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WebLivro Organizadores

Lea Monteiro
Antropokaos Luís Oliveira
Mostra de Ficção Cecília Lobo
Científica Brasileira Alfredo Suppia

Autores
Curador Alfredo Suppia
Alfredo Suppia Arthur Lins
Clarissa Reche
Revisora Érico Perrella
Cecília Lobo Igor Carastan Noboa
Jessica Hypolitho
Projeto Gráfico e João Ferrari
Diagramação João Victor Fernandes
Larissa Kamei Lea Monteiro
Leo Sabanay
Ilustrações Luis Oliveira
Eryk Souza Milene Migliano
Pedro Borda
Richard Aaron Basso
Rodrigo Leme

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Antropokaos [livro eletrônico] : mostra de ficção científica brasileira /


organização Lea Monteiro ... [et al.] -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG :
Maria Cecília Silva Lobo Lima, 2021.
PDF

Outros organizadores : Luís Oliveira, Cecília Lobo, Alfredo Suppia.


Bibliografia
ISBN 978-65-00-20204-5

1. Cinema 2. Ficção científica brasileira I. Oliveira, Luís. II. Lobo,


Cecília. III. Suppia Alfredo.

21-61279 CDD-B869308762

Índice para catálogo sistemático:


1. Ficção científica : Literatura brasileira
B869.308762
A ficção científica é caracterizada por sua capacidade
de reinventar paradigmas científicos através da arte. Para
além de mera simulação do mundo cientificista em que
vivemos, a ficção científica tem a capacidade de construir
realidades que criam e recriam os imaginários futuristas de
um determinado tempo e povo.
Antropokaos: Mostra de Ficção Científica Brasileira co-
meçou sua história em 2019, em uma ação de ocupação
do cinema do Galpão Cine Horto, retornando em 2021 com
recursos da Lei Aldir Blanc com uma programação 100%
online e gratuita.
A mostra contou com 4 sessões de curtas-metragens,
cada uma com 4 filmes; e com 4 sessões de longas-metra-
gens, cada uma com 2 filmes, totalizando 24 obras. Os filmes
estiveram disponíveis no site por 7 dias cada, garantindo ao
público um intervalo maior para assisti-los. Aos domingos
aconteceram debates sobre as obras de cada semana.  
As obras selecionados para a Mostra misturam dife-
rentes épocas e estilos, fazendo um panorama da Ficção
Científica no Brasil desde os primeiros filmes do gênero. Os
longas-metragens resgatam a história dessa parte do cine-
ma brasileiro, enquanto os curtas demonstram como nosso
cinema independente contemporâneo cria novas narrativas
e realidades a partir da ficção científica.
67 36

08
06
39
Curadoria

Introdução
contemporâneo
comédia no
Infiltrações da

Apresentação
O Brasil é um
pesadelo:
paranoia
na ficção
científica

68 46
50
Ficção científica
77 86

territorialidade
Imaginação e
brasileira
na ficção científica
experimentações
Subjetividades e

no cinema
brasileiro: o
liame entre
O Brasil é um arte e ciência
Ficção Científica no contexto
surto coletivo:
e Comédia:
experimentação brasileiro
como gêneros se
e ficção científica
fortalecem

58 24
21
60

27
contemporâneo
científica do Brasil
uma ficção
Sonhos e reinvenções,

reinventados
significantes
Signos clássicos,

ficção científica
brasileiras na
Subjetividades
abertura –
Sessão de
O Brasil vai Sessão de
abertura – O
acabar? Brasil é uma
Sonhos, desejos piada: comédia
e desafios do na ficção
agora científica Mostras
127

93
100
Ensaios
especulação
de uma
A fotografia
A Sentinela:
141 O progresso
experiência
ficção científica é
ancestral”; a
“O futuro é

em desordem:
Montagem
dialética como

106

117
alienígenas
representações
como
subdesenvolvidos
nossos: territórios
Em outros mundos
abertura para a
poética do caos
em Era uma vez
Brasília

94
A ciência
cibernética

146 132 dos mortos:


em ‘Sol Alegria’
e seus lampejos
ficção científica
no gênero da
A Fase Estética
em desordem:
O progresso ficção científica
como artefato

122
e documento Entre ficção
em Wax or científica e
Manifesto ciência: um
the Discovery
utópico convite para a
of Television
Viagem ao Among Bees imaginação
passado do

137

112
Melancolia
resenha do filme
salvação” - uma
em graça ou
inesperadamente
converte-se
desastrosa
“A desgraça
cinema de
Ficção Científica
Brasileiro -
Barbosa (1988)
Por um mundo a
ser parido: sobre
Solon, de Clarissa
Campolina
Alfredo Suppia é professor de cinema na Universi-
dade Estadual de Campinas. É autor do livro Atmosfera
Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (São
Paulo: Devir, 2013), e organizador do volume Cartografias
para o Cinema de Ficção Científica Mundial: Cinema
e Literatura (São Paulo: Alameda, 2015). Foi também o
responsável pela seleção de textos para este weblivro.

Quando a realidade beira o inexplicável, parece natural a multipli-


cação de obras artísticas dos gêneros fantástico e ficção científica, ou
na assim chamada ficção especulativa. Vivemos uma distopia: o mundo
inteiro é assolado por uma pandemia. No Brasil, essa distopia é duplica-
da: soma-se à ameaça da Covid-19 uma política distópica de extrema-
-direita que flerta constantemente com o autoritarismo, com a derrocada
da democracia, com a necropolítica e com o negacionismo científico. É
justamente nas condições mais adversas que a ficção científica parece
mais potente. Imaginar é preciso, imaginar é necessário, imaginar é vital.
É nesse sentido que Antropokaos: Mostra Ficção Científica Bra-
sileira brota do concreto cinza e árido, tal como a erva insistente
que irrompe nas calçadas. Não adianta concretar: a imaginação
perfura. Antropokaos emerge num momento oportuníssimo, e cum-
pre um papel relevante: a ficção científica brasileira pulsa, viva e
luminosa, como um quasar irredutível. Seus raios nos atingem com
força, ressignificando nosso entorno assustador e misterioso, mas
não menos intrigante e provocativo.
A curadoria da Mostra é um primor. Os filmes selecionados, tanto
em curta quanto em longa-metragem, demonstram com proprieda-
de a longevidade e a heterogeneidade do cinema brasileiro de fic-
Apresentação

ção científica: uma galáxia com estrelas brilhantes e planetas curio-


sos. A seleção evidencia a vocação antropofágica dessa parte de
nosso cinema, sua dimensão lúdico-carnavalesca, seu parentesco
Afredo Suppia

com a comédia, a chanchada, o folhetim, o tropicalismo, seu apreço


pela quebrada e pela gente que de fato constrói o futuro com seu
próprio suor. Antropokaos é assim um repositório para o cinema de
FC do Sul, de um cinema de ficção científica tupinipunk (esse termo
maravilhoso do escritor e crítico Roberto de Sousa Causo), um cine-
ma antropofágico-tropicalista-especulativo, um metamorfo capaz

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de assumir diferentes formas e combinações: com a comédia, com o
cinema queer, com o gênero policial, com o documentário e pseudo-
documentário, entre outros amálgamas ou articulações.
A Mostra é uma das mais completas do gênero já realizadas
no Brasil, reencontrando no mapa celeste a ficção científica nas
chanchadas (Atlântida, Herberts Richers), nos filmes dos anos 1960
e 70 (Cinema Marginal, Boca do Lixo e cinema experimental bra-
sileiro). Estamos falando de cineastas como Carlos Manga, Victor
Lima, Eduardo Coutinho, Carlos Pedregal, Alberto Pieralisi, e Olney
São Paulo, entre outros realizadores. O panorama mais recente do
cinema do gênero oferecido por Antropokaos é extremamente ilus-
trativo da autonomia deste na produção brasileira: a nave continua
no curso e com força nos motores. São alguns dos melhores curtas e
longas-metragens lançados nos últimos tempos, representativos de
diferentes gerações de cineastas e regiões do Brasil. Representam
também os novos rumos do gênero no contexto mundial: algumas
das obras são notadamente identificadas com o Afrofuturismo, com
o Futurismo Indígena e com o Futurismo Queer ou LGBTQ+. Uma pro-
dução que precisa ser conhecida – e reconhecida.
E uma Mostra tão colorida, versátil e irreverente não poderia
deixar de ter um catálogo à altura, com textos e ensaios igualmente
provocativos, tensionadores e interrogativos. Afinal, para onde ruma
essa nave intergaláctica que é o cinema brasileiro de ficção científi-
ca? Quais nebulosas, constelações e planetas ainda está por visitar?
Por isso é um prazer e um orgulho apresentar este volume que colige
textos equivalentes a sondas interplanetárias: cada autor, a seu
modo, investiga o cinema de ficção-científica no Brasil e no mundo, e
não se furta a desconfiar das enigmáticas emissões que se propagam
nas fronteiras desse universo. São textos sobre filmes brasileiros ou
estrangeiros específicos, sobre viagens no tempo e no espaço, sobre
a filosofia do gênero, sobre seus impactos em nossa cultura e em
nossas vivências, sobre subjetividade, experimentação, identidade,
territorialidade, imaginação, sonho e pesadelo, distopia e utopia,
ordem e caos. Nada mais oportuno. A nave espacial do cinema brasi-
leiro de ficção científico segue viajando - e despeja suas sondas. Que
elas investiguem os mais fantásticos planetas, e que todos possamos
repensar o nosso a partir desses sonhos coletivos ao sul do Equador.

7
A FICÇÃO CIENTÍFICA E O CINEMA
O cinema já mantinha vínculos estreitos com a ciência
antes mesmo de seu surgimento. Na tentativa de se criar
“imagens em movimento com sequência de fotografias
(que) serviam a propósitos científicos” (OLIVEIRA, 2006, p.
134), surge o cinema, que por um bom tempo continuou a
servir como instrumento científico, ainda que alvo de con-
trovérsias. Como aponta Bruno Latour, existe uma disputa na
construção de fatos científicos: uma vez que emerge um novo
paradigma, como o de usar imagens em movimento para
comprovar fatos científicos, há uma disputa entre cientistas,
Ficção científica no cinema brasileiro: o liame entre

que argumentam e fazem mais plausível o novo paradigma,


só então o consolidando como fato no imaginário científico.
O cinema seria, algumas décadas depois, responsável
pela criação de um imaginário científico em um mundo cada
arte e ciência no contexto Brasileiro

vez mais cientificista, sem nunca deixar de desempenhar


seu papel na divulgação de avanços da ciência. Torna-se,
assim, uma das referências de como a sociedade vai perce-
bê-la, ao criar uma espécie de imaginário social, mas dentro
de um processo dialético, uma vez que, por outro lado, este
reflete valores culturais da sociedade.
Além de um dos símbolos e uma das inovações da mo-
dernidade, o cinema significou também um meio extraordi-
nário de circulação do conhecimento, de difusão de novas
experiências e valores culturais. Numa cultura inteiramente
permeada pela expectativa de progresso científico e inova-
ções tecnológicas é natural que os meios de comunicação
projetem perspectivas semelhantes (OLIVEIRA, 2006, p. 135).
Ao falar sobre imaginário social, Bernardo de Oliveira
Introdução

elucida o papel da imaginação no campo da história, e


Lea Monteiro

como o imaginário seria uma forma de realidade histórica


segundo Le Goff e Cazenave. Em sua perspectiva, a riqueza
do simbolismo ultrapassa suas funções; edifica-se sobre as
ruínas de símbolos precedentes, tendo em vista a conso-
lidação de novos. Ao representar a ciência no cinema, há
uma simbologia que reflete o olhar de uma época e de uma

8
sociedade, trazendo noções gerais de ciência e por vezes
estereotipando cientistas e seu fazer. O cinema seria uma
fonte e um agente histórico polifônico, em que múltiplas vo-
zes criam discursos sobre o que é ciência, sem um consenso.
A ficção científica, para Hari Kunzru, “tem origem em nos-
sas mais profundas preocupações sobre ciência, tecnologia
e sociedade” (2009, p. 19) e questiona até que ponto ela
penetrou sob a membrana de nossa pele. É responsável por
criar ficções, por inverter relações científicas, encenar especu-
lações. De acordo com Bruno Latour, a própria ciência é em si
uma ficção, arquitetada a partir de um caos de informações
que é organizado e sistematizado, criando uma ideia de or-
dem que é inventada e fabricada. Em “Ficção Científica na
América Latina” Graciela Ravetti (2010) discorre sobre como
as ficções científicas encenam debates públicos disciplinares,
apontam para os limites da ciência e entrelaçam o liame en-
tre ciência e arte, história e ficção. É responsável pela criação
de tensões a partir da passagem de um regime científico a
outro no universo fílmico. Cria, segundo ela, uma abstração
racional que permite aos artistas exporem a barbárie mo-
dernizada encoberta sob um manto pseudocientificista.
Lança em movimento uma visão do cosmos humano, criando
cenários vastos e populares que brincam com os poderes fa-
bricados da ciência combinando mimese e realismo em uma
retórica que preza pela paródia. Judith Butler (2015 [1990])
aponta para uma distinção que coloca a paródia em uma
posição de derivação, fantasia e mimese, como uma cópia
malfeita e, do outro lado, aquilo que é “real”. Entretanto, para
a autora, é uma falácia a construção da possibilidade de
“tornar-se real”, uma vez que lugares ontológicos são funda-
mentalmente inabitáveis. Assim, há um elemento subversivo
nas práticas parodísticas, uma vez que o que é tido como real
e original aparecem eles mesmos como fabricações. Exibi-
ções hiperbólicas do real revelariam, portanto, seu status fun-
damentalmente fictício. Ao usar essa chave para pensar as
ficções científicas, suas representações descortinam o próprio
caráter fabricado da ciência, que se constitui como um longo

9
processo de construção de fatos a partir de um caos de evi-
dências em moldes latourianos. Seriam, assim, responsáveis
por romper barreiras e fronteiras. Segundo Donna Haraway:

A ficção científica contemporânea está cheia de ci-


borgues – criaturas que são simultaneamente animal e
máquina, que habitam mundos que são, de forma am-
bígua, tanto naturais quanto fabricados. A medicina
moderna também está cheia de ciborgues, de junções
entre organismo e máquina, cada qual concebido
como um dispositivo codificado, em uma intimidade e
com um poder que nunca, antes, existiu na história da
sexualidade. O sexo-ciborgue restabelece, em algu-
ma medida, a admirável complexidade replicativa das
samambaias e dos invertebrados – esses magníficos
seres orgânicos que podem ser vistos como profilaxia
contra o heterossexismo. (2009, p. 36)

Seus paralelos ilustram que as fronteiras entre o mimético


e o real são borradas na medida em que as imagens parodís-
ticas se confundem com as científicas. O ciborgue, uma figura
híbrida, um pastiche que se faz tão presente nas ficções cien-
tíficas e no imaginário social, se apresenta para desmantelar
construções sociais tais como gênero e ciência, e se prolifera
no mundo como uma identidade política. Ela continua:

A produção moderna parece um sonho de co-


lonização ciborguiana, um sonho que faz com que,
comparativamente, o pesadelo do taylorismo pa-
reça idílico. Além disso, a guerra moderna é uma
orgia ciborguiana, codificada por meio da sigla C³I
(comando-controle-comunicação-inteligência) – um
item de 84 bilhões de dólares no orçamento militar.
Estou argumentando em favor do ciborgue como uma
ficção que mapeia nossa realidade social e corporal
e também como um recurso imaginativo que pode
sugerir alguns frutíferos acoplamentos. (2009, p. 37)

10
FICÇÃO CIENTÍFICA, ANTROPOLOGIA E CINEMA
Para Willian Busch (2016), a ficção científica é acessa-
da a partir da reflexão sobre a alteridade. É um processo
de virtualização. Em “Antropologia da Ficção Científica”,
Busch procura rastros etnográficos de mundos ficcionais.
Segundo o autor, a ficção científica é um fenômeno hí-
brido, de ontologias alienígenas, no qual fronteiras são
atravessadas e temas caros à Antropologia são revelados.

1_ Uso aspas por considerar uma violência epistêmica tratar o homem como ser ontológico univer-
Assim como na antropologia, na ficção científica algu-
mas temáticas são recorrentes. As oposições natureza e
cultura, “homem”1 e máquina, animal e humano, parecem
estar no centro das discussões na ficção científica, onde a

sal, mas achei que ficaria redundante usar humano em duas comparações seguidas.
imaginação ganha terrenos extramundanos, e em que a
tela do cinema cria e se abre para possibilidades, o que
para Gabriel Tarde seria explicado como um fenômeno
que se constitui através de inumeráveis ações provenientes
de infinitos agentes. Se o diretor de cinema e sua equipe
criam uma mise en scène em seu filme, captando em um
quadro sua visão de mundo, também o antropólogo faz um
recorte do mundo em sua etnografia e cria imagens men-
tais, através do texto, de quais são os costumes daquele
povo ou grupo, quais são os elementos que estão em sua
composição. Não por acaso, o surgimento da antropologia
enquanto disciplina científica está estritamente ligado ao
surgimento da fotografia2, e o antecedente mais remoto
do cinema etnográfico está logo no início da história do
cinema, já em 1985, “quando Félix Régnault, um antropó-
logo francês, decide apelar a esta técnica para fazer um
estudo comparado do comportamento humano, e filma em
Paris uma mulher [...] que fabrica cerâmica na Exposição
Etnográfica da África Ocidental” (COLOMBRES, 1985, p. 11).
2_Ver Pinney, Chris

Se, como é elaborada a questão por Luiz Carlos de Oliveira


Júnior em “O cinema de fluxo e a mise en scène” (2010), a
mise en scène foi destruída pelo Cinema de Fluxo, talvez de
forma ainda mais potente dá-se a relação entre o ofício do
antropólogo e do cineasta uma vez que “o primordial do

11
filme passa a ser a intensidade particular de cada registro
– intensidade como o não-construído, o não-instituído, o
que precede as capacidades organizadoras e articula-
doras do pensamento” (JÚNIOR, 2010, p. 99). Altera-se a
visão da encenação de um mundo que é visto e reproduzi-
do imageticamente para uma imagem que se apresenta e
dirige o espectador a uma imersão no universo fílmico. Algo
que é similar ao documentário etnográfico – um fazer da
pesquisa antropológica com uma câmera – que, diferente
do texto acadêmico, apresenta imagens vívidas, em mo-
vimento, nas quais as atividades humanas se apresentam
de modo mais acessível. Ainda assim, como no cinema de
fluxo, este é apenas o recorte de um mundo. Mesmo que
sem os referenciais das artes cênicas tão demarcados
quanto na tradição anterior, permanece sendo uma pro-
jeção imagética e corre o risco de congelar um povo no
tempo, criando uma imagem de que seus costumes “sempre
foram assim e sempre vão ser”, os descontextualizando, ti-
rando-os da história e do universo de estruturas de poder
no qual está inserido - um constante processo histórico-
-dialético de mudanças e transformações, como aponta
Johannes Fabian em suas críticas à antropologia. O uso
da antropologia para analisar obras de ficção científica é
imprescindível. Conceitos como alteridade, decolonialida-
de, as oposições binárias de natureza e cultura, humano e
não-humano, centrais ao fazer antropológico, enriquecem
o entendimento sobre os universos e sub-universos criados
pelas ficções científicas. No contexto latino-americano, a
antropologia é ainda mais cara para essa análise, pois há
de se ter uma visão decolonial dos universos distópicos e
utópicos que são construídos nas periferias do mundo, que
rompem ou reproduzem os discursos da caravela colonial
dos cinemas imperialistas.

12
FICÇÃO CIENTÍFICA NO CINEMA BRASILEIRO
No cinema brasileiro, a divulgação de ciência e tecno-
logia está presente desde sua fase inicial através dos filmes
produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo
(INCE), de 1910 a 1966, sobretudo os dirigidos por Humber-
to Mauro. Em “A ciência vai ao cinema”, Elisandra Galvão
(2004) fala sobre como este último foi um meio decisivo no
aprimoramento da educação e na valorização da ciência
brasileira, em uma espécie de redenção nacional. O que se
pretendia era moldar um ideário de construção nacional e
de formação do cidadão brasileiro no Estado Novo, muito
inspirado pela Europa. Nesses filmes, segundo Galvão,
temas controversos não aparecem. A perspectiva era a de
um cinema em consonância com o Estado e que passasse
uma imagem positiva do governo, ainda que não tivesse um
caráter propagandista.
Há um florescer da ficção científica já no final dos anos
50, com a realização de obras tais como O Homem do Sput-
nik (1959) de Carlos Manga. Mas é sobretudo nas décadas
de 60 e 70, assim como ocorreu em outras partes do mundo
sob o contexto da Guerra Fria, que o gênero parece ser mais
explorado. A produção nacional de filmes de ficção cientí-
fica nunca foi muito expressiva, porém, o que foi produzido
traz uma riqueza de elementos para a análise. Para pensar
ficção científica no Brasil, assim como cinema no geral, é
necessária uma visão crítica que pode ser enriquecida pelo
uso das teorias decoloniais, que partem da “proposta de
uma epistemologia crítica às concepções dominantes de
modernidade” (COSTA apud BALLESTRIN, 2013, p. 90), tendo
como uma de suas intenções a reconstrução da história la-
tino-americana ao realizar duras críticas ao legado colonial
e ao ocidentalismo.
Através de uma narrativa rarefeita, Branco Sai, Preto Fica
(2014), de Adirley Queirós, traz a representação de popula-
ções marginalizadas frente a um Estado racista e higienista.
Pode-se pensá-la como uma obra decolonial, que mostra

13
como as heranças de um Império Colonial até hoje geram
impactos violentos. No filme, um viajante do futuro volta
para o passado para colher provas contra o Estado e res-
sarcir famílias que sofreram danos físicos e psicológicos.
Dois dos protagonistas do filme tiveram problemas de lo-
comoção depois de uma invasão da polícia, que violentou
e matou pessoas negras em um baile funk, o que fez com
que um deles perdesse a perna precisando usar uma perna
mecânica, e o outro perdesse o movimento das duas pernas.
Uma crítica à cidade modernista, a Ceilândia construída
pelo diretor, segundo Carlos Ribeiro (2018), demonstra o
falho plano de centralização do Brasil e desfaz a relação
simbólica de hierarquia no país. Segundo o autor, o filme é
uma reinterpretação crítica tanto do passado quanto do
futuro brasileiro, e da condição de subalternidade à qual
populações e grupos sociais são submetidos, demonstrando
que uma reparação a partir da lógica de Estado não é pos-
sível, o que culmina na cena final: associando a sonoridade
ao uso de desenhos não-animados feitos à mão do Con-
gresso Nacional, em vez de efeitos especiais - recurso que é
tão privilegiado em ficções científicas estadunidenses - faz
com que uma bomba exploda Brasília.
A ficção científica brasileira dos anos 60 também traz
elementos políticos, ainda que não tão politizados, e pode
ser usada para ilustrar as imagens que o Brasil tinha/tem de
si mesmo, qual a identidade nacional que era/é predomi-
nante e como o país se via/vê localizado geopoliticamente.
Em O 5º Poder (1962), de Alberto Pieralisi, a questão central
são os meios de comunicação. Há uma concepção de poder
exacerbado destes. Na história, um grupo de cientistas é
financiado por uma potência estrangeira que tenta mani-
pular o Brasil através de mensagens subliminares em meio
à programação de Rádio e TV para implantar o completo
caos no país. O Brasil é representado em uma relação de
dominação, entregue aos anseios de nações mais poderosas
do Norte Global. Na narrativa, construída de forma hitchco-
ckiana, cabe a um grupo de pessoas que não acompanham

14
tais mídias a saída desse estado das coisas. Seguindo visões
pessimistas em relação aos meios de comunicação, comuns
ao mundo pós Segunda Guerra Mundial, e difundidas so-
bretudo pela Escola de Frankfurt, que denunciava a socie-
dade de massa, do espetáculo, e a alienação causada por
meios como, por exemplo, o cinema propagandista nazista,
o filme tem um tom pessimista e conclui que o que resta ao
ser humano é a manipulação.
Já em Os Cosmonautas (1962), de Victor Lima, uma chan-
chada de cunho crítico, somos apresentados, em um dos pri-
meiros planos do filme, à imagem de um “Foguete Nacionalis-
ta” decolando, tornando o Brasil a terceira potência mundial
a lançar um foguete para o espaço. Os cientistas, construídos
a partir de um dos estereótipos comuns à literatura de ficção
científica, fazem referência à indústria nacional - que é por eles
enaltecida - mas que, na montagem paralela, é ridiculariza-
da com a imagem de um aspirador de pó brasileiro que não
funciona. Os parlamentares representados no filme elogiam
a ciência e afirmam que não há nada que traga mais pres-
tígio nacional do que uma bomba bem forte, e ficam muito
satisfeitos quando ouvem que a bomba criada pelo cientista
é capaz de destruir São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte
simultaneamente. O cientista se regozija ao ouvir que o gover-
no deixaria de investir em saúde, educação e agricultura para
investir em seu foguete. A bomba é usada como um símbolo
de inserção do Brasil entre as grandes potências, o que tem
relação direta com o contexto de Guerra Fria em que os Es-
tados Unidos e a União Soviética disputavam a hegemonia
mundial através de seus arsenais bélicos. Através de uma per-
sonagem de outro planeta, visto como um lugar muito mais
avançado que a Terra, os cosmonautas, dois matutos comuns
às chanchadas, são convencidos a ameaçar jogar a bomba
do espaço e destruir o planeta, caso não fosse declarada a
paz mundial, e que os recursos antes gastos em guerra fossem
investidos em saúde, garantindo a melhoria das condições
de vida. As nações, então, entram em um acordo de paz, que
dura pouco até que haja o reinício das operações bélicas.

15
Em Brasil Ano 2000 (1969), filme que se passa em um
país que foi parcialmente destruído por uma “Terceira
Guerra Mundial”, lançado já durante a ditadura militar,
revela-se uma visão etnocêntrica que vai de encontro a
aquela do Estado brasileiro, sobretudo no Regime Militar,
que incentivou a ocupação forçosa do interior do país,
ocidentalizando a educação indígena, criando assen-
tamentos, afastando a população brasileira, em geral,
dos saberes tradicionais, da cultura indígena, mantendo
visões racistas e tuteladoras em relação a esses povos. Na
história do filme, uma família, que viaja de Brasília rumo ao
norte do Brasil, para em uma cidade de nome “Me Esque-
ci”, e recebe uma oferta de trabalho de um coronel à frente
de um programa de educação indígena. Ele pede a eles
que se passem por indígenas frente ao General Presidente,
uma vez que as populações tradicionais haviam fugido
dali. Sob a pressão da mãe, a família aceita o trabalho,
que é desprezado pelo filho, não por ser antiético ou des-
respeitoso, mas por ter, ele próprio, uma visão de indígenas
como “primitivos” e de si como homem “civilizado”. Isso é
reiterado durante o filme, mesmo pelo personagem anar-
quista e crítico ao regime militar, que faz comentários ra-
cistas e etnocêntricos em relação aos indígenas, afirman-
do, por exemplo, que não há nada melhor que um índio
que deixa de ser índio. O filme termina com o protagonista
repetindo, energicamente, que é civilizado, revelando o
anseio do Estado brasileiro em seu processo civilizador e
seu projeto de fazer com que o índio deixe de ser índio
e se transforme em pobre, como aponta Eduardo Viveiros
de Castro. Com diversas falas em inglês, que fazem pouco
sentido dentro da narrativa, a imagem de um foguete que
será lançado para a lua se faz central ao enredo do filme.
Segundo o General, o Brasil seria uma civilização voltada
para o espaço e o infinito e, em um travelling durante a
cerimônia de lançamento do foguete, revela-se, atrás do
general, uma faixa que diz: “Mais uma vez a lua se curva
ante o Brasil”. O foguete, no entanto, não decola.

