ramos floridos e perfumados da folhagem, para uni-los e entrançá-los, realizam
uma obra agradável, mas efêmera e estéril; as outras, muitas vezes atravessam voando os prados
ornados de violetas, rosas e jacintos descem sobre o tomilho mais agreste e acre e nele pousam,
'preparando o louro mel'. Depois de tomarem o que lhes é útil, voltam voando a seu trabalho
peculiar. Assim, o ouvinte que aprecia a arte e é puro deve abandonar o que for florido e
langoroso nos termos e dramático e pomposo nas ações, denominando a 'planta dos zangões', que
são os que se fazem de sofistas."
O gênio do século I d.C. consiste, portanto, neste desdobramento que, pelo seu fausto e
desprezo de uma propedêutica elementar, invade todos os cantos e recantos de uma consciência
estudantil. Mais do que uma indústria lucrativa, é uma metafísica e uma fenomenologia que estão
comprometidas através deste desencadeamento [p.14] da declamação sobre uma juventude
pronta a acolhê-la e mal disposta a defender-se dela. Com efeito, a inconsciência sofista emprega
uma epistemologia e uma moral de uma "temporalidade" mais que duvidosa. A dimensão
anedótica de discursos de aparato freqüentemente intermutáveis, sobrecarregados de quadros
destacáveis, convocados para o meio da oratio, caso haja necessidade, obedece às exigências
implícitas de uma simultaneidade niveladora. Os ouvintes de uma cidade escutam, encobertos
com uma nova vestimenta retórica, os panegíricos que uma cidade vizinha ouviu na véspera. O
assunto, portanto, tem uma importância secundária, visto que tudo se deve apresentar no grande
"bluff" de uma metamorfose quotidiana. A matéria do discurso precedente é, por assim dizer,
"soldada" de um dia para o outro, pois a acuidade do sofista estimula cada acontecimento
específico, cada situação individual ou coletiva, inerente ao lugar que o acolhe, para lhe conferir
o máximo poder de penetração. A faculdade de adaptação é infelizmente, neste caso, a [p.15] 
arte de um aguçamento uniforme7. Os saltos da História e os do atleta vencedor no pentatlo são
submetidos ao mesmo corte. E, paradoxalmente, esta urgência oratória, por seu aspecto
monótono, produz uma espécie de anestesia do pensamento. A beleza da descrição de um templo

6
 Para Cícero e Quintiliano, a inventio consiste em procurar idéias e ligá-las logicamente entre si, construindo um
esquema argumentativo; a elocutio é a faculdade de superpor à idéia simples uma figura de retórica que a embeleza
e afina. Ela é a "última demão" da eloqüência.
7
 Como ouvir, 18.
 

e do horror macabro de Salamina não passam de sobejos e trapos quando cai a noite e termina o
espetáculo de elocução.
Esta tática de eterna reapresentação em público, que faz da obra do sofista uma constante
tapeçaria de Penélope, se situa no oposto da criação: pois o texto filosófico ou a composição mu-
sical, por exemplo, são apostas sobre a duração8. Eles encarnam o "duro desejo de durar" e seus
limites temporais são da ordem de uma extensão desconhecida em direção ao futuro. Vão ao en-
contro do ideal sofista pela influência que exercem [p.16] sobre nós, o desinteresse que suscitam
e a paciência exigida pela sua aprendizagem. Diante da sua poupança lenta e cristalizante, a
sofística, ao contrário, nos pede que invistamos apressadamente na bolsa das sensações
momentâneas. Esta fugacidade contrasta com a permanência quase religiosa da dissertação e da
audição filosóficas que têm a intensidade dos banquetes rituais e dos preliminares de um
sacrifício9. Por outro lado, a inconstância da linguagem dos declamadores, com suas trapaças,
suas espertezas contingentes, não pode senão favorecer a inveja e a tolerância que são, conforme
Plutarco, os inimigos do silêncio. A ausência do ouvir torna-se então um problema de
superestimação ou subestimação de si mesmo. É o caso dos tímidos e dos pequenos mestres:
"Uns, com efeito, por vergonha ou para discrição daquele que discorre, hesitam em
interrogar e assegurar-se do discurso, mas, como se o tivessem compreendido, fazem sinais de
assentimento; ou-[p.17]tros, levados por uma pretensão intempestiva e um vão espírito de
rivalidade para com os demais, ostentam vivacidade e capacidade de aprender facilmente, e,
embora declarem ter antes de reter, ao final nada retêm. Em seguida sucede que os primeiros,
reservados e discretos, ao se afastarem, ficam aborrecidos e embaraçados e, finalmente, com
vergonha ainda maior, voltam novamente a importunar aqueles que discorreram com perguntas
tardias e retornos ao que foi  exposto. Porém, os pretensiosos e atrevidos sempre acobertam e
dissimulam a ignorância com a qual convivem10."
Tais são os flagelos do pórtico, pois o desconhecimento do seu verdadeiro valor constitui
um peso que causa obstáculo ao exercício pedagógico. Este desconhecimento procede, num caso,
de uma virtualidade de ciência que se ignora e, noutro, de uma ignorância ostensiva que quer
passar por ciência. É contra esta presunção que Plutarco se insurge, sobretudo quando ela emana

8
 Pois se a música é aparentemente uma arte da fuga, ela é, na realidade, o tempo liberado da temporalidade.
9
 Como ouvir, 6.
10
 Ibid., 17.
 

de um ou-[p.18]vinte que passa do grau de discípulo complacente ao de colega contestatário:


odiar um orador porque não se quer examinar os defeitos que ele aponta em nós mesmos, ou
testemunhar-lhe rancor sob o pretexto de que ele torna patente a nossa mediocridade na elocução
são uma só e mesma coisa que depende da má vontade ou da má consciência. De fato, um dos
eixos deste livro diz respeito a esta cegueira diante das reprimendas e do êxito moral dos outros.
Tudo é questão de malevolência por desejo de autoproteção. O ouvinte malévolo não cessa de
corrigir, graças às lentes apropriadas do seu rancor, os atraentes simulacros do discurso que
ouve. Em face dos aparatos das falcatruas retóricas, ele é todo desconfiança. Esta, para ele, freia
a confiança espontânea do ouvinte ingênuo ou do epígono benevolente, mas ela é também
desconfiança, isto é, desconhecimento fraudulento, conspiração voluntária do ciúme contra uma
verdade que ele não conhece, mas recusa. Há, em Como ouvir, uma hipótese muito bela do
ouvinte desconfiado, um tipo atrabiliário de audi-[p.19]ção filosófica que segrega em si mesmo o
seu próprio veneno e que, diversamente do caluniador ou do bajulador, é a causa do seu suicídio
moral:
"Sem dúvida, várias disposições estultas e más engendram a inveja para com os outros,
mas quando a inveja, originária do amor inoportuno da própria glória ou de uma injusta ambição,
se volta contra os que falam, não deixa a pessoa com esta disposição prestar atenção ao que se
diz, mas confunde e distrai o entendimento, examinando o seu próprio potencial de ver se é
inferior ao de quem fala, e considera, ao mesmo tempo, se os outros ouvem com gosto ou se o
admiram. Fica abatida com os louvores a quem fala, e exasperada contra os presentes se o
acolhem favoravelmente. Mas deixa que passem e se percam as palavras cuja lembrança a
entristece; perturba-se, temendo que sejam melhores que as anteriores, apressando aqueles que
falam para que parem, quando dizem coisas excelentes. Acabada a audição, o invejoso, sem dar
atenção a nada do que foi dito, mas julgando pelas exclamações e disposições do
as[p.20]sistente, foge para longe dos que louvam como de loucos, e vai correndo agregar-se aos
que censuram e também distorcem aquilo que foi dito; se nada houver neste sentido, faz
comparação com os que teriam falado melhor e de forma mais capaz sobre o mesmo assunto, até
que, corrompendo e arruinando a audição, a torna inútil e imprestável para si11". Este lance de
valentia resume um certo número de censuras que Plutarco formula com respeito à obstinação.
Acontece infelizmente que esta se fixa definitivamente com o tempo, e que a recusa do ouvir,

