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ÁGUAS DO TERRITÓRIO MENDONÇA 1

Fascículo Nova Cartografia Social do Nordeste A coleção Nova Cartografia Social do Nordeste
Águas do Território Mendonça
Número 5 | Ano 2022
compreende um conjunto de trabalhos que registram
mobilizações de Povos e Comunidades Tradicionais
do Nordeste em torno da construção de conhecimen-
tos que possibilitem dar visibilidade aos seus modos
APRESENTAÇÃO
Expediente
de vida, com destaque para conflitos que enfrentam
Periodicidade: Irregular | Idioma: Português
e suas demandas aos poderes públicos. Refletem não
somente a diversidade social e a gama de pontos de
Editorial
vista e suas respectivas práticas, mas, sobretudo, si-
O fascículo “Águas do Terri- Assentamento Santa Terezinha, Ca-
Etnologia, Tradição, Ambiente e Pesca Artesa-
nal - ETAPA tuações de conflito e conhecimentos intrínsecos aos tório Mendonça” é o segundo volu- choeira e Serrote São Bento, locali-
processos reais e às realidades localizadas.
Coordenação Geral me produzido a partir de oficinas, zadas nos municípios de João Câma-
Franklin Plessmann de Carvalho, Juracy Mar- Participantes Atividades Campo Oficinas
ques e Vânia Fialho
das de e das de
encontros, reuniões e caminhadas ra e Jardim de Angicos, na região de
Mapas
Coordenação PNCS/RN
realizadas entre os meses de feve- Mato Grande no Agreste Potiguar
Açucena: Ednete Pedro da Silva.
Rita Neves
Amarelão: Beatriz dos Santos Nascimento, Francisca reiro e agosto do ano de 2021, du- do Estado do Rio Grande do Norte e
Organização da Edição Evania Barbosa do Nascimento, Hugo do Nascimento rante a pandemia da Covid-19, no como as demais áreas indígenas do
Taisa Lewitzki, Ana Maria do Nascimento Mou- Silva, Humeara da Silva Oliveira, Jaciara Soares, Kalia-
ra, Neide Campos, Laura Carolina Borges, Rita ne Raimundo de Souza, Lidiane dos Santos, Liziane Território Mendonça. Nosso territó- estado do Rio Grande do Norte não
Neves, Poliana de Souza Nascimento e Tiane de Campos, Marcelo Oliveira, Maria Ivoneide Campos da
Paiva e Souza Silva (D. Neide), Maria Raissa de Lima Rocha, Milena rio é formado por 900 famílias que é um território demarcado: “São ter-
Equipe do Projeto Nova Cartografia Social (Núcleo
Soares de Souza e Tayse Michelle Campos da Silva. vivem nas comunidades indígenas ras, comunidades, enfim, com proces-
Assentamento Marajó: Aline Felipe de Paula, Amanda
Rio Grande do Norte) Micaelly Felipe da Silva, Ana Carla Bezerra Pinto Fe- “Mendonça Potiguara” de Açucena, sos de construção diferentes.” (Tayse
Taisa Lewitzki, Ana Maria do Nascimento Moura, lipe, Carla Cristina Menezes da Silva, Cristiane Feli-
Laura Carolina Borges, Rita Neves, José Glebson pe, Dainara Góis de Lima, Deize Góes de Lima, Erica
Amarelão, Assentamento Marajó, Campo, Amarelão).
Vieira, Rozeli Porto, Francisco Cândido Firmia- Gabriele Barbosa, Francisco Joseilson da Silva Góis,
no Jr, Adinei Crisóstomo, Lázaro Souza, Manuel Francisco Victor, Jenilson Thyago Elias, José Carlos
Moura e Roberto Carlos M.C. Mendonça de Góis Tavares, José Eduardo Góis da Costa, Kali-
ne Bezerra Felipe, Manoel Henrique Felipe de Paula,
Croquis: Comunidades Indígena Mendonça Po-
tiguara: Amarelão, Assentamento Santa Terezi-
Maria Danielly Góis de Lima, Maria Eduarda Felipe 1 2
nha, Assentamento Marajó e Serrote São Bento da Costa, Maria Eloise Felipe da Silva, Maria Erlanea
Lima do Sitio, Raissa Vitória Silva de Góis e Williane
Elaboração dos Mapas: Poliana de Souza Nasci- Varela do Nascimento.
mento e Tiane de Paiva e Souza Assentamento Santa Terezinha: Anderson Barbosa San-
tos, Brigida de Lima Leotério, Claudiane Pedro do
Fotografias: Taisa Lewitzki Nascimento, Dioclécio Bezerra da Costa, José Ailton
Dias da Silva e Lidiane Rodrigues da Silva.
Digramação e Projeto Gráfico: Ana Paula Arruda
Cachoeira: Claudio Soares, Damiana Soares, Francis-
co Félix, Izabelle Oliveira e Maria Betânia Soares.
CONTATO Serrote São Bento: Dialison Mello, Edna Raquel To-
Divulgação: Etnologia, Tradição, Ambiente e maz, Dona Chiquinha, Genilda Batista da Silva Jus-
Pesca Artesanal - ETAPA tino, Jamily Gabrielly da Costa Silva, Kaline Cassiano
Endereço: CCHLA/UFRN | Departamento de An- da Silva, Maria da Conceição Batista, Rejane Batista
tropologia - ETAPA (Av. Senador Salgado Filho, da Costa Feitoza e Rogério Batista.
3000 – Lagoa Nova, Natal/RN - 59078-970)
Contatos: pncs.nucleo.rn@gmail.com
(84) 3342-2240 Organização do Povo Indígena Mendonça - OPIM
opim22.rn@gmail.com
ivoneideaca@hotmail.com