16
Ainda que de forma por vezes simplista, a ficção cien-
tífica brasileira revela elementos que geram uma série de
questionamentos e levantamentos. Há uma diversidade de
vozes que constituem as ideias do que é o Brasil, e em que
ponto ele está posicionado na estrutura global. Represen-
tado, nos exemplos, como uma nação racista, como um alvo
de grandes potências, como a terceira maior potência do
mundo ou como um país voltado para o espaço, percebe-se
a presença dessa multiplicidade, e das diferentes formas
de se relacionar com esses imaginários nacionais. O mesmo
país racista que é genocida e mata pessoas negras todos os
dias em Branco Sai, Preto Fica (2015), e o que dizima e vio-
lenta povos indígenas em Brasil Ano 2000 (1969), é contado
de pontos de vista diferentes, o primeiro a partir de grupos
que vivem à margem da sociedade, o segundo da visão dos
setores privilegiados, o que mostra um amadurecimento no
gênero, uma expansão das possibilidades e uma subver-
são, valendo-se da ficção científica para desenhar outras
formas possíveis de realidade, ao mesmo tempo em que se
denuncia o estado das coisas. Essas imagens, provenientes
de diferentes momentos da história e da história do cine-
ma, formam uma espécie de colcha de retalhos permitindo
a formação de uma teia imagética que ilustra, através da
arte, a identidade e o imaginário de um país através de
vozes que se transformam ao longo de gerações e que ora
se contradizem ora se complementam dentro de um mesmo
período histórico, revelando controvérsias, hegemonias, pos-
sibilidades. Através do rádio e da TV que incessantemente
produzem um bip ou de um foguete que nunca sai do chão,
imaginários são criados.

17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BALLESTRIN, L. América latina e o giro decolonial. Revista
Brasileira de Ciência Política, n. 11, p, 89-117, 2013.
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Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
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do Cinema Educativo (INCE). 2004. Dissertação (Mestrado
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18
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coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e
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SKOPURA, F. A. Viagem às letras do futuro: extratos de
bordo da ficção científica brasileira: 1947-1975. 2001. Dis-
sertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências, Letras

19
SEMANA 1
O Brasil é uma piada: comédia na ficção científica
Em nossa sessão de abertura, escolhemos dois clás-
sicos da ficção científica brasileira. Profundamente
marcados pela geopolítica da guerra fria, esses
filmes nos parecem procurar um lugar para o Brasil
nesta briga de gigantes. Ou, ainda, procurar por uma
solução «à brasileira» para esta briga. Através de um
humor único, esses filmes jogam com as noções do
projeto nacional de sua época, e oferecem saídas
absurdas ao “país do futuro”.

Subjetividades brasileiras na ficção científica


Os filmes dessa sessão trazem consigo uma
constante relação com grandes mazelas contem-
porâneas, sem perder de vista a subjetividade de
seus personagens. Nestes filmes, a ficção científica é
responsável por revelar questões cotidianas sob uma
nova perspectiva, nos oferecendo um entendimento
profundamente íntimo dos nossos tempos. São obras
formalmente maduras e em diálogo com o agora.
Sessão de abertura – O Brasil é uma piada: comédia na ficção científica

O Homem do Sputink
São Paulo,1959, 98 minutos

O filme narra as peripécias de um homem simples que pen-


sa que o satélite russo Sputnik caiu no telhado de sua casa.
Ele é perseguido por espiões de todos os tipos até que a
verdade vem à tona.

Direção: Carlos Manga


Equipe:
Produção: Cyll Farney
Roteiro: José Cajado Filho
Música composta por: Radamés Gnattali
Elenco:
Oscarito - Anastácio Fortuna
Cyll Farney - Nelson ou Jacinto
Heloísa Helena - Dondoca
Hilton Gomes - Repórter
Mostra

Jô Soares - American Spy


Neide Aparecida - Dorinha
Nestor de Montemar
Norma Bengell - B.B.
Zezé Macedo - Cleci

24
O Homem que Comprou o Mundo
São Paulo, 1968, 100 minutos

José Guerra, humilde cidadão do país Reserva 17, procura


ingenuamente descontar um cheque de cem mil “strikmas”,
que recebeu de um misterioso hindu, e acaba por lançar
a confusão em um poderoso banco, onde um computador
eletrônico, depois de mostrar-se impotente para realizar a
conversão da quantia, ordena sua detenção. Com a reve-
lação feita pelo sábio do país, as cem mil “strikmas” equi-
valem a dez trilhões de dólares, as autoridades exigem que
o dinheiro seja depositado no banco estatal e ordenam o
confinamento de José Guerra no interesse da segurança
nacional. Isolado numa fortaleza, casa-se secretamente
com Rosinha. Em sua lua-de-mel tem delírios de aquisição,
nos quais se incluem o Maracanã e a Estátua da Liber-
dade. José consegue iludir seus opressores e empreende
espetacular fuga: a pé, a cavalo, de patinete, na cidade e
nas selvas. Não pode parar. Buscará sempre uma liberdade
que sempre lhe fugirá.

25
Direção: Eduardo Coutinho

Equipe:
Diretor: Eduardo Coutinho
Música composta por: Francis Hime
Cinematografia: Ricardo Aronovich
Roteiro: Eduardo Coutinho, Zelito Viana

Elenco:
Flávio Migliaccio - José Guerra
Fregolente - General
Hélio Ary - Psiquiatra
Hugo Carvana - Cabo Jorge
Jardel Filho - General
João das Neves
Juju - Soldado 2
Márcia Rodrigues - Bancária
Marilia Carneiro - Secretária
Marília Pêra
Mário Brasini
Milton Gonçalves - Soldado 1
Nathália Timberg - Rainha Louca
Nildo Parente - Assessor
Paulo César Peréio - Apresentador da TV Posterior
Pedro Correia de Araujo - Camarada 2
Raul Cortez - Primeiro Ministro
Roberto Maia - Agente 2
Rogéria - Agente 4
Rubens de Falco - Imperador Maximiliano
Sônia Clara - Camarada 4

26
Sessão de abertura – Subjetividades brasileiras na ficção científica
Ditadura Roxa
Minas Gerais, 2020, 23 minutos

Yeda, mulher verde, vende pães para sustentar a casa


onde vive com seu marido doente. Por meio do contexto
das pessoas verdes, conhecemos a realidade de quem vive
à margem de uma sociedade roxa e conservadora. Uma
oportunidade faz com que Yeda repense sua identidade e
seus valores.

Equipe:
Roteiro e Direção: Matheus Moura
Direção de Produção: Charles Mascarenhas
Produção Executiva: Charles Mascarenhas, Davi Cândido,
Mostra

Matheus Moura
Direção de Som: Davi Cândido
Direção de Fotografia: Gabriel Werneck
Direção de Arte: Débora Lima
Edição: João Paulo de Freitas

27
I Assistente de Direção: Samuel Fávero
I Assistente de Produção: Ana Carolina Teixeira
Produção Local: Filipe Thales
Efeitos Visuais: João Lucas Palma
Correção de cor e Colorização: Indra Aquino
Preparação de Elenco: Felipe Cruz
Produção de Platô: Rodrigo Sampaio & Samuel Vieira
Assistentes de Produção: João Arantes, Ibria Lopes, Izabela San-
tiago, Sandrine Rodrigues, Tiago Bernardo, Yago Monteguedes
I Assistente de Fotografia: Sarah Hellens
II Assistente de Fotografia: Renan Eduardo
Câmera: Antônio Maurício
Câmera II: Victor Abaurre
II Assistente de Direção: João Paulo Freitas
Continuísmo: Rodrigo Sampaio
Assistente de Som: Francisco Oliveira, Isa A. G., Júlio Martínez
Mixagem: Douglas Aquino
Consultoria de Arte: Thaylane Cristina
Assistente de Arte: Estevam Neto, Poliana Maluf & Rodrigo Sampaio
Cenografia: Débora Lima
Maquiagem: Carol Nobre e Estevam Neto
Assistente de Maquiagem: Charles Mascarenhas, Rodrigo
Sampaio e Sandrine Rodrigues
Consultoria de Figurino: Amanda Buzatti
Storyboard: Rafael Lisboa
Designer: Laysa Miranda

28
Artes Gráficas: Bráulio Franesi, Felipe Pessanha, Fernando
Leles, João Lucas Palma, Izabela Santiago e Laysa Miranda
Animação: Motim
Layout, Supervisor de Arte, Rigging, Animação, VFX, Compo-
sição: Luiz Máximo
Diretor de Animação, Storyboard, Layout, Animação de
Personagens: Otávio Azevedo
Artista 3D, Layout, Animação: Pedro Brigagão
Layout, Design de Personagem, Animação: Taffarel Moreira
Trilha Sonora Original: Douglas Aquino
Making Of: Ana Clara França
Legendista: Matheus Guifer
Consultoria de Roteiro: João Paulo Freitas, Tiago Bernardo,
Yago Guedes
Consultoria de Montagem: Anna Mol, Clara Albinati, Cibele
Bustamante, Francisco Oliveira, Indra Aquino, Marcos Pal-
mer, Samuel Vieira

Elenco:
Meibe Rodrigues - Yeda
Paulo Trindade - Goulart
Leon Ramos - Y
Chris Geburah - Bessa
Marcus Labatti - Dr. Índigo
Anna Campos - Cunhada
Augusto de Almeida Costa - Sodalito Bordô
Russo APR - Garganta
Renato Novaes - Padre
Léo Pyrata - Apresentador religioso
Paulo César Almeida – Mordomo

29
República
São Paulo, 2020, 16 minutos

Brasil, 2020. A pandemia evidencia a dimensão da necropo-


lítica que opera no país e a sociedade vive uma crise ética
em meio a um governo que é a exata expressão do poder
colonialista. República é um curta metragem realizado em
casa, com estrutura caseira, durante o início da quarentena
de 2020, no centro da cidade de São Paulo, Brasil.

Equipe:
Direção/Roteiro: Grace Passô
Dir.Fotografia/Som/Montagem: Wilssa Esser
Correção de Cor: Bruno Schiavon
Finalização: Clandestino Post

Elenco:
Grace Passô

30
O Prazer de Matar Insetos
Rio de Janeiro, 2020, 10 minutos

Em um futuro próximo, a crise climática chega a um ponto


irreversível. Uma freira e um padre se encontram para falar
sobre o desaparecimento dos insetos.

Equipe:
Direção e Roteiro: Leonardo Martinelli
Produção: Francisco Vasconcelos, Leonardo Martinelli,
Rafael Lopes Cesar
Montagem: Pedro de Aquino
Direção de Fotografia: Sofia Leão, Leonardo Martinelli
Som Direto e Edição de Som: Caio Vasconcelos
Mixagem de Som: Roberto Crivano

Elenco:
Rosa Iranzo
Alexandre Rosa Moreno

31
Abjetas 288
Sergipe, 2020, 20 minutos

Em um futuro distópico, Joana e Valenza fazem uma jorna-


da à deriva por uma cidade nordestina. Através da música
eletrônica e trilha ruidosa, as personagens nas andanças
pelas ruas, performam o que sentem enquanto vivem nessa
sociedade tentando entendê-la. Abjetas 288 trata sobre
territorialidades, identidades e meritocracia, tudo com um
tom irônico e se utilizando de elementos alegóricos que
dialogam com a história popular de Aracaju.

Equipe:
Direção: Júlia da Costa e Renata Mourão
Assistência de direção: Lilian Sara
Direção de Fotografia: Bruna Noveli
Assistência de Fotografia: Cend Laura, Clécia Borges e
Caio Augusto
Direção de Arte: Carolina Timoteo
Figurino: Mariana Veloso, Isabella Kassan, Deborah Gon-
çalves e Izadora Sobral Cenografia: Juno e Layla Bomfim
Produção de Arte: Amanda Fletcher e Isabella Kassan
Produção de Objetos: Deborah Gonçalves, Juno e Layla Bomfim
Artes Gráficas: Layla Bomfim, João Marques e Mariana Veloso

32
Cabelo: Gustavo Miranda, Juliana Santana e Isabella Kassan
Maquiagem: Pretafromake, Isabella Kassan e Derek Profile
Direção de Som: Clara Cavalcante Bueno
Assistência de som: Kleverton Souza e Silverman
Trilha Sonora: Janaína Disfalq, Danilo Grilo, Deniel Diniz,-
Thiago Samadhi e Adam Lucas Viana
Mixagem e desenho de som: Adam Lucas Viana
Direção de Produção: Neto Astério
Assistência de produção: Larissa Lima
Produção Executiva: Filipe Cruz
Produção de Set: Theresa Menezes, Lucas Menezes e Kaippe Reis
Continuísta: Carolen Meneses
Montagem Júlia da Costa e Renata Mourão
Preparação de Elenco: Diane Veloso, Marcia Baltazar e
Jonathan Rezende

Elenco:
Débora Arruda interpreta Joana
Dandara Fernandes interpreta Valenza
Jeane Menezes interpreta Véia do Shopping
Ada Viana interpreta Véia do Shopping
Maria Tereza Xavier interpreta Bettina
Daniel Quintiliano interpreta Homem sem nome
Gustavo Miranda interpreta Policial
Tinho Torquato interpreta Camelô
Fortes Silva interpreta Motorista de Lotação
Pedro Felipe, Carolina Santos, Fortes Silva e Igor Galvão
interpretam Figurantes

33
SEMANA 2
O Brasil é um pesadelo: paranoia na ficção científica
Quando se fala sobre a relação da sociedade com
a tecnologia as opiniões se dividem entre bioconser-
vadores (que temem o poder destrutivo dos aparatos
científicos), e transhumanistas (que acreditam que
a tecnologia é capaz de superar toda e qualquer
limitação material imposta à condição humana). Nos
filmes desta sessão, trazemos bons exemplos da pa-
ranoia tecnológica presente em boa parte do cinema
de ficção científica.

De um lado, um filme fundamental para o gênero no


Brasil, uma obra séria com o intuito de escancarar os
perigos relacionados aos meios de comunicação. Do
outro, uma pornochanchada com a potencialidade de
quebrar qualquer preconceito relacionado ao gênero
erótico por sua engenhosidade narrativa e técnica.

Infiltrações da comédia no contemporâneo


A comédia, historicamente, teve um papel muito
importante no cinema de ficção científica no Brasil.
São inúmeras as chanchadas que criaram universos
em que os signos clássicos do gênero eram inverti-
dos, reinventados e tornados alvos de gozações. No
cinema contemporâneo há alguns expoentes dessa
tradição. Os curtas trazidos nesta sessão têm o intuito
de mostrar que o cinema independente é capaz
não apenas de nos fazer rir, mas também de criar
alegorias potentes sobre nosso país, como faziam as
chanchadas dos anos 50 e 60.
Excitação
São Paulo, 1976, 90 minutos
O Brasil é um pesadelo: paranoia na ficção científica

Renato compra uma casa na praia com o propósito de aju-


dar a esposa Helena a recuperar-se de suas crises nervosas
e alucinações. Mas, quando Helena descobre que o antigo
proprietário da casa havia se enforcado ali, ela compreende
que não sofre de alucinações, pois uma de suas visões era
justamente a de um homem balançando na ponta de uma
corda. À noite os eletrodomésticos ganham vida, as luzes
da casa piscam e aparece a imagem do enforcado. Renato,
que é engenheiro e materialista, apaixonado pela ciberné-
tica, não acredita em manifestações sobrenaturais e quer
internar a esposa. Mortes misteriosas começam a acontecer.

Equipe:
Direção: Jean Garrett
Roteiro: Jean Garrett, Ody Fraga
Produtor: Augusto Pereira de Cervantes
Elenco:
Betty Saady
Mostra

Flávio Galvão
João Paulo Ramalho
Kate Hansen
Liana Duval
Zilda Mayo

36
O 5º Poder
Rio de Janeiro, 1962, 100 minutos

Uma potência estrangeira tenta dominar o mundo através


da propaganda subliminar, que pode atingir o inconsciente
das pessoas por meio de artefatos eletrônicos. Um jorna-
lista começa a investigar uma série de fatos e descobre os
responsáveis pelos distúrbios.

Equipe:
Direção: Alberto Pieralisi
Produção: Carlos Pedregal
Direção de fotografia: Ozen Sermet
Sonografia: Amadeu Riva
Montagem: Ismar Porto
Cenografia: João Maria dos Santos

37
Elenco:
Eva Wilma
Oswaldo Loureiro
Augusto Cesar
Sebastião Vasconcellos
Dary Reis
Leonidas Bayer
Renato Coutinho
Nildo Parente
Roberto Maya
Alfredo Murphy
Jurema Magalhães
Roberto de Cleto
Fábio Sabag
Antonio Cirilo Costa
Luiz Mazzei
Orlando Guy
Oscar Cardona
Rodolfo Del Rio
Dirceu Fuchs
Pedro Faria Veiga
Emiliano Ribeiro
Participação especial
Orlando Villar

38
A Nave de Mané Socó
Pernambuco, 2019, 18 minutos

Ameaça vinda do espaço aterroriza uma pequena e paca-


ta cidade do sertão pernambucano. Em tom sensacionalis-
ta, a rádio local narra as misteriosas abduções do planeta
vermelho.

Infiltrações da comédia no contemporâneo


Equipe:
Direção: Severino Dadá
Roteiro: Severino Dadá
Produção: Vanessa Barbosa, Gustavo Montenegro
Estúdio: Urânio Filmes
Fotografia: Rafael Mazza
Trilha sonora: Leandro Vaz, Kleber Araújo
Montagem: André Sampaio

Elenco:
André Sampaio
Renata Than
Severino Dadá
Amanda Guimarães
Mostra

Danilo Cavalcanti
Ubiratan Aboiador
Leandro Vaz
Violeta Than
Sampaio

39
Tommy Brilho
Ceará, 2018, 17 minutos

Tommy Brilho é o primeiro aluno invisível da universidade.


Com isso, surge o grande desafio de ser visto por seu crush.

Equipe:
Direção e Roteiro: Sávio Fernandes
Fotografia: Isabelle Guedes, Sávio Fernandes e Vitória
Aderaldo
Som: Lola Melo e Pedro Emílio Sá
Edição e Efeitos Visuais: Sávio Fernandes
3D: Wil Valentim
Correção de Cor: Bruno Bressam
Desenho de Som e Mixagem: Pedro Emílio Sá
Produção de Set: Alexia Holanda e Viviane Sacramento
Arte: Beatriz Vidal
Cabeça: Vitória Passos e Monike de Lima
Figurino: Amanda Memória e Jacqueline Brito
Trilha Sonora Original: Guilherme Campos (Guika)

40
Elenco:
Arthur Almeida
Paulo Buuh
Bianca Dantas
Bruno Ponte
João Victor Veras
Aila Sampaio
Marcelo Müller
Andréa Fernandes
Cláudio Fernandes

41
Master Blaster: uma aventura de
Hans Lucas na nebulosa 2907N
São Paulo, 2013, 19 minutos

Um estranho fenômeno astronômico atingiu a nebulosa 2907N.


O agente intergaláctico Hans Lucas é enviado para investigar
o evento, que mudou os hábitos da população local.

Equipe:
Direção: Raul Arthuso
Produção: Lira Cinematográfica
Roteiro: Raul Arthuso
Direção de Fotografia: André Brandão
Direção de Arte: Felipe Diniz
Som Direto: Gustavo Zysman Nascimento
Montagem e Efeitos: Gabriel Martins
Edição de Som: Raul Arthuso
Trilha Original: Rafael Cavalcanti
Direção de Produção: Lara Lima, Maria Clara Escobar
Produção Executiva: Lara Lima
Elenco:
Rômulo Braga
Rodolfo Vaz
Zeca Auricchio
Adirley Queirós
Oswaldo Ávila
Diogo Veronezi
Valéria Lauand
Otávio Dantas

42
Plano Controle
Minas Gerais, 2018, 15 minutos

Em 2016, um golpe político de Direita derruba a primeira


mulher eleita presidente no Brasil. Nesse contexto político
distópico, Marcela usa o serviço de teletransporte de seu
celular para deixar o país, mas seu plano é controle.

Equipe:
Produção: Camila Bahia Braga, Laura Godoy, Marcella
Jacques
Fotografia: Alice Andrade Drummond
Roteiro: Juliana Antunes
Direção de Arte: Dayse Barreto
Montagem: Gabriel Martins, Luisa Lanna
Animação de Efeitos: Robert Frank
Empresa Produtora: Ventura

Elenco:
Uirá dos Reis
Marcela Santos
Christian Bravo
Katia Aracelle

43
SEMANA 3
O Brasil é um surto coletivo: experimentação e
ficção científica
Nesta sessão temos duas produções independentes
que operam a linguagem experimental a favor de
enredos que apresentam revisões críticas ao tecido
social brasileiro. De um lado, um filme sério, com
assíduo tom político e revolucionário, que trata a
ficção científica como ponto de partida para tecer
um projeto de futuro enquanto analisa seu presente.
Do outro, uma ficção científica psicodélica que, com
a questão climática de pano de fundo, cria uma
sátira escrachada das esferas sociais, com um humor
inteligente que debocha abertamente do imaginário
conservador brasileiro.

Imaginação e territorialidade
Na sessão de curtas oferecemos uma diversidade
orgânica de enredos. Os filmes imaginam universos
suscetíveis às suas próprias circunstâncias, que são
ora delicadas, ora desconcertantes. São tomados
pela beleza ou pelo horror de seus espaços, abran-
gendo uma série de signos pertinentes ao gênero de
ficção científica enquanto os contrastam entre si. Dos
quatro filmes, três pertencem ao cinema mineiro. O
quarto é um importante expoente do Cinema Novo.
Nas temáticas, dois estão mais alicerçados no coti-
diano e no extra-cotidiano enquanto os outros são
mais experimentais. Todos imaginam mundos nova
calcados em territorialidades brasileiras.
Rodson ou (Onde o Sol não tem Dó)
O Brasil é um surto coletivo: experimentação e ficção científica

Ceará, 2020, 74 minutos

São os pré-anos 3000. arte é crime. refletir é proibido. Ler


não existe mais. Somente produções e consumos em massa
são permitidos. RODSON®. Um garoto com seu animalesco
instinto artístico reprimido pela sociedade ao seu redor,
só mais um de muitos… O governo anarcocrenty comete o
engano de achar que a besta estivera sob controle, mas
sua mente concebe CALEB® o alterego de RODSON@ que o
lança estrada a fora, abandonando ares-condicionados em
busca da alucinação perfeita sob o Sol sem dó de 2000°C
que a última camada de exosfera proporciona à vigente
sociedade.

Equipe:
Direção: Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra
Roteiro: Cleyton Xavier e Urutau M. Pinto
Produção Executiva: Christopher Faust, Lupércia Dolores,
Jáguerson Porotinho, Mr. Satã
Direção de Produção: Cleyton Xavier, Urutau M. Pinto e
Lyna Lurex
Montagem: Clara Chroma e Cleyton Xavier
Mostra

Fotografia: Cleyton Xavier, Urutau Maria Pinto, Insiranomea-


qui, Orlok Sombra, Biela, Lyna Lurex, Nirá Link
Figurino: Lyna Lurex, Cleyton Xavier, Urutau Maria Pinto,
Orlok Sombra, Banda Glamourings, Lulu Ribeiro, Keoma
Mixagem:Clara Chroma

46
Edição de Som e trilha sonora: Clara Chroma e Cleyton Xavier
Empresa Produtora: CHORUMEX
Co-produção: Jiboya Corp e Sombra Filmes
Elenco:
Orlok Sombra
S.brxxzkjxkzxkxkz
Nirá Link
Gadi Bergamota
Lyna Lurex
Tina Reinstrings
Melindra Lindra
Sabiá Pensativo
Rodolfo Keoma
Biela, Will
Insiranomeaqui
Guika
Kaê Marques
Cyborgue Oleosa
Abi Gaiu Oliveira
Lulu Ribeiro
Vitrilis Sarambaxo
Anaya Ókun
Sapata Deslizante
Kaye Djamiliá
Big Bug
Ariza Torquato
Rachid
Jane Malaquias
Davi Sampaio
Antoni Dia

47
O Anunciador – O Homem
das Tormentas
Minas Gerais, 1970, 82 minutos

O anunciador surge numa cidade do interior, provocando


desconfiança e inquietação. Quatro rapazes tentam detê-lo
e são dominados, o diretor do teatro local enlouquece, os
homens de negócio começam a fracassar, as lojas fecham
as portas. Tudo se modifica com sua presença, que desperta
inclusive o amor da moça de minissaia. Três representantes do
povo tentam dialogar com o Anunciador, mas este se mantém
inflexível e adverte a todos que o pior há de vir. As pessoas
parecem dominadas por força sobrenatural: a moça loura, o
homem pobre, o pensador, o casal de amantes, o homem de
negro. O povo se aproveita do amor da moça de minissaia
para lançá-la contra o Anunciador. É a última esperança.

48
Equipe:
Diretor: Paulo Bastos Martins
Roteirista: Paulo Bastos Martins
Colaboração com o roteiro: Paulo Bastos Martins
Trilha sonora: Carlos Moura
Produtores: Paulo Bastos Martins, Mário Simões
Diretor de fotografia: Mário Simões
Montador: Mário Simões
Montador: Paulo Bastos Martins
Produção: Agedor Filmes

Elenco:
Carlos Moura - Anunciador
Klelma Soares - Moça de mini-saia
Paulo Bastos Martins - Diretor de teatro
Mário Simões- Homem pobre

49
Teoria sobre um
Planeta Estranho
Minas Gerais, 2018, 15 minutos

“A história de amor é narrada de forma absolutamente envolvente


e original. Inventividade parece ser a tônica da prática artística de
Cordisburgo. Se na obra-prima de Guimarães Rosa, Riobaldo faz
(ou não) um pacto com o diabo, no peculiar curta de Marco Antônio
Pereira, seu protagonista tem um encontro com Deus. Deus que
se apresenta de forma insolitamente material como proprietário
de uma loja de bugigangas onde nada está à venda, tampouco
precificado. O desolado frentista é quem cobra explicações pela
infelicidade que o tolheu em um dia de chuva torrencial. É filosófico.
As imagens do casal correndo na chuva antes do incidente (e tantas
outras) são cheias de graça e beleza. Elas se repetem em uma
montagem frenética, são memoráveis e simbólicas. Marco Antônio
Imaginação e territorialidade

Pereira, músico em essência, as enriquece sonoramente, concerta


uma linguagem para sua protagonista com dificuldades auditivas e
alcança os tons que vão ressoar no público.” - Carla Oliveira, Accirs

Equipe:
Diretor: Marco Antônio Pereira
Roteiro: Marco Antônio Pereira
Produção: Ariane Rocha
Mostra

Edição: Marco Antônio Pereira

Elenco:
Larissa Bocchino
Gerson Marques

50
Quintal
Minas Gerais, 2015, 20 minutos

Mais um dia na vida de um casal de idosos da periferia

Equipe:
Direção e roteiro: André Novais Oliveira
Assistente de direção: Joana Oliveira
Produção: André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio
Martins e Thiago Macêdo Correia
Produção executiva: Thiago Macêdo Correia
Direção de produção: Luna Gomide
Assistente de produção: Gustavo Ruas
Direção de fotografia: Gabriel Martins
Assistentes de fotografia: Diogo Lisboa, Lucas Barbi
Elétrica e Maquinária: Flávio C. Von Sperling
Direção de arte e figurino: Mariana Souto e Tati Boaventura
Assistente de arte: Moisés Sena
Som direto: Maurílio Martins
Montagem: Thiago Ricarte
Editor de som: Daniel Mascarenhas
Efeitos Visuais: Gabriel Martins
Acompanhamento para Correção de Cor: Bruno Risas
Supervisor de Finalização: Thiago Ricarte
Assistente de Finalização: Clara da Matta
Tradutores: Soraia Mouls (Francês, Thiago Macêdo Correia
(Inglês) e Lara Lima (Revisão)

51
Legendagem e Exports: Jaque Del Debbio
Cartaz: Gabriel Martins e Maurilio Martins
Peças Graficas: Bani Torrico
Catering: Dircinha Macêdo
Motoristas: Luciano Ribeiro, Daniel Brito e Kiki Soares
Elenco:
Maria José Novais Oliveira
Norberto Novais Oliveira
Ítalo Laureano
Miriam Franco
Marcos Dumont
Roberta Veiga
Geraldo Veloso
Nísio Teixeira

52
Solon
Minas Gerais, 2016, 16 minutos

Uma fábula sobre o surgimento do mundo, apresentado


a partir do encontro de uma paisagem devastada e uma
criatura misteriosa. Solon habita o espaço extremamente
árido e infértil. Aos poucos, ela se destaca da paisagem,
aprende a se movimentar e explorar seu corpo. Verte água
por suas extremidades e inicia sua missão de regar e nutrir
a terra. A paisagem se altera e a própria personagem tam-
bém. Nasce o mundo. Nasce a mulher.