11
 Ibid., 5
 

efeito de uma jovem frivolidade, se muda em constância culpável, de preconceito ciumento. O


problema da audição consiste menos no modo de acolher um sofista, que faz necessariamente um
apelo à desconfiança, do que na maneira de seguir, passo a passo, as injunções de um filósofo.
Compreender-se-á que o título do tratado concerne à audição moral e não à audição epidítica.
Ora, o paradoxo da educação [p.21] dos gregos provém desta supremacia da eloqüência que
acaba por obscurecer ou erradicar a menor exigência de escuta interior. Aprender a falar é
desaprender a arte de ouvir. E, através desta passagem floreada sobre os defeitos de um invejoso,
Plutarco mostra que as doenças da alma, instiladas secretamente pela rivalidade retórica, acabam
por se transferir para uma anti-retórica por excelência, que é a audição de outro. Em vista disso,
o tratado não cessa de mencionar a necessidade de uma audição ativa. É o ego do ouvinte que faz
tudo nesta questão: ele pode tornar opaca a relação de escuta na sua neutralidade inicial, pode
também enfraquecê-la ou embelezá-la. Acontece freqüentemente, como no caso de um recital em
que a sonoridade do piano depende tanto da acústica da sala como da disposição de espírito do
público (sobretudo quando ele se comove, como diz Valéry, por placas), é o auditório que molda
o sentido da comunicação. Este "eu não sei o que" ou este "quase nada" de interesse que ele
mostra tacitamente ao orador é a condição mis-[p.22]teriosa da audição perfeita. Plutarco tem
razão de falar sobre questões tolas dos imbecis, sobre digressões dos pedantes, mas ele sabe que
tudo consiste no silêncio e não mais nesta palavra-espetáculo, onde tudo se perde e nada fica
estabelecido.
O invejoso de Plutarco sofre devido à falta de educação ou de generosidade, desta
constante desconfiança em face da linguagem dos outros. O invejoso, como homem consciente
de sua retórica, se recusa a deixar-se iludir na vertigem das palavras. Representa o inverso da
sofistica ostentatória e, apesar disso, não é filósofo. O fato é que, ouvindo um filósofo, ele se
apega, tal como um beócio diante de um Górgias, ao gesto tênue das palavras que, diante de seus
olhos embotados, desenham inumeráveis simulacros. Sem jamais ficar reconhecido ao
conferencista por ter-lhe apresentado, debaixo de uma forma atraente uma matéria árida e
indigesta, ele deixa de lado o valor ontológico da dissertação que se lhe faz. Através desta fábula
Plutarco nos mostra o que é preciso fazer, como aprendiz de filósofo, a parte das pala-[p.23]vras
e das coisas. Deve-se primeiramente remeter a prosa afetada de Lísias à bigorna da elocução
socrática. Depois é preciso perguntar simplesmente a si mesmo, no fim da exposição: "Eu sou
sempre o mesmo?" Mansidão em presença de quem fala e reconhecimento de que se está
 

convencido, tais são as armas do bom ouvinte. A audição é, portanto, questão de cuidado
pessoal, da cura animi. E atrás deste pequeno texto discretamente alegórico se projeta a sombra
da recepção e da parenética morais. Livro sobre a disponibilidade, Como ouvir se reduz à
pergunta: estamos dispostos a mudar? Responder a esta pergunta é perceber que, no fim da
leitura de Plutarco, jamais faremos, neste domínio, senão pequenos progressos. Apesar disto há
um domínio em que a audição está como que desembaraçada dos vexames sensoriais sem se
achar, entretanto, completamente indene de toda malevolência crítica: a música. Pois, com a
diferença de uma retórica autóctone, a música é um pouco semelhante a uma língua estrangeira;
embora imite com maior ou menor [p.24]  conveniência feições, movimentos, posturas de
pensamento ou afeto, ela é sempre diferente, por não ser jamais recuperada pelos sentidos, isto é,
por esta sociabilidade superficial da linguagem que supõe uma série de efeitos corruptores: pis-
cadelas de olhos, complacência consigo e com os outros, vulgaridade. A música parece dizer,
refratadas numa língua nova, as impossibilidades da nossa. No princípio ela nos faz desaprender
o real que desarticula sob o efeito de novos cortes: ela possui a enunciação (e notadamente a voz)
de seu lugar ordinário; numa palavra, ela faz descer a palavra ao intraduzível: em nós então se
abala todo o edifício do sentido apreendido, enquanto vacilam os direitos usuais da língua.
É, sem dúvida, benéfico transportar-se a uma visão das diferenças irredutíveis que nos
pode sugerir o campo musical por meio de vislumbres. Ele, por meio de sua abertura aparente e
por sua possibilidade de repisamento infinito, mergulha no romanesco integral, uma vez que
escutar estes entrelaçamentos de sons é perceber uma psicolo-[p.25]gia em atos, sem
compreender os seus pormenores, sem prover esta confusão de linhas sonoras de uma
significação inexorável12. As primeiras aparências da audição musical seriam então as seguintes:
quando eu escuto um tal trio de Schubert, ou tal peça breve de Webern, eu percebo, na confusão
do sentido exato, dos movimentos sem corpos, dos afetos sem suporte, eu noto uma paisagem
que a razão lingüística não pode de nenhum modo adivinhar nem atingir. Ademais, eu avanço
numa [p.26] esfera cuja complexidade não tem limite comum com a linearidade sem apelo de

12
  Certamente, com freqüência se quis sublinhar o mimetismo divertido do pitoresco nas obras barrocas ou pro-
duções do romantismo. Mesmo se o Scarbo de Ravel é uma transubstanciação de Aloysius Bertrand, estas obras,
literalmente, não têm nenhuma significação. Somente os elementos fortemente referenciados ("cuco" da Sinfonia
 pastoral, "galinha" de Rameau, "cabana sobre patas" de Mussorgsky, "zéfiros" de Atys, etc.) têm a vocação de
efeitos do real, mas eles falam sobretudo à imaginação, isto é, fundamentam o seu sentido aparente numa
possibilidade de serem reconhecidos ou não pelo auditor.
 

meu pensamento ou de minha língua. Muitas composições são tecidas de precauções, silêncios,
repetições, demoras, insistências, suspensões cujo volume final acaba por fazer da música ouvida
um grande involtório vazio de sentido; mesmo se cada uma das partes tem a consistência de um
nó cheio, mesmo se, no mesmo momento, eu entendo e vivo do interior a passagem de uma para
outra, a audição retrospectiva (será isto próprio de todas as artes do momento?) não me parece
mais ser senão uma maneira de diluição, de hemorragia de afetos em uma linguagem sem
palavras, parcelada, fragmentada, difratada até o vazio.
Assim, em toda a música, a imitação permanece contingente; a função de uma frase
musical não é representar, mas constituir um espetáculo sonoro que fica, no fim das contas,
muito enigmático, mas que não saberia ser de ordem imitativa. A realidade de uma seqüência
musical não está no seguimento natural das ações que a compõem [p.27] (citamos o
encadeamento aparente da sonata op. 81a de Beethoven intitulada: "Os adeuses – a ausência – o
retorno"), mas na lógica dos tons que aí se expõe, se arrisca, e se satisfaz. O que se passa no
recitativo musical não está jamais do ponto de vista referencial, o que acontece é apenas a
linguagem musical, a aventura desta linguagem cuja vinda nunca deixa de ser festejada. A mú-
sica, para citar Mallarmé, "mostra a sucessão das exterioridades do ato sem que nenhum momen-
to conserve a realidade e, no final das contas, nada passa13.
Uma questão se apresenta: ouvir, dizia Plutarco, é extrapolar, é reter os fragmentos de
sentido. Ora, o que se retém de uma audição musical? Literalmente nada, isto é, talvez a
lembrança dos afetos vividos e, a rigor, uma pequena frase. Se é possível em um pensamento
sinótico expressar todo o conteúdo de uma dissertação ouvida, ou expli-[p.28]car o tema de uma
tragédia, não se pode relatar um concerto. Pode-se, entre especialistas, glosar um dedilhado,
explicar no piano uma descoberta que nos encantou na interpretação da véspera, mas para
sempre ficar-se-á condenado ao fragmento, ao pormenor significativo, à anedota. Não há dúvida:
aparentemente não se retém a música como as palavras. Nenhum pensamento, embora fosse
"supersônico", pode ser bastante forte para abarcar a totalidade do discurso musical. Em outras
palavras, a audição, movida unicamente pelo senso da utilidade, seria por isso vã, por ser
circunscrita a um prazer inteiramente passivo e irremediavelmente transitório.
Naturalmente, esta impressão é errônea. Isto depende do estatuto respectivo do animado e
do inanimado no seio da esfera musical. Enquanto a consciência deste tempo fica ofegante em

13
 "Esboçado no teatro", em Obras completas, Paris, Plêiade, p.296.
 