Ficha catalográfica elaborada por Rosiane Pereira Lima - CRB 11/963


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N935 Nova cartografia social do Nordeste / Águas do território Mendonça, n. 5 (jun. 2022) / Coord.
da pesquisa: Rita Neves e Taisa Lewitzki, Cruz das Almas: EDUFRB, 2022.
Irregular
Coordenação geral: Franklin Plessmann de Carvalho, Juracy Marques e Vânia Fialho.
20 p.

ISSN: 2763-7174

1. Conflitos sociais. 2. Povos indígenas. 3. Processos de territorialização. I. Título.


CDU 39:304

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O primeiro volume do projeto pientes de água da comunidade, pois
da nova cartografia social do Territó- é dele que as famílias retiram água
rio Mendonça, intitulado “Território para gastos esses sendo: lavar roupa,
Mendonça: Práticas, Conhecimentos tomar banho, e passa a ser essencial
e Formas de Organização”, surgiu a na vida dos animais. (Beatriz dos
partir da demanda de professores e Santos Nascimento, Amarelão)
professoras indígenas em produzir Hoje, no nosso território, uma
materiais didáticos/pedagógicos para das principais ameaças é a falta de
educação escolar indígena, por meio água. De água potável tanto para o
5 do curso Ação Saberes Indígenas na consumo quanto para a produção. 8
Escola, bem como do interesse apre- Faz mais de vinte anos que a comu-
sentado por Maria Ivoneide Campos nidade é abastecida por carro-pipa.
da Silva, liderança Mendonça repre- Essas “operações-pipa”, estão cance-
sentante do Amarelão, em atualizar ladas no município de João Câmara.
um mapa já existente, possibilitando A Defesa Civil, ou seja, o exército, não
sua utilização para organização e dis- está abastecendo as comunidades
tribuição de recursos, ações locais e com água. Somente a prefeitura está
diálogo com órgãos públicos. fazendo isso, mas de forma muito re-
Nas discussões e caminhadas duzida. Esse ano, foi mais um ano de
realizadas, destacou-se a questão seca, que não choveu, então, a situa-
da água e suas fontes como ele- ção foi crítica, porque não choveu. Em
6 mento fundamental em torno do 2020, por exemplo, a gente ainda con- 9
qual são agregadas práticas e me- seguiu encher algumas cisternas com
mórias. A disponibilidade ou falta água para consumo humano, mas
de água nas nossas comunidades este ano, ninguém conseguiu encher,
organiza as trajetórias, o trabalho, porque não teve chuva que desse pra
a alimentação, as demandas, en- encher. Então, na nossa comunidade,
fim, a vida cotidiana do povo Men- a principal ameaça é a falta de água.”
donça em seu território. (Neide Campos, Amarelão)
A água é fonte de vida, quando Assim, surgindo como des-
estamos em tempo de inverno jun- dobramento do primeiro volume
ta-se água da chuva para beber, e e partindo das demandas e pers-
gasto quando não tem o acesso a ela pectivas das pessoas que toma-
em nossa comunidade é através da ram parte no mapeamento sobre
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operação carro pipa, e água que vem aquele momento específico, por
da comunidade vizinha Serrote de meio de textos elaborados por nós,
São Bento. O açude no tempo de seca professoras/es indígenas, sobre as
passa a ser um dos principais reci- legendas, bem como das falas de