Equipe:
Performance e coreografia: Tana Guimarães
Direção: Clarissa Campolina
Produção Executiva: Luana Melgaço
Diretora de produção: Carolina Gontijo
Fotografia: Ivo Lopes Araújo
Direção de arte: Luiz Roque e Thais de Campos
Montagem: Luiz Pretti
Edição de Som, Trilha e Mixagem: O Grivo
Assistente de direção: Paula Santos

53
Assistência de Produção: Analu Bambirra e Thiago Lima
1o Assistente de Câmera: Leandro Gomes
2o Assistente de Câmera: Wanessa Malta
Assistente de produção e arte: Giulia Puntel
Cenotécnico: Diego Bujão
Assistente de cenotécnico: Henrique Bocelli
Consultoria: Eduardo Felix
Costureira: Janaína Lages
Colaboração Coreografia: Izabel Stewart
Financeiro: Roberta Abreu
Motoristas: Henrique Bocelli e Marcos Jamanta
Eletricista: Washinton Henrique
Revelação e Telecine: Cinecolor
Finalização: Mengamuk
Projeto Gráfico: Clarice Lacerda
Produção: Anavilhana + Alumbramento + Michel Balagué

54
Manhã Cinzenta
Bahia, 1969, 22 minutos

Um golpe de estado num país imaginário da America Lati-


na. O poder. A repressão. O filme que levou seu realizador
aos porões da ditadura.
“Manhã cinzenta é o grande filmexplosão de 1968 e supera
incontestavelmente os delírios pequeno-burgueses dos his-
téricos udigrudistas. Montagem caleidoscópica, desintegra
signos da luta contra o sistema – panfleto bárbaro e sofis-
ticado, revolucionário a ponto de provocar prisão, tortura e
iniciativa mortal no corpo de Artysta. O Cinema Nordestino,
Cinema Popular metaforizado em Olney e Miguel Torres,
vítimas dos invasores – Heroys do Brazyl!” - Glauber Rocha.

Equipe:
Diretor: Olney São Paulo
Diretor de Fotografia: José Carlos Avellar
Elenco:
Neville d’Almeida
Iberê Cavalcanti
Maria Helena Saldanha
Sonélio da Costa
Sonélio Costa
Janet Chermont
Zena Felix
Nestor Noya
Flávio Moreira da Costa

55
SEMANA 4
O Brasil vai acabar? Sonhos, desejos e desafios
do agora
Como sonhar caminhos para o Brasil? Os desafios e
os entraves colocados em prática no nosso país são
questões que permeiam a ficção científica. Em nossa
sessão de encerramento, exibimos um filme pessi-
mista, em que o brasileiro queima sem possibilidade
de escapismo, e uma obra propositiva, que aponta
críticas e possibilidades para se viver melhor em um
país pior.

Signos clássicos, significantes reinventados


A ficção científica no Brasil tem como uma de suas
principais características o caráter parodístico, que
faz gozação de elementos clássicos do cinema
industrial, sobretudo o hollywoodiano. Em nossa
sessão de encerramento, trazemos filmes que usam
esses signos, mas alteram seus significantes. As possi-
bilidades que a ficção científica brasileira traz para a
reinvenção do gênero são inúmeras.
Terra Negra dos Kawa
Amazonas, 2018, 99 minutos
O Brasil vai acabar? Sonhos, desejos e desafios do agora

Na região rural do Amazonas, próxima a Manaus, os an-


ciãos Uçana e Turyná são os principais responsáveis pelo
comando das principais terras locais. Pertencentes à etnia
Kawa, eles tornam-se motivo de interesse para cientistas
escavadores que descobrem grandes poderes energéticos
e sensoriais naquelas que são chamadas de “terras pretas”.

Equipe:
Direção: Sérgio Andrade
Produção: Flavia Abtibol, Sergio Andrade,
Roteiro: Sérgio Andrade
Musica Original: Bernardo Uzeda
Montagem: Marina Meliande
Fotografia: Yure Cesar
Som: Felipe Magalhaes, Bernardo Uzeda
Elenco:
Kay Sara
Anderson Kary Báya
Ermelinda Yepario
Mostra

Severiano Kedassere
Mariana Lima
Marat Descartes
Felipe Rocha
Anderson Tikuna

58
Tropykaos
Bahia, 2015, 82 minutos

Guima (Gabriel Pardal) é um poeta que está em crise. Em


Salvador, ele sofre com as altas temperaturas do verão
e acredita ter uma estranha doença: a “ultraviolência
solar”, causada pelo calor. No submundo, bem distante
dos cartões postais da cidade, Guima é usuário de crack e
vive na marginalidade. Um dia, parte em uma jornada de
autoconhecimento em busca de um ar-condicionado.

Equipe:
Direção: Daniel Lisboa
Produção Executiva: Tenille Bezerra
Roteiro: Daniel Lisboa e Guilherme Sarmiento
Fotografia: Pedro Urano
Montagem: Eva Randolph e Daniel Lisboa
Direção De Arte: Luís Parras
Trilha: Lucas Santtana e Gilberto Monte
Elenco:
Gabriel Pardal
Manu Santiado
Dellani Lima
Edgard Navarro
Bertrand Duarte
Júlio Cesar Mello
Fabricio Boliveira

59
Caranguejo Rei
Signos clássicos, significantes reinventados

Pernambuco, 2019, 23 minutos

Eduardo (Tavinho Teixeira) tem uma doença misteriosa em


seu corpo. A aparição de caranguejos por toda a cidade do
Recife pode ter algo a ver com isso.

Equipe:
Direção: Enock Carvalho, Matheus Farias
Roteiro: Enock Carvalho, Matheus Farias
Produção: Carol Ferreira, Luiz Barbosa
Estúdio: Gatopardo Filmes
Montagem: Matheus Farias
Fotografia: Maíra Iabrudi
Elenco:
Mostra

Tavinho Teixeira
Arilson Lopes
Clebia Sousa
Marconi Bispo
João Vigo

60
Os Últimos Românticos do Mundo
Pernambuco, 2020, 23 minutos

2050. O mundo como conhecemos está prestes a ser extin-


to por uma misteriosa nuvem rosa. Distante do caos urbano,
Pedro e Miguel buscam apenas a eternidade.

Equipe:
Produção Executiva: Anna Andrade e Adriano Portela
Direção de Produção: Anna Andrade
Assistente de Produção: Thays Melo
Platô: Jairo Dornelas
Assistente de Platô: Thyerry Medeiros
Assistente de Direção e Continuista: Diego Lima
Direção de Fotografia: Breno César
1º Assistente de Câmera: Junior Siqueira
2º Assistente de Câmera: Sylara Silvério
Chefe de Maquinária e Elétrica: Marco Broa
Assistente de Elétrica e Maquinária: Alex Sandro
Still: Bárbara Hostin
Direção de Arte: Carlota Pereira
Produção de Arte: Germana Glasner
Cenografia: André Calado
Cenotécnico e contra regra: Diogo Vitor
Assistente de cenografia e cenotécnica: Cleidson Oliveira
Ilustrações: Laura Pascoal e Marcílio Nóbrega
Som Direto: Catharine Pimentel
Microfonista: Phelipe Joannes (Cabeça)

61
Mixagem de Som: Felipe (Mago) Andrade
Figurino: Maria Esther Albuquerque
Assistente de Figurino: Camilina
Maquiagem: Condessa Cabalista
Logística de Arte / Figurino: Palas Camila
Montagem e Finalização: Sylara Silvério
Logger / Assistente de Montagem: Erlânia Nascimento
Equipe Portela Produções: Antônio Valença e Elle Moon
Cattering: Daniel Bastos
Motorista: Maurício Medeiros
Tradução (ESP): Diego Breno
Tradução (ENG) e Consultoria Criativa: Matheus Arruda
Trilha Sonora: Creative Commons, agradecimentos espe-
ciais a Alessandro ABOBO pela faixa “Nightdrive Overdrive
(Road To The Pool Party)”
Casting: Maria Laura Catão
Apoio: Mistika, ABOBO, Coletivo Sexto Andar, Chapola Fil-
mes, Nahsom Filmes, Natália Galdino Espaço Beleza, Nove
Filmes e Cobogó Espaço de Artes.
Elenco:
Mateus Maia - Miguel
Carlos Eduardo Ferraz - Pedro / Magexy
Gilberto Brito - Pedro / Magexy
Sóstenes Fonseca - Miguel
Sharlene Esse - Cindy Vina
Raquel Simpson - Leila
Odilex Lins - Lunática
Suelanny Carvalho - Lunática
Andreia Valois - Lunática

62
O Jardim Fantástico
São Paulo, 2020, 20 minutos

Uma professora usa Ayahuasca durante as aulas com o


intuito de conectar seus alunos a uma outra realidade.
Durante um dos rituais, uma das crianças encontra uma
estranha engrenagem na floresta.

Equipe:
Diretores: Fábio Baldo, Tico Dias
Assistente de Direção: Tarsila Araújo
Preparação de Elenco: Thaís Medeiros e Tico Dias
Roteiro: Fábio Baldo, Raymundo Calumby
Produtoras: Lara Lima, Issis Valenzuela
Empresas Produtoras: Filmes da Gruta, Lira Cinematográfi-
ca, Tabuleiro Filmes
Diretor de Fotografia: Ivan Rodrigues
Diretora de Arte: Fernanda Carlucci
Figurino: Anne Cerutti
Som Direto: Gustavo Nascimento
Montadores: Douglas Soares, Fábio Baldo
Edição de Som: Fábio Baldo

63
Elenco:
Zahy Guajajara
Luiz Felipe Jesus
Thaia Perez
Roberto Alencar
Ana Pereira
Ellen Regina
Yasmin Faquet
Eliza Keiko
Nina Eugênio Flores
Jullia Cosmo
Pedro Henrique Lima
Marcelo Gobbis
Leonardo Lovantino
Manuella Zanotto
Betina Costa
Gabriel Hector
Mário Oliveira Jesus

64
À Margem do Universo
Distrito Federal, 2017, 18 minutos

Dois seres alienígenas desembarcam na Terra para uma


pretensa investigação espacial, mas na verdade, quem são
observados e estudados, são eles. Ao final, eles terão uma
grande surpresa.

Equipe:
Direção: Tiago Esmeraldo
Produção Executva: Tiago Esmeraldo e Raquel Esmeraldo
Roteiro: Fáuston da Silva
Fotografa: Gustavo Serrate
Montagem: Tiago Esmeraldo
Direção de arte: Isabelle Esmeraldo
Figurino: Isabelle Esmeraldo e Hermes Barreto
Cenografa: Rodrigo Haaga
Edição de som: Marcos Pagani e Juninho Nascimento
Trilha sonora: Talita Paiva
Animação: Flavio Duarte e Tiago Esmeraldo
Som: João Ricardo

Elenco:
Petra Sunjo
Inikiru Suruawaha
Genivaldo Sampaio
Juliana Drummond

65
Lea Monteiro é mestrando em Cinema pela
EBA/UFMG. Sua pesquisa é intitulada “Direção de
Curadoria- Ficção Científica e Comédia: como gêneros se fortalecem

Atores em ‘No Coração do Mundo’ (2019): múltiplas


formas de ser ator no cinema”. Com graduação em
Ciências Sociais, atualmente é curador e produtor na
Antropokaos – Mostra de Ficção Científica Brasileira,
e diretor e roteirista no curta-metragem “O Davi
Morreu”, aprovado no Edital BH nas Telas de 2019.

A Antropokaos: Mostra de Ficção Científica Brasileira pode


ser encarada como uma tentativa de repensar o que significa
classificar ou não um filme como ficção científica. Quando
pensamos sobre o gênero é comum que nossa mente busque
nomes como George Lucas, Steven Spielberg e Ridley Scott,
em associação com o cinema industrial hollywoodiano. Nosso
entendimento, enquanto curadores do evento, é de que a fic-
ção científica não está atrelada necessariamente a rebusca-
dos efeitos especiais, mas que o elemento central do gênero
se encontra na possibilidade de criar novos mundos. Inventar
realidades que podem até ter algo em comum com a nossa,
mas que podem também ser universos completamente novos,
que só existem ali na tela. Se essas imagens-ficção se tornam
imagens-ação, em algum ponto, é algo que depende da
relação que as obras estabelecem com seus espectadores.
Se os mundos criados pelas ficções científicas - quando
não invertem completamente as ordens sociais e disposi-
ções imagéticas do que conhecemos - têm relação com o
nosso mundo e suas questões sociopolíticas, um elemento
central dessa transposição de universos é a paródia. Mesmo
em filmes com mundos completamente reinventados, ainda
assim eles existem a partir de encadeamentos lógicos.
Lea Monteiro

No início dos anos 60 alguns realizadores brasileiros se


debruçaram sobre a ficção científica. Neste momento, pre-
dominaram dois caminhos opostos: De um lado, filmes sérios,
muito ligados a uma ideologia de que o cinema nacional
havia deixado de ser artesanal para estar no mesmo pata-
mar que as obras internacionais e, do outro, as chanchadas,

68
filmes de comédia, que faziam piada do lugar terceiro-mun-
dista ocupado pelo Brasil na geopolítica mundial.
Em nossas duas primeiras sessões de longas, trouxemos um
exemplo de cada uma dessas vertentes. A primeira, intitulada
O Brasil é uma piada: comédia na ficção científica, traz o filme
O Homem do Sputnik (1959) de Carlos Manga, enquanto a se-
gunda, O Brasil é um pesadelo: paranoia na ficção científica,
trouxe o filme O Quinto Poder (1962), de Alberto Pieralisi. O Quin-
to Poder é um filme sério, marcado por movimentos de câmera
precisos com uma decupagem clássica e uma montagem
linear. Em referência aos cinemas de Alfred Hitchcock e Orson
Welles, é uma espécie de noir brasileiro. Em uma onda biocon-
servadora, seu suspense gira em torno de mensagens subli-
minares emitidas pela mídia a espectadores de rádio e TV. Os
heróis dos filmes só o são porque não consomem os produtos
“culturalmente pobres” que esses veículos oferecem.
Sem contato com as mensagens subliminares, os protago-
nistas conseguem desmontar a conspiração, em que os ale-
mães tentam espalhar o caos e desestruturar o tecido social
brasileiro. Uma vez em contato com tais mensagens, qualquer
cidadão se torna violento. Toda a população, portanto - con-
clui o filme -, leva o país a um estado de “anarquia”. Ainda
que tecnicamente rico, O Quinto Poder deixa dúvidas quanto
às suas intenções. Busca-se um país livre de intervenções
estrangeiras, mas em prol de um estado militar coordenado
pela elite econômico-financeira nacional? A seriedade do
filme acaba deixando pouca atividade imaginativa para o
espectador, o oposto do que ocorre em O Homem do Sputnik.
A obra de Carlos Manga pode ser entendida como um
bom exemplo do apogeu da chanchada brasileira. Ainda que
considerada um gênero alienante pelos expoentes do Cine-
ma Novo, a chanchada foi por muitos anos o tipo de filme fa-
vorito das grandes massas. O Homem do Sputnik é resultado
de anos de carreira da Atlântida, produtora responsável por
realizar algumas das principais chanchadas nacionais.
A comédia, como um todo, pode ser encarada como um
gênero que consegue, de forma potente, inverter relações

69
sociais. Desde Aristóteles, a comédia é apontada como a
forma narrativa que melhor consegue fazer comentários po-
líticos. Por não se prender a personagens virtuosos, o gênero
consegue inverter hierarquias sociais e rir das condições ma-
teriais de seu povo. O Homem do Sputnik é um bom exemplo
disso. Para comentar a situação política do Brasil no final
dos anos 50, Carlos Manga nos introduz a um casal de
caipiras, interpretados por Oscarito e Cyll Farney. O Sputnik,
foguete símbolo do poderio técnico-militar da União Sovié-
tica durante a Guerra Fria, no filme, cai no quintal do casal.
Marcado pela hipérbole, O Homem do Sputnik comenta as di-
visões sociais do Brasil. A personagem de Cyll Farney é uma mu-
lher do campo obcecada pelas colunas da high society. Quando,
junto com seu marido, passa a ter o poder sobre o Sputnik, seu
status social se altera. Cercados por repórteres, o casal passa a
negociar o objeto com estrangeiros. No entanto, os “gringos” são
brasileiros forçando sotaques. Norma Bengell como paródia de
Brigitte Bardot, Jô Soares dos americanos, e por aí vai.
Numa disputa entre “franceses”, “americanos” e “soviéti-
cos”, o que parece imperar é o tom de gozação com que
Carlos Manga trata o parasitismo das potências estrangeiras
em relação ao Brasil. Com piada atrás de piada, O Homem
do Sputnik é uma obra cinematograficamente madura, com
atuações excelentes de grandes nomes do teatro brasileiro,
e com movimentos de câmera muitas vezes impressionantes.
Entretanto, em termos de ficção científica, não deixa de ser
uma simples paródia do país naquele período. O “satélite”
acaba sendo um ornamento da igreja da cidade, o que
impossibilita que aquele mundo seja encarado como algo
novo, que se distancia do nosso. Diferente do que é feito em
O Homem que Comprou o Mundo (1969) de Eduardo Couti-
nho, com o qual dividiu a sessão de abertura.
O Homem que Comprou o Mundo está inserido em um
momento particular da história do cinema brasileiro. Pós
golpe de 64, é um filme que adota o cinismo e a falta de es-
perança que tomou conta do cinema engajado que era feito
no país. Ao lado do Cinema Marginal, que ganhou força na

70
cinematografia nacional no fim dos anos 60, com obras de
Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, entre
outros, Coutinho parece buscar referências na chanchada.
Sem desprezá-la como um gênero massificante, o Cinema
Marginal busca, no kitsch, elementos para construir obras po-
lifônicas. Sem pretensão de ser didático, busca reforçar que o
subdesenvolvimento não é uma etapa no cinema brasileiro,
ele é seu estado, como diria Paulo Emílio Sales Gomes.
É difícil afirmar se, em seu primeiro longa-metragem, Coutinho
se atrela ou não ao Cinema Marginal. Mas é ainda mais difícil
não notar as similaridades. Em O Homem que Comprou o Mun-
do, Coutinho consegue criar um universo próprio. A geopolítica
do filme é similar à real apenas por relações que cabem ao
logicismo. Entretanto, o mundo criado é novo, só existe na tela.
A nação do filme é chamada “País Reserva 17”, e ocupa uma
posição subalterna na geopolítica mundial. Até então nada
que se afaste muito do Brasil. No entanto, já no início do filme,
é descoberta uma nova moeda, as strikmas. O homem que as
recebe, interpretado por Flávio Migliaccio, torna-se o sujeito
mais rico do mundo. Porém, quando contabiliza o valor de suas
strikmas, acaba por ser encarcerado pelo aparato militar e fi-
nanceiro do governo. Sua noiva, interpretada por Marília Pêra, é
quem faz uso das mesmas. Enganado por todos, o protagonista
é um tolo, sem recursos linguísticos para se tirar da situação.
Uma vez na posse do governo, as strikmas transformam o País
Reserva 17 na principal potência mundial, apenas para tê-las
tomadas por americanos. Em uma cena de futebol onde um
americano começa a fazer embaixadinhas e a tocar a bola para
os guardas da prisão, que se distraem e permitem que o homem
mais rico do mundo seja capturado, Coutinho faz seu comentário
político. Permeado por gags e piadas, O Homem que Comprou o
Mundo desenha um espaço onde, subitamente, um país subalter-
no torna-se aquele que concentra a maior quantidade de recur-
sos, mas esses são facilmente tomados, já que não existe naquela
nação nada que não seja mesquinharia. A falta de planejamento
estratégico e de direcionamento condicionam o País Reserva 17
a um subdesenvolvimento permanente. O Homem que Comprou

71
o Mundo consegue criar relações políticas que, ao mesmo tem-
po, existem só na obra e comentam a ordem sociopolítica como
ela existe no mundo material. Sem uso de efeitos especiais, ou
de cenários e figurinos cyber-técnicos, Coutinho cria uma ficção
científica brasileira que inverte as relações que nós, enquanto
sociedade, temos com instituições governamentais, financeiras,
entre outras. Inverte paradigmas científicos, nesse caso os das
ciências econômicas, apenas com sua força narrativa.
O filme que acompanhou O Quinto Poder em nossa mostra
foi Excitação (1976) de Jean Garrett. Atrelado ao gênero da por-
nochanchada, Excitação é um filme que flerta, o tempo inteiro,
com a ficção científica. A trama central parece referenciar a À
Meia Luz (Gaslight) (1944) de George Cukor. Com um alto teor de
bioconservadorismo, a obra nos apresenta a um supercomputa-
dor, capaz de mover os eletrodomésticos da casa da protago-
nista do filme. Aos poucos, ela vai ficando louca por duvidar dos
seus sentidos. Como poderia um ventilador, desligado, ligar-se
sozinho e perseguir uma mulher adulta dentro de sua casa?
Excitação é um filme que pode ser considerado, no mí-
nimo, um tanto quanto ambíguo. Há horas em que a obra
parece se levar a sério. Fato é que há uma engenhosidade
técnica e cenográfica, que nos fazem acreditar que há um
trabalho cinematográfico bem pensado. Em uma cena em
que o marido da protagonista e sua amante se encontram
na praia, o mar está um breu. Uma única luz o ilumina. O
marido caminha em direção à luz e chama a amante. Ela
entra em quadro. Esse momento, com os dois nesse círculo
luminoso no meio do mar, eleva o filme que em muitos mo-
mentos pode parecer apenas meio bobo.
No entanto, essa dubiedade reforça um elemento muito
importante para se pensar a comédia: o camp. Para Susan
Sontag, o camp só pode ser assim considerado, de verdade,
quando os sujeitos que fazem a ação não têm consciência de
estarem fazendo algo camp. Os diálogos de Excitação, por
mais absurdos que sejam, são tratados com muita fé cênica
por seus atores. O que, na minha visão, não pode ocupar outra
dimensão senão a do camp. É algo tão profundamente bre-

72
ga, que ganha um valor estilístico enorme. O filme nos coloca
diante de personagens caricaturais frente a uma tecnologia
da qual nada entendem. O que talvez tivesse a intenção de
ser tratado com seriedade, transforma-se em piada, pois é
camp puro. E este é sempre ingênuo. Excitação, nesse sentido,
alimenta nossa curadoria por dois motivos: o primeiro diz res-
peito à visão da época em relação à tecnologia; o pânico e a
paranoia em face do desenvolvimento científico, o medo de
sermos dominados pela máquina. O segundo está relaciona-
do à comédia. Ilustra como mesmo filmes que talvez se levem
a sério demais para serem considerados comédias dialogam
com o gênero. Em sua falta de consciência sobre si mesma,
a obra é camp, é um bom-ruim que desperta a sensibilidade
daqueles que sabem apreciar o valor da brega - ou do kitsch,
caso a palavra brega seja muito carregada de significados
que desviam do que estamos tentando falar.
Sedimentada a importância da comédia para a ficção
científica no Brasil, fizemos um salto em nossa curadoria. Nos
perguntamos: o cinema contemporâneo incorpora a comé-
dia em suas ficções científicas? Mais importante: o cinema
independente de ficção científica incorpora a comédia
em seu corpo? Para buscar respostas para essas questões,
criamos a sessão Infiltrações da comédia no contemporâ-
neo, que conta com 4 curtas-metragens. A Nave de Mané
Socó (2019) de Severino Dadá, Tommy Brilho (2018) de Sávio
Fernandes, Master Blaster: uma Aventura de Hans Lucas na
Nebulosa 2970N (2013) de Raul Arthuso, e Plano Controle
(2018) de Juliana Antunes.
Master Blaster é um filme que nos dá uma “rasteira”
narrativa. Em referência a Alphaville (1965), de Jean-Luc Go-
dard, começa sério. A obra faz uma crítica ao capitalismo. Um
sol vermelho invade o país e faz com que as pessoas traba-
lhem dobrado. Fissurados pelo dinheiro, os personagens rela-
tam a Hans Lucas como a presença do segundo sol aumentou
suas cargas de trabalho. A comédia aparece, tímida, no final
do filme, quando é revelado que todos os personagens par-
ticiparam da construção do segundo sol, em bom tom webe-

73
riano do espírito protestante do capitalismo, onde a ganância
se torna elemento virtuoso e a acumulação financeira é o
objetivo central na vida dos sujeitos. A luta do protagonista
contra os personagens se dá através de brigas de dedinhos,
por exemplo. Talvez em um comentário sobre a falta de re-
cursos do cinema independente para realizar cenas de ação,
talvez em uma tentativa de não se levar a sério, a comédia trai
o ritmo do filme, ainda que seja um elemento curioso.
Plano Controle é mais bem sucedido nesse sentido.
Juliana brinca não apenas com signos comuns da comédia,
mas também do terror e da aventura. A protagonista usa um
serviço de teletransporte para deixar o Brasil após o golpe
parlamentar de 2016. Permeado por muitas piadas, Plano
Controle consegue estabelecer seu ritmo de forma mais fluida.
O destino - a cidade de Nova Iorque, EUA - é confundido pela
central de teletransporte, e a heroína vai parar no bairro Nova
Iorque, na periferia de Belo Horizonte. Em diálogo com even-
tos políticos e com memes, a personagem vai parar nos anos
90, onde eventos políticos são comentados jocosamente com
um viado dos anos 70. O final do filme sela o tom da comédia.
Os dois montam a cavalo, ao som da canção de Leandro e
Leonardo, que resume bem: “eu não sei para onde eu vou”.
Tommy Brilho, por sua vez, é onde a comédia se estabelece
como um elemento central. Se realizadores de ficção científica
brasileira costumam referenciar filmes mais consolidados da
cinematografia hollywoodiana, como 2001: Uma Odisseia no
Espaço (1968) de Stanley Kubrick ou Mad Max (1979) de Geor-
ge Miller, Sávio dialoga com obras populares dos anos 2000,
que são adoradas principalmente por jovens nascidos nos
anos 90, sobretudo pela população LGBTQ+. Nesse caso, as
referências são Meninas Malvadas (2004) de Mark Waters e As
Vantagens de Ser Invisível (2012) de Stephen Chbosky. Tommy é
o primeiro aluno (trans)parente de uma universidade. Com uma
experimentação visual que remonta à O Homem Invisível (1933)
de James Whale, Tommy é um personagem sem corpo. Com
esse enredo, o personagem e seus dois melhores amigos vão
ganhando camadas através do formato piada-atrás-de-pia-

74
da. Com um senso de humor que dialoga com as redes sociais,
Tommy Brilho consegue hiperbolizar o ambiente universitário
e fazer comentários sobre o universo LGBTQ+ e suas pressões
estéticas, além de impressionar pelo uso rebuscado dos efeitos
especiais para construir a personagem de Tommy.
Por fim, A Nave de Mané Socó é quase um resumo do que
a presença da comédia pode representar na ficção científica.
Potencializando seu caráter parodístico, a comédia é capaz
de levar a ficção científica às suas últimas consequências. Em
suas falas no 51º Festival de Brasília e na 23ª Mostra de Cinema
Tiradentes, Severino Dadá afirma que quem faz Science Fiction
são os gringos. Seu filme se trata de uma Fuleragem Fiction.
O curta, no que ele descreve ser uma gozação com George
Lucas, Steven Spielberg, Stanley Kubrick e demais expoentes
da ficção científica industrial, usa de trilhas sonoras originais
desses realizadores como forma de paródia. A Nave de Mané
Socó, em sua própria premissa, já incorpora seus elementos
parodísticos. A trama central é a de uma invasão alienígena
na cidade de Mané Socó, Pernambuco. É uma referência ao
caso que deu fama a Orson Welles, em que o diretor, na sua
época de radialista, gerou pânico na população estadu-
nidense ao ler a obra “Guerra dos Mundos”. Os cidadãos da
época acharam que as histórias narradas eram reais.
Em sua obra, Severino Dadá, montador conhecido por
sua participação em mais de 300 filmes brasileiros, inter-
preta o radialista que narra a invasão. Como é caracterís-
tico da produção independente, sua família faz vários dos
personagens. Seu filho e sua nora fazem o casal abduzido.
Sua neta, recém-nascida, é a criança de lente roxa nascida
no território alienígena. Com movimentos de câmera e mise
en scène madura, A Nave de Mané Socó se destaca tecni-
camente. Som, montagem e efeitos especiais chegam em
um nível de rebuscamento que prova que a comédia não é
um elemento traidor em obras cinematograficamente ricas.
Pelo contrário, a comédia fortalece o universo construído,
que ganha a originalidade e o caráter único que buscamos
nos novos mundos criados em ficções científicas.