decretar a "vida", a "realidade" em todas as produções do espírito ou da matéria, a própria


estrutura da música deste tempo traz ou retém aparentemente o som na sua qualidade de produto,
de marca [p.29] concisa do "álibi" referencial por excelência: o da existência, da coisa viva; do
drama "psicológico". Assim, enquanto já é difícil creditar um sentido (embora lógico14) às
produções da música antiga ou "romântica", torna-se completamente impossível – na aparência –
dar uma significação a certas obras que escolheram morada na singularidade e na brevidade de
um som sutil (assim as formas breves no estilo de Schönberg que trabalham mais na qualidade de
emissão sonora, valor superrogatório que abriga o som – o fraseado, por exemplo – que sobre o
contínuo total ou a rede sonora).
Levado, portanto, por esta massa sussurrante de sons, que constitui uma proteção
deliciosa con-[p.30]tra todas as alienações semânticas, eu vivo como em meio de uma língua
desconhecida, cuja respiração e aeração emotiva, eu, apesar disso, percebo.
Sua pura significância (que não é significação) me arrasta a uma ligeira vertigem, em
vazio artificial que só se realiza para mim: eu vivo no interstício, desembaraçado de todo o
sentido pleno15. Plutarco talvez não tivesse amado esta perda de sentido pois ela lhe teria
parecido muito distante do princípio de audição filosófica. Talvez mesmo o gênero epidítico,
desacreditado por ele, lhe tivesse parecido mais musical que a própria filosofia. Não obstante,
como admirador de Píndaro e leitor de Platão, Plutarco sabia que as seduções [p.31] dos sofistas,
por vezes poluídas com mentiras, não tinham limite comum com a harmonia desinteressada dos
citaredos ou dos flautistas, pois esta (com a condição de ela ser desprovida de vaidade
virtuosista) era, sem dúvida, a prefiguração do além. Ele sabia que a música não mentia e – con-
dição necessária de uma modéstia tão favorável à audição – que ela jamais se poderia imaginar.
Esta neutralidade é, sem dúvida, o mais belo presente que os músicos sem complacência
poderiam fazer aos oradores e aos que os ouvem.
PIERRE MARÉCHAUX [p.32] 
14
 Com efeito, é fácil calcar sobre a composição musical as diferentes partes da retórica aristotélica ou ciceroniana.
Do ponto de vista da inventio, por exemplo, revelam-se na gramática de J. S. Bach verdadeiros silogismos musicais.
De igual modo, a elocutio musical pede emprestado à tropologia retórica o seu arsenal de figuras: hipotiposes da
sonata op. 106 de Beethoven, anáforas da 2ª sonata de Prokofieff, etc.
15
 Portanto, a audição musical não é somente questão de intuição ou sensação indefinidas. Ouvir é estruturar, in-
conscientemente ou não, a ordem dos sons. Com efeito, a obra, sem nunca ser o fruto de um esforço cego, vive sob o
duplo signo da analogia e da diferença. É graças à primeira que o ouvinte se pode orientar na progressão da obra e é
devido à diferença que ele pode seguir e captar esta progressão.
 

1. 
[Ouvir, condição necessária de toda aprendizagem]

Na ocasião em que tomas a toga viril, Nicandro1,já independente dos teus primeiros
preceptores, eu te envio por escrito a dissertação que fiz sobre o modo de ouvir, para saberes
ouvir convenientemente as pessoas desejosas de te persuadir. Pois a ausência de autoridade, a
qual certos jovens, por carência de instrução, julgam ser liberdade2, constitui os desejos, como
que libertos de [p.4]  suas amarras, déspotas mais duros do que os mestres das crianças e os
pedagogos; e assim como afirma Heródoto3 que as mulheres, ao despirem-se do vestido, despem-
se também da vergonha, igualmente alguns jovens, depondo a vestidura pueril, abandonam
 juntamente a vergonha e o temor; tirando a roupa que lhes impunha um caráter, logo se enchem
de desregramento. Tu, porém, que ouviste dizer muitas vezes que é a mesma coisa seguir a
divindade e obedecer à razão4, tens por certo que a passagem da meninice para a idade viril não
consiste, para os sensatos, em subtrair-se à autoridade, mas na mudança de líder: em vez de ter
como guia um assalariado ou um escravo comprado a dinheiro5, eles tomam a razão como con-
dutor divino da vida. Somente aqueles que a seguem merecem ser considerados livres. Pois são
[p.5] os únicos que, tendo aprendido a desejar o que se deve, vivem como desejam6; enquanto
nos impulsos7 e ações estúpidos e irracionais, a livre vontade é envilecida e diminuída na intensa

1
 Não temos sobre Nicandro alguma informação que permita datar precisamente este tratado.
2
 Plutarco não visa uma roda particular. O que ele escreve sobre a loquacidade dos alunos (42 E, 43 A, 43 C, 48 B)
ou sobre as reações ora ruidosas, ora silenciosas dos ouvintes (41 C, 42 A, 43 F, 46 C, 39 D) é de todos os tempos.
Ele faz alusão, nesta frase, a uma célebre passagem da República (339 c).
3
 Enquête 1,8.
4
 Cf. Platão, Críton, 46 f.
5
 O didaskalos nomeado pelo Estado ou pelos pais dos alunos.
6
 Segundo os estóicos, somente a razão tem valor, pois apenas ela pode julgar o que é bom para o indivíduo: o que é
bom é o que não pode ser transferido para forças estranhas. Aos olhos de Plutarco, como de Sêneca, o essencial
consiste em assegurar a pr6pria independência. Ora, o meio e o objetivo da autonomia é a soberania da consciência,
o governo por meio duma consciência racional. Diante dum perigo, do apelo dos instintos, o indivíduo só tem que se
encerrar na fortaleza do governo próprio (hegemonikón); daí ele sai com licença da sua razão para colher alguns
honestos prazeres.
7
 Ou seja, os impulsos dos sentidos independentes da razão (ormè). Ver Cícero, Sobre a natureza dos deuses, II 22,
58.
 

mudança das intenções. [p.6]

2.
[O ouvido é o órgão da sabedoria]

Assim como dentre os inscritos8  como cidadãos uns, nascidos noutra terra e totalmente
estrangeiros reprovam muito do que acontece e se aborrecem, outros do número dos metecos,
educados segundo as leis e acostumados com elas, aceitam facilmente os deveres impostos e até
os amam, igualmente é mister que tu, durante muito tempo, criado junto da filosofia e habituado,
desde o início, a aplicar e unir tudo o que aprendeste e ouviste aos raciocínios filosóficos,
comeces a estudar a filosofia com ânimo benevolente e familiar. Só ela reveste verdadeiramente
os jovens da beleza viril9e perfeita, proveniente da razão, e assim penso [p.7] que não ouvirás de
antemão, com desagrado, o que Teofrasto10 diz do sentido da audição: ele é, entre os demais, o
mais venerável; nem as coisas visíveis, nem as que se saboreiam, nem as tangíveis trazem
arroubos, perturbações e terrores tais como aquelas que se apoderam da alma, irrompendo nela
por meio da audição de certos estrépitos, golpes e sons. Mas ela é também mais relacionada com
a razão do que com as paixões. Com efeito, muitos lugares e partes do corpo proporcionam ao
vício a possibilidade de apoderar-se da alma, atingida por eles. Mas, para a virtude, os ouvidos
dos jovens11 são o único meio de conquistar a sua alma, se esta for pura, e se conservar, desde o
princípio, inflexível à adulação e inacessível às palavras licenciosas. Por isso Xenócrates12 exorta
[p.8] a colocar tapa-ouvidos mais nos meninos do que nos atletas, já que estes, com os golpes, só
têm as orelhas deformadas, ao passo que aqueles ficam com os caracteres deformados. E não
recomenda que nada ouçam inicialmente, nem se façam surdos, mas se abstenham de ouvir
palavras más antes que outras ocupem, como vigilantes do caráter13 sustentados pela filosofia, a
parte da natureza pueril mais volúvel e mais fácil de seduzir. Bias, o antigo, solicitado por

8
 O termo é estóico; sobre este princípio ver Platão,  Leis, 798 b
9
 Ler Sêneca, Cartas a Lucílio, I,4,2.
10
 A referência está igualmente nas Conversas de mesa, 666 C.
11
 Plutarco talvez tenha em mente uma frase de Zenão. Ver Diógenes Laércio, VII, 24.
12
 Trata-se do discípulo de Platão que sucedeu a Espeusipo em 339, à frente da Academia.
13
 Platão na República fala igualmente das ciências nobres que são como sentinelas (phrouroi) da alma. Ver 560 b.
 