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A nossa comunidade nem sempre teve cisternas, pois antigamente a
comunidade era abastecida pelas cacimbas, rios e açudes. Mas com o passar
do tempo, chegaram as cisternas para a comunidade indígena, por meio de
projetos das lideranças. Elas são uma riqueza para a nossa comunidade, é
onde guardamos o bem mais precioso, a água que bebemos. Hoje quase to-
das as casas têm uma cisterna, sendo ela cisterna pequena ou calçadão. Elas
melhoram a vida na nossa comunidade. (Claudiane Pedro do Nascimen-
to, Assentamento Santa Terezinha)
A questão da água é os carrinho [carro-pipa] que bota aí na cisterna pú-
blica pra gasto, pra beber a gente tem nossa cisterna pra juntar água no inverno,
cada casa tem sua cisterna pra juntar água doce. (Dona Neném, Cachoeira)
Agosto até finalzinho do ano [tá]esse clima mais seco, lá no finalzinho
de dezembro normalmente tem uma chuvazinha daí cria aquele cenário que a
gente conhece aqui no semiárido como seca verde, tudo fica verdinho, mas na
nossas lideranças e jovens indíge- barreiro, cacimba ativa, cacimba verdade se você parar para analisar, tá seco. Só que a vegetação que caiu ela
nas durante o processo, a presente não ativa, cacimbão ativo, cacim- brotou como se tivesse no período chuvoso. Aí nós temos janeiro, fevereiro, lá
publicação traz essa CARTOGRA- bão não ativo, riacho, poço ativo, finalzinho de março, costuma, entre aspas, se regularizar as chuvas, até junho
FIA DAS ÁGUAS, identificando as poço não ativo; formas de trans- um periodozinho que a gente tem de produção. Terminô, começa esse período
fontes naturais de água e tecno- porte da água: carro-pipa, carroça, agora que a gente está vivendo. (Francisco Ismael de Souza, Amarelão)
logias sociais para seu armazena- carro de mão, moto, botijão, balde, Esse ano a chuva foi muito ruim, se bem que minha mãe não concorda
mento, a fim de problematizar os garrafão; tecnologias sociais de comigo em termos de chuva ruim, segundo ela, teve um pouquinho de chuva,
limites da falta de acesso à água no armazenamento de água: cister- chuva por si só já é boa, não posso usar o termo ruim. Olha, é ruim no sentido
contexto de manutenção do modo na, cisterna pública, cisterna calça- que é muito irregular e muito pouca. Eu sempre discuto com ela em relação a
de vida do povo Mendonça no se- dão, caixa de água pública; pontos ideia de chuva, toda chuva é boa. (Francisco Ismael de Souza, Amarelão)
miárido nordestino. Nesse diálogo, de memória: Tanque de Pedras,
foram coletados pontos de GPS ar- Cacimba Salgada, Açude, Caixa
ticulados nas seguintes categorias: d’Água; conflitos e ameaças: falta 13
fontes de água: açude, barragem, de água/falta de acesso à água.