75
Referências Bibliográficas
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1981. p. 17.63. 
BERNADET, Jean Claude. Cinema Brasileiro: propostas
para uma história. Segunda edição revista e ampliada. São
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possibles et théorie des actes d’image. Art et histoire de l’art.
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de maquínica em Star Trek: Voyager. 2016. Dissertação
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Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 
FILHO, L. R. ITO, T. C. SUPPIA, A. Cinema de ficção científica
e efeitos especiais: uma relação intrínseca e inseparável?
Mediação, Belo Horizonte, v. 13, n. 12, 2011. 
GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subde-
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MENDONÇA, Ricardo Fabrino. CAETANO, Renato Duarte.
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cinema brasileiro. São Paulo: Devir Livraria, 2013, 400 pp.,
ISBN: 978-85-7532-547-6.
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo:
Terra e Paz, 2001.

76
Curadoria - Subjetividades e experimentações na ficção científica brasileira
Jessica Hypolitho nasceu em São Paulo, e reside
em Maringá desde 2008. Tem 25 anos, e é histo-
riadora de formação pela Universidade Estadual
de Maringá. Acredita na capacidade do cinema
de instigar nossa sensibilidade e modificar nosso
modo de ser e estar no mundo. No Antropokaos
integrou a equipe de curadoria e produção.

Na sessão  Subjetividades brasileiras na ficção-cien-


tífica  temos filmes que tecem narrativas profundamente
espelhadas no Brasil de agora. Experimentais, alegóricos e
inventivos, os curtas criam universos perpassados por diver-
sas subjetividades, construindo uma linha crítica do tempo
presente por meio de elementos da ficção científica volta-
dos para suas próprias intenções de denúncia.  
  Ditadura Roxa (2020), dirigido por Matheus Moura, mos-
tra uma sociedade dividida entre pessoas roxas, detentoras
de privilégios, e pessoas verdes, que vivem à margem da so-
ciedade. Narra a história de Yeda, uma mulher que pertence
ao segundo grupo e vende pães e biscoitos para garantir o
sustento da casa.  
  Por meio da alegoria das cores, o curta tece sua nar-
rativa de denúncia contra a marginalização racista, fomen-
tada por uma sociedade retrógrada e elitista. As pessoas
roxas falam uma língua ininteligível para as pessoas verdes,
emitindo ruídos desconfortáveis. Se comportam de maneira
estúpida, e aparecem em cena enquanto conservadoras
que encabeçam os ideais do modo de vida capitalista. As
verdes, por sua vez, se compreendem entre si. Nessa dico-
Jéssica Hypolitho

tomia está Yeda, uma mulher verde que vive uma trajetória
pautada por um paradoxo.  
  Moura faz a separação alegórica para apontar que a
classe superior não entende o outro, e inclusive se recusa
a perceber que se entender enquanto superior é fruto de
uma falsa simetria estrutural que escapa de seu controle. A
separação parece criticar diretamente a sociedade brasi-
leira contemporânea, onde boa parcela da classe média

77
frequentemente se coloca em um  status quo  que não lhe
pertence, justamente para se distanciar do outro, entendido
enquanto inferior.  
  Eventualmente, a protagonista ganha um prêmio de lo-
teria. Ao ter contato com luxos e regalias, é apresentada ao
mundo roxo. As falsas promessas causam um estranhamento
na mulher verde. Entendeu perfeitamente que ascender
socialmente requer se tornar outra pessoa, requer se tornar
roxa. No entanto, ela não faz essa escolha em definitivo. O
paradoxo da cor a colocou em conflito, causou estranha-
mento, mas não a seduziu por completo.  
  Seu contato com o mundo roxo provou que estar à mar-
gem não a coloca automaticamente num lugar de inferiori-
dade. Essa condição é atribuída pela parcela roxa que, ao
se entender superior, precisa sustentar sua posição, colocan-
do os demais como inferiores. A lógica estrutural precisa se
manter para perdurar. Yeda parece tomar consciência de si
e das estruturas, mas permanece incompreendida, isolada
e desprezada. Permanece à margem. Quando percebe que
ser verde a condena a esta posição, a protagonista retorna
a sua vida pacata. A oportunidade de ascender socialmente
se revelou uma completa farsa vendida por quem é roxo.  
  Nos momentos finais, por meio de imagens de atmos-
fera diáfana, o curta nos surpreende com uma Yeda roxa. A
dimensão de um sonho parece ser o único reduto possível a
mudança de cor dela. Somente em sonho a personagem se
tornaria o oposto do seu eu real. Com as metáforas, o curta
centra sua crítica na marginalização estrutural de uma so-
ciedade racista e elitista, simbólico reflexo do Brasil atual. 
  Durante a pandemia da covid-19, Grace Passô dirigiu e
atuou em República (2020). O filme acompanha uma mulher
que recebe uma notícia desconcertante em uma noite tensa.
Acessando a janela da ficção científica, é capaz de construir
uma narrativa onírica com montagem experimental. 
  Guiada pela tensão, a trama é impregnada de misté-
rio, sem qualquer compromisso com respostas que queiram
ceder ao didatismo. A protagonista, interpretada por Passô,

78
passa a maior parte do tempo em cena sozinha, falando ao
telefone sobre um evento que se desvela pouco a pouco ao
espectador. Sua atuação calculada e histérica é uma das
potências do filme.  
  Ao ser acordada por uma ligação, a personagem con-
versa com alguém que lhe revela uma notícia desconcertan-
te. Sua reação é agitada, a ponto de gritar histericamente
na janela. “O Brasil não existe”, revela a protagonista à mãe
pelo telefone. A mensagem está em todos os lugares: na te-
levisão, na internet e nas redes sociais. “Alguém tá sonhando
o Brasil”, é a frase dita em seguida pela personagem, que
parece respirar aliviada com o fato de que o país não passa
de um sonho, de uma mera idealização de um xamã des-
conhecido. O espectador é arrebatado pela necessidade
desesperada de escapar da realidade brasileira.  
  Com essa colocação, Passô eleva seu filme à condição
de crítico ferrenho da extrema precarização que o Brasil
sofre no tempo presente. Ser um sonho seria um alívio, um
respiro profundo, uma resposta acalentadora ao tamanho
desamparo que vivemos. Com duas frases a diretora comu-
nica suas intenções de crítica sem a necessidade de buscar
saídas pela tangente, mas sem deixar de causar impacto.  
  Outra potência do curta é revelada quando, inespera-
damente e com total controle de seus caminhos, a montagem
praticamente desconstrói seu artifício quando alguém, que
está atrás da câmera, corta a cena, e a obra se revela um filme
dentro de um filme. A protagonista, na realidade, estava gra-
vando uma ficção. Em um primeiro momento, esse movimento
pode soar confuso, mas evidencia a genialidade de Passô ao
brincar com os artifícios da linguagem do cinema para mani-
pular diretamente as percepções do espectador. Tudo aconte-
ce diante dos nossos olhos, nos instigando do começo ao fim.  
  Permanecendo no controle da manipulação das per-
cepções, a diretora consagra o desfecho da obra com
um plot twist bastante inteligente e rigoroso. A protagonista
recebe uma visita inesperada, de uma figura que aparenta
ser seu duplo, berrando a plenos pulmões a frase “O teu

79
Brasil acabou, e o meu nunca existiu”. A partir dessa virada,
o Brasil existe. Os sinais de sua existência se fortalecem con-
forme as mazelas avançaram. A potência dessa colocação
é inegável. Não há espaço para o caráter positivo do sonho
nessa ficção. Sonhar seria a nossa última resposta, mas não
é possível. As urgências são maiores.  
  Com uma crítica contundente, Passô entrega, em pouco
mais de 15 minutos, um filme extremamente perspicaz. Cons-
ciente do tempo que critica e consciente da própria cine-
matografia, o curta se vale de uma montagem experimental
para jogar com ideias do gênero da ficção científica, sem
abrir mão das ferramentas do cinema enquanto linguagem.    
    O prazer de matar insetos  (2020) foi dirigido por Leo-
nardo Martinelli. Narra um futuro pós apocalíptico onde os
insetos foram extintos. Assumindo a roupagem da temática
ecológica, edifica um mundo colapsado pelas mudanças
climáticas extremas, resultado da ação desenfreada da
humanidade sobre o ecossistema.  
  Com formato documental, o curta começa reunindo ima-
gens de arquivo de noticiários, em uma montagem acelerada
e frenética. Coloca a discussão científica desta extinção, que
colapsou completamente a estrutura da vida humana. Em
seu cenário pós-apocalíptico, a saturação da vida está per-
petuada pelo som ensurdecedor dos fantasmas dos insetos
extintos. A humanidade cruzou o limite do sustentável.  
  Somos apresentados a dois personagens, um padre e
uma freira. Simbolicamente, as duas figuras são autorida-
des religiosas que parecem compor um último resquício de
humanidade. A nostalgia e o saudosismo imbuem ambos os
personagens, que estão restritos a concepções limitadas de
futuro. Frente à tamanha destruição, as concepções do ima-
ginário humano se dissolveram. Os dois questionam se em
algum lugar remoto ainda existem insetos. Enquanto força
da natureza, esses animais foram o último atestado de uma
normalidade tateável. Diante de inúmeros colapsos, a es-
trutura da sociedade lentamente se modifica, e a nostalgia
nos conecta a um passado idealizado.  

80
   No último ato, a freira transita sozinha, em uma sequên-
cia categoricamente delirante. A personagem encontra uma
criança, com um inseto pousado em sua mão. Podemos nos
questionar se é tudo um sonho, ou se a existência dos insetos
ainda é possível. Estamos imersos na mesma experiência da
personagem. A montagem acelera, e uma tempestade se
forma no céu. Perturbada, a freira encontra abrigo em local
fechado, e se depara com uma pequena nuvem sobrevivendo
sozinha. A natureza encontra saídas de sobrevivência em meio
ao caos, enquanto a figura humana luta pela sua própria.  
   Suspenso no ar, o aglomerado de gotas de água permane-
ce fechado, existindo por si só. A nuvem persiste. Não pode ser
dizimada pela ação humana, somente perturbada. Martinelli
está nos convidando a questionar, então, qual seria o desti-
no da humanidade, indagar por quanto tempo será possível
nossa existência no mundo como a concebemos. Questionar
se é possível perdurar dessa maneira, ou se precisaremos lutar
para permanecer enquanto tal. A ciência atualmente calcu-
la que em questão de décadas a raça humana pode estar
extinta. O diretor coloca essas temáticas como urgências do
nosso próprio tempo, que parece guardar mais semelhanças
desconcertantes com a ficção do que é confortável admitir.  
  Abjetas 288 (2020), dirigido por Júlia da Costa e Renata
Mourão, foi realizado enquanto um Trabalho de Conclusão de
Curso em Aracaju. Situado em um futuro próximo, o curta narra
a história de Joana e Valenza, duas amigas que vagam pela
cidade sergipana enquanto assimilam seu entorno. Usando
fotografia P&B, música techno e montagem experimental ace-
lerada, o filme introduz seu tom distópico desde o início: algo
está errado, fora do lugar, desconcertado. São as urgências
sociais se destacando conforme a trama avança. Por isso, se
forma uma atmosfera de necessidade de denúncia. As perso-
nagens começam a tatear a superfície da marginalização.   
  As abjetas percorrem os espaços a sua volta, onde tudo
é cinza, vazio, distante e marginalizado. Estão em busca do
chamado “Aracaju Gardens”, um condomínio de luxo divul-
gado na televisão, que é vendido como promessa capitalis-

81
ta e burguesa, encabeçando a idealização máxima de um
sonho irresistível, um caminho único para a felicidade. Pro-
curando o condomínio, em uma cena essencial, são abor-
dadas por um policial que usa da força bruta e do abuso de
autoridade para humilhar as duas amigas. Amedrontadas e
desoladas, as duas se abraçam e performam uma espécie
de dança, que se configura como um rito de passagem, mas
também traça uma denúncia da urgência social.  
  Seus corpos estão se valendo da dança-performance,
em uma tentativa que parece ser uma resposta ao caos dis-
tópico, buscando assimilar, se impor, e principalmente resistir
à opressão do mundo que habitam. Com atuações notáveis,
as duas atrizes transmitem um senso de agitação, descon-
certando o espectador, instigando-o a pensar as tantas
mazelas cruéis do nosso Brasil, em comum com as do filme.  
  Por fim, a promessa do “Aracaju Gardens” era uma men-
tira: na continuidade da sua busca, as amigas descobrem
que a propaganda era uma encenação filmada no meio
do nada, e que na verdade o condomínio não existe - outro
fato que desconcerta o espectador. O filme consagra seu
ponto máximo de crítica social, declarando que a riqueza
é uma mera ilusão, que não vai apaziguar nossos corpos.
Não há esperança, não há futuro. Estamos desamparados,
vagando sem rumo, tentando desesperadamente alcançar
ideias que não existem na dimensão do real. Uma clara co-
locação contra o Brasil do tempo presente.  
  A sessão  O Brasil é um surto coletivo: experimentação
e ficção científica  é composta por dois filmes experimentais
que compõem diferentes veias do gênero da ficção cien-
tífica. Primeiramente, um filme psicodélico que cria uma
sátira escrachada do imaginário brasileiro conservador.
Em segundo lugar, um filme sério e ambíguo, que reavalia
seu presente para tecer um projeto revolucionário de futuro.
Ambos utilizam o gênero para criar universos baseados em
um Brasil de pungentes problemáticas sociais, que exigem
transformações radicais. Tamanho seu caráter calamitoso, o
país pode ser visto como um surto coletivo.  

82
    Rodson  ou (Onde o Sol Não Tem Dó)  (2020), se passa
no ano 3000, quando Rodson vive uma jornada sob um sol
de dois mil graus. Com pano de fundo climático, essa ficção
científica psicodélica e experimental constrói uma sátira es-
crachada do imaginário conservador brasileiro. Produzido e
dirigido por um grupo de realizadores e realizadoras, é uma
potência ímpar do cinema independente nacional.  
  Com uma inventividade louvável, o filme opera uma mon-
tagem experimental. O tratamento das imagens, que apare-
cem distorcidas, saturadas ou em forma de colagens diversas,
propõe uma experiência psicodélica e positivamente estranha,
capaz de engajar o espectador. Cenários e figurinos são criati-
vos e livres, fortalecendo a imagética com um toque autêntico.  
  Seu humor inteligente é sem rodeios e sem amarras. Fler-
tando com o gênero  trash  e com um conceito de nonsense,
critica ferozmente a sociedade brasileira conservadora em
sua face moralista, que esbanja recursos ambientais des-
considerando sua escassez num futuro próximo. O roteiro traz
piadas que abarcam uma série de questões do imaginário
conservador: proselitismo religioso, homofobia, desperdício
de recursos, ignorância, negacionismo científico, questões
geracionais, entre outras.  
  Os elementos do gênero de ficção científica aderem a
trama nesse mundo psicodélico, quente e fragmentado, por
onde  Rodson vaga traçando sua jornada enquanto busca
compreender o ambiente desconcertante ao seu redor. To-
mado por lixo acumulado, ciborgues e escassez de água,
a atmosfera desse universo é calamitosa. Com o reforço de
uma trilha sonora potente, a obra deixa sua marca de de-
núncia, deboche e crítica.  
  Misturando momentos cômicos e sérios, o longa aborda
problemáticas de maneira consciente. A própria jornada
de  Rodson  permite que o personagem forme uma cons-
ciência dos problemas da sociedade em que habita. Expli-
citamente contra a hipocrisia do brasileiro médio omisso, o
longa satiriza a falsa moral de uma classe que não parece
ter qualquer consciência de si ou do mundo em que vive.  

83
  Realizado por Paulo Bastos Martins, O Anunciador (1970)
narra a história de um misterioso homem que chega a uma
pequena cidade anunciando o fim dos tempos. A obra é sé-
ria, política e experimental. Em seu ano de lançamento esta-
va instaurada no Brasil uma ditadura militar, que sancionou
duras censuras à liberdade de expressão, principalmente no
âmbito artístico. Com saídas ambíguas, o filme se aproveita
da experimentação para construir uma crítica de caráter
revolucionário ao Brasil da época.   
  O acesso ao gênero de ficção científica é o ponto de
partida da obra: o personagem do homem misterioso, que
aparenta ser um extraterrestre, é o anunciador do fim dos
tempos. Suas falas incisivas e ambíguas comunicam, em
entrelinhas, uma série de fatores alarmantes da sociedade
brasileira na época da ditadura. Em monólogos, o persona-
gem interage com a população da pequena cidade denun-
ciando as mazelas sociais.  
  O longa tece suas críticas à sociedade brasileira por
meio de um roteiro ambíguo, com diálogos misteriosos e
monólogos não especificados. Por diversas vezes o perso-
nagem do anunciador não se explica, apenas sugere. Fala
propositalmente de maneira confusa e generalizada. Seu
comportamento cria uma atmosfera quase apocalíptica,
como se sua presença fosse sobrenatural. A direção parece
se distanciar intencionalmente de metáforas e alegorias,
optando proeminentemente pela ambiguidade das entre
linhas, conscientemente desordenado, apostando suas in-
tenções na experimentação da linguagem cinematográfica.
A montagem potencializa o personagem, com imagens ace-
leradas e frontais em planos fechados. 
   As críticas se debruçam sobre questões capitalistas e
autoritárias. Os bens de consumo são uma farsa alienado-
ra da massa, a mídia serve somente aos interesses de um
governo autoritário, enquanto o indivíduo em sociedade,
sem consciência de sua própria condição de trabalhador,
tem seu tempo restrito a produzir. O anunciador clama pela
necessidade de organizar uma revolução, movimentar a

84
massa em direção à liberdade, contra a censura e contra a
opressão do Estado.  
Ao se distanciar do explícito e do didático, o roteiro e a
direção acabam como uma saída à censura do momento de
sua produção, revelando o caráter de resistência do cinema
independente, ao passo que estabelece o filme enquanto
uma produção ímpar. Sua experimentação é autêntica e, ao
ser utilizada de maneira consistente, cria uma obra extre-
mamente instigante, consciente e crítica deste duro recorte
histórico do Brasil. 

85
Curadoria - Sonhos e reinvenções, uma ficção científica do Brasil contemporâneo
Luís Oliveira é curador e produtor do Antropokaos.
É cientista social e idealizador dessa mostra. Foi
curador do forumdoc.ufmg em 2017 e 2018

Ao longo dessa mostra, caminhamos por várias noções


e proposições de Brasis. Em nossa seção de encerramento
buscamos abordar as questões que vêm sendo propostas
por produtores contemporâneos.
Pensar um futuro na condição presente se torna cada
vez mais difícil. Antes mesmo do coronavírus, a desolação
política e a impossibilidade de algum tipo de avanço - en-
quanto vivemos sob a iminência do cataclismo - já puxava
os sonhadores à terra. Evidentemente, esse processo nunca
é total, de modo que o deslocamento necessário para se
construir uma ficção científica foi reinventado, ressignifican-
do antigos símbolos.
A ficção científica brasileira sempre esteve em diálogo
com o cinema hollywoodiano, seja no modelo de paródia,
ou na inscrição estética; na repetição de símbolos e planos
que inscrevem um filme na tradição de um determinado
gênero. Sendo também comum a prática de dissolução,
infiltração e reinvenção de símbolos locais nesses filmes.
Em Caranguejo Rei (2019), há uma contundente constru-
ção do terror clássico, com a onipresença de seres no fora
de campo, e suspense crescente. A trama narra com prima-
zia uma infestação de caranguejos nos escritórios e obras
de uma empresa de construção civil. O mais impressionante,
aqui, é seu diálogo com os mitos recifenses. Josué de Castro,
importante médico e sociólogo conhecido por seu trabalho
contra a fome, constrói a metáfora do “homem-caranguejo”:

“Seres anfíbios — habitantes da terra e da água,


Luís Oliveira

meio homens e meio bichos. Alimentados na infân-


cia com caldo de caranguejo: este leite de lama.
Seres humanos que faziam assim irmãos de leite
dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e
a andar com os caranguejos da lama, de se terem

86
enlambuzado com o caldo grosso da lama dos
mangues e de se terem impregnado do seu cheiro
de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam
libertar desta crosta de lama que os tornava tão
parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com
suas duras carapaças também enlambuzadas de
lama” (Homens e Caranguejos, 1967) 

Percebe-se que a metáfora não é, de forma alguma,


pejorativa, mas indicativa de uma relação simbiótica entre
o mangue, os “homens”, e seus “irmãos caranguejos”, denun-
ciando a precariedade da vida neste local, da pobreza, da
imobilidade social. Essa metáfora retorna ainda em Chico
Science e o movimento manguebeat, trazendo a simbiose
com o mangue enquanto um renascimento estético da cul-
tura recifense: 

“Vi um aratu pra lá e pra cá


Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Oh! Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem mais urubu
ameaça.” (Da Lama ao Caos, 1994)

Se a cidade tenta tomar o mangue, o homem-gabiru é


um paralelo lógico do homem-caranguejo, que agora se
esgueira pela cidade e toma leite de asfalto. Mas, voltando
ao filme, agora quem avança é o mangue - sobre o desen-
volvimento citadino e os marajás imobiliários. 
No fim, apesar de ser um filme de terror, vejo Caranguejo
Rei como um filme otimista. O rato da indústria imobiliária
é transformado em habitante do mangue, e os caranguejos
reinam sobre a cidade. Será que podemos contar isso como
uma vitória?
O trabalho de ressignificação é construído de maneira
quase oposta em Os Últimos Românticos do Mundo (2020),
afinal, não é de sutilezas que se fazem comédias. Neste

87
caso, ela se faz em um pastiche imagético dos anos 80, e de
memórias da televisão brasileira. 
Me lembro muito vividamente da primeira vez em que o vi,
seu ritmo inicial engraçado fazendo uma quebra na sessão
que assistia. Fui rapidamente levado pela descontração
a sentir profunda empatia pelos personagens, e já estava
transbordando em emoção quando se deu sua reviravolta,
em sequência. Essa viagem emocional é com certeza um dos
grandes méritos dessa obra. Construir personagens através
da comédia é um instrumento raro no cinema independente,
e ainda mais raro quando bem-sucedido.   