Amasis14 para enviar-lhe a parte mais útil e, ao mesmo tempo, mais vil do corpo duma vítima
sacrificial, cortou-lhe a língua e a remeteu, uma vez que a fala contém os maiores prejuízos e
utilidades. A maioria das pessoas, ao beijarem ternamente as criancinhas, tocam as orelhas
delas15  e as exortam a fazerem o [p.9] mesmo, dando-lhes a entender, de maneira pueril, que
devem amar especialmente os que nos beneficiam por meio dos ouvidos. É claro, sem dúvida,
que o jovem afastado de qualquer audição e sem experimentar nenhuma palavra, não só
permaneceria sem dar fruto e nem sequer um verdor para a virtude, mas se transviaria para o
vício. Terrível como se sua alma produzisse uma abundante vegetação em um campo inculto e
em pousio.
Se alguém deixar o impulso para o prazer e a aversão ao trabalho penoso (não os
exteriores nem os introduzidos na alma pelas palavras, mas, por assim dizer, os inatos nela,
fontes de inúmeras afeções e enfermidades) livres para avançarem para onde têm tendência, se
não disciplinar sua natureza, extirpando-os ou desviando-lhes o curso por meio de discursos
intencionais, não haverá entre as feras nenhuma que não se mostre mais domesticada que o
homem16.[p.10] 

3.
[Sobre a maneira de ouvir]

Portanto, visto que a audição proporciona uma grande utilidade aos jovens e também não
menor perigo, julgo ser bom dialogar freqüentemente sobre o modo de ouvir tanto consigo
mesmo como com outra pessoa. Pois vemos também que a grande maioria vale-se mal disso, e
exercitam o falar antes de se acostumar a ouvir. Julgam, de fato, que há um aprendizado e um
estudo e que é útil valer-se da audição de qualquer maneira17. Certamente, para os que jogam
bola, o aprendizado provém de lançá-la e tomá-la simultaneamente; contudo, no uso da palavra,
o receber bem precede o lançamento, assim como o conceber e o conser-[p.11]var se antepõem
ao nascimento duma boa semente. Com efeito, dizem que os ovos vazios das aves são origem de

14
 Bias é um dos sete sábios; Amasis um rei egípcio de que fala Heródoto (II, 162).
15
 Sobre este modo de beijar insólito ver Pollux, X, 100.
16
 Nas Leis Platão compara o domínio e a domesticação das feras com a educação das crianças.
17
 Epicteto fala duma necessidade da educação do ouvido (Entretenimentos, II, 24,4-5).
 

algo incompleto e resíduos sem vida18; da mesma maneira, o discurso dos jovens incapazes de
ouvir e desacostumados a beneficiar-se da audição é vazio, e, ao discurso, cai-lhe bem o verso:

Desconhecido obscuro é disperso pelas nuvens19.

Para recolher o que é derramado, as pessoas inclinam os vasos e os voltam para a posição
inicial, para que o líquido verta realmente para dentro, e não para fora; os jovens entretanto não
aprendem a se dispor e adaptar, com a devida atenção, o seu ouvido a quem lhes fala de sorte que
nenhuma palavra útil lhes escape. Todavia, o mais ridículo de tudo é que, ao encontrarem
casualmente com [p.12] alguém que lhes faz o relato dum banquete, dum cortejo, dum sonho,
duma altercação com outro, ouvem em silêncio com toda a atenção. Não suportam se alguém os
atrai para ensinar-lhes algo de útil ou os exorta a cumprirem algum dever, ou repreendê-los
quando se excedem ou acalmá-los quando encolerizados; mas, se podem, contestam
soberbamente o que lhes foi dito, esforçando-se por saírem vencedores; caso contrário, afastam-
se e vão escutar palavras de outra espécie, bagatelas. Como a recipientes ordinários e rachados,
não enchem o ouvido com o que é necessário, mas com tudo. Os bons criadores de cavalos
tornam a boca destes animais dócil ao freio; os bons educadores fazem os seus alunos dóceis à
palavra ouvida, ensinando-os a ouvir muito e a falar pouco. Com razão Espíntaro20, ao louvar
Epiminondas, disse não ser fácil encontrar outro homem que conhecesse mais coisas e falasse
menos. Ademais, dizem que a natureza deu a cada um de nós dois ouvidos e uma só língua para
falarmos menos e ouvirmos mais.[p.13] 

4.
[ Elogio do silêncio]

Portanto, em todas as circunstâncias, o silêncio é para o jovem um seguro adorno21,

18
 Estes ovos resultavam da fecundação da fêmea pela brisa, sem intervenção do macho (v. Varrão,  De re rustica,
II,1,19).
19
 Autor desconhecido.
20
 Filósofo pitagórico, pai de Aristóxeno.
21
 Lembrança de Ajax, 293, de Sófocles.
 

principalmente quando, ao escutar outro, não se excita, nem exclama a cada instante, mas,
mesmo se esta absolutamente não lhe agradar, se contém e espera que o palestrante acabe de
falar; ainda assim não opõe logo a objeção, mas, como diz Ésquines22, deixa passar algum
tempo, para ver se o expositor deseja acrescentar, modificar ou suprimir algo em seus ditos.
Portam-se de modo inconveniente os que imediatamente se opõem, falando aos que falam sem
ouvir nem serem ouvidos.[p.14] 
Quem se acostumou a ouvir com autodomínio e respeito, acolhe e retém o que é útil,
discerne e reconhece melhor o que é inútil ou falso mostrando-se amante da verdade e não
quereloso nem precipitado e genioso. Em conseqüência disto, não sem razão, dizem alguns que é
preciso antes expelir a presunção e o orgulho dos jovens como se faz com o ar dos odres, se
querem infundir neles algo de bom; do contrário, cheios de auto-suficiência e vaidade, não são
capazes de o receber.[p.15] 

5.
[O que é ouvir com complacência]

Assim, a inveja unida à maldade e malevolência não é boa para qualquer tipo de trabalho
e serve de empecilho a tudo o que é belo: além disso constitui um péssimo assessor e conselheiro
para o ouvinte: torna as palavras úteis importunas, desagradáveis e mal aceitas, porque os in-
vejosos gostam mais de todas as coisas do que de boas palavras. Com efeito, a quem a riqueza, a
glória e a beleza presentes nos outros fere, este é apenas um invejoso23: pois sofre com a
prosperidade alheia: contudo, aquele que se incomoda com o discurso bem discursado, se aflige
com o que é bom para si mesmo. De fato, assim como a luz é boa para os que vêem, também o
discurso o [p.16] é para os que o ouvem, desde que queiram receber. Sem dúvida, várias
disposições estultas e más engendram inveja para com os outros, mas quando a inveja, originária
do amor inoportuno à própria glória ou duma injusta ambição, se volta contra os que falam, não
deixa a pessoa com esta disposição prestar atenção ao que diz, mas confunde e distrai o
entendimento, o qual examina o seu próprio potencial para ver se é inferior ao de quem fala, e

22
 Trata-se de Ésquines, o socrático, filósofo do século IV a.C.
23
 Ver Horácio,  Epístolas, I, 2, 57.
 

considera, ao mesmo tempo, se os outros ouvem com gosto e se o admiram. Fica abatido com os
louvores a quem estiver falando, e exasperado contra os presentes se o acolhem favoravelmente.
Mas deixa que passem e se percam as palavras cuja lembrança o entristece; perturba-se, temendo
que sejam melhores que as anteriores, apressando aqueles que falam para que parem, quando
dizem coisas excelentes. Acabada a audição, o invejoso, sem dar atenção a nada do que foi dito,
mas julgando pelas exclamações e disposições dos assistentes, foge para longe dos que louvam
como de loucos, e vai correndo agregar-se aos que [p.17] censuram e também distorcem aquilo
que foi dito; se nada houver neste sentido, faz comparação com os que teriam falado melhor e de
forma mais capaz sobre o mesmo assunto, até que, corrompendo e arruinando a audição, a torna
inútil e imprestável para si.[p.18]

6.
[ Admiração e desprezo ao ouvir discursos] 

Por isso é mister que, quem pelo gosto de ouvir, em prol do desejo de se valorizar, escute
com benevolência e indulgência aquele que fala como se fosse admitido em um banquete
sagrado ou nas primícias dum sacrifício. Deve louvar a capacidade de quem encontrar,
afeiçoando-se ao próprio ardor de quem expõe publicamente aquilo que sabe e de quem tenta
persuadir os outros por meio daquilo com o qual foi ele mesmo persuadido. Aqueles que
conseguiram êxito devem considerar que este não proveio do acaso, nem espontaneamente, mas
pela diligência, pelo trabalho árduo e pela aprendizagem, e imitar essas coisas com admiração, e,
sobretudo, com emulação; quanto às faltas cometidas, é preciso refletir sobre elas para descobrir
as causas que deram origem ao erro. [p.19]  Assim como Xenofonte24  afirma que os adminis-
tradores tiram proveito tanto dos seus amigos como dos seus inimigos, igualmente também os
que falam são úteis aos seus vigilantes e atentos não apenas quando têm êxito, mas também
quando erram: com efeito, a mesquinhez do pensamento, o vazio da expressão e maneiras
grosseiras, uma comoção diante dos louvores acompanha de uma alegria vulgar por recebê-los.
Todas as coisas deste gênero ficam mais patentes aos que ouvem sobre os outros do que àqueles
que falam sobre nós mesmos. Por isso, é preciso direcionar a nós mesmos a censura daqueles que