Aqui Açucena é rica em água, tem um lençol freático aqui, não sei se é
assim que chama e passa por aqui por baixo. Há muitos e muitos anos atrás
vinha gente do Amarelão pegar água de uma fonte aqui soterrada no açude,
pegar água aqui. [...] Na verdade a fonte não está seca, tá soterrada, devi-
do o antigo dono dessa terra criava muito animal e eles foram soterrando,
soterrando, soterrando e os abalos também, tá soterrada. Há muita pedra
em cima da fonte, só que tem muitos verdes, tá sempre verde, se passar dez
anos de seca, que já passaram sete, tá sempre verde. (Ednete Pedro da
Silva, Açucena)

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ÁGUA E MEMÓRIA As cisternas de lona eram pou-


cas, lembro que lá onde Andreia mora
lá nós tínhamos uma, Seu Severino
Rosa tinha uma nesse terreno que ele
Eu lembro que pai tinha umas parece que foi quatro, que eu também mora, não lembro o ano, mas pelo go-
hortas lá na cacimba, e a cacimba era não lembro quando foi porque eu era vernador descobre, era Geraldo Melo
água pra tudo, para beber, para cozi- pequena, mas eu sei que tem porque e o prefeito de João Câmara era José
nhar, para fazer tudo, quando eu era eu já estudei os documentos de lá. [...] Ribamar, era década de 80. Era um
pequena eu lembro daquela água, não Se não fosse essas cisternas, agora eu buraco, não lembro se era a comuni-
era suja, era uma água escura, mas fico lembrando que a pessoa tinha que dade que cavava, tinha uns 12 metros
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você via que era limpinha [...] Eu lem- ir, mainha ia lavar roupa no Açude lá de comprimento e era cavado inclina-
bro disso, lembro que pai tendo que perto de João Câmara, a gente ia na do, daí forrava com uma lona grossa,
pegar água lá em Serrote, pai ia de carroça, era longe que nem a desgra- tipo uma borracha. Aí depois de ca-
carroça com um burro, botava o burro ça, pai botava um monte de roupa, ia vada, botava essa lona e subia uma
na carroça ia pegar os tambor de água mãe, tia Nega, um monte de roupa em parede de alvenaria e a cobertura era
ia lá no Serrote, seis quilômetros aqui cima da carroça e uma ruma de meni-
de madeira com uma telha de brasilit
de casa, e toda tarde ia, tinha dia que no, monte de panela, negócio pra cozi-
de amianto. Tinha uma área de capta-
o poço tava seco, tinha dia que o poço nhar, passava o dia todinho no açude
ção, um piso, que no meio dele tinha
tava quebrado, alguma coisa, mas era pra lavar roupa, lavava roupa, secava
um filtro com carvão, areia, a água
essa rotina de buscar água, depois do tudo e tardezinha vinha embora, por-
caía nesse piso e passava pelo filtro,
tempo da cacimba, foi depois aqui- que não tinha água na comunidade, aí
lo ali. [...] Depois veio essas cisternas, tinha que ir pra lá. [...] (Liziane Cam- nela, nessa alvenaria tinha uma por-
veio pouquíssimas pela Associação, pos, Amarelão) tinha que a pessoa entrava. A nossa
era abastecida com trator da prefeitu-
ra, eu não lembro a capacidade dela.
Eram poucas cisternas aqui. Depois
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as pessoas começaram a fazer elas
de alvenaria, quem tinha condições,
era muito pouco. Nesse período a co-
munidade era abastecida por pipa,
que nem era caminhão era o trator
da prefeitura, o trem que passava e
parava ali na linha. Quando abaste-
cia com o trem, aí quem levava um 17
tambor, enchia o tambor, mas quem
só tinha um balde, aí pronto, passava
uma semana para vir de novo. (Nei-
de Campos, Amarelão)