Simbologias Nativas?
Longos planos e grandes respiros abrem o caminho da
mata em Jardim Fantástico (2020). Crianças exploram seus
pensamentos e lugares no mundo, enquanto observo, curio-
so, o que se desenvolve. Alguns elementos indígenas surgem
e revela-se: as crianças estão sob o efeito da ayahuasca,
um conceito ousado, tão imbuído de complicações éticas…
Isso pode vir a gerar uma repercussão negativa, levantando
certas conclusões de imediato. Enquanto isso, o filme conti-
nua. E a curiosidade, bem construída nos planos, levanta a
pergunta: em qual outro espaço, senão no cinema, pode-se
aventurar em uma questão como essa?
Da curiosidade também emerge uma personagem: uma
professora. Indígena, ela parece guiar os alunos em sua ex-
ploração interior, e do cosmos da mata. Mas são suas ques-
tões internas que mais chamam atenção. Ao contrário das
crianças, ela se mostra reticente para fazer esse percurso
interno, sendo então guiada por um de seus alunos no pro-
cesso. Guiada a um encontro com esse universo, em imagens
muito bem elaboradas e abertas às nossas explorações.
Também em À Margem do Universo (2017) se fazem pre-
sente elementos de uma indigeneidade. Uma exploradora
negra, de um planeta distante, percorre campos naturais
procurando por sinais de vida, tentando entender o ambiente

88
que a cerca. Enquanto ela conversa com seu computador de
bordo, se desenvolve a clássica trama da desconfiança tec-
nológica e revolta robótica. Algo me chama atenção desde
o início do filme, a língua falada pela personagem principal
me soa como algo que já ouvi antes, mas é muito distante
de nossa compreensão. Algo asiático? Não, amazônico. Nos
créditos finais se torna claro: Suruwahá, uma língua em risco
de apagamento, com apenas 171 (Sesai, 2014) falantes. Uma
homenagem, então, rasa, ainda que válida. Não que isso
seja razão alguma para incômodo, como o é a inquietude
constante no filme: não há nenhum respiro, os movimentos
de câmera constantes e uma montagem rápida revelam
um registro mais publicitário, ou típico da internet, do que
propriamente cinematográfico. Ainda assim, À Margem do
Universo tem seu mérito: é um dos poucos filmes verdadeira-
mente otimista da mostra, sendo capaz de se deslocar para
um caminho de estruturação positiva da “humanidade”. 
Me pergunto, que tipo de mensagem ou, ainda, qual
objetivo tem esses realizadores, ao trazer esses elementos
indígenas para seus filmes de ficção científica. Sabemos
que, ao mesmo tempo que sub-representados no cinema,
são hiper-representados em construções folclóricas rasas
e violentas, tanto na mídia quanto na arte. Na última dé-
cada, porém, tem emergido um discurso entre a intelectua-
lidade brasileira, entre antropólogos, artistas e militantes,
muitos destes indígenas, de valorizar os conhecimentos
indígenas ancestrais, como saídas possíveis da ameaça
do fim do mundo. 
A Terra Negra dos Kawa (2018), reverbera a consciência
plena dessa discussão e desse posicionamento. Não do
mesmo modo que vem sendo pautado pelo cinema docu-
mental, ou pelo realismo na ficção contemporânea. Mas
para pautar um outro caminho a essas querelas éticas. 
O filme, já em sua primeira cena, proclama seu lugar: dois
trabalhadores do “serviço de terras” procuram por água.
Magicamente aparece uma senhora indígena e os oferece
um chá. A cena constrói tensão. Ao beber, os trabalhadores

89
riem em êxtase. A cena acaba com um close na senhora
sorrindo em uma expressão dúbia, que pode ser lida como
perversa ou como simpática. 
Em um primeiro momento, portanto, a mise en scène do
filme já se distancia do cinema documental e etnográfico,
assim como das ficções que dialogam com essa tradi-
ção, privilegiando uma decupagem clássica e diálogos
pré-roteirizados. 
A seguir revela-se que a terra do sítio de uma família
Kawa é detentora de imensa energia (literal e metafórica),
e usada esporadicamente para recreação e comunicação
com os “parentes do espaço”. Paralelamente, um grupo de
cientistas pesquisa a terra dos Kawa. Parte deles desenvolve
uma relação exotizante e repleta de misticismo com a terra,
a utilizando como foco de seu desejo libidinoso e recreativo.
Outra parte deles pretende explorar a terra enquanto rique-
za - para o desenvolvimento de medicamentos. Esses dois
grupos são caricaturas de diferentes partes do pensamento
“progressista” sobre o tema indígena.
Sua premissa parece responder a uma pergunta latente
na cinematografia brasileira contemporânea: “Pode-se fan-
tasiar sobre o corpo do outro?”. O diretor, em uma entrevista,
proclama o filme enquanto uma ficção científica cabocla.
Acho que essa palavra dificulta qualquer análise, pois é
atravessada por muitos sentidos, por vezes até opostos. Pre-
firo pensar essa obra enquanto um filme sobre as relações
interétnicas, ou ainda: sobre as formas de exploração do
conhecimento indígena. 
Trata-se, portanto, de um longa-metragem que tem
como objetivo maior identificar traços da branquitude em
relação às populações indígenas, mais do que propria-
mente falar sobre elas. Os personagens indígenas são in-
teiramente fabulados enquanto alegorias de glorificação
aos povos autóctones. 
Porém se Terra Negra dos Kawa mostra um domínio e
uma contundente proposição à questão de filmar com a
alteridade, se perde quando tenta caracterizar esse outro.

90
Está aí uma lacuna no filme: uma representação generalista
da cultura indígena. 

De quais futuros sonhamos?


Um calor desolador, ultraviolência e combustão es-
pontânea, ou a prosperidade humana pelos cosmos? Algo
entre abraçar o universo e amar até o fim? Não sei, sei que
tem sido um árduo processo olhar para a cinematografia
brasileira de ficção científica e observar os temas que sur-
gem ao longo do tempo. Esses temas reverberam as princi-
pais pautas políticas e urgências sociais que atravessavam
os realizadores. Projetos de nação, resistências coletivas,
revoltas subjetivas; dialogando com República (2020), tudo
parece um sonho. Os filmes que ainda ousam a ser otimistas,
estão tão distanciados de nossa realidade que parecem
quase nos zombar. 
Pois cá estamos, em um dos momentos mais som-
brios dos últimos tempos. 2021, 300 mil mortos no Brasil pela
pandemia do Sars-CoV-2. Olhemos para esses filmes. Quem
sabe não sonhamos essa noite?

91
Pedro Borda é estudante do curso de Ciências
Ensaios - Entre ficção científica e ciência: um convite para a imaginação
Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH/
USP). Atualmente, desenvolve uma pesquisa na
área de antropologia, com fomento da CNPQ, para
investigar as relações entre ciência e ufologia,
prestando atenção às consequências práticas
dessa associação na construção da metodologia
de investigação dos ufólogos brasileiros.

Introdução
Esse texto propõe explorar a divisão entre ficção cientí-
fica e ciência para extrair daí ensinamentos valiosos para
a luta contemporânea contra o negacionismo científico.
Ao invés de reiterá-la, como se do lado de lá estivessem
a literatura, as palavras, a subjetividade, e do lado de cá
a frieza dos cálculos e da objetividade, argumento que, se
queremos combater o avanço do negacionismo científico,
é preciso que a ciência recupere a imaginação e o poder
das palavras que a ficção científica carrega consigo e, pelo
menos por um instante, repense tal separação. Só assim será
possível imaginar futuros coletivos e convincentes com os
quais todos podemos sonhar. Afinal, não é de “futuros” que
se trata boa parte das ficções científicas?
O argumento sublinhado nesse pequeno texto acerca da ne-
cessidade de diálogo, por assim dizer, entre cientistas e o resto
da sociedade – de forma a explicitar o que está por trás da fabri-
cação das suas descobertas – está baseado, em boa medida, no
argumento geral desenvolvido por outro autor, Bruno Latour, que
chama nossa atenção para o caráter construtivo dos fatos cien-
tíficos, indicando a necessidade de se retraçar os conjuntos de
intermediários que atuam para estabilizar um fato científico, por
Pedro Borda

exemplo: laboratórios, máquinas, artigos científicos, investimen-


to, citações e tantos outros  (LATOUR, 2012; LATOUR e WOOLGAR,
1986). Diante do que foi exposto acima, esse texto se reivindica
mais como um convite para essa reflexão, alinhando-a à luta
anti-negacionista, sem maiores pretensões.

94
Os pensadores solitários e
a imaginação coletiva
Foi Arthur C. Clarke quem disse que “Qualquer forma su-
ficientemente avançada de tecnologia é indistinguível da
magia”. E isso sintetiza muito bem, com alguma liberdade
poética, o problema central da alta especialização científi-
ca. Não que a aproximação com a magia seja um problema:
a magia, quando dominada, não é um empecilho. Passa
a ser um quando seu mecanismo é subestimado, quando
é praticada individualmente. Daí os alertas dos filmes de
terror e ficção científica, desde os perigos de se mexer com
um tabuleiro ouija desacompanhado até às expedições
científicas que se envolvem com micro-organismos anciões
adormecidos na profundidade do gelo polar, onde ninguém
pode ouvir os gritos assustados dos cientistas.
 A magia, quando praticada em grupo, assegura maior
controle sobre o processo, enquanto aquela praticada
sozinha é sempre perigosa. Por sua vez, a tecnologia
avançada se parece com isso, justamente porque ninguém,
a não ser os experts, sabem ao certo como ela funciona.
O problema da alta especialização científica pode ser,
portanto, posto nesses termos: invocamos algo que não
sabemos como “desinvocar”, arriscamo-nos a nos envolver
com um tabuleiro ouija solitariamente. Nesse caso, o mons-
tro liberado foi o negacionismo.
Falhamos em seguir os ensinamentos mágicos, aos quais
a ciência também deveria prestar mais atenção: essas são
práticas eminentemente coletivas. Quando praticadas so-
zinhas, monstros são criados ou despertados de seu sono
profundo. Como Stengers (em PINHEIRO DIAS et al., 2016)
pontua: “Uma ciência triste é aquela em que não se dança”,
uma dança que deve ser feita coletivamente, seja para fazer
os passos, seja para assistir, seja para tocar a música. Em ou-
tras palavras, trata-se de colocar em presença as questões
que os “Outros” tão insistentemente tentam inserir no debate
público, com o objetivo de compor um mundo coletiva-

95
mente, levando em conta a pluralidade de possibilidades
existentes (STENGERS, 2018). 
Diante disso, o que esse texto propõe ao leitor é que
tentemos encarar a pandemia do novo coronavírus que se
alastrou pelo planeta, tirando milhares de vidas por dia,
como um personagem literário de um roteiro que se constrói
continuamente. Em um primeiro momento, isso parece tarefa
de historiadores, mas o esforço aqui proposto é imaginativo,
e não necessariamente o de uma reconstrução dos aconte-
cimentos. Se fossemos falar em reconstrução, seria à maneira
das histórias de ficção científica que se envolvem com via-
gens no tempo e brincam com os paradoxos e futuros possí-
veis a partir de perspectivas diferentes: “o que seria disso se
outra rota fosse traçada?”.
Encará-lo dessa forma não significa dizer que o SARS-
-COV2 é um produto fictício, falso, mas justamente o oposto.
Trata-se de realçar sua realidade à luz do reconhecimento
do poder que uma boa ficção científica tem de sugerir fu-
turos, de traduzir por meio da arte as ideias mais utópicas
possíveis, com mais ou menos compromisso com a “realida-
de científica”. Em resumo, essa visão nos dá a possibilidade
de aceitar que nem todos (estou me referindo, é claro, aos
assim chamados negacionistas) “acreditam” na existência
ou nas consequências desse micro-organismo e, a partir
daí, elaborar roteiros mais convincentes e cativantes para
atraí-los, em lugar do simples: “são fatos indiscutíveis da na-
tureza, aceitem!”. A questão é que não basta simplesmente
dizê-lo, é preciso agir ativamente para que os fatos sejam
evidenciados, e um modo de realizar isso é seguindo os en-
sinamentos narrativos da ficção científica.
Como em toda boa história, surgem os vilões. Em alguns
momentos, o vilão é um chefe de Estado negligente, que
conduz de forma irresponsável seu país durante a maior crise
sanitária da sua história. Mas, para aqueles que chamamos
“negacionistas”, o vilão pode ser um laboratório chinês, que
supostamente teria criado esse novo vírus para contaminar
o mundo e dominá-lo, ou mesmo Bill Gates, cuja mente

96
maquiavélica tiraria proveito da vacina para implantar
microchips nas pessoas. Enfim, longe de colocar em pé
de igualdade essas posições (a dos negacionistas e dos
defensores da ciência, por assim dizer), apresento exemplos
dos dois lados para argumentar que nenhuma dessas
narrativas se sustenta sozinha. Quanto antes entendermos
o trabalho que é necessário para se escrever um roteiro sem
furos, sem erros de continuidade, mais cedo aprenderemos a
lidar com os grupos abordados. 
Alguns cientistas adotam uma posição muito cômoda,
esperando o dia em que os negacionistas simplesmente
aceitarão a verdade dura dos fatos, sem se preocupar
com o trabalho exigido para que esses se consolidem. Tais
cientistas não percebem, entretanto, que os negacionistas
não falam de ciência propriamente dita, mas de algo muito
mais próximo da ficção científica, criando histórias que, de
alguma forma, tentam dar conta desse momento obscuro
que vivemos. Assim, algo que fica cada vez mais claro é o
quanto a narrativa cativante e emotiva dos supostos perigos
da vacina é central para que se negue seus benefícios, à
revelia do que dizem os cientistas. Nesse sentido, ao pensar
essas teorias conspiracionistas e a própria ciência sob a
alcunha de ficção científica, um novo movimento pode ser
vislumbrado: não se tratam de mentiras cínicas, produzidas
nas mentes de pessoas estúpidas e burras. Antes, são histó-
rias criadas para dar conta de explicar uma ciência que, de
tão avançada, parece magia. 
Em algum momento nesse processo, os cientistas se es-
queceram que essas pessoas também devem ser informadas,
e seus fatos universais se transformaram em conhecimentos
pontuais, altamente especializados e, por isso mesmo, mági-
cos. Para combater o negacionismo, portanto, não basta que
os cientistas cuspam fatos na cara dos negacionistas, pois o
que os cativa não é de natureza puramente científica, mas
afetiva, como, por exemplo, relatos emotivos sobre crianças
que “viraram autistas” da noite para o dia em decorrência
de uma vacina. São essas histórias carregadas de emoção e

97
preocupação que os afetam (BRICKER e JUSTICE, 2018). É no
critério de contação de histórias que nós estamos perdendo.
É claro que o trabalho da divulgação científica é uma
parte importante nessa luta contra o negacionismo. Todavia
o momento pede, mais do que nunca, cientistas imaginativos.
Em outras palavras, é preciso que os cientistas (e por que não
todos aqueles que defendem a ciência?) sejam um pouco
como os escritores de ficção científica. A atual conjuntura
exige que ciência e poesia sejam combinadas para produzir
roteiros que explorem os fatos e sejam cativantes, que
saibam falar.
A tarefa é extremamente complexa: imaginar um futuro
com outras pessoas que pensam de forma diametralmente
oposta à nossa. Em todo caso, uma tarefa necessária, pois
a pandemia do novo coronavírus evidenciou que ignorá-los
não é o caminho, e as consequências dessa escolha não
tardam a aparecer. É preciso, enfim, fazer a natureza falar
com eles, mas não à moda dos fatos frios que transcendem
e existem independentemente dos humanos, e sim como
um filme de ficção científica que, por um breve instante, te
convence que um outro futuro é possível; com ciborgues,
alienígenas, seres humanos e robôs lutando para estabele-
cer uma convivência. Afinal, não podemos negar que talvez
todos sejamos um pouco alienígenas um para o outro.

98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRICKER, Bett e JUSTICE, Jacob (2018). The Postmodern
Medical Paradigm: a case study of Anti-MMR Vaccine
arguments. Western Journal of Communication, DOI: 10.108
0/10570314.2018.1510136. 
LATOUR, BRUNO. Reagregando o Social: uma introdução à
teoria do Ator-Rede.  Bauru: EDUSC, 2012.
LATOUR, Bruno e WOOLGAR, Steve. Laboratory Life: the
construction of scientific facts. Nova Jérsei: Princeton Uni-
versity Press, 1986.
PINHEIRO DIAS, J., VANZOLINI, M., SZTUTMAN, R., MARRAS,
S., BORBA, M., & SCHAVELZON, S. (2016). Uma ciência triste é
aquela em que não se dança. Conversações com Isabelle
Stengers. Revista De Antropologia, 59(2), 155-186. https://doi.
org/10.11606/2179-0892.ra.2016.121937
STENGERS, Isabelle. (2018). A proposição cosmopolítica. Re-
vista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (69), 442-464.

99
Nascido em migrância pelo Cone-Sul do
continente americano, Richard Aaron Basso tenta
entender as dinâmicas da Globalização, das
Tecnologias da Informação, da Ficção Cientí-
fica e o papel do Brasil e de si mesmo nelas. É
graduando em Letras-Inglês na Universidade
Federal de Pernambuco. É tradutor, ensaísta e
divulgador científico pelo portal Barba Verde.
Ensaios - A Sentinela: A fotografia de uma especulação

Há poucas obras que nascem em uma forma literária, e


são adaptadas para outra forma literária, ao mesmo tempo
que para o cinema - todas pelo mesmo autor. Tal carac-
terística confere ao conto A Sentinela do escritor e o físico
Arthur C. Clarke, um status diferencial para a análise de
adaptações e para os estudos das diferenças entre gêneros
narrativos, já que o autor do texto-fonte é o mesmo que pro-
pôs os desvios, as distorções e as diferenças para a adap-
tação às novas formas. Portanto, analisar o resultado destes
processos de adequação pode revelar aspectos cruciais da
caracterização de cada um desses gêneros, além do rico
conhecimento acerca dos processos de adaptação em si.
Ao investigarmos as três obras e suas relações de code-
pendência, podemos facilmente estabelecer uma continui-
dade entre o conto e o romance, já que diversos dos elemen-
tos e ferramentas estéticas são compartilhados por ambos os
gêneros narrativos. A conexão entre romance e longa-metra-
gem, um método de adaptação secular, é também simples
de se fazer. No entanto, é na dificuldade em restabelecer as
Richard Aaron Basso

conexões comparativas entre o conto e o filme que podemos


recorrer à incrível descrição de Júlio Cortázar (2006) do con-
to como fotografia. Assim, podemos elaborar uma fórmula de
proporcionalidade, onde o romance e o filme que comparti-
lham o mesmo nome, 2001: Uma Odisseia no Espaço, ambos
lançados no ano de 1968, são elementos da mesma espécie
proporcional, sendo uma história mais comprida com vários
episódios, enquanto A Sentinela, escrita em 1948 como conto,
se configura, não como longa-metragem, mas sim como uma

100
fotografia do humano ao se encontrar com o seu imemorável
passado e inevitável futuro.
Cortázar aponta aspectos estéticos que diferenciam o
conto do romance, assim como a fotografia do filme. Central
à sua análise está a consideração do limite de espaço como
os limites do quadro para uma fotografia. Essa limitação
carrega em si a necessidade da concisão dos efeitos, da
coesão das ferramentas em torno do momento a ser regis-
trado, e da eficácia da construção de seu impacto intendido,
em suas palavras: “pela forma com que o fotógrafo utiliza
esteticamente essa limitação”. Assim, o recorte do quadro
deve agir como catalisador das reflexões possíveis através
das aberturas à interpretação causadas pelo parâmetro
das informações disponíveis.
Se na fotografia, as ferramentas disponíveis para
além do enquadramento são o foco, a profundidade de
campo e a sensibilidade do sensor, todas as partes do
triângulo da exposição, que permitirão manipular a inte-
ração entre os objetos e o cenário ao fundo em sua vas-
tidão de possibilidades, a literatura na forma de conto
encontra suas próprias ferramentas para alcançar esta
mesma vastidão, entre elas: o ponto de vista da narra-
ção, a profundidade de seus personagens e o ambiente
onde vivem e as ideias comunicadas.
Ainda no campo da visão, podemos ver a separação
entre os vários subgêneros literários ao decorrer da histó-
ria como um movimento dialético da proximidade com o
mito. Ortega y Gasset (1966) explora essa proximidade ao
observar as mudanças de como este é enxergado desde a
epopeia, onde se vê o mito fundador, passando pela novela
de cavalaria, onde é visto como maravilha, até o romance
moderno onde observamos o modo de enxergar em si, mo-
vendo nossos olhos do mito para a formação da lente - seja
ela, dentre outras, realista ou naturalista. Porém, a Ficção
Científica trata a investigação cognitiva como a abertura de
uma câmera, que através da lente da ciência aumentará a
nitidez nesse aspecto até romper a barreira do conhecimen-

101
to para a da especulação, neste caso em particular, para
acerca dos limites últimos da exploração espacial.
O conto de seis páginas é narrado em primeira pessoa,
em tom de conversa com o leitor. O geólogo “ou senólogo,
caso queira ser pedante”, que é o narrador, em sua primeira
sentença convoca o interlocutor a olhar para a Lua cheia
e encontrar a mancha onde se passou o encontro com um
estranho objeto em 1996. A caracterização de diálogo é o
que permite a reflexão do narrador acerca do significado
deste fato após vinte anos. Em vez de descrever uma con-
versa onde a reflexão é feita, a narração em primeira pessoa
permite que a conversa seja diretamente com o viajante, do
alto de sua experiência com o leitor.
Ao contrário da fotografia, onde o quadro é composto
por quatro linhas claras, um conto é recortado pela primei-
ra letra e pelo último ponto. Tudo que está entre estes dois
pontos terá de compor um tecido, um conjunto de linhas
que forje como texto suas próprias bordas ao mesmo tempo
que expõe os objetos ao redor sua singularidade, ou efeito
único se aderirmos a uma específica filosofia da composi-
ção desenvolvida por Edgar Allan Poe (2009). Ademais, ao
concebermos o conto como habitante de uma pequena
intersecção entre as artes espaciais e as temporais, com-
preenderemos sua dupla funcionalidade como o momento,
que é uma imagem, e um período que é uma narrativa, no
que Alfredo Bosi (2002) chamou situação.
É assim que Clarke estabelece sua câmera narrativa.
O ambiente lunar é descrito com impecável precisão
imagética, sempre acompanhado de curtas reflexões
acerca da ancestralidade ou da decadência do local, há
muito incapaz de sustentar a vida, quando não ambas. A
curiosidade e atenção aos detalhes da paisagem, assim
como os comentários, são perfeitamente justificáveis por
sua profissão e natureza da conversa conosco. Eles vão aos
poucos tecendo a imagem da exploração lunar, totalmente
realizada, naturalizada e convencionada, mesmo duas
décadas antes dos pequenos passos de Armstrong, proje-

102
tando a situação do encontro, a interpretação da origem, e
o significado da sentinela deixada na Lua.
O conceito do triângulo da exposição da fotografia nos
oferece um poderoso insight para compreender o uso das
técnicas narrativas em um conto. Em locais opostos de um
diagrama, tomando a forma geométrica que lhe cede o
nome, ao mover-se em direção a um desses aspectos foto-
gráficos se afasta do outro. A concisão do conto impõe a
mesma limitação ao contista. Sendo uma mídia exclusiva-
mente verbal, todos os elementos podem apenas ser dispos-
tos através das palavras que aqui competem pelo mesmo
estreito espaço. Concentrar-se, portanto, na descrição dos
personagens é se afastar do que poderia ser elaborado com
aquela quantidade de sintagmas. Logo, a arte do contista é
muitas vezes, assim como a do fotógrafo, uma arte subtrativa.
Não apenas pelo espaço os sintagmas competem. Com-
petem também pelo direcionamento do olhar. Uma das mais
estudadas fotografias, A Mãe Migrante de Dorothea Lange,
ainda em 1936 ensina uma poderosa lição ao bloquear o
rosto das três crianças e apagar a segunda mão da mãe
na pós produção, de forma a manter apenas seu cansado e
desolado rosto, e o braço para que ele aponta.
Assim, Clarke repete a operação de Lange ao ser mini-
malista em sua descrição e complexidade dos personagens.
O narrador não apresenta nenhum interesse neles, nem
tampouco se apressa em relação à trama. Esta, também é
desenvolvida a conta-gotas. Wilson, nosso protagonista,
enxerga um misterioso brilho no alto de uma montanha, e
pouco convencido de sua inexplicabilidade consegue a
autorização para escalá-la, movido mais pela aventura do
alpinismo do que pela curiosidade, já que seu trabalho é
descrito como intensamente monótono. Lá, é totalmente
surpreendido pela pequena pirâmide (substituída poste-
riormente pelo famoso monolito), e é assombrado por seus
possíveis significados. O curto resumo acima dificilmente
poderia ser maior em quantidade de verbos para descrever
as ações que de fato acontecem, já que são estritamente

103
sete: enxergar, especular, convencer, escalar, encontrar, sur-
preender e refletir. Não há escapatória, não há vértices que
apontem em outra direção. Somos obrigados sutilmente a
encarar a especulação proposta por termos nossas visões
lentamente conduzidas à pirâmide no centro da imagem, e
à imensa abertura à significação que esta representa.
O bom conto, assim como a boa fotografia, necessita
conter a atenção do seu interlocutor para além do momento
suficiente à simples leitura. Mas, como vimos, a boa conden-
sação leva à continuidade, chamada de abertura por Cor-
tázar, e claramente alcançada por Lange ao subtrair rostos
e mão, e por Clarke ao subtrair a profundidade dos perso-
nagens e da trama. Ao longo de suas páginas encontramos
diversas alusões à ancestralidade, ao futuro, ao embrião, ao
ancião. Figuras de linguagem como “deixarmos nosso berço”
(ao se referir a exploração lunar), e a “velha civilização” (ao
se referir aos que deixaram a sentinela na Lua aguardando
a vida se desenvolver o suficiente na Terra para deixar o
planeta e soar o seu alarme), nos põe em uma linha direta
de desenvolvimento entre os que deixaram a sentinela e a
humanidade, nos indagando se faríamos o mesmo em nossa
exploração espacial, conseguindo nos prender mais uma
vez em círculos de bilhões de anos com apenas 6 páginas.
No conto como foto, o personagem estaria de costas por
trás da câmera. Em primeira pessoa, o narrador é tão pre-
sente-ausente como o fotógrafo. O foco não está nele, nem
no objeto, mas na vastidão do universo, agora repleto de
potencial significado, para onde olhamos conjuntamente,
através da abertura, por trás da sentinela.

104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CLARKE, Arthur C. The Sentinel. Avon Periodicals Inc. 195
CLARKE, Arthur C. 2001: Na Space Odyssey. Ed. Hutchinson.
1968
2001: Uma Odisseia no Espaço. Direção de Stanley Kubrick
e escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Produzido
por Stanley Kubrick Productions.1968.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto moderno. In:
_______ (org). Valise de Cronópio. São Paulo. Ed. Perspecti-
va. 2006
ORTEGA Y GASSET, José. Breve tratado do romance.
In:_________(org.) Meditações do Quixote. Rio de Janeiro.
Livro Ibero-Americano. 1967
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Pau-
lo. Editora Cultrix. 2002
POE, Edgar Allan. The Philosophy of Composition. Aces-
sado em www.poetryfoundation.org/articles/69390/
the-philosophy-of-composition

105
Clarissa Reche é artista, educadora e pesquisa-
dora, trabalhando na fronteira entre ciência e arte.
É doutoranda em Ciências Sociais (IFCH-UNICAMP)
e desenvolve uma pesquisa sobre menstruação,
trabalho de campo e produção de conhecimento
em Etnologia. Mestre em Culturas e Identidades
Brasileiras (IEB-USP), bacharel em Design Industrial
(Mackenzie - ProUni) e Ciências Sociais (FFLCH-USP),
ciência cibernética dos mortos: ficção científica como artefato e

se interessa pelas interfaces entre corpo, biologia,


tecnologia e cultura, dialogando com críticas
em Wax or the Discovery of Television Among Bees

feministas e anticapitalistas. Participa do coletivo


Sanga, desenvolvendo com outros educadores
oficinas de arte, sociedade, tecnologia e ciência.

Érico gosta de alta tecnologia e não gosta de


trabalhar - pelo menos de forma capitalista. Apesar
disso, as circunstâncias o forçaram a trabalhar em
vários campos, desde o tratamento de resíduos
nucleares e de mineração até biotecnologia
agrícola, inteligência artificial e computação e
eletrônica de alto desempenho. É bacharel em
Ciências Sociais (FFLCH-USP) e atualmente é aluno
de mestrado em Política Científica e Tecnológica
(IG - UNICAMP), com foco em ciberguerra, operações
Clarissa Reche e Érico Perrella

de informação e guerra de alta tecnologia DIY.


Também tem interesses em interação de computa-
ção humana, etnologia, cibernética e em design de
Ensaios - Adocumento

Circuito Integrado Específico de Aplicativos (ASIC).