24
 Econômico, I, 15.
 

falam, examinando se cometemos faltas despercebidas deste gênero. Efetivamente, a coisa mais
fácil de todas é reprovar o próximo, mas isto se torna inútil e vazio se não houver referência à
correção ou à precaução de coisas semelhantes. E não se deve nunca hesitar em repetir para si
mesmo, sobre os erros alheios o que Platão disse: "Acaso eu não [p.20] seria assim também?"25 
Nos olhos dos outros vemos o reflexo brilhante dos nossos e, de igual maneira, as nossas
palavras devem ser representadas nas deles, para não desprezarmos os outros com excessiva
presunção e prestarmos uma atenção mais cuidadosa a nós mesmos quando falamos.
Para tanto, é útil também o uso da comparação quando ficamos a sós depois da audiência,
e, retomando um ponto que não nos pareceu bem ou suficientemente expresso, tentemos refazer
o mesmo e dediquemo-nos a completar, de certo modo, umas coisas, a corrigir outras, a exprimir
outras de forma diferente e a outras ainda retomar desde o começo, experimentando, para tratar
do tema. É o que o próprio Platão fez com um discurso de Lísias26. Realmente, não é difícil, mas
até muito fácil contradizer um discurso pronunciado: contudo, substituí-lo por um melhor é
trabalhoso sob todos os aspectos. Assim declarou o Es-[p.21]partano27, ouvindo falar que Filipe
tinha destruído inteiramente Olinto: “Mas ele provavelmente não poderia reedificar uma cidade
semelhante.” Portanto, quando discursando sobre um mesmo assunto, nós nos mostramos bem
pouco superiores aos que já falaram a respeito, subtraímos muito do nosso desdém e a nossa
arrogância fica rapidamente diminuída, bem como o nosso amor-próprio vencido em tais
confrontações.[p.22] 

7. 
[ Examinar o orador para apreciar o que ele diz]

A admiração, certamente, se opõe ao desdém e é própria das naturezas mais generosas e


sem dúvida também das mais brandas, mas é muito certo que exige não pequena, e até maior
precaução, pois os desdenhosos e arrogantes, sem dúvida, tiram menos proveito dos que falam,
mas os levados à admiração e ingênuos são mais prejudicados e confirmam Heráclito28, que

25
 V. Platão, Alcibíades, I, 2, 57.
26
 No Fedro onde Sócrates corrige o estilo de Lísias (237 a).
27
 Um espartano chamado Agesípolis, rei de Esparta, em 371 a.C.
28
 Heráclito de Éfeso, fragm. B 87 Diels-Kranz.
 

dizia: "O indolente gosta de deslumbrar-se por toda a palavra que ouve.”29 É preciso, portanto,
elogiar sinceramente a quem fala, mas dar crédito às suas palavras com precaução, como um
observador bene-[p.22]volente e franco do estilo e da elocução dos disputantes, mas ser um
examinador meticuloso e severo da verdade e utilidade daquilo que é dito, para que, por um lado,
os discursadores não os odeiem e, por outro lado, os seus discursos não nos prejudiquem:
saibamos que, devido à benevolência e ao crédito para com os discursadores, acolhemos sem
perceber muitas opiniões falsas e perniciosas.
Os arcontes dos lacedemônios, tendo colocado à prova a proposição dum homem que
não vivia convenientemente, mandaram a outro, reputado pela sua vida e costumes, que o
proferisse. Assim, com muito acerto e proveito da pólis, acostumavam o povo a guiar-se mais
pelas maneiras do que pelas palavras dos conselheiros30. Mas, quanto aos discursos filosóficos,
é mister prescindir da fama de quem fala e examiná-los em si mesmos. Assim como na guerra,
também nas confe-[p.24]rências há muitas coisas frívolas. Com efeito, os cabelos brancos do
conferencista, a modulação da sua voz, a sua gravidade, jactância e, sobretudo, os gritos, os
barulhos, os saltos dos presentes deixam aturdido o ouvinte inexperiente e jovem, como se fosse
arrastado por uma correnteza. Ademais, o estilo encerra algo de falaz, quando é agradável e
amplo, acrescentando uma certa magnitude e esmero aos temas tratados.
Assim como nos que cantam ao som da flauta a maior parte das falhas escapam aos
ouvintes, igualmente uma locução prolixa e grave cega o ouvinte em relação ao que se declara.
Assim Melâncio, como parece, interrogado sobre a tragédia de Diógenes31, disse que não a
tinha compreendido por estar obscurecida pelas palavras. Deste modo, nos discursos e
exercícios da maioria dos sofistas, eles não só usam das palavras vãs para encobrir os
pensamentos, mas, tornando a voz suave com certo tipo de harmonia, brandura e mo-
[p.25]dulação, agitam e arrastam quem ouve num furor báquico: proporcionam um vão prazer e
recebem em troca uma glória mais vã ainda. Assim acontece com eles o que disse Dionísio.
Este havia prometido a um reputado tocador de cítara, durante um espetáculo, presenteá-lo
magnificamente. Mas depois nada lhe deu, como se já tivesse pago o suficiente, dizendo o
seguinte: "enquanto me encantavas com o teu canto, também te deleitavas com tua

29
 Ver também Plutarco, Como se devem ler os poetas, 9, 28 D.
30
 Este episódio é relatado no Contra Timarco de Ésquines (180-181).
31
 Diógenes de Sínope, autor de sete tragédias.
 

expectativa.”
É justamente esta a recompensa que tais audições merecem para os seus oradores:
causam admiração enquanto dão prazer; em seguida, ao dissipar-se a agradável sensação de
ouvir, a glória os abandona. Para uns é o tempo que se perde, para outros, a vida.[p.26] 

8.
[ julgar os discursos pelos benefícios que nos proporcionam ]

Por isso se deve suprimir a prolixidade e a superfluidade do discurso e procurar somente


o fruto, imitando, não as trançadoras de coroas, mas abelhas. As primeiras, de fato, considerando
somente os ramos floridos e perfumados da folhagem, para uni-los e entrançá-los, realizam uma
obra agradável, mas efêmera e estéril; as outras, muitas vezes atravessam voando os prados
ornados de violetas, rosas e jacintos, descem sobre o tomilho mais agreste e acre e nele pousam,

preparando o louro mel32.[p.27]

Depois de tomarem o que lhes é útil, voltam voando ao seu trabalho peculiar. Assim, o
ouvinte que aprecia a arte e é puro deve abandonar o que for florido e langoroso nos termos e
dramático e pomposo nas ações, dominando a "planta dos zangões"33, que são os que se fazem de
sofistas; mas esse ouvinte deve, por meio da atenção, retirar, mergulhando no espírito do
discurso e na disposição do orador, o que for útil e proveitoso. Que se lembre de que não veio a
um teatro ou a um recital, mas a uma aula e uma lição, a fim de melhorar a vida por meio das
palavras. Por conseguinte, deve-se examinar e julgar o valor da audiência em si mesma e pelas
disposições impressões pessoais experimentadas; conjeturar se alguma paixão se abrandou, ou
algum aborrecimento se aliviou, se suas boas resoluções e sentimentos elevados se tornaram
mais firmes, se brotou em si o entusiasmo para a virtude e o bem.
Certamente, quem sai duma barbearia sem, diante do espelho, passar a mão pela cabeça
para [p.28] examinar o corte de cabelo e a diferença produzida por este. Do mesmo modo, quem

32
 Simonides, fragm. 47 Bergk.
33
 Palavra de Platão,  República, 564 E.
 

se retira duma audiência ou aula deve logo voltar-se sobre si mesmo, procurando saber se a alma,
renunciando a algum sentimento importuno e excessivo, tornou-se mais ágil e amável. Como diz
Aríston34: "O banho e o discurso que não purificam não servem.” [p.29] 

9.