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Os mais velhos da comunidade aqui, como você pode ver tem vacas,
repassam que esse açude era utilizado ele é conhecido por Açude dos Bodes.
pela comunidade com o intuito tanto Por muitos anos as pessoas vinham
de suprir a necessidade de água do Ter- deixar aqui a questão dos bodes, tem
ritório Mendonça, quanto para manter muita pedra, tinha muita água para os
a questão dos animais, muitas pessoas animais se manterem. Pra não haver
do território saíam da comunidade do necessidade de carregar água daqui,
Amarelão, de Santa Terezinha e próprio lá pra comunidade pra dar essa água
do Serrote pra vir pegar água aqui, esse para os animais. Todo mundo vem, dei-
é um ponto de memória do meu povo, xam os animais aqui e posteriormente
do povo Mendonça. Até hoje as pessoas levam a água pra casa. (Dioclécio Be-
ainda vêm a esse açude tanto para pe- zerra da Costa, Assentamento San-
gar água quanto para deixar os animais ta Terezinha)

Acho que facilitou muito esse ne- o baldo d’água porque não tinha su-
18 19 gócio da água, imagine só você daqui, ficiente para todo mundo, e a veia
quem tinha uma carroça, mas quem era poca, as veia da cacimba era pou-
não tinha e ia de carro de mão e quem ca, além de vir da água da chuva de
não tinha carro de mão e ia de galão, Deus, barrenta, sapo dentro, chegava
lembro que pai ia buscar água lá na os guaxinim rasgado de sapo e a gen-
cacimba de galão, a gente morando te tinha que beber, porque não tinha
aqui. Você sabe o que é um galão? É um de onde tirar, a gente abanava e dava
pau, bota duas cordas assim e amarra graças a Deus quando as veia soltava
dois baldes e traz assim, pai ia buscar que a gente chegava e tinha pra encher
água naquilo. Era um sofrimento mui- nosso pote ou nossa lata d’água. Cada
to grande, depois passou a ter água na um que podia pegava um, pegava dois,
cozinha, a cisterna ali bem pertinho da pegava três e era muito difícil, muito
porta da cozinha, você abre, você tira. mais difícil. Agora ainda tem o Exército
Aqui é os Tanque das Carretia, nóis botava o cumê no fogo, termina- Acho que foi a melhor coisa que veio que bota, tem as cisternas agora, que
porque é uma carreira de tanquezi- va de lavar roupa, aí nóis ia almoçar, para o Amarelão foi as cisternas. [...] nós tendo as cisterna agora quando
nho, daí o pessoal botou os Tanque quando nóis terminava de almoçar, as (Liziane Campos, Amarelão) Deus manda a chuva, a gente ainda
das Carretia. Tem o Tanque Grande, roupa tava enxuta, nóis colocava no Antigamente era mais difícil, apara uma aguinha doce pra beber e
tem o açude. Aqui é tão bom, relembro saco, na cabeça e vinha pra casa. Faz muito mais difícil porque era cacimba quando não tem inverno, dependo do
tanta coisa, quando nóis vinha, saía de bastante tempo que não venho aqui, é e aqui só tinha três cacimba que for- Exército, quando vem essa pipa d’água
casa pra lavar roupa, ruma de mulé tão gostoso, é tão bom. Aqui é outro necia a gente, uma ali perto dos Tinga, pra todo mundo. Mas antigamente
com os saco de roupa, trazia feijão, tanque, ali é o Tanque da Parede de Ci- uma na baixa, outra aqui em cima, a era muito [mais] difícil que agora, mas
trazia caldeirão, de tudo nóis trazia, mento, lá é o açude. (Maria Betânia gente levantava de três horas da ma- agora também é difícil, é muito difícil.
quando chegava ali no Tanque do Pau Soares, Cachoeira) drugada com os baldo, espera enche (Mãe Selma, Amarelão)