“No dia seguinte, no trabalho, eu me senti espe-


cialmente sensível ao que estava acontecendo den-
tro das máquinas. Eu podia sentir as armas. E os alvos.
Dentro dos alvos eu pude sentir que haviam almas.
Eu estava deixando meu antigo ego para trás.”
Jacob Maker em Wax or the Discovery
of Television Among Bees(1991)

106
A experiência foi relatada como a exibição de um filme
composto por manchas em preto e branco e longos silêncios
ocasionados por falhas no áudio. Ainda assim, o The New
York Times a descreveu como um momento “histórico”.1 O ano
era 1993, e uma pequena audiência se espalhou por algu-
mas dezenas de computadores em um laboratório da Sun
Microsystems, uma fabricante de PCs e softwares que veio
a ser incorporada à gigante Oracle, para assistir Wax or the

1_Disponível em licença Creative Commes em: <https://youtu.be/Aq1PV8JcstA>. Acesso em: fev. 2021
discovery of television among bees2(1991). Este foi o primeiro
filme transmitido via streaming por uma rede de computa-
dores, o primeiro filme independente a ser editado usando
um sistema de edição não-linear e o primeiro filme a ser
traduzido para uma experiência online interativa e hiper-
textual, o site WaxWeb3. Finalizado no ano de 1991, Wax foi
dirigido, produzido, editado, escrito e narrado pelo artista

2_Cult Film Is a First On Internet <https://www.nytimes.com/1993/05/24/busi-


David Blair, que também atuou como seu protagonista.
Wax levou seis anos para ser finalizado e foi coproduzido
pela ZDF, um canal público alemão de televisão, recebendo
uma série de financiamentos: através de prêmios de institui-

ness/cult-film-is-a-first-on-internet.html>. Acesso em: fev. 2021


ções públicas e privadas como New York State Council for
the Arts; National Endowment for the Arts; New York Founda-
tion for the Arts; entre outros. Tem 85 minutos de duração e
possui o seguinte enredo:

“Jacob Maker desenvolve sistemas guiados para


armas e é apicultor. Enquanto cuida de suas abe-
lhas, ele cai em um devaneio e visita espaços rudi-
mentares onde o pensamento linear luta com eixos
deformados de tempo e espaço. Agentes de almas
mortas, as abelhas inserem uma televisão de cristal
em sua cabeça. A TV o guia até o planeta dos mor-
tos, onde animações planas e esqueléticas o levam
através da criação do mundo e ao olho de Deus.
Quando, na forma de um míssil semi inteligente, ele
mata operadores de tanques iraquianos no deserto
perto de Basra, tudo está certo com seu passado, e
ele garantiu seu futuro.” 4

107
Wax é um artefato tecno-arqueológico de um mundo
que já não existe neste plano, mas permanece presente
3_Tradução livre de BATTELLE, John. Wax or the discovery of television among bees. Wired, 01 de jan. de 1933. Disponível

através da memória corpórea daqueles que vivenciaram a


chegada da internet. Ou melhor, daqueles que entravam na
em: <https://www.wired.com/1993/02/wax-or-the-discovery-of-television-among-the-bees/>. Acesso em: fev. 2001.

internet. Como um sopro do mundo dos mortos, o filme nos


provoca pequenos arrepios ao achatar o momento presente
e trazer vislumbres da década de 1990. É um tempo fractal,
cheio de idas e vindas, em uma confusão hiperlinkada que
se espalha inclusive no modo como o filme foi feito, suas
técnicas e ferramentas: de colagens fotográficas e imagens
anônimas de arquivos, somos jogados para cenas autorais
que logo se transformam em objetos voadores graças às
animações gráficas, processo criativo que Blair chamou de
“cibernarrativa de imagens processadas”. Diante de qual-
quer momento-artefato estamos frente a uma armadilha.
Incapazes de desenvolver certeza alguma, podemos deixar
que Wax nos capture e, através das mudanças súbitas de
trajetória, construir nossa própria ficção. Apresentamos aqui
a nossa, com esperanças de que quem leia possa deixar-se
capturar também.
A televisão das abelhas, grande descoberta de Jacob,
nos parece algo entre um sonho psicotrópico e um feed
descendo compulsivamente. Do vapor quente do deserto
emerge uma série de caminhos específicos nas tramas que
ligam tudo o que é vivo a tudo o que é morto. Caminhos
que nos contam histórias frias, ruidosas e não lineares de
colonização, vingança e morte. Histórias que vazam do
passado ao presente e conduzem nosso protagonista a uma
jornada hiper-real. Ao ser transferido de uma divisão pura-
mente “científica” para uma militar e ficar responsável por
programar um sistema digital de miras para mísseis, a morte
começa a rondar a vida de Jacob.
É através da televisão das abelhas que vem a revelação
sobre o mal-estar que ronda o protagonista. A realidade
corpórea de Jacob é expandida, seu ser é irremediavelmente
mesclado com seu trabalho e seu ego se transforma em uma
‹arma semi inteligente’, um míssil. As abelhas mesopotâmicas

108
guiam o protagonista numa viagem de autoconhecimento,
ensinando-o a língua de Caim - a língua dos mortos - e o
levam à sua morada e maior realização: um canto infinito
numa caverna embaixo do deserto, onde máquinas de
pensamento são capazes de alocar um pedaço do espa-
ço-tempo para cada alma, criando assim um local onde os
mortos possam viver e obter vingança. Na caverna, o prota-
gonista descobre que está morto e que é Zoltan Abbasid, o
aventureiro irmão de sua avó, descobridor das abelhas me-
sopotâmicas. Também descobre que, como míssil, seu alvo

4_O site já não está mais disponível, porém é possível um vislumbre de como era em: <https://
está localizado em Basra, Iraque.
Ele se torna uma mira e explora diferentes planetas. Acom-
panhado por guardas do templo dos futuros mortos, o pro-
tagonista se torna um poema na língua de Caim e uma mira

web.archive.org/web/19991128190053/http://waxweb.org/>. Acesso em: fev. 2021.


em formato de X e assim viaja ao passado para ver seu futuro
sendo decidido: Zoltan é atacado por suas próprias abelhas,
mortos do futuro, cada um com um nome e motivo para matá-lo.
Vingança é a vida dos mortos. O protagonista torna-se Caim e
descobre que seu alvo são todos aqueles que o mataram, ou
seja, seu tio-avô Zoltan. Como mira, míssil, Caim, Zoltan e um
poema na língua dos mortos, Jacob se vê no Iraque em 1991.
Finalmente matará alguém. Como recompensa pelo assassina-
to e vingança, o protagonista volta à máquina de pensamento
abelha onde, saindo de uma caixa de armas no início do uni-
verso, testemunha a reprodução do espaço-tempo e encontra
todos os seus parentes, assim como os iraquianos que acabara
de matar e decide por reencarnar como engenheira genética.
Contemporânea ao lançamento de Wax, a guerra do
golfo é considerada a primeira guerra remota da história.
Durante esse conflito, os EUA coletam uma grande quan-
tidade de inteligência digital sobre a infraestrutura crítica
do governo e das defesas de Saddam Hussein por meio de
satélites, sobrevoos, espiões, acadêmicos. Com essas in-
formações, o governo dos EUA lançou uma campanha de
bombardeio utilizando mísseis teleguiados a partir de na-
vios ancorados no golfo pérsico, localizado a centenas de
quilômetros das frentes de batalha, o que devastou em dias

109
toda a possibilidade de defesa iraquiana. Após bombardear
o Iraque durante trinta dias, os EUA e seus aliados sauditas
enviaram tropas terrestres que rapidamente se apoderaram
dos escombros e declararam vitória. Governos e analistas
pelo mundo, aliados e adversários dos EUA, rapidamente
chegam ao veredicto: a escala da destruição e do subjuga-
mento de Saddam só foi possível por meio da coordenação
da batalha através de um vasto e complexo mecanismo de
processamento de informação digital. A coleta e análise da
inteligência foi digital e remota; as decisões foram tomadas
e transmitidas digitalmente; os aviões foram guiados digi-
talmente por GPS aos seus alvos; até os mísseis têm seus
próprios microprocessadores e modems.
Wax é, portanto, uma ficção científica documental, em
vários aspectos aos quais esta instável definição pode nos
levar. O filme trata-se, em certo sentido, de um documentá-
rio. Somos conduzidos a uma viagem através das entranhas
desérticas do interior dos Estados Unidos e apresentados à
aridez dos processos de desenvolvimento de armas de guer-
ra. Enquanto Jacob vaga pelos campos de testes de mísseis
e bombas, o glamour do “sonho americano” - vendido para
nós do terceiro mundo como o ápice da civilização - dá
lugar à crescente consciência de uma sede de morte que
permeia estes espaços terrenos suprimidos da propaganda
estadunidense. O monolito de pedra que marca o local de
teste da primeira bomba de plutônio é a lápide que reve-
la ao mesmo tempo os mortos do passado e os vivos que
trabalham para os mortos do futuro, desfazendo qualquer
ilusão de terra sem males.
Os mapas gerados por computação gráfica tridimensional
também compõem essa incômoda documentação do esta-
belecimento das armas de guerra “semi inteligentes”. Quase
indistinguíveis dos cenários de jogos antigos de aviação, os
rasantes digitais em primeira pessoa reforçam o elo entre o
corpo do cientista-programador-criador-de-abelhas e a
constituição material dos drones e mísseis teleguiados. Esta
confusão entre civil, militar e científico constitui a própria cria-

110
ção da internet, e tem se intensificado cada vez mais. Hoje
olhamos para o futuro que era desenhado em seu início, e
vemos um otimismo ingênuo em muito do que se colocava
como possibilidade. Wax vai na contramão dessa visão de
crença cega no desenvolvimento tecnológico como solução
última para os problemas que vivemos, apesar de não ser
exatamente pessimista. Wax nos incita a pensar sobre a com-
plexidade das redes de relações (nat)(culturais) que compo-
mos, cheias de mudanças, permanências, consequências e
responsabilidades. Além disso, o processo de confecção do
filme se assemelhou muito ao de um documentário. Em entre-
vistas, Blair afirma que o script, a produção e a edição foram
acontecendo ao mesmo tempo, em um movimento muito pa-
recido com o de seguir o fluxo dos acontecimentos que se dá
nos documentários. Mas em Wax o fluxo de acontecimentos
não estava exatamente ancorado em uma realidade dada.
É interessante notar que essa caraterística de indefinição en-
tre ficção e documentário permeia uma série de produções
independentes recentes, como por exemplo o filme brasileiro
Branco Sai Preto Fica (2015).
Como cientistas sociais interessados por ciência e tec-
nologia, o que nos chama atenção em Wax é a capacidade
que tem de explicitar uma série de questões caras aos scien-
ce and technology studies, em especial sobre o fazer cientí-
fico enquanto trabalho submetido às lógicas capitalistas e
isento de responsabilidade individual ou coletiva pelo que
cria. Ao revelar o cientista como produtor alienado, ou seja,
incapaz de ver sua energia vital transformada em algo que
ele próprio pode usufruir, o que é colocado em xeque é a
ideia de Ciência como entidade sobre-humana, que ignora
as vontades e voluntarismos de indivíduos. Em Wax a ciência
é feita por pessoas. O que é interessante e novo na perspec-
tiva apresentada pelo filme é que essas pessoas podem ser
de carne-e-osso ou não. Os mortos reclamam seus títulos de
doutores. Será possível escapar do olho de Deus?

111
João Victor Fernandes tem 21 anos e é
cientista social em graduação pela UFMG.
Amante de distopias, filmes trash e vinhos
baratos, nas horas vagas é leitor, mas gosta
de se aventurar como escritor também.

Melancolia, filme dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars


von Trier, foi originalmente lançado no 64º Festival de Can-
nes em 2011, momento em que grande parte da população
desastrosa converte-se inesperadamente em graça

ocidental temia que o mundo fosse findar no ano seguin-


te, de 2012, como supostamente previsto pelo povo Maia.
Curiosamente, o assisti há poucos meses de seu aniversário
de dez anos, em meio à uma pandemia que já matou 2 mi-
lhões de pessoas desde seu início, há quinze meses.
O tema fim do mundo constrói a narrativa do filme, no
1
salvação” - uma resenha do filme Melancolia

qual o nosso planeta é ameaçado pela colisão iminente


de outro astro absolutamente maior, que vagava miste-
riosamente pelo espaço. As personagens principais do
filme são as duas irmãs Justine e Claire, que vivem em uma
mansão com o marido e o filho da segunda. É neste local
que se passam os mais de 130 minutos do filme, divididos
em duas partes. Na primeira parte, Justine e Michael, seu
noivo, encaminham-se para seu casamento, que aconte-
cerá na mansão suntuosa. No decorrer do evento somos
apresentados às relações de fachada entre os familiares,
os conflitos do trabalho de Justine, seu estado melancólico
que a impedia de se sentir feliz com o casamento “perfeito”,
Ensaios - “Aou desgraça
João Victor Fernandes

sua angústia por não ser capaz de amar o homem dos seus
sonhos. A personagem vivia, portanto, uma constante farsa,
e lutava consigo mesma para manter as aparências exigi-
das por sua família, por sua irmã ansiosa e controladora
que organizara a festa, porém não se importava com seu
emocional; e por seu avarento cunhado que pagara todos
os custos do evento e não tolerava os atrasos e inconstân-
cias de Justine e de sua família.
Durante o casamento, temos um diálogo marcante en-
tre Justine e sua mãe, amargurada por seu divórcio. A filha

112
melancólica revela à mãe que temia pelo fim (do mundo),
e a mãe, encontrando aparente identificação com a filha,
responde que ela deve abandonar tudo isso (o casamento)
enquanto ainda há tempo. Temos então o reforço narrativo
do ego empobrecido de Justine, e de sua falta de apoio
no mundo. Segundo Freud, podemos analisar seu estado
melancólico como fruto de “um trabalho de paulatino des-
ligamento da libido em relação ao objeto de prazer e satis-
fação narcisista que o ego perdeu, por morte ou abandono.”
(Freud, 1917). Pela narrativa do filme, é possível constatar que
Justine vivia acorrentada à vida de aparências, desprovida
do amor e da autenticidade que tanto buscava em todos
os aspectos da sua existência e, portanto, se encontrava em
eterno processo de luto pela morte do seu ideal de vida,
de seu ideal de liberdade. Pode-se dizer que Justine era
uma morta-viva, morta demais para viver, viva demais para
morrer (Han, 2017. p. 52).
Na parte seguinte, Claire toma o centro da narrativa
e conhecemos melhor seu relacionamento com a irmã, o
marido e o filho. É também nessa parte que se apresenta o
possível choque catastrófico entre os planetas. Claire se vê
cada vez mais ansiosa e em pânico frente ao incontrolável
destino, enquanto Justine continua a conviver com sua me-
lancolia até a chegada do planeta. No entanto, na noite em
que o astro se encontra mais próximo da Terra, Justine tem
um encontro simbólico com ele, sendo então manifestada
uma libertação da personagem de seu estado depressivo,
assunto que tratarei mais adiante. Justine aceita a chegada
do estranho corpo celeste e se conforma com o destino fatí-
dico, transformando-se em uma pessoa amorosa e também
em um refúgio para Claire, que tivera uma crise diante do
suicídio de seu marido após a constatação do fim certo.
1_Han, 2017. p. 19

Nesse momento, Justine constrói um abrigo para seu sobri-


nho, e os três aguardam o impacto que encerra o filme.
Como afirmei anteriormente, gostaria de adentrar no que
considero o ponto central da obra, a transformação de Jus-
tine de uma pessoa melancólica para uma pessoa amorosa,

113
tendo por base a obra Agonia do Eros de Byung-Chul Han
(2012), um filósofo e sociólogo sul coreano conhecido por
suas análises e reflexões acerca das barreiras que a socie-
dade do desempenho impõe às dimensões humanas. Han
defende que a nossa sociedade está atualmente funda-
mentada na positividade da comparação, no nivelamento
ao igual e no consumismo, rejeitando assim a negatividade
e as contradições do outro, e por isso recusamos o bem viver
e desvalorizamos a alteridade.
Resumidamente, ao priorizar a otimização produtiva do in-
divíduo e a racionalização das emoções seguida da neutrali-
zação do amor, nos afogamos cada vez mais em nós mesmos,
enquanto apagamos o outro. Assim, nos tornamos cada vez
mais narcisistas, e diante da impossibilidade do amor, reina a
dialética da melancolia, da depressão e da síndrome de Bur-
nout. Todas essas características estão visivelmente presentes
em Justine, pois, além dos aspectos já vistos acima, ela tem
na figura de seu chefe a representação da sociedade que
a pressiona constantemente por produtividade, outra frente
que agrega em sua melancolia, e que resulta, por fim, em
uma “explosão” entre eles no decorrer da narrativa.
Além disso, em sua obra, Han dialoga com a filosofia de
Levinas (1968) sobre totalidade e infinito. Levinas faz uma
crítica ao totalitarismo ocidental da valorização do saber
absoluto representado pela síntese hegeliana, e defende
que a experiência essencial se dá pela subjetividade, e não
pela síntese. O infinito se produz na relação com o outro
através do encontro face-a-face com o rosto que se expõe,
rompendo assim a totalidade e transformando a produção
do ser de negação do eu para o ser para o outro.
Han utiliza o filme como exemplo em sua reflexão, ilus-
trando a passagem na qual Justine desnuda-se, deixan-
do-se vulnerável ao encontro com o outro (o planeta), e
consequentemente se entregando à ele, sua única saída,
tornando-se assim um indivíduo do amor, e um refúgio para
Claire e seu filho no momento do cataclisma: [O eros]... pos-
sibilita uma experiência do outro em sua alteridade, que o

114
resgata de seu inferno narcisista. [...] Um sujeito do amor é to-
mado por um tornar-se-fraco todo próprio, que vem acom-
panhado ao mesmo tempo por um sentimento de fortaleza.”
(Han, 2017, p. 11).
Ele continua: “A própria dialética é um movimento de
concluir, do abrir, e do voltar a concluir fechando. [...] O amor
é uma conclusão absoluta. É absoluto porque pressupõem
a morte, a entrega de si-mesmo. A “verdadeira essência do
amor” consiste precisamente nisso, “renunciar à consciência
de si mesmo, esquecer-se num outro si-mesmo.” (Han, 2017,
p. 47). Neste momento do encontro com o planeta, Justine
deixa definitivamente de ser uma morta-viva para se tornar
um indivíduo apaixonado pela vida.
Finalmente, o sociólogo aponta que “No inferno do igual,
a chegada do outro atópico pode tomar uma forma apoca-
líptica.” (Han, 2017. p.11). No filme de Lars von Trier, o outro se
manifesta em um corpo celeste, representando toda a mag-
nitude da diferença, da alteridade; e o encontro da melan-
cólica Justine desnuda com o planeta à beira do lago, na
iminência de uma catástrofe, mostrou-se sua salvação da
decadência melancólica pelo “dizer sim à vida até a morte.”
(Han, 2017. p. 50)

115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MELANCOLIA. Direção de Lars von Trier. Dinamarca (135 min.)
HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Tradução de Enio Paulo
Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Tradução de Marilene
Carone. Cosac Naify: edição eletrônica, 2013
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de
Alphonso Lingis. Edições 70; 1ª edição, 2008

116
Rodrigo Leme é mestrando em artes pela UFMG,
sua pesquisa foca nas representações de imagens
coletivas no cinema brasileiro contemporâneo.
Escreveu e dirigiu alguns curtas, dentre eles “Eu sou
o ditador” e “Ferida”, ambos exibidos em festivais
ao redor do Brasil. Foi montador dos curtas Broto
e Um Estranho no Escuro e trabalhou na equipe
de coordenação de pós-produção na O2 Filmes.

É alienígena tudo que não somos capazes de definir:


que é de outro tempo e espaço, além da nossa razão. É alie-
nígena o que nos é estranho. Um território, certamente, pode

outros mundos nossos: territórios subdesenvolvidos


estar além da nossa compreensão: quando sua geografia
nos é desconhecida e perigosa, quando nele nos sentimos
deslocados. Há de se notar que essa qualidade de aliení-
gena, contudo, não é inerente ao lugar: pelo contrário, ela
é necessariamente atribuída por um olhar. Depositá-lo, en-
tão, fadaria o território a ser tomado apenas por perigoso,
estranho – o deslocaria de suas capacidades de espaço

1
como representações alienígenas
habitável, com história, complexidades. Há, contudo, outras
possibilidades de se observar um território a partir de sua
estranheza? Possibilidades que se apresentariam como
potências para os países subdesenvolvidos, que têm suas
geografias frequentemente postas em tela como exóticas?
Certamente, entender um lugar real como insólito pode ser
problemático – mas o problema estaria na qualidade de
alienígena em si, ou no olhar que a atribui?
Hollywood enxerga o território de outros países como
alienígena, mas quase nunca vê assim o seu próprio. Guerra
nas Estrelas, famosa franquia estadunidense, vai procurar seus
Ensaios - Em

planetas nos desertos da Tunísia e nas florestas da Guatema-


Rodrigo Leme

la; o clássico blockbuster O Predador (1987) busca os perigos


de suas missões no México; Perdido em Marte (2015) simula o
planeta vermelho na Jordânia. Esses mundos, quando filma-
dos em locação, detêm uma atmosfera de mistério e medo, e
esses países acima mencionados são frequentemente usados
pelas grandes produções norte-americanas para representar

117
espaços exóticos também em filmes de ação e aventura. Os
protagonistas que transitam por eles têm que se cuidar e se
proteger, seja para não se perder em meio a desertos infinitos,
seja para encontrar formas de sobrevivência em ambientes
hostis, seja pelos perigos inerentes aos planetas que atraves-
sam. Paralelos podem ser traçados com a literatura de aven-
tura, em que europeus se perdem nas colônias e têm que lutar
para sobreviver num ambiente em que tudo é perigoso - ao
1_O presente trabalho foi realizado com apoio do PPGARTES-UFMG e da Coordenação de Aperfei-

olhar do europeu, já que completamente desconhecido por


ele. Optar por não filmar no próprio país parece ser, quando
se referindo aos grandes blockbusters estrangeiros, uma forma
de se adotar a mesma postura desses colonizadores “aven-
çoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

tureiros”: se há o argumento de que se filmar em locação leva


uma atmosfera ao filme que nenhum estúdio poderia reprodu-
zir dentro de suas quatro paredes, essa noção carrega em si
mesma um preconceito inerente quando o que se busca em
outros países é um clima de mistério e perigo, exaltado pelo
que eles têm de estranho ao olhar do outro.
O problema se acentua quando esses mesmos filmes,
exotizados pelo olhar do outro, retornam para nós em forma
de produto. O espaço que habitamos torna-se espetacula-
rizado, ainda mais levando em conta a força que os filmes
de ficção científica – ou aventura, por extensão – possuem
nas bilheterias mundiais. Assustou-me a existência do Mu-
sée du Cinéma, em Marrocos, que se propõe a retomar as
obras cinematográficas filmadas no país, mas cujas paredes
estão repletas de objetos e fotos apenas de produções
Hollywoodianas, dos anos 50 até hoje. É um museu cujo
apelo turístico é maior que o apelo local, mais visitado por
estrangeiros que por marroquinos. O Brasil também não
está distante dessa celebração do olhar estrangeiro, mas
aqui é outro o foco: basta analisar a recepção nacional a
filmes como Velozes e Furiosos 5 (2011), O Incrível Hulk (2008)
e Amanhecer (2011), da saga Crepúsculo, que angariaram
multidões de fãs brasileiros por conta de suas filmagens em
território nacional, todos no Rio de Janeiro. Essas produções
têm plena consciência do poder de se representar territórios

118
subdesenvolvidos em suas próprias telas, ainda que a preo-
cupação seja apenas com os retornos financeiros.
Se a venda do nosso território para nós mesmos como
exótico demonstra a força cultural dos laços coloniais até
hoje, ela aponta também para algo além: a formação de
um imaginário coletivo que compreende o próprio espaço
como misterioso, mágico, anormal, acostumando nosso
olhar. Vemos nossos biomas, climas e florestas como peri-
gosos, enquanto entendemos cidades e geografias dos
outros, desenvolvidos, como normais. Ao tomarmos o olhar
estrangeiro como forma de acesso ao mundo, passamos a
desconhecer nosso espaço. É um processo de esquecimento,
de esvaecimento do território, uma universalização do olhar
que dissolve os espaços que são colocados à orla através
do olhar de estranheza neles depositados. Será, então, que
qualquer forma de se tratar os territórios como espaços
alienígenas na ficção científica, por conta das qualidades
de estranhamento inerentes a isso, seriam melhores se evita-
dos? O que acontece se nós mesmos tomamos a iniciativa de
representar os territórios que habitamos na ficção científica?
Bacurau (2019) leva em conta toda a história complica-
da da representação do sertão na cultura nacional e trata o
local não só como ponto de resistência, mas como o oposto
de um território desconhecido. É um espaço de conforto, onde
o estranhamento e a inospitalidade são impostos: a água da
cidade é cortada, sua presença no mapa é revogada. É uma
crítica a esse olhar que categoriza nosso espaço como estra-
nho, onde o interesse está em compreender nossos territórios
e modos de habitar como algo que conhecemos, algo a ser
defendido e preservado; imperfeito, sim, mas um espaço com
importância histórica aos nossos próprios olhos. Se o sertão,
ao ser filmado por pessoas de outras regiões do Brasil, muitas
vezes pode ter sido tratado da mesma forma que os filmes
norte-americanos tratam os países subdesenvolvidos, em
Bacurau há a tentativa consciente de se livrar das amarras do
estranhamento, de resistir a esses olhares externos. Bacurau é
muitas coisas – alienígena não é uma delas.

119
Mas há potencial em se abrir, através da autorrepre-
sentação, ao que há de misterioso em nosso próprio terri-
tório. Sim, deve-se tomar cuidado: esse olhar que deposita
estranhamento sem dúvidas deve ser explorado de forma
consciente e, para isso, é necessário profunda compreen-
são das complexidades dos territórios, para além de suas
superfícies. O potencial surge, justamente, quando há
abertura para deixar que falem por si: compreender as es-
tranhezas de um lugar deve ser, afinal, levar em conta seu
passado, constituindo-se em forte ato político. As ruínas
em Vazio do Lado de Fora, curta-metragem de 2016, por
exemplo, podem apresentar como um cenário distópico
com grande potencial estético, sim, mas é pela estranheza
que o espaço provoca que compreendemos seu verdadei-
ro sentido: um contexto político real que levou à destrui-
ção de uma comunidade.
No cinema, ainda há resistência para se abrir às es-
tranhezas do nosso próprio território, mas algumas obras in-
dicam possibilidades muito promissoras. Em Rodson (2020),
de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, vê-se um
Brasil distópico que evidencia aspectos evitados de nossa
sociedade, através de uma ironia que acaba por complexi-
ficar essas questões da contemporaneidade, e não somente
julgá-las. Termos a possibilidade de olhar para o nosso
próprio território, afinal, também permite que ele evoque
em tela sensações muito mais interessantes do que apenas
perigo: em Quintal (2015), curta de André Novais, um portal
intergaláctico se abre nos fundos de uma casa simples e
a forma como os moradores dela parecem naturalizá-lo é
algo que nunca seria formulado e explorado em filmes es-
trangeiros - mas é justamente por se tratar da cidade natal
do diretor, pelos moradores da casa serem seus pais, que
torna-se possível explorar a estranheza de um espaço co-
tidiano pelo seu aspecto cômico, evocando-a pelo humor,
não pelo medo.
Solon (2016), de Clarissa Campolina, leva a construção
de um espaço alienígena um passo além, abraçando com-

120
pletamente as chaves de gênero da ficção científica para
promover reflexões muito ricas a respeito do próprio local de
filmagem e das formas pelas quais ele pode ser observado.
Eis que uma mina desativada pode se revelar um espaço
primordial, de estranhas características transmutáveis, mas,
ainda assim, curiosamente familiar. Uma terra alienígena
própria do Brasil, cuja estranheza não leva à uma com-
preensão do lugar como anormal, pelo contrário: percorrida
por uma criatura tão insólita quanto o ambiente, aquela
terra seca ganha atmosfera, ganha água, transmuta-se
em algo que parece conhecido, mesmo que não saibamos
direito reconhecê-lo. Um planeta alienígena, através de
uma vida alienígena, promove uma reflexão acerca de nós
mesmos, porque nos encontramos naquele espaço e tempo
estranhos. Utilizando-se dos mesmos elementos que muitos
dos filmes de ficção científica norte-americanos, Solon pro-
duz o que parece ser justamente o oposto deles: opera um
olhar que desloca o território, não para produzir somente
estranhamento, mas também maravilhamento, promovendo
questionamentos de nós para nós. É um olhar que desloca
o discurso hegemônico: a origem da vida na Terra pode não
ter se dado na Europa ou nos Estados Unidos, como muitos
outros filmes fazem questão de apresentar; mas no meio do
Brasil, em Minas Gerais, em nossa própria terra - uma terra
com nossa história, com nossa geografia, com mistérios pro-
duzidos pelo nosso passado.