Por isso, que o jovem sinta prazer em tirar proveito das alocuções ouvidas, mas não deve
fazer do prazer o fim delas, nem julgar ser necessário sair das aulas dum filósofo "garganteando
e radiante de alegria35", nem procurar ser ungido com perfumes, quando precisa de fomentações
e cataplasmas. Deve ficar grato como se alguém purificasse com palavras acres a sua mente
atordoada e cheia de obscuridade, do modo que se limpa uma colmeia com fumaça. Realmente,
se não convém aos palestrantes negligenciar totalmente o encanto e a força persuasiva do estilo,
o jovem, ao menos no princípio, deve preocupar-se o menos possível com ele. Depois, sem
dúvida, como os que [p.30]  bebem, já matada a sede, observam as cinzeladuras das taças,
girando-as, deve-se permitir aos jovens já imbuídos de princípios filosóficos e para tomarem
fôlego, que examinem o estilo, a ver se tem elegância e magnificência.
Quem, logo de início, não se prende aos fatos e exige um discurso ático e simples36  é
semelhante a quem não quer tomar um contraveneno, se o vaso não tiver sido feito com argila
ática de Cólias37, nem vestir no inverno um manto que não fosse de lã de ovelhas áticas, detendo-
se inativo e imóvel, por assim dizer, na vestidura gasta da prosa de Lísias38, rala e despojada.
Pois essas doenças produzem, sem dúvida, muita devastação mental e dos juízos sãos, além de
muita charlatanice e lo-[p.31]quacidade nas escolas: assim os mocinhos não observam a vida
nem as atividades pessoais e públicas dum homem que faz profissão de filósofo, mas julgam
dignos de louvor os floreados do discurso, da elocução e da bela apresentação da matéria.
Quanto a esta, não sabem nem querem examinar se é útil ou inútil, necessária ou vazia e
supérflua.[p.32] 

34
 Aristão de Quios, estóico.
35
 A expressão é de Platão, República, 411 a
36
 Plutão rejeita o aticismo de Lísias pois vê nele uma maneira de esnobismo.
37
 A argila do promontório de Colias era muito procurada para a cerâmica.
38
 Lísias tem um renome de finura. A comparação com uma se reencontra em Quintiliano, IX, 4, 17.
 

 
10.
[Sobre os temas dos discursos]

A isto se segue uma advertência sobre as questões propostas. Pois quem vem a um jantar
deve servir-se do que está posto à mesa, sem exigir outros nem criticá-lo. Assim, quando se
chega ao festim das dissertações filosóficas, já determinado o assunto, se escuta em silêncio a
quem discorre; pois aqueles que o desviam para outros temas e interpõem perguntas,
apresentando sucessivas dúvidas, não são agradáveis nem se prestam à audição atenta nem tiram
proveito algum; perturbam aquele que discorre e, ao mesmo tempo, seu discurso. Quando,
porém, aquele que discorre exorta os ouvintes a perguntar e postular, é necessário sempre
mostrar que se postula algo de útil e necessário. Ulisses é motivo de zombaria para os
pretendentes [p.33] 

ao mendigar pedaços de pão e não espadas e caldeirões39,

pois julgavam sinal de magnanimidade tanto dar como pedir algo de grande. Com maior razão,
ainda alguém zombaria dum ouvinte que impelisse o interlocutor para problemas insignificantes
e intempestivos como certos jovens que procedem como um charlatão e que, ostentando seu
conteúdo apreendido de dialética e matemática, têm o costume de postular sobre a divisão do que
é indeterminado e o movimento produzido no sentido lateral e no sentido diagonal40. A estes
pode-se dizer o que foi dito por Filótimo41  a um tísico e purulento. Quando este lhe falou
pedindo um remédio para um panarício, percebendo o seu estado pela sua pele e sua respiração,
afirmou:[p.34] "Não há para ti, ó meu caro, que se falar de panarício." Portanto, nem para ti, ó
 jovem, é tempo de refletir sobre tais questões, mas antes sobre como te estabelecerás numa vida
modesta e saudável, tendo te livrado da presunção, da jactância, dos amores e também das
futilidades.[p.35] 

39
 Odisséia, 5, 22.
40
 Ver Platão, Timeu, 63 c.
41
 Trata-se do célebre médico do qual fala Ateneu (III, 79 A, 81 B, 82 F, etc.).
 

11.
[ Propor temas com pertinência]

É preciso ainda que, adaptando-se de modo inteiramente benévolo à experiência e à


propriedade natural daquele que discorre, naquilo em que este é muito superior a si próprio, faça
perguntas e não force aquele que filosofa mais eticamente, levando-o a dificuldades de
matemática e de física, mas o que se gaba dos conhecimentos de física a decidir sobre as
"posições conexas" ou à solução de "raciocínios falsos"42. Com efeito, se alguém tentasse rachar
lenha com uma chave ou [p.36]  abrir uma porta com um machado, não pareceria tratar
indignamente aqueles instrumentos, mas somente privá-los da utilidade de ambos; também os
que exigem do que discorre o que não lhe é natural e nem de sua prática mas não colhem nem
recebem o que ele tem e dá, não apenas se prejudicam com isto, mas ademais incorrem na mal-
dade e malevolência.[p.37] 

12.
[ Escolher oportunidades favoráveis ao propor os temas ]

Deve-se precaver também de postular muitas coisas e insistentemente, pois isto é, de


certo modo, próprio de quem deseja pôr-se em evidência. Ouvir, porém, com boa vontade o
outro expositor denota um apreço pelo saber e sociabilidade, a não ser se algo de pessoal o
perturbe e uma paixão que precise ser refreada o impulsione ou uma enfermidade que
necessite ser lenida. Certamente não "é melhor esconder a ignorância", como afirma Herá-
clito, mas exibi-la a todos e curá-la. Se, porém, um assomo de cólera ou um ímpeto
supersticioso ou uma repentina desavença entre os familiares ou um desejo passional
proveniente do amor,

"que tange as intangíveis cordas do coração43" [p.38] 

42
 As sunemmena axiômata são proposições das quais a segunda é induzida pela primeira. Cf. Aulo Gélio  Noites áti-
cas, XVI, 8, 9. Os pseudómenoi logoi são raciocínios falsos nos quais o espírito sente a presença duma falha que ele
não pode descobrir.
43
 Fragmento dum autor desconhecido.
 

 
agitar ainda mais o pensamento, não se deve fugir para outros discursos evitando a refutação,
mas ouvir durante as discussões e depois dessas discussões aproximar-nos deles em particular e
examinar ainda mais. Contudo, não se deve fazer o contrário, como a maioria que se alegra com
os filósofos e se admira quando falam sobre outros temas; quando, porém, o filósofo, deixando
os outros assuntos, lhes fala em particular, com franqueza, e lhes traz à memória assuntos
importantes, eles o suportam de má vontade e o têm por indiscreto. Pois, de certo modo, pensam
ser preciso ouvir os filósofos nas escolas como os atores trágicos no teatro, mas pensam que, nos
atos praticados fora das escolas, em nada aqueles se distinguem deles próprios. Tendo
experimentado isso com sucesso em relação aos sofistas (pois estes tendo-se levantado de seu
trono e deixado os seus livros e tratados elementares, para a maioria, se mostram pequenos e
inferiores nas partes verdadeiras da vida). Entretanto, tendo experimentado isso sem sucesso em
relação aos verdadeiros filósofos, [p.39]  não sabendo que a serenidade deles, a brincadeira, o
aceno de cabeça, o seu sorriso e ar severo, e principalmente o discurso, dirigido a cada um deles
em particular, produzem algum fruto vantajoso para os que se acostumaram a estar pacientes e
atentos. [p.40] 

13.
[Sobre o louvor moderado aos oradores ]

Igualmente se requer, no que toca aos louvores, a conveniência de uma certa precaução e
de um meio termo, por não ser próprio do homem livre nem a falta nem o excesso. Pois penoso e
fatigante é o ouvinte em relação a tudo e impassível quanto ao que é dito cheio duma presunção
não cicatrizada e duma jactância imanente, como se pudesse dizer algo melhor do que aquilo que
é dito, sem mover as sobrancelhas nem emitindo a voz benévola como testemunha de seu prazer
em ouvir, mas em silêncio, com uma gravidade afetada e um ar altivo. Persegue deste modo a
reputação dum homem equilibrado e profundo, como se parecesse que lhe privassem do dinheiro
tanto quanto concedem elogios a um outro. São realmente numerosos os que entendem mal e de
for-[p.41]ma equivocada o dito de Pitágoras: este afirmou que da filosofia proveio-lhe o não
admirar-se com nada, aqueles, no entanto, disseram: nada louvar nem honrar, dedicando o
 

pensamento ao desdém e buscando intensamente um ar solene através da arrogância. Sem dúvida


o discurso filosófico suprime o espanto e a estupefação provindos da inexperiência e da
ignorância por meio do conhecimento e da investigação da causa acerca de cada um, mas não
extingue a facilidade, a modéstia e o amor aos homens. Pois, para os verdadeira e seguramente
bons, a honra mais valorosa é honrar aquele que é digno, e o ornato mais nobre é o orná-lo com
honras por um excesso e superabundância de reputação.
Porém, os mesquinhos em louvar os outros parecem ainda estar carentes e ávidos de
elogios.
Em contraposição, o oposto destes nada criticando, mas a cada palavra, e a cada sílaba
ficando fora de si e vociferando, leve como pássaros, muitas vezes desagrada mesmo aos que
debatem e aborrece sempre os ouvintes, fazendo-os tremer [p.42] de medo e excitando-os contra
a sua opinião, como se fossem arrastados pela violência e vergonha a fazer coro com eles.
Nenhum proveito tira por ter perturbado e agitado a audição com louvores e dela se retira
levando consigo uma das três reputações: parece ser dissimulado, adulador e desprovido de bom
gosto no que tange aos discursos.
Quando se pronuncia uma sentença, é preciso que se ouçam as partes sem aversão
alguma nem complacência, mas com disposição favorável para o justo; ora, nas audições eruditas
nenhuma lei nem juramento44 nos impedem de acolher o interlocutor com benignidade. Também
os antigos dedicaram os mesmos santuários a Hermes e às Graças na persuasão de que a palavra,
antes de tudo, demandasse um acolhimento condescendente e amigável. Efetivamente não é
possível que aquele que discorre seja inteiramente rejeitado[p.43] ou equivocado, de sorte que
não apresente algum pensamento digno de louvor, nem a lembrança de outros, nem o próprio
tema e intenção do discurso ou ao menos a elocução e a disposição do que é dito45. 

como por entre os cardos e as ásperas sarças


brotam as flores dos tenros goiveiros brancos46.