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ÁGUA E PRÁTICAS Eu gostava de fazer minhas


hortas, sabe? Ano passado eu fiz, eu
amava trabalhar nas minhas hortas.
Era na quinta e na sexta, eu ficava fe-
A agricultura é a segunda é a única água que a gente tem de uti- liz em fazer, em poder fazer elas. Eu
maior atividade econômica desenvol- lização para os serviços domésticos, chegava mais com minha cunhada,
vida na comunidade, todos os anos é pra animais e pra irrigação aqui na chegava logo cedo para arrancar o
realizado o plantio de lavoura como comunidade. Isso que eu gostaria de
coentro, limpar, lavar, tirar a raiz, ti-
o milho, feijão, fava, macaxeira, dizer que desde o início é o mais certo
rar aqueles amarelo, tinha que fazer
mandioca, jerimum, quiabo que são que a gente tem de água é esse. Pra
tudinho o processo, eu amava tirar
utilizadas exclusivamente para ali- lavar roupa, pra lavá louça, pro ba-
mentação. Os roçados normalmente nho, onde o pessoal tira água para os meu coentro, vender meus coentro
são próximos de casa e de uso indi- animais, para levar pro lote, é a única com alface. O inverno está fraco, mas
vidual da família, o trabalho inicia água que a gente tem esse momento é se esse ano tivesse enchido [barreiro]
com a limpeza da terra, em seguida essa daqui. (Ana Carla Pinto Felipe, eu tava vendendo de novo pros meus
o plantio e por fim, a colheita. Entre- Assentamento Marajó) freguês, que eu tinha garantido, ajei-
tanto, esse processo depende exclu- A tanajura é uma comida cul- tava e saía pra entregar. Eu usava
sivamente da chuva, se o inverno for tural muito apreciada em nossa co-
água desse barreiro, vinha logo cedo
bom a produção é satisfatória, caso munidade, todos os anos em períodos
agoar, quando era de três ou quatro
contrário, todo o trabalho é desper- chuvosos, elas saem para se reprodu-
hora vinha de novo agoar. Planta-
diçado. (Rejane Batista da Costa zir. A sua saída dos formigueiros cau-
Feitoza, Serrote São Bento) sa bastante alegria, pois as pessoas va alface, cebolinha, hortelã miúdo,
O mais antigo [cacimbão], eu correm para pegá-las e comê-las tor- esse ano não deu certo, mas é vonta-
acho que é desde antes do Assenta- radas. (Lidiane Rodrigues, Assen- de de Deus, ele quem sabe o que faz.
mento, antes da fazenda, hoje em dia tamento Santa Terezinha) (Adriana Justino, Amarelão)
Nós estamos aqui no açude Dos
Barro, viemos andar por aqui dentro
21 da mata, descobrir algumas coisas,
olhar as águas, já vim várias vezes
aqui no açude Dos Barro pegar piaba
no landuá. Você sabe o que é um lan-
duá? É um saco, sabe aquele saquinho
vermelho de pegar cebola na feira,
coloca num bambu, sabe o que é um
bambu? Pois dobra e coloca, quando
levanta tá cheio de piaba. (Damiana
Soares, Cachoeira)

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ÁGUA, AMEAÇAS E CONFLITOS


Não sou mais satisfeita com O quê uma mãe de família faz passado
nossa comunidade sobre a água, que é o dia todo trabalhando na roça, com
o que a gente mais sofre aqui, porque castanha, pra de noite você ter dois
a gente não tem água, tanto pra plan- balde de água pra tomar banho, dar
tar, quanto pra beber, quanto pra uso. banho em filho, cozinhar e beber? e as-
Porque aqui pelos anos que a gente é sim mesmo é salobra, é salgada. Então,
daqui da nossa aldeia, era pra gente nosso sufrimento é esse, porque se nós
ter tratada, ter água encanada. Só que tivesse água, nós tinha riqueza, cada
entra política, sai política, promessa cá plantava, cada cá tinha com o que
vem, promessa vai e nunca que essa aguá sua horta, suas ervas, plantá um
água chega pra gente. A nossa sorte feijão, um milho, uma macaxeira, uma
é um poço que tem no Serrote, que o batata, um jerimum, mas se a gente
Prefeito de João Câmara toma de con- plantá não dá, só esperando por Deus,
ta. Mas, nóis tá cansado de passar três em ano em ano. Então, o que a gente
meses sem ter água. A sorte é que o precisa aqui é água, a gente necessita
exército manda uma carrada d’água, de muita coisa pra nossa comunidade,
uma pipa d’água pra uma cisterna mas se água viesse pra nóis era nossa
A pesca é uma prática tradicional que acontece há anos nas comunidades para cada um tirar dois balde de água. salvação. (Mãe Selma, Amarelão)
indígenas, os Mendonça vão nos açudes do território em grupos ou até
com as famílias para pescar vários tipos de peixe para o consumo das suas
famílias. (Alice Santos, Assentamento Santa Terezinha)
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O dono dessa barragem aqui já mãos, bebe água, nos bebe água quan-
faleceu, é Seu João Rodrigues, é o dono do tá cheia. E também quando o peixe
dessa terra, ele mandou fazer essa tá grande a gente pesca e come [...]. A
barragem aqui pro gado dele, para os barragem é essa aqui para o gado be-
animais. Tem muita história sobre essa ber água e todo o povo caça aqui nesse
barragem. Enche de água pros gado mato, bebe muita juriti, aqui bebe juri-
beber, nós quando passa aqui que vai ti, ribaçã, os pato de água quando tem
caçar mel também serve para as abe- água eles vem, marreca vem pra cá, os
lhas tirar água e fazer o mel, quando caçador mata pra comer, aqui não tem
a gente passa aqui acha abelha tira outra vida, só tem essa mesma de água.
o mel, passa de novo e volta lavar as (Francisnete, Serrote São Bento)