121
Ensaios - Viagem ao passado do cinema de Ficção Científica Brasileiro - Barbosa (1988)
Igor Carastan é mestre e Doutor em História
Social pela Universidade de São Paulo. Atua
como professor de História na rede municipal
e privada nos níveis fundamental e superior. É
autor do livro Filmes do Fim do Mundo (2013),
além de diversos artigos sobre as relações
entre ficção científica, História e sociedade.

A viagem no tempo é uma das temáticas mais interes-


santes abordadas pelas histórias de ficção científica. Ela
pode ser analisada como um recurso narrativo para explo-
rar a relação dos seres humanos e as mais diversas socie-
dades/grupos com o Tempo, especificamente a questão
das mudanças e permanências; e como elas são articula-
das social e individualmente em antes e depois, presente,
passado e futuro.
Resumidamente, a viagem no tempo é um deslocamen-
to que foge da nossa percepção, com dois sentidos bási-
cos: ou é reversão da forma como experimentamos e en-
cadeamos as relações de causa efeito (passado), ou uma
aceleração da experiência do tempo (futuro). A viagem no
tempo é a subversão do símbolo Tempo, geralmente pro-
visória, que acaba, por fim, reforçando e validando essa
noção em determinada sociedade – haja vista que tal
subversão costuma ser punida ou, no mínimo, causa mais
problemas do que soluciona. Entretanto, gostaria de des-
tacar e enfatizar que toda história que apresenta viagem
no tempo envolve a percepção das mudanças e perma-
Igor Carastan Noboa

nências individuais e/ou coletivas, além de um sentimento


de historicidade.
A viagem no tempo, a depender do conceito de ficção
científica utilizado, não necessariamente faz parte do gê-
nero, pois o deslocamento no tempo pode se dar, em deter-
minada história, por meios não ancorados na especulação
científica e tecnológica; como, por exemplo, através de feiti-
ços, desejos de deuses, ingestão de alguma bebida mágica,
auto-hipnose ou acidentes.

122
Distintas obras do cinema brasileiro como Loop (Carlos
Gregório, 2002), Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós,
2015), e Barbosa (Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, 1988),
utilizaram o recurso narrativo da viagem no tempo para
discutir o nosso cotidiano, História e as possibilidades de
futuro e presente, provocando em suas audiências reflexões
sobre a experiência brasileira com o Tempo. Outra obra que
poderia ser também citada como exemplo, é o desenho de
ficção científica brasileiro Uma História de Amor e Fúria (Luiz
Bolognesi, 2013). Nesta obra os protagonistas, por meio da
reencarnação - uma forma religiosa de viagem no tempo
-, se veem envoltos em diversos momentos traumáticos da
História brasileira (aí incluída a especulação sobre o futuro).
O curta-metragem Barbosa (1988), dos diretores Ana
Luiza Azevedo e Jorge Furtado, e estrelado por Antônio
Fagundes, adapta o conto do jornalista crítico de cinema
Paulo Perdigão: “O Dia em Que o Brasil Perdeu a Copa”
(originalmente publicado em 1975), presente em seu livro re-
portagem Anatomia de uma Derrota (1986). Barbosa é uma
ficção científica que incorpora elementos de documentário,
com cenas da época e uma entrevista com o próprio Barbo-
sa, que foi orientado acerca do que falar para enfatizar as
ideias presentes no filme. O uso de elementos documentais
como forma de reforçar a mensagem da obra são comuns no
cinema de Jorge Furtado. A obra, que recebeu diversos prê-
mios e foi elogiada por sua criatividade, é um exemplo do
potencial narrativo da viagem no tempo para representar
a experiência nacional, a sua identidade, suas mudanças
e permanências e uma certa descrença em nosso projeto
como sociedade.
No filme, de pouco mais de dez minutos, assistimos à his-
tória de um homem traumatizado com a derrota da seleção
brasileira para o Uruguai na final da Copa do Mundo de
1950, realizada no Brasil. O protagonista anônimo, inspirado
em alguns elementos autobiográficos de Perdigão (comen-
tados no livro), tem uma máquina do tempo e, munido de
uma câmera, resolve voltar ao dia 16/07/1950 para impedir

123
a derrota. O Brasil se consagrar campeão traria os seguintes
resultados: curaria seu trauma individual (ele tinha assistido
ao jogo no estádio, aos 11 anos de idade, num raro momen-
to de afeto compartilhado com seu pai – destruído pelo
resultado); colocaria o Brasil no rumo do desenvolvimento
(tornando o seu presente como adulto mais satisfatório); e
traria justiça ao Barbosa (o goleiro negro da seleção brasi-
leira, culpado por levar um “frango” no jogo final da Copa,
tornou-se símbolo da derrota e foi alvo de racismo).
Ao voltar para o passado, o protagonista vai ao estádio
e faz amizade com um homem para gravar imagens do jogo,
enquanto se prepara para impedir o gol do uruguaio Ghig-
gia. Ao invadir a margem do campo para alertar Barbosa de
que Ghiggia chutaria a bola em direção ao gol, o viajante
no tempo grita o nome do goleiro, e acaba desviando a sua
atenção do ataque uruguaio. Ao tentar impedir a derrota,
ele foi o responsável pelo “frango” de Barbosa, fechando
o ciclo temporal no modelo do chamado Paradoxo do
Predestinado. Este é muitas vezes explorado para reforçar
a responsabilidade do sujeito histórico pelas relações cau-
sa-efeito que cria, e pela problemática de procurar no pas-
sado a salvação para um presente indesejado. O enredo
de Barbosa é comum nas histórias de viagem no tempo que
procuram comentar como as sociedades lidam com seus
traumas e responsabilidades, geralmente nos ensinando,
das formas mais dolorosas, que nosso lugar de ação deve
ser o presente.
Podemos entender/imaginar como se deu a viagem no
tempo, com uma máquina ligada a um computador, devido
ao repertório adquirido culturalmente, principalmente via
cinema e televisão dos EUA. Na cena em que o viajante che-
ga ao passado, enquanto somos introduzidos esteticamente
a outro tempo e espaço, o protagonista quase é atropelado
por um veículo da época, um clichê de viagem ao passado
que, para citar alguns exemplos, está presente em De Vol-
ta Para o Futuro (1985) e nos episódios Once Upon a Time
(1961) e Of Late I Think of Cliffordville (1963) da série Além da

124
Imaginação (1959-1964). Porém, cabe recordar: a viagem no
tempo relaciona-se com as noções de Tempo contemporâ-
neas, estas compartilhadas globalmente pela expansão do
capitalismo. Sendo assim, não devemos ver o uso de clichês
da temática como elemento incorporado artificialmente em
nossa cultura.
Algo particularmente interessante em Barbosa é a
abordagem de um aspecto da identidade brasileira:
a relação entre o futebol e a experiência coletiva que
engloba política, economia e ideologia nacional. O jogo de
bola como expressão do que é ser brasileiro, e a mescla da
vida cotidiana de enormes parcelas da população com o
esporte é expressa em Barbosa. O trauma nacional não é
a morte de algum ícone da política, ou alguma mudança
traumática de regime (comuns em nossa História), nem a
perda de determinada idealização de uma sociedade do
passado, que se deseja recuperar. Nada disso: o trauma
a ser corrigido - do protagonista, do goleiro Barbosa e da
sociedade brasileira - é a derrota para o Uruguai na final da
Copa do Mundo de 1950 no Maracanã (espaço sagrado da
“pátria de chuteiras”, criado para o evento). A raiz de todos
os nossos problemas estaria na confirmação de que nosso
projeto nacional, como nação multiétnica, o “país do futuro”
e de projeção internacional, fracassaram com a derrota
humilhante, em casa, na Copa de 1950, em um jogo que
estava praticamente ganho, dado o desempenho do Brasil
nos jogos anteriores. A derrota da Copa de 1950, como diz o
viajante no tempo, inspirado nas reflexões de Perdigão, era
o prenúncio e confirmação de que nunca daríamos certo – a
derrota seria eterna, em todos os campos.
Devemos destacar o contexto histórico da produção do
filme, próximo do final da “década perdida”, e da primeira
eleição presidencial da nova redemocratização. Barbosa
é lançado no ano da promulgação da nova Constituição
brasileira, em um país que tentava finalmente se estabelecer
como uma democracia, depois de um histórico político
marcado por populismos, golpes e governos ditatoriais. No

125
contexto da malfadada Copa, o Brasil também tentava se
estabelecer como uma democracia após o Estado Novo, e
o filme traça um paralelo entre os dois contextos, passado
e presente dos anos 80, de forma pessimista. O tom triste
do filme reforça o caráter de derrota do Brasil como projeto
de nação, e uma falta de perspectiva em relação ao
presente nacional: o destino do Brasil e de Barbosa seriam
intercambiáveis – sempre próximos da glória que nunca
chegou ou chegará.
Assistir Barbosa atualmente, como se voltássemos no
tempo, permite compreender como a identidade nacional
associada ao futebol mudou nos últimos anos: o esporte
que deixava o “Brasil vazio nas tardes de domingo” é, cada
vez mais, apenas um na lista de eventos de entretenimento
disponíveis para as pessoas que podem pagar. O futebol
passa por um processo de elitização que em breve tornará
difícil para as novas gerações compreenderem como um
mero esporte pôde, um dia, representar tanto a alma de
um povo, misturando-se com a tragédia da vida diária, às
sobrevivências e alegrias da maior parte da população em
um país marcado por desigualdades e injustiças. Os noven-
ta minutos de jogo, que encarnavam a alma nacional, vêm
sendo substituídos, cada vez mais, pela relação cliente e
fornecedor, tão espontâneas como comentaristas esportivos
austeros e departamentos de marketing. Seja como for, uma
coisa é certa: mesmo com a mudança de status do futebol
na nossa identidade, o sentimento de derrota como nação
ainda não foi superado.

126
Arthur Lins é professor de Montagem no
curso de cinema da UFPB. Possui experiência no
campo do audiovisual desenvolvendo atividades
teóricas e práticas. Atua como diretor/roteirista/
montador, tendo realizado filmes exibidos e
premiados em importantes festivais nacionais.
Doutorando no PPGCINE/UFF com pesquisa
voltada para o cinema contemporâneo brasileiro
em diálogo com o gênero de ficção-científica.

progresso em desordem: Montagem dialética como abertura


No cinema contemporâneo brasileiro, em seu caráter
mais independente e inventivo, um conjunto de filmes se
destaca ao dialogar com o gênero da ficção científica em
seus aspectos narrativos e estéticos. Acreditamos que ao
abrir espaço para o campo da fabulação, através sobre-

a poética do caos em Era uma vez Brasília


tudo de suas narrativas distópicas, filmes como Era uma vez
Brasília (2017), de Adirley Queiróz, e Sol Alegria (2018), de
Tavinho Teixeira, emergem como um mapeamento do ima-
ginário disruptivo, e tornam possíveis uma subversão dentro
de determinada ordem política e simbólica.
O que esses filmes parecem buscar em suas tramas elíp-
ticas e na (des)articulação do material filmado são estraté-
gias de estranhamento, seja a partir das evidências de uma
sensibilidade apocalíptica que se impregna nos espaços,
revelando um caos em formação; dos jogos de variações
temporais que interrompem qualquer continuidade fluida
e orgânica; da temporalidade interna ao plano ou a uma
ação que se prolonga na espera/expectativa; nas sobrepo-
sições de tempos em uma mesma camada narrativa ou na
Ensaios - Opara

convocação de um tempo não histórico, de caráter mítico.


Cabe investigar, nesse gesto de subversão aparente,
como tais estratégias podem renovar os seus efeitos e agir
em seu potencial disruptivo ou, antes, como elas agem
Arthur Lins

dentro de um regime estético das artes, e o que acionam


enquanto gesto político em um contexto de desmonte ge-
neralizado da democracia e de desarticulação no campo
das esquerdas.

127
Ao se debruçar sobre o trabalho poético de Bertold
Brecht, desenvolvido em seu exílio entre 1933 e 1948, o filó-
sofo George Didi-Huberman nos mostra como o processo de
escritura se forja na tomada de uma posição. Posição que
diz respeito ao lugar em que o artista se encontra diante do
mundo, e em suas táticas de produzir um pensamento a par-
tir de determinadas condições de saber, de conhecimento.

“Para saber é preciso, pois, manter-se em dois


espaços e em duas temporalidades ao mesmo tem-
po. É preciso “implicar-se”, aceitar entrar, afrontar, ir
ao coração, não bordejar, decidir. É preciso também
– porque o ato de decidir acarreta isso – “afastar-se”
da violência do conflito, ou então ligeiramente,
como o pintor quando se afasta de sua tela para
saber em que ponto está seu trabalho [...]. Esse movi-
mento tanto é ‘aproximação’, quanto ‘afastamento’:
aproximação com reserva, afastamento com desejo”.
(HUBERMAN, 2017, 16)

É o movimento que age nas duas direções que cria as


possibilidades de um saber. Na imersão pura nada se sabe,
na abstração total tampouco. O que este movimento sugere
é a dialética de um pensamento crítico, de um saber que
se produz no enlace com o mundo, com seus fatos, seus
acontecimentos, seu cotidiano em constante produção, mas
também na reserva de um espaço poético onde as coisas
podem ser rearranjadas, dispostas em novas ordens, (des)
montadas até que “as ‘desordens do mundo’ - objeto central
da arte, segundo Brecht - possa dar lugar a algo como um
‘caos composto’” (HUBERMAN, 2017, 76).
“Compor o caos”, fazendo da montagem a arte da dialé-
tica que cria as distâncias, para que a contradição possa
emergir no interior de uma unidade. No cinema de caráter
mais narrativo, seria aquilo que se interpõe entre a trama e a
fábula, fazendo ver as articulações que agem desmontando a
lógica da causalidade para revelar a desordem em processo.

128
Mas como pensar o caos como uma categoria políti-
ca? O que a desordem pode fazer surgir em nosso tempo,
alargando uma experiência sensível? Os filmes Era uma
vez, Brasília (2017) de Adirley Queirós e Sol Alegria (2018),
de Tavinho Teixeira, feitos dentro de um cenário político de
instabilidade e de desmonte generalizado, propõem rea-
ções no campo estético, mas não soluções ou programas no
campo político. São máquinas de guerra, que podem con-
frontar uma ordem instituída e uma ideologia reacionária na
lógica da representação, mas que só efetuam a sua força
(des)mobilizadora agindo em desacordo com um sistema
que sobredetermina as formas de vida e os tipos de imagem
que devem abastecer um dado aparelho produtivo.
O efeito de estranhamento só pode acontecer na medi-
da em que abre espaço para que a desordem seja vislum-
brada como uma poética em ação. Se no distanciamento
Bretchiniano – comprometido com um programa de revolu-
ção estética – algo tem que ser mostrado para que a ilusão
se desfaça, e a tomada de consciência possa engajar os
espectadores na luta pela implementação de um sistema
socialista, aqui o momento é outro.
Não se trata mais na crença de uma vanguarda artística,
e de uma revolução total nas formas de vida. Tampouco de
uma denúncia da sociedade do espetáculo e da indústria
cultural. Não se trata de tomar partido, mas sim de demar-
car posição, aguçar a escuta ao redor, multiplicar os pontos
de vista revelando novas geografias, implicar os corpos no
gesto da encenação. Recolher os cacos de uma catástrofe
em andamento, para fazer surgir uma imagem dialética que
perfure a história dos vencedores, criando as condições para
que o saber seja possível, não como acúmulo do pensador,
mas como práxis, ação transformadora engendrada pela
feitura e experiência fílmica.
É o que vemos em Era uma vez Brasília (2017) de Adirley
Queirós, que ao lado de Branco Sai, Preto Fica (2014), seu fil-
me anterior, forma um díptico sobre o cotidiano da experiên-
cia distópica nas vivências periféricas do Brasil. Em ambos

129
os casos se tratam de viagens no tempo, onde personagens
do futuro se perdem em suas missões e acabam caindo no
tempo presente, na Ceilândia, distrito localizado no entorno
de Brasília, capital do País, e região em que vive o realizador
dos filmes.
O filme de 2017 se passa no ano zero pós-golpe,
numa referência direta ao golpe parlamentar de 2016,
que destituiu a presidenta em exercício Dilma Rousseff.
Toda a trama é costurada por trechos sonoros reais que
revelam gradativamente um processo de impeachment
em andamento, sendo tecido pelas instâncias jurídicas e
políticas que ocupam os centros do poder, episódio recen-
te da história brasileira. No final do processo, e do filme,
Michel Temer assume a presidência e lança o seu projeto
de governo intitulado “ponte para o futuro”, com medidas
de ajustes de contas e controle fiscal claramente aliados
às elites econômicas e contrário a qualquer perspectiva de
melhoria para a classe trabalhadora.
Se em Branco Sai, Preto Fica, havia uma trama de vin-
gança que se desenhava ao longo da narrativa para culmi-
nar em um clímax. numa catarse possível para populações
periféricas e oprimidas historicamente (mesmo no plano do
imaginário e no campo do sensível), Era uma vez Brasília
extrai sua força no gesto de negação, de recusa em aderir
a qualquer narrativa que possa conectar os fatos em uma
mesma continuidade. Diante de uma ruptura de tamanha
proporção, a força possível e estética do cinema não seria
disputar uma narrativa em curso, mas sim suspender, mesmo
que momentaneamente, a lógica que garante ao cinismo
dos discursos e processos políticos o direito de seguir exis-
tindo em seu equilíbrio aparente
A narrativa do filme sofre os abalos do golpe em sua
própria estrutura mutilada, incerta, vacilante, desarticulada.
Não se trata de narrar o golpe - pois isso já está sendo feito
pelas narrativas históricas, pelas narrativas da disputa do
poder em curso -, mas sim de assumir radicalmente o golpe
como um corte, uma ruptura, um estado de instabilidade

130
que possa revelar a precariedade do discurso que legitima
a continuidade da existência do poder.
Não se trata apenas de uma revolta contra o golpe de
2016, ou contra a traição de um partido a seus eleitores, ou
de uma liderança traída por seus aliados. A revolta é con-
tra todo um pacto continuado, ao longo de uma história
de exploração e de opressão sobre os povos subjugados
pelo poder, pelos interesses das elites dirigentes, pelo
racismo estrutural, que fundam uma sociedade baseada
no patriarcado. Diferente da revolta que culmina na ex-
plosão em Branco Sai, Preto Fica, a revolta em Era uma vez
Brasília vem de um lugar mais profundo e caótico, que só
pode ser vislumbrado como contemplação de uma catás-
trofe em andamento.

131
Ao distinguir a forma como o desejo utópico se deixa ver
entre a ficção científica e as narrativas genericamente co-
nhecidas como “Fantasia”, Frederic Jameson em seu estudo
sobre o gênero, “Arqueologías del futuro” (2009), nos oferece
uma reflexão sobre a historicidade deste a partir do reco-
nhecimento de seus diferentes modos de representação.
Jameson propõe uma periodização da ficção científica
que leve em conta uma perspectiva sincrônica, sistêmica, ao
invés da perspectiva diacrônica, de caráter linear. Nos inte-
ressa notar como essa perspectiva sincrônica se estabelece
enquanto modo de representação que possa substituir a li-
nearidade das causas e consequências, por um sistema mais
progresso em desordem: A Fase Estética no gênero da

complexo e aberto às suas múltiplas relações. Ele designa


esse sistema como uma rede de relações causais que ocor-
científica e seus lampejos em ‘Sol Alegria’

rem simultaneamente, o que Hegel (1975) veio a denominar


de “base”, onde todas as causas já se encontram em relação.
Jameson passa então a refletir sobre o modo de represen-
tação visível em cada fase da constituição do gênero, numa
perspectiva sincrônica. Ele parte de uma primeira categori-
zação proposta pelo escritor Isaac Asimov, que compreende o
gênero a partir do início até meados do século XX. Ele sugere
obras de destaque como pontos de ancoragem, mas ressalta
que a sua preocupação é da ordem das possibilidades de
representação, e sua emergência em cada fase.
Asimov sugere que a primeira fase estaria ligada à Aventu-
ra, ou série espacial, e seria derivada da obra de Júlio Verne. A
segunda fase estaria mais ligada à representação da própria
Ciência, sua imitação dentro do gênero literário, e seria popu-
larmente difundida a partir de revistas de grande alcance po-
Ensaios - Oficção

pular, como a Amazing Stories, publicada por Hugo Gernsback


a partir de 1926. Seria a fase propriamente científica do gênero.
A terceira fase surge a partir dos anos 50, e seria marcada pela
Sociologia, servindo como sátira social ou crítica cultural.
Arthur Lins

Jameson prossegue essa categorização sugerindo três ou-


tras fases. A partir dos anos 60, principalmente com a obra de
Philip K. Dick, teríamos uma etapa marcada pela subjetividade.
Em outro ponto de sua reflexão ele sugere que na obra de Dick

132
os personagens passam a fazer uso de psicotrópicos que po-
tencialmente difundem experiências sensoriais ligadas a esta
subjetividade. Também no que se refere a isto, Jameson ressal-
ta o ponto de virada do gênero a partir da renovação do texto
utópico dentro de uma perspectiva feminista, onde emergem as
questões de representação de sociedades onde a problemáti-
ca do gênero estabelece novas relações de sentido dentro de
quadros especulativos de uma nova ordem geopolítica.
A partir dos anos 70 ele sugere uma etapa mais liga-
da à própria noção de estética, ou ficção especulativa. Ele
associa este momento, nos EUA, à obra de Samuel Delany.
E por último, a partir de Neuromancer, de William Gibson
(1984), o Cyber Punk surge como consequência de uma onda
neoconservadora e da emergência da globalização, mas
também como reação à proliferação da fantasia enquanto
gênero maior dentro do terreno da cultura de massa.
A partir desse quadro de periodização, nos interessa
sobretudo pensar o que ele designa como fase Estética, pois
alude diretamente a outra noção que sugere que os mo-
mentos “estéticos” de uma obra seriam uma espécie de sus-
pensão utópica dentro das narrativas do gênero. Em Asimov,
ele busca uma imagem que possa representar o que seria o
prazer estético, descobrindo na descrição do clímax de seu
livro Anoitecer (1990): “la jouissance do excesso imaginário e
também da multiplicidade” (JAMESON, 123).
Ele propõe então um diálogo com a teoria estética de
Adorno, que sugere os fogos de artifício como protótipo da
temporalidade da arte, pois sua existência fugidia surge
como mera aparição, um lampejo que ilumina uma “cons-
telação” de sentidos, evocando a teoria de Benjamin e seu
conceito de aparição histórica.
É este lampejo, que emerge a partir da percepção esté-
tica dos filmes estudados, que nos parece demonstrar uma
poética do caos e uma força de vidência que aponta para
a dimensão utópica inerente às distopias em movimento no
cinema brasileiro. Para abrir espaço a estes lampejos, siga-
mos o rumo de Sol Alegria (2018), de Tavinho Teixeira.

133
Lembremos o enredo: 2018; em um país governado por
uma ditadura conservadora de matriz evangélica, uma
excêntrica família embarca em um roadmovie no intuito de
fornecer armas às células guerrilheiras em estado de resis-
tência, e atravessar o portal que os levará a um lugar mítico.
Acompanhamos então o Pai, a Mãe, o Filho, a Filha e o To-
reba, em um percurso arquetípico em que o núcleo familiar
é o lugar ambíguo onde coexistem as forças libertadoras
de arranjos revolucionários e das coletividades emergentes,
mas também as forças de opressão e os assujeitamentos
característicos de uma conhecida e velha ordem patriarcal.
Porém, mais do que na trama proposta, é no plano da
composição que a utopia se faz mais forte, e a poética do
caos mais presente. A beleza formal do filme em seus pro-
cedimentos estéticos, se faz na relação de um movimento
de câmera que desliza pelos espaços, e nas articulações
dos planos que criam raccord em todas as direções. O ápice
dessa poética relacional se encontra nos planos compostos,
com muitos personagens, e na construção de espaços labi-
rínticos, vistos em profusão na sequência do convento, onde
a calma de uma parada e a alegria dos encontros contagia
o andamento do filme e ressalta o seu caráter musical.
De um quarto, passamos para outro, e então por um
jardim, daí para uma estufa de plantação de maconha,
para um porão, atravessamos a sala de jantar com sua
vasta mesa, passamos por baixo dela e seguimos para um
estábulo e para outro jardim. Em todos os espaços há sem-
pre planos conjuntos, corpos habitando em harmonia, uma
celebração do prazer e do êxtase de estar junto. O espaço
torna-se liso, desliza em várias direções, revelando sempre
outros, criando uma geografia multifacetada. Há uma alu-
são aos afrescos, à arte sacra, ao barroco. A utopia do filme
se encarna no excesso de suas figurações, na frivolidade
das situações, no coro que canta em conjunto.
Essa beleza seria por demais harmônica, caso não hou-
vesse uma inquietação que age de forma subterrânea em toda
essa sequência, e que gruda de forma inevitável nesta fábula

134
ensolarada. É a dimensão da guerra. Pois se os inimigos estão
no poder, suas forças de opressão precisam ser vistas, sentidas
como aquilo que deve ser expurgado, pois intolerável, algo que
pesa sobre as vidas impedindo a livre circulação dos prazeres
e do estar junto. Na cena que ocorre na estufa de maconha,
quando diversas freiras estão ocupadas cuidando da produção
de cannabis coletiva, a Mãe sente o aroma da erva enquanto
uma delas, mais velha, esquece o fio da meada da conversa e se
pergunta sobre o que estava dizendo, em uma condição familiar
aos usuários da planta em seus lapsos de esquecimento. Mas ra-
pidamente ela encontra algo na memória, e nos diz sobre o que
tudo se trata: ‘É a guerra. É a guerra.”, e sorri com canto da boca.
A guerra traz consigo seus mortos, suas histórias de con-
flito e de violência. As imagens também nos servem para
lembrar das guerras, para nos fazer lembrar do passado,
dos atos de resistências e das catástrofes que se acumulam
e se avolumam no presente, na política, que é, como disse
Foucault, a guerra continuada por outros meios.
O inimigo figurado é facilmente abatido logo no início
da trama – o evangélico candidato a senador -, ou então
ridicularizado como uma força inoperante, patética – os
policiais que os perseguem nas estradas, e recebem uma
chuva de merda da Filha e do Filho. O interesse do filme não
é figurar o inimigo – pois ele já foi incorporado na formação
dos desejos, nos mecanismos psíquicos, na sujeição social
- mas sim fazer ver o tamanho da luta em sua dimensão his-
tórica e em sua configuração no campo da fabulação.
A narrativa abre espaço para subjetividades desviantes,
para os corpos perseguidos, para os modos de vida que
confrontam a ordem em sua sede de imposição da moral
reacionária e conservadora. O filme se abre em sua capaci-
dade de mover uma anarquia dos sentidos, e na orgia alegre
dos encontros frívolos e musicais, mas é na lembrança da
guerra que subjaz a sua potência de luta que pode conta-
minar a beleza em sua fulguração exuberante e festiva, fa-
zendo emergir a poética do caos e as desordens do mundo
em ebulição.