44
 Alusão aos juramentos dos heliastas.
45
  Duas partes da retórica: a dispositio (taxis) consiste em pôr em ordem o que se encontrou, em classificar os
resultados da inventio (euresis); a elocutio reside em refazer estilisticamente aquela disposição.
46
 Autor desconhecido.
 

Quando então alguns apontam ostensivamente elogios ao vômito e à febre e, por Zeus, à
marmita, sem perder com isso a sua força persuasiva, será que um discurso feito por um homem
que, dum modo ou doutro, se crê filósofo ou é tido por tal não proporcionaria absolutamente
algum alento nem uma oportunidade aos ouvintes bem [p.44] dispostos e afáveis aos elogios?
Todos os que estão na flor da idade, como afirma Platão47, dum modo ou doutro instigam o
apaixonado: assim, ele chama os de pele clara, filhos de deuses; os de pele escura viris; o de
nariz adunco denomina principesco; o de nariz achatado é gracioso; o de tez alourada tem cor de
mel; com estes termos carinhosos ele os acolhe amigavelmente e trata com afeição. Pois o amor
é tenaz como a própria hera que se agarra com todos os pretextos. Ora, com maior razão o que é
ávido de ouvir e de ilustrar-se encontrará sempre algum motivo pelo qual não se mostrará
despropositado em louvar manifestamente cada um dos que discorrem. De fato, Platão, embora
não louvasse o discurso de Lísias48 quanto à invenção e criticasse sua desordem, contudo elogia
sua maneira de expor, dizendo que cada um dos termos "é torneado" de modo claro [p.45]  e
preciso. Poder-se-ia censurar em Arquíloco a temática, em Parmênides a versificação, em
Focílides a banalidade, em Eurípides a verbosidade, e em Sófocles a irregularidade do estilo; do
mesmo modo, dentre os oradores, sem dúvida nenhuma, há o que não tem um caráter, o que é in-
dolente em relação à paixão, o que é desprovido de graça: cada um, porém, é louvado pela capa-
cidade particular que possui por natureza para mover e conduzir. Desta maneira, os ouvintes têm
facilidade e abundância para acolher com benevolência os que discorrem. Com efeito para al-
guns, mesmo se não testemunhamos pela voz, basta proporcionar uma doçura de olhar, uma tran-
qüilidade do semblante, bem como uma disposição favorável e isenta de enfado.
Agora então há aquilo, em relação aos desprovidos de tudo, como as ocupações
corriqueiras e comuns a toda audição: sentar-se austero, sem se inclinar, na postura correta,
apenas um olhar dirigido àquele que discorre e uma disposição para uma atenção ativa, o
estabelecimento [p.46]  de um semblante puro e que não exprima não somente qualquer
insolência e mau humor, mas também outros encargos e preocupações: assim como em toda a
obra o belo se perfaz de muitas coisas, como, por assim dizer, de números que chegam a um
ponto conveniente em virtude duma certa justeza de proporções e harmonia, ao passo que o
vergonhoso se origina logo da falta dum só elemento adequado ou do excesso, fora do seu

47
  República, 474 d, que Plutarco cita numa ordem diferente, maltratando a sintaxe.
48
 Fedro, 234 s.
 

devido lugar, também, em se tratando da própria audição, o rosto carrancudo, agravado pelas so-
brancelhas franzidas e pelo desagrado, o olhar errante, as contorções do corpo, o entrecruzar in-
conveniente das pernas, um aceno de cabeça, um cochicho com outro, um sorriso, bocejos sono-
lentos, um rosto baixo e quaisquer outras atitudes análogas são censuráveis e devem ser evitadas
com muito cuidado. [p.47] 

14.
[ Erros cometidos ao ouvir]

Por outro lado, aqueles que julgam que há alguma tarefa do que discorre e nenhuma do
ouvinte pretendem que aquele venha tendo refletido e se preparado, enquanto eles mesmos, sem
nada terem considerado e sem cuidado do papel que lhes incumbe vêem precipitados se sentar,
precisamente como se viessem a um jantar, para se regalar, ao passo que os outros se afadigam.
Ora, também é tarefa do conviva que tem bom gosto, muito mais do que do ouvinte. Pois o
ouvinte é companheiro no discurso e colaborador daquele que discorre, mas não deve ser
obrigado a procurar amargamente as falhas daquele, fazendo-o prestar conta de cada palavra e
circunstância, enquanto, sem justificação a dar, cometendo incongruências e muitos solecismos,
se porta com desacerto [p.48] e deseducação durante a audição. Quando se joga bola quem a
apanha deve movimentar-se num ritmo de harmonia com quem lança. De igual modo, nos
discursos há uma certa harmonia entre aquele que discorre e o ouvinte, se cada um dos dois
observa o que lhe compete.[p.49]

15. 
[ Maneira conveniente de aplaudir. Da insolência e da tolice dos ouvintes]

Por outro lado, não é preciso usar das expressões de louvor ao acaso. Pois Epicuro é
desagradável ao falar sobre os bilhetes dos amigos pelo fato de suscitarem em si ruidosos
aplausos. E os que introduzem atualmente nas salas de audição termos até então estranhos
exclamando: "que divino!" e "que inspirado!", "inigualável!" como se ainda não bastasse dizer:
 

"que lindo!", "que sábio!", "que verdadeiro!", expressões usadas pelos ouvintes de Platão,
Isócrates e Hipérides, como sinais de louvor. Aqueles, contudo, se portam de modo
excessivamente desarrazoado e acusam os que discorrem de carecerem de louvores
desmesurados e supérfluos. Extremamente desagradáveis são também os que testemunham o seu
louvor aos que discorrem, acompanhado de juramento, como [p.50] se testemunhassem num
tribunal. Não menos importunos do que esses são os que se desviam das qualidades; assim
exclamam ao filósofo: "que picante!" e ao velho: "que vigoroso!", "que brilhante!" transferindo
aos filósofos os termos empregados nos exercícios escolares de oratória. Assim tributam aos
discursos sensatos um louvor conveniente quando se brinca e fazem-se elogios a uma cortesã,
como se coroassem um atleta de lírios e rosas e não de louros ou ramos de oliveira agreste.
Eurípedes, o poeta, ao ditar aos seus coreutas um canto feito para um arranjo musical, um deles
riu... Disse então aquele: "se não fosses insensível e ignorante não ririas, se eu o cantasse na
semilídia49". Um homem filósofo, político, como julgo, poderia abater a arrogância dum ouvinte
desenvolto com as seguintes palavras: "tu me pareces insensato e desregrado pois quando eu
ensino, admoesto ou disserto sobre os [p.51] deuses ou a respeito da vida pública ou do governo,
não gargantearias nem dançarias ao ouvir minhas palavras". Repara portanto se não é ver-
dadeiramente possível que, quando um filósofo fala, os que estão do lado de fora ficam sem sa-
ber, devido aos gritos e alaridos dos que estão dentro, se os louvores são tributados a um flautista
ou citaredo ou a algum dançarino.[p.52] 

16.
[ Do justo meio-termo em matéria de ouvir]

É certo que não se devem ouvir as admoestações e reprimendas nem com insensibilidade
nem de modo covarde. Pois os que suportam com facilidade e displicência o fato de serem
censurados pelos filósofos, a ponto de rirem quando são repreendidos e de louvarem a quem os
repreende, se portam como os parasitas em relação aos que os alimentam quando são por eles
insultados, são inteiramente atrevidos e arrogantes, não dão boa nem verdadeira mostra de
firmeza viril, devido ao seu descaramento. Sem dúvida, suportar sem desgosto e alegremente a