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cola pronta, entregue as chaves, ti-
vemos uma nova reunião lá no Go-
verno do Estado, já em fevereiro de
2019 fomos eu e Dioclecio, tivemos
reunião com o Secretário de Educa-
ção, com o Secretário de Educação
do Município, do Estado, foi lá em
Natal na SEEC, cobramos novamen-
te essa questão da água. Eles disse-
ram que iam tentar ver se tinha re-
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curso para perfurar um poço, mas
por enquanto, era pra usar de onde
[Na escola anterior] era um pessoa da diretoria para fiscalizar
a gente tinha água para tirar, e a
rapaz que levava água de carroça, ia a obra da escola [...], quando foi
gente não tem água, a comunidade
deixar de carroça, pegava água sal- percebido que estavam construindo
não tem da onde tirar água, então
gada ali na cisterna [pública] que eu duas cisternas na parte alta da es-
o que pode ser feito lá emergencial-
disse que não chegava água, pegava cola, que são cisternas que vão dar
mente é a prefeitura mandar umas
e ia deixar lá [...]. Ele pegava água lá água de descida para cair nas tor-
pipa de água na cisterna que é no
e ia deixar na escola, aí botava em neiras, na encanação da escola, a
piso de baixo e usar essa água para
uns tamborzão preto e ficava aquela gente falou ‘mais essa água vai sair
lavar louça, ir tirando com o balde,
água pra gasto. E depois ia buscar da onde?’ Foi a primeira observação
água doce, lá no Serrote daquela que a gente fez. A comunidade não
para lavar louça, lavar a escola. [...] 31
(Tayse Campos, Amarelão)
dessalinizada para beber, aí botava tem água, é abastecida com carro-
Meu pai vai buscá lá em Baixa
em outro tambor, era dividido água -pipa, as cisternas foram coloca-
dos Macacos [25 km do Amarelão]
de gasto e a água da escola pros mi- das no meio da escola na parte de
nino beber. Só que antes tinha uma cima, no alto, como chega à água lá? pra poder beber, porque em casa
cisterna na escola, que era a cister- Como vocês pensaram isso? [...] Aí a não vem água doce, mas como dis-
na que a água que vinha do Serrote gente disse que isso não vai funcio- se, essa cisterna suja é a única que
era pra chegar lá na cisterna, mas nar, as cisternas, tinha uma que era tem. Como a gente chegou recente,
não chegava. Aí vinha um carro pipa na parte de baixo, e essas duas que não tem mais programa de cister-
botá, mas não sei o que aconteceu, é na parte de cima, não vai funcio- nas do governo pra poder construir
sei que já lembro dela toda quebra- nar porque não tem água, nem tem e pai tá sem condição de construir,
da a cisterna. Eu não sei exatamen- como botar água em cima, a escola aí pronto, aí ele vai todo final de se-
te o que aconteceu, se pararam de não tinha água encanada e começa- mana pegar um tambor de 60 litros, 32
colocar água e ela rachou. (Liziane mos a fazer reuniões com a empresa pra gente poder beber e consumir.
Campos, Amarelão) e chamar a secretaria de educação Se não, aí bebe suja, mas ele sempre
Como já tinha essa experiên- do estado que era responsável pelo vai, é o jeito. (Micharle Barbosa,
cia, nossa Associação colocou uma projeto da escola. [...] Depois da es- Amarelão)

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A falta de água no Marajó é
um problema constante, que vem ÁGUA E DEMANDAS
desde a fundação do assentamento e
até hoje causa danos à toda popula-
ção. Antigamente, nossa sobrevivên- Não tem como tirar água, por- guiu não, a gente foi lá e eles falaram
cia dependia da água do cacimbão que têm sete poços, mas não têm ne- que vinham fazer a limpeza do outro,
e da água da chuva. No período do nhum ativado. A gente agora, mês porque fizeram um serviço mal feito e
inverno os moradores aproveitam passado a gente conseguiu limpar um por causa da chuva entrou muita areia
para armazenar água da chuva em pela Associação Indígena e estamos pra dentro, aí ficou de vir e a gente tá
cisternas, baldes ou caixas. Quando
34 esperando a limpeza de outro. A gen- esperando eles desde semana passada
passava esse período, a população te entrou para o Projeto da Água Doce e eles não vieram ainda. [...] A água
utilizava a água do cacimbão para mas não passou a água toda, a gente que a gente utiliza do cacimbão, tem
todos os tipos de consumo. Hoje em limpou para a Água Doce, mas a gen- tempo que tá muito cheiro, uma catin-
dia os moradores ainda aproveitam te não tem acesso de poder instalar. ga fria na água, não sei se tem muita
a água da chuva, e sobrevivem tam- [Água Doce] é um projeto do governo coisa embaixo, sai meio amarelada
bém da distribuição de água que o federal que vem um dessalinizador, é e uma catinga fria, que é excesso de
projeto operação pipa leva para as feito tanques, construir tanques com coisa que cai dentro, porque é muito
comunidades, mesmo o assentamen- a caixa e aquela água fica só para o antiga, quando a gente chegou aqui já
to Marajó tendo 5 poços todos se en- consumo humano, mas é uma água existia esse cacimbão, aí a gente não
contram desativados. (Articulação potável, só que a gente ainda não tem, sabe o quanto de coisa já foi jogado
dos Jovens Indígenas de Marajó) não passou o poço, não conseguiu o lá dentro. Antigamente o cacimbão era
A caixa d’água fornecia água poço, a gente tem o projeto aprova- tão cheio, que os meninos pulavam e
35 para toda a comunidade, foi dividi- do, mas sem a garantia de um poço. A tomavam banho lá dentro. (Ana Car-
da para duas ruas em turnos dife- gente conseguiu pela prefeitura, conse- la, Assentamento Marajó, 2021)
rentes, uma rua durante a manhã e
outra durante a tarde, o saneamen-
to forneceu durante 4 anos, a bomba 37
que bombeava água do poço para a
caixa queimou, com isso a mesma
ficou desativada até hoje, trazendo
um prejuízo para a comunidade que
ficou sem o fornecimento de água.
36 Hoje a caixa d’ água é usada apenas
como referência para identificar a
casa do comerciante José Pinheiro
(Zé). (Articulação dos Jovens In-
dígenas de Marajó)

18 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE ÁGUAS DO TERRITÓRIO MENDONÇA 19


38 39

LISTA DE FIGURAS

Figuras 01 a 03: Mapas em tecido elaborados pelas comunidades de Assentamento


Santa Terezinha, Assentamento Marajó, Amarelão e Serrote São Bento. Diferente das
fotos de apresentação dos fascículos do Projeto Nova Cartografia Social que retratam
o coletivo de pessoas envolvidas no processo de elaboração dos croquis, devido