135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1;
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Do caos ao cérebro. In: O
que é filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.
DIDI-HUBERMAN, George. Quando as imagens tomam
posição: olho da História, I. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2017.
JAMESON, Frederic. Arqueologías del Futuro. Madrid: Ed.
Akal, 2009. SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fic-
tion: On the Poedtics and History of a Literary Genre. New
Haven: Yale University Press, 1979
2;
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Do caos ao cérebro. In: O
que é filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.
DIDI-HUBERMAN, George. Quando as imagens tomam
posição: olho da História, I. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2017.
JAMESON, Frederic. Arqueologías del Futuro. Madrid: Ed.
Akal, 2009. SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fic-
tion: On the Poedtics and History of a Literary Genre. New
Haven: Yale University Press, 1979

136
Ensaios - Por um mundo a ser parido: sobre Solon, de Clarissa Campolina
Criado entre o litoral de São Vicente e o interior
de Miracatu, Leo Sabanay é formado em audiovisual
pelo Centro Universitário Senac (SP). Trabalhou
como monitor do LabDoc pela Universo Produção e
organizou a mostra Cinema e Sonoridades na Gráfi-
caFábrica no bairro da Água Branca em São Paulo.
Realizou dois documentários independentes no
município de Miracatu junto ao coletivo Vagalumes,
e atualmente trabalha como freelancer de edição
de vídeos, e faz parte da organização e curadoria
do FOFI - Festival Online de Filmes de Inquietação

Neste filme, em que não temos indício algum sobre o


território onde nos situamos, a chegada de um corpo ir-
rompe sobre uma paisagem árida. Como em muitas obras
de ficção científica, as propriedades físicas e químicas do
cenário prosperam na experiência sensorial. Porém, o que
há de particular neste curta de Clarissa Campolina (2016) é
o lugar onde o espectador está determinado: entre a escuta
e a exploração visual, em uma trama sem contextos, regida
por camadas e texturas sensíveis que inventam o encontro
do corpo com o espaço.
Com o filme vamos tomando conhecimento da topo-
grafia deste ambiente, enquanto nosso olhar investiga a
imensidão como um astronauta missionário captando as
essências de outro planeta. Temos em planos mais aberto o
solo arenoso, as formações de feições erodidas e, em planos
mais fechados, a dimensão das movimentações na vida dos
vegetais que surgem deste solo.
Ainda no início, vemos este corpo estranho tatear seu
entorno - é ele quem nos coloca em relação ao mundo que
Leo Sabanay

vemos. Sua aparição provocada por uma queda neste ce-


nário desértico nos remete tanto a um repertório de filmes,
que nos fazem aterrissar em um desconhecido planeta,
quanto a outros que imaginam a origem do nosso mundo (e
a nossa origem neste mundo). Essa presença virgem provoca
o florescimento de outras imagens para este lugar, onde a

137
natureza antes hostil entra em processo de simbiose com o
corpo-criatura: transformação mútua. Vemos água jorrar de
seus braços, formando os primeiros leitos que escorrem sobre
a terra e o impacto líquido altera o estado infértil do local.
A dimensão que temos do tipo físico em mutação, que
vibra a cada passo, se dá por um trabalho de performance
de Tana Guimarães, assim como o desenho sonoro assinado
pelo duo O Grivo, sendo aspectos delineadores das tensões
e mistérios construídos neste trabalho. Como se a elabo-
ração fílmica através dos sons, enquadramentos e movi-
mentação do corpo sugerissem o surgimento de um lugar
onde é possível enraizar, onde acompanhamos os estágios
que renovam a forma física da criatura monstruosa e seu
entorno. O que importa aqui é experienciar, junto à perso-
nagem, o contato com o desconhecido, e se deixar afetar
pelo desenvolvimento de tudo que vemos. Diferente do re-
ferencial clássico das narrativas de ficção científica, onde a
escolha de artifícios estéticos pontua presenças estranhas,
mas quase sempre em relação à uma dimensão humana (a
crise antropocêntrica), nesta obra tudo é gerado por uma
motivação estética-sensorial, onde os efeitos visuais e a tex-
tura sonora são critérios primordiais para a elaboração de
existências e relações criadas neste mundo em concepção.
Na história do cinema, o gênero de ficção científica
se desmembrou em vertentes influenciadas pelos avanços
tecnológicos e/ou científicos e pelas tensões políticas e so-
ciais que entraram em erupção ao longo do século XX. Essa
cinematografia muitas vezes deu nomes e criou contextos
para um inventário de novas geografias intergalácticas,
fenômenos estrangeiros que aterrissaram no planeta terra,
mutações geradas por experiências científicas ou proje-
ções de modelos distópicos de um mundo futuro, vide as
animações de René Laloux, e filmes como Star Wars (1977),
Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977), Godzilla (1954) e
Blade Runner (1982). Em Solon, partimos da condição da não
denominação que nos permite assimilar o que é inventado
pelo filme, onde a experiência sentida pelo espectador é a

138
de atravessar este lugar junto à criatura que, metaforica-
mente, se assemelha a um bebê ou a um inseto que acaba
de sair do casulo graças ao impacto de sua relação com o
espaço. Tudo é novo e se renova a cada gesto, e o imaginá-
rio da ficção científica é colocado pela bagagem sensorial
inventada pela estrutura da obra, portanto, o acompa-
nhamos, nascemos e vemos o nascimento das coisas neste
mundo em processo.
A água é o elemento que funda novas paisagens e
o corpo transmutado em mulher. Ela encara um oceano
e partilha com ele este território, enquanto vemos a ruína
de um farol que já havíamos visto no início, quando tudo
ainda era árido. Este farol se assemelha às propostas que
Chris Marker sugeria em La Jetée (1962) quando abordava
uma terceira guerra mundial com imagens dos escombros
resultantes da segunda guerra: seria este local a projeção
de um ambiente onde a atividade humana e a gestão dos
homens colapsaram com o organismo do planeta? Diferente
do filme de Marker, não vemos humanos sobreviventes aqui
nem debaixo da terra. A relação com as imagens que nos
surgem em Solon é como a do misterioso homem que pro-
tagoniza La Jetée e suas memórias - servem de dispositivo
em suas incursões ao passado. O ato de lembrar das coisas
que não existem mais como conservação de outros tempos,
no caso da obra de 1962, é o que determina a relação com
as imagens colocadas, que nesta fábula sci-fi se ergue por
outro movimento, justamente o de associar as imagens do
mundo material que conhecemos, e perceber que se tratam
de outros solos, outra natureza, outros estágios de mundo.
Nossa fruição é a de ver os elementos que constituem a nar-
rativa, e entendê-los como novas formas de um ecossistema
a se configurar.
A ideia criada na crença da extinção humana parte
de uma premissa real, pois estamos diante do que cientis-
tas e indígenas reconhecem como o resultado da atividade
predatória do planeta. O antropoceno é o agora, e Solon
sugere um mundo a se (re)inventar. O planeta é um orga-

139
nismo vivo que (re)nasce quando posto em contato a um
corpo estranho a este lugar - a criatura que se torna mulher
contempla a existência de um cenário sem homens, onde o
mar se integra com a terra e dá sentido ao vestígio humano
no torto farol abandonado, assim criando relações com um
passado a se imaginar e um futuro a se desenvolver, nesta
fabulação de um lugar embrionário em que a vida é gesta-
da a partir da presença feminina, entre o corpo-mulher e a
natureza concebida.

140
Milene Migliano investiga práticas contra-
-hegemônicas ativistas, transfeministas, imagens,
imaginários. Pós-Doutoranda no Grupo de Pes-

Ensaios - “O futuro é ancestral”1 ; a ficção científica é experiência


quisa Juvenália: questões estéticas, geracionais,
raciais e de gênero em comunicação e consumo,
do PPGCOM ESPM-SP. Participa do Grupo de
Estudos em Experiência Estética, Comunica-
ção e Artes – UFRB e da Associação Filmes de
Quintal; é jornalista, produtora e professora.

À margem do universo2 está o planeta Terra, sem sinal


de vida inteligente, espaço que parece abandonado por
um uso inconsequente de seus recursos naturais. Os resul-
tados incontornáveis foram ocasionados por uma guerra
bioquímica, suspeita a Comandante Wami, inteligência
maquínica do curta-metragem independente dirigido por
Tiago Esmeraldo (2016). O desastre impossibilitou a exis-
tência de ar respirável. A informação que a comandante
consegue decodificar e comunicar à unidade orgânica de
exploração Adawá, causou-me enorme desconforto quan-
do vi o filme pela primeira vez, participando de uma sele-
ção de filmes para o Festival Mimoso de Cinema, no sertão
oeste da Bahia. A iminência do aquecimento global3, um
problema ambiental maior do que o coronavírus que nos
assola hoje, associada à inação para reverter o consumo
exacerbado dos recursos naturais, preocupa-me ainda
mais. Recordei-me de ver em mídias distribuídas pela inter-
net, talvez em 2011, chineses usando máscaras por conta
da qualidade do ar em suas grandes cidades; estremeci,
desejando que tal situação não chegasse até nós; mas a
Milene Migliano

pandemia de 2020 fez chegar.


No planeta Terra do curta-metragem, Adawá, nossa
protagonista, caminha com uma armadura que exerce
controle e vigilância sobre sua condição de vivente.
Informa a respeito do ar e energia ainda disponíveis,
conecta-se diretamente com a comandante máquina,
e é reconhecida pelos sistemas informatizados da nave

141
que a trouxe até a atmosfera. A primeira cena do filme é
um plano fechado no rosto da personagem enquanto é
acordada em um ambiente líquido, buscando a respira-
ção num suspiro sufocado, acompanhada da mensagem
de que a unidade orgânica foi ativada. Adawá é uma
mulher negra, interpretada pela atriz e diretora camaro-
nense Petra Sunjo, que tem, entre as caracterizações de
seu personagem, o olho direito alterado por uma lente
branca, restando apenas a pupila como um ponto escuro
no globo ocular. Este olho faz parte do controle neural
que a monitora. Ele é uma máquina de reconhecimento de
dados, imagens e situações do que se encontra com ela,
Adawá, durante a atividade de exploração do planeta.
1_ Silvane Silva, p.22 do Prefácio à edição brasileira do livro “Tudo sobre. Amor, no-

A língua com que se comunicam quase o tempo todo é


a falada pela etnia indígena Suruwahá4, povo que vive
no médio Purus, no Amazonas. Segundo a última cartela
do filme, em 2017, haviam apenas 140 sobreviventes desta
cultura, que corria risco de extinção.
vas perspectivas”, de bell hooks. São Paulo: Editora Elefante, 2020.

O que pude saber do povo originário Suruwahá4 é que foi


dizimado pela gripe trazida no contato com os seringueiros,
no início do século XX. Ao final dos anos 80, suas relações
com os brancos são retomadas, primeiro pelos missionários,
2_Título do filme de 2017 sobre o qual esse texto se

depois pela FUNAI, que estabelece relações mais amistosas,


reconhecendo suas particularidades culturais. A língua
falada pelas personagens que passam mais tempo conosco
no curta, a comandante Wami e a unidade orgânica de
exploração Adawá, criam uma fantasia real de desconhe-
cimento dos seres intergalácticos. Seus nomes se referem a
seres da cosmologia Suruwahá, conhecidos como Zuruahã,
em português. Durante o filme nosso ouvido se intriga e de-
seja reconhecer esta nova língua, recurso que nos conduz a
um estímulo para desejar o usufruto da obra. Ao final do filme
sabemos que a atriz que interpreta a comandante Wami é
Inkiri Suruwahá, imagino indígena do povo em questão. Des-
taco ainda que a cultura deste povo se relaciona a encontros
mágicos, e não acha valiosa a vida ao envelhecer, caracteri-
zando-se por altos índices de suicídio entre os jovens.

142
3_Podcast A terra é redonda, conduzido pelo jornalista Bernardo Esteves, episódio explicativo sobre o aquecimento global além
Ao receber o comando de caminhar em uma direção,

de ser uma aula sobre jornalismo, em luta contra as fake news, https://piaui.folha.uol.com.br/terra-e redonda-pintou-um-climao/
Adawá chega em uma boca de caverna onde adentra,
depois do mapeamento e autorização concedida pela co-
mandante. Com apenas a luz do capacete iluminando o per-
curso, que faz curvada, Adawá chega até uma parede com
estruturas construídas, e começa uma leitura do banco de
dados onde encontra registros de seres orgânicos viventes,
que falavam uma língua espontânea; ali ela entra em con-
tato com informações e produtos culturais dos terráqueos,
leitura que vislumbramos com seu olho maquínico vibrando
e quando, ao final de um processo de reconhecimento, fala
português. Seu sotaque é conhecido pela primeira vez.
O mito da caverna de Platão me arrebata com o encon-
tro da silhueta de Adawá na entrada da gruta, sem saber
para onde ir, depois que a comandante perde o contato
e o controle neural de seus passos. O filósofo grego conta
sobre prisioneiros em uma caverna, que sempre imagina-
ram o mundo a partir das sombras produzidas do lado de
fora. Quando um deles se liberta e percebe a imensidão de
possibilidades da realidade na qual as sombras projetadas
na parede são produzidas, encontra um dilema ético: deve
voltar e avisar aos outros prisioneiros, ou aproveitar sua
vida? Adawá decide caminhar acompanhada de uma trilha
sonora que nos leva em uma viagem fluída no terreno com-
plexo que é seu caminho. Pedras, pastos vazios, escarpas e
riachos integram a multiplicidade. Depois do encontro com
os orgânicos que habitaram esse planeta, Adawá decide
por si só, pela primeira vez, o que deve fazer.
Na manhã seguinte, a conexão for restabelecida com a
comandante Wami. A notícia que recebe é de que seu nível
de energia está baixo, seus pulsos estão limitados a 150 mil,
o tempo era assim contado entre elas. Recebe ordem para
ir em direção à um pulso eletromagnético e chega até Zay,
que na primeira imagem é um corpo boiando no riacho. Zay
é uma unidade orgânica de exploração que estava na mes-
ma nave que ela, do gênero masculino, branco, também tem
o capacete e o olho maquínico branco e é salvo por Adawá.

143
Quando sua vida é restabelecida com ajuda da coman-
dante, ele diz que a nave foi atacada, e que seu braço es-
tava lesionado. O controle de seu capacete é restabelecido
pela comandante Wami, e seu nível de energia também está
baixo. Na noite que passam juntos, os capacetes iluminados
revelam seus rostos e sua conversa é um elogio à humanida-
4_Pesquisa realizada na enciclopédia “Povos Indígenas do Brasil”, produzida pelo ISA – Instituto sócio am-

de, do começo ao fim. Adawá começa indagando como ele


havia se sentido sem o controle da comandante maquínica.
Diante de seu silêncio, revela que desde que a conexão foi
perdida com a comandante, Adawá tem se perguntando se
obedece ou não aos comandos. Comenta que os humanos
biental, acessado em 21/02/21 em https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Zuruah%C3%A3

eram como eles, cuidavam um dos outros, mas não sabiam


totalmente de suas capacidades: “eram egoístas, mas tam-
bém gregários”, “buscavam amor, respeito e confiança”, e
amavam as estrelas, ela responde quando Zay pergunta de
sua relação com elas.
Na manhã seguinte, Adawá está sendo sufocada pela
comandante Wami; quando Zay acorda, Wami avisa que
está fazendo uma transferência de energia dela para ele,
da mulher negra para o homem branco, situação repetida
inúmeras vezes no mundo ocidental construído a partir da
escravização dos povos africanos e da diáspora forçada
deles para outros continentes. A comandante Wami conclui
o argumento acerca do porquê Adawá logo ficará sem vida:
ela não parecia mais confiável. A tensão se estabelece.
Adawá diz para Zay que desconecte um dispositivo aco-
plado nas costas do capacete, Wami aplica choques para
contê-lo: ambos estão deitados se contorcendo no chão.
De repente, o capacete de Adawá é liberado, uma voz
de comando feminina fala em português com um sotaque
cadenciado como os de cariocas. Zay é liberado em segui-
da. Ao ser indagada sobre o que eram, a voz responde que
é a humanidade que está ali, dando-lhes boas-vindas, e
explicam que precisaram maquiar os dados e confundir a
unidade de inteligência
maquinal que buscava explorar o planeta: eles haviam
sido direcionados para o setor inabitado da Terra. A inte-

144
ligência que conversa simultaneamente com Adawá e Zay
finaliza: “somos a humanidade, e este planeta nos pertence”.
O elogio ao futuro, e à humanidade no filme, me fez re-
memorar as palavras de Octavia Estelle Butler5: “Para onde
estamos indo? Que tipo de futuro estamos criando? É esse o
tipo de futuro que você quer viver? Se não for, o que podemos
fazer para criar um melhor? Individualmente ou em grupos,
o que podemos fazer?”. Como uma estrela guia diante de

5_Octavia Estelle Butler, p.422, em “A parábola do Semeador”. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.
muitos mundos imaginados, seja em suas leituras ou escritas,
a grande dama da ficção científica acerta um pássaro hoje
com uma pedra que jogou ontem, como o Orixá mensageiro
Exu, na crença do Candomblé.
Sem respostas coletivas para tantas perguntas, resta a
motivação do preâmbulo oferecido pelo curta-metragem6,
dirigido por Tiago Esmeraldo: “O universo espera com impa-

6_Link para o filme “À margem do universo”, produzido em 2017, em Brasília:


ciência o despertar do potencial humano”.

https://www.youtube.com/watch?v=0LHayXySbYo&feature=youtu.be

145
João Ferrari dedica-se ao estudo - pos-
sivelmente infrutífero - das relações entre
linguagem, cognição e realidade. Cientista
social e filósofo por formação; físico amador.

Conseguiremos escapar do vício da distopia? Ao longo


de mais de um século desde que o gênero se popularizou,
logramos enfim acostumar nosso paladar à narrativa distó-
pica. Evidentemente, esse processo não ocorreu a despeito
da maré agitada da história ocidental, que vem oscilando
entre descoberta e destruição como num crescendo. Pelo
contrário, parece que aprendemos a apreciar o sabor da
distopia porque a crueza da realidade tem se escancarado
cada vez mais, poupando, assim, o esforço de termos que
suspender o desconforto ante o que é estranho. Distopia
futurista, ecológica, feminista, burocrática– o que antes
figurava como um gênero exótico dentro da grande varie-
dade de narrativas da ficção científica, hoje praticamente
confunde-se com ela. A distopia deixa, então, de ser uma
forma de expressão e torna-se praticamente toda a lingua-
gem através da qual a ficção tem expressado seu humor
político. A metonimização é mais bem expressa, contudo, na
Ensaios - Manifesto utópico

metáfora: se ela já foi especiaria, a distopia é hoje droga.


Droga porque a criação se vê refém tanto do estilo quanto
da estética distópica: trata-se da via mais óbvia quando
se decide por embeber de crítica social e política a ficção
científica. Já está ali, de mão beijada; forma e conteúdo.
A distopia é moral por excelência. Ela é uma denúncia;
um alerta de que o agravamento de certas condições apa-
rentemente inócuas pode desembocar numa catástrofe de
difícil solução. A distopia é, pois, um meio bastante fértil para
fazer crescer o híbrido entre a estética futurista e a moral
João Ferrari

humanista conscienciosa. E é assim que, sem percebermos,


a interlocução formal entre a arte e a política nos impõe a
autoridade dessa narrativa quase justificando a realidade
por meio de uma equação: ficção científica + sensibilidade
crítica = distopia. É digno de nota que essa imposição é ain-

146
da mais tirânica quanto mais aterradora for a realidade que
compõe o entorno. Afinal, como algum “terceiro-mundista”
poderia se engajar numa narrativa futurista sem denunciar
o agravamento dos males que nos afetam no presente?
Afinal, não somos a distopia de algum Brasil passado? Fora
do “centro mundo” a tirania da realidade nos coage a no-
tá-la. E se é difícil ignorá-la, nossa arte deve engajar-se em
transformá-la. Ora, enquanto sobreviventes da periferia do
mundo, nada menos conformista do que fazer da arte um
veículo de crítica e denúncia, certo? Nesse caso, ficção cien-
tífica engajada deve ser distopia.
Bem, vemos a equação surgindo novamente, e dessa vez
com a insígnia moral estampada no rótulo do produto – po-
sicionada, é claro, pelo fabricante. É muito fácil justificar um
vício quando ele faz tanto sentido; o difícil é sair da condi-
ção de dependente. Evidentemente, a distopia, em si, não é
o problema: uma vez ou outra, socialmente – quem nunca?
O perigo, contudo, mora no uso indiscriminado.
Não vou dizer que esgotamos o estilo enquanto recurso,
afinal, quem se arrogaria a capacidade de traçar tais limi-
tes? Não obstante, o problema parece residir justamente em
um tipo de limitação: como qualquer produto de sucesso, a
contrapartida da produção distópica em série é tornar al-
gum elemento escasso. A receita da distopia é reproduzida
em escala industrial, e funciona da seguinte forma: identifi-
camos uma característica indesejável na sociedade, geral-
mente associada ao uso irrefletido de um tipo de tecnologia,
seja artefato ou prática; ao concebermos um futuro ou linha
do tempo em que o uso dessa tecnologia se desenvolveu
irrefreadamente, elevamos os problemas sociais causados
por essa característica à enésima potência; finalmente, te-
mos um conflito quando a situação se torna insuportável. O
desfecho desse conflito, por sua vez, pode se apresentar de
dois modos: ou a característica indesejável é superada de
uma vez por todas; ou essa superação é frustrada de algu-
ma forma, denunciando que o único tempo histórico em que
o problema deveria ser resolvido encontra-se no passado

147
ou em outra linha (ou seja, o nosso presente – nesse caso, a
moral da história é praticamente soletrada).
Temos então a fórmula tradicional da distopia, basta
apenas embalar e vender. Mas não se trata, aqui, de sim-
plesmente equacionar indústria com decadência – isso po-
deria soar demasiadamente tech noir. Tentemos ainda outra
receita. Mais rústica, sem tantos Adornos.
A receita alternativa leva ao mesmo prato, mas utiliza um
ingrediente mais tradicional. Ela nos lembra que muito da
narrativa distópica tributa a um estilo notadamente cristão –
já vimos esse filme inúmeras vezes. Trata-se de uma doutrina
escatológica, no sentido estrito do termo: uma profetização
de um juízo final inexorável. Nesse quadro barroco, escolhe-
mos um “pecado” aparentemente inofensivo; em seguida,
concebemos um cenário em que o agravamento desse pe-
cado acaba por comprometer a moral de toda a sociedade;
o juízo final surge, então, como desfecho desse crescendo,
e se apresenta também de maneira dual: ou a solução
drástica condena os pecadores e salva os inocentes, ou já
é tarde demais para o indulto, de modo que aquela condi-
ção injusta se arrastará para toda eternidade – como um
limbo. Velha história em nova embalagem. Troque, enfim, os
mantos e sandálias por plástico e neon; a abertura do mar
vermelho pela viagem em velocidade de dobra; os filisteus
por ciborgues.
O estilo cristão se distingue por extrair redenção do so-
frimento da espécie humana. E nesse sentido a narrativa
distópica da ficção científica parece apenas uma roupa-
gem neo-noir com a qual vestimos personagens de mais
de dois mil anos atrás: uma parábola. Nessa parábola,
amplificam-se nossos problemas sociais e políticos atuais,
nossa tecnofobia, nossa reticência com a perda de uma
idílica vida em sociedade que, muito provavelmente, sequer
chegamos a vivenciar. Escalamos esse excesso de presente
para enxergarmos como seria o futuro se perdêssemos o
controle das variáveis. E naturalmente o que enxergamos é
um futuro nefasto. Não poderia ser diferente: o que vemos

148
ali é tudo aquilo que devíamos ter rejeitado no passado,
só que destilado, denso, puro. É nisso que reside a força da
mensagem da distopia e, portanto, sua relevância enquanto
linguagem. Trata-se do sabor inconfundível e eufórico desse
tipo de especiaria. E por isso chega a ser difícil pensar em
superá-la: afinal, haveria uma outra forma da ficção científi-
ca apresentar-se como crítica? E poderíamos nós, habitantes
da parte distópica do mundo, atrever-nos a utilizar outro
tipo de discurso – nós, que cultivamos uma intimidade ainda
tão casta com essa linguagem?
Por outro lado, parece difícil concebermos uma alter-
nativa. Tudo nos impele a um tipo de cenário, a um tipo de
estética, a um tipo de narrativa. Essa é a realidade, e parece
até que chegamos a um realismo distópico. Mas é sempre
bom lembrar que já faz tempo que um dos traços distintivos
da arte é não se limitar a meramente retratar o real. Ora,
a arte figurativa já não nos deveria parecer antiquada?
Nesse sentido, vejo essa urgência da denúncia crua – isto
é, urgência em transformar qualquer expressão artística em
um tipo de retrato das condições do presente – como um
fator limitante à criação. E o recente sucesso comercial das
narrativas distópicas, por sua vez, apresenta-se como um
obstáculo para uma arte que não se pretende figurativa:
afinal, a distopia já se tornou uma linguagem de tão fácil
digestão; a estética vende tanto; dá até para transformar
em camisa, jogo, brinquedo do McLanche Feliz... afinal, por
que não abusarmos daquilo que, há muito, deixou de ser o
tempero para tornar-se o produto?
Olhando para todo esse cenário, surge então a dúvida:
será que nos encontramos numa distopia das distopias, na
qual falarmos de ficção e de política significa necessa-
riamente fotografarmos a paisagem cinza do presente e
“futurizá-la” com neon e ferrugem? Talvez a pergunta que
responde essa pergunta seja: por que abandonamos nossas
utopias? Não é pouco o que a preferência pela substituição
desse prefixo diz – ou melhor, denuncia. Se a nossa capa-
cidade de imaginar um futuro mais palatável foi esquarte-

149
jada, catemos então os pedaços; remontemos o monstro;
incrementemos ele; e apontemos suas garras para frente. Já
fomos bons utópicos; já demos coesão a uma massa irregu-
lar, multiforme; enfim, já chegamos a esboçar saídas criativas
para becos estéticos. Mas, se ainda há valor em desenterrar
manifestos tropicais passados, precisamos superar o medo
de que a guitarra elétrica substitua o violão.

150
FICHA TÉCNICA
Antropokaos
Mostra de Ficção
Científica Brasileira

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