49
 A respeito deste modo lento e patético ver Plutarco, sobre a música 1136 C.
 

zombaria isenta de insolência e lançada com humor amável para diversão não é próprio do vil
nem deseducado, mas daquele que é livre e de caráter espartano; pelo contrário, quando se
emprega uma censura ou [p.53] admoestação para a correção de um caráter por meio de palavras
convincentes tal como dum remédio acre, se o visado por elas não as ouve abatido, coberto de
suor, e pleno de vertigem, com a alma inflamada pela vergonha, mas indiferente, galhofeiro e
zombeteiro, se comporta como um jovem terrivelmente desprovido dum espírito de liberdade e
insensível à vergonha, por ter o costume de errar e perseverar, na alma, a modo de carne
endurecida e calejada, não recebe mais açoite.
Dentre aqueles que são assim, os jovens dotados de disposição oposta, mesmo se uma só
vez tenham sido censurados, fogem sem retornar e abandonam a filosofia. Possuem, por
natureza, o belo princípio para se salvarem: envergonhar-se, mas o perdem por comodismo e
moleza; sem força para suportarem as repreensões nem aceitando as correções com nobreza de
ânimo, eles se voltam em sentido contrário às conversas agradáveis e amáveis de certos
aduladores ou de sofistas que os encantam com palavras inúteis e vãs, embora doces. Assim
como quem, após uma inci-[p.54]são, foge do médico e, não aceitando o curativo com a
ligadura, sofre na parte dolorida, e recusa a utilidade do tratamento, assim, quem não expõe a sua
ignorância à palavra aguda e cortante para cicatrizar e acalmar deixa a filosofia ferido e com
dores, sem nada ter aproveitado. Não apenas, como afirma Eurípedes, a ferida de Télefo

é suavizada pelas limalhas da lança50,

mas a palavra mordaz provinda da filosofia enraizada nos jovens de boa índole, também a
própria palavra que fere cura. Por isso certamente é necessário sofrer e ser assim mordido, mas
não aquebrantar-se nem desanimar ao receber uma censura. Contudo, como numa iniciação nos
mistérios em que a filosofia nos introduz, depois de suportar as primeiras purgações e as
agitações, é necessário esperar que algo de delicioso e brilhante resulte da presente inquietude e
perturbação. [p.55] Mesmo se lhe parecer que a reprimenda tenha sido feita injustamente, é bom
suportá-la e continuar ouvindo pacientemente. Quando este cessar de falar, vá ter com ele para se
 justificar e pedir que reserve aquela franqueza e o rigor, então usados para consigo, quando tiver
verdadeiramente cometido algumas faltas.[p.56] 

50
 Nanck-Snell, fragm. 724.
 

17.
[ Dois tipos de alunos: os tímidos e os sabichões]

Ademais, como as primeiras lições sobre a escrita, a lira e os exercícios da luta produzem
muita agitação, esforço e incerteza, mas depois de progredir pouco a pouco, como sucede com os
homens, muitos usos comuns e o conhecimento adquiridos tornam todas as coisas agradáveis,
tratáveis e fáceis de dizer e fazer, de modo semelhante, apesar de a filosofia encerrar, certamente,
algo de inextricável e insólito nos primeiros nomes e questões, não se deve, por medo, abandonar
os seus princípios covarde e timidamente. Deve-se esperar pacientemente o hábito comum que
torna agradável tudo o que é belo, experimentando por si mesmo cada um dos pontos,
perseverando e desejando ardentemente o ir adiante. Ele virá, realmente, dentro de não muito
tempo, trazendo [p.57] muita luz para o nosso aprendizado, e inspirando-nos amores formidáveis
pela virtude, sem os quais só pode tolerar o restante da vida um homem desafortunado ou
covarde que abandonou a filosofia por causa de sua covardia. Talvez também os assuntos
apresentem algo difícil de compreender, no início, para os jovens e inexperientes; entretanto, eles
caem na maior obscuridade e ignorância por eles mesmos, cometendo os mesmos erros a partir
de naturezas contrárias. Uns, com efeito, por vergonha ou para discrição daquele que discorre,
hesitam em interrogar e assegurar-se do discurso, mas, como se o tivessem compreendido, fazem
sinais de assentimento; outros, levados por uma pretensão intempestiva e um vão espírito de
rivalidade para com os demais, ostentam vivacidade e capacidade de aprender facilmente, e,
embora declarem ter antes de reter, ao final nada retêm. Em seguida sucede que os primeiros,
reservados e discretos, ao se afastarem, ficam aborrecidos e embaraçados e, finalmente, com
vergonha ainda maior, voltam novamente a importunar aqueles que discorreram com perguntas
tardias e retornos ao que foi exposto. Porém, os pretensiosos e atrevidos sempre acobertam e
dissimulam a ignorância com a qual convivem.[p.59] 
 

18.
[Sem ser inoportuno nem por demais minucioso, o aprendiz de filósofo deverá exercer duas
virtudes da aprendizagem: a cópia e a perfeita intelecção]

Portanto, rejeitando toda a pusilanimidade e presunção desse tipo, dispostos a aprender e


a compreender com inteligência o que é dito apropriadamente, suportemos os risos dos que se
 julgam de boa natureza, como Cleanto e Xenócrates, que, não obstante parecessem ser mais
lentos que os colegas, não se esquivavam de aprender nem se desencorajavam, mas se
adiantavam em gracejar deles mesmos, comparando-se a vasos de gargalo estreito e a tabuinhas
de bronze, como se recebessem com dificuldade as palavras, mas as conservassem fiel e
firmemente. Pois não apenas, como afirma Focílides, é preciso

muitas vezes ser logrado ao procurar ser um homem nobre51 [p.60] 

mas também ser ridicularizado freqüentemente e menosprezado e, tendo recebido sarcasmos e


brincadeiras de mau gosto, repelir com todo o rigor a ignorância e triunfá-la.
Não se deve contudo negligenciar a falta cometida em sentido contrário pela qual uns,
desagradáveis e fatigantes devido à sua inércia, não querem, quando ficam a sós, ter o trabalho,
mas o dão àquele que discorre interrogando-o muitas vezes sobre os mesmos temas, semelhantes
aos passarinhos que ainda não voam, abrindo sempre o bico para o bico dum outro, desejando
receber tudo já inteiramente preparado pelos demais. Outros, caçadores da glória da atenção e da
acuidade onde não é preciso, cansam os que discorrem com a sua loquacidade e sua coscuvilhice,
sempre duvidando de coisas desnecessárias e buscando demonstrações do que não é preciso:

assim o caminho curto se torna longo52, [p.61]

como afirma Sófocles, não só para eles, mas também para os outros. Em verdade, detendo o mes-
tre a todo momento com perguntas fúteis e supérfluas, como sucede numa viagem, impedem a
continuidade da aprendizagem, afetada por paradas e dilações. Com efeito, tais pessoas, segundo

51
 Fragm. 6 West.
52
 Sófocles, Antígona, 233.
 

Jerônimo53, à maneira de cachorrinhos medrosos e vorazes que mordem, em casa, a pele das
feras e lhes arrancam os pêlos, não atacam. Exortamos estes preguiçosos a que, quando tiverem
compreendido os pontos principais para o entendimento, componham por si mesmos o resto,
guiem, por meio da memória, a invenção e tomem o discurso alheio como origem e semente para
nutrir e desenvolver. Pois a inteligência não necessita de ser enchida completamente como um
vaso, mas de ser inflamada como a madeira, produzindo um impulso inventivo e um apetite para
a verdade. Como quem necessita do fogo da casa de vizinhos e, encontrando-o abundante e
esplen-[p.62]doroso, ficasse sentado aquecendo-se indefinidamente, assim, aquele que vem para
tomar parte no discurso de um outro não pensa ser preciso acender a sua luz pessoal e iluminar a
própria inteligência, mas, alegrando-se com a audição, senta-se fascinado. Nem destrói nem
dissipa o bolor interno e a obscuridade da alma por meio da filosofia, da mesma forma que, ao
inflamar-se e abrilhantar-se, retira dos discursos sua idéia.
Se é preciso algum outro preceito sobre a audição, este consiste na necessidade de que se
lembrem do que foi dito agora e se apliquem à invenção simultaneamente à aprendizagem. Isto
para que não adquiramos uma disposição própria do sofista nem da história, mas profunda e
filosófica, certos de que o princípio de viver consiste em ouvir bem.

Sumário

Prefácio............................................................. V
de Pierre Maréchaux
Como ouvir..................................................... 1

53
 Filósofo peripatético de Rodes.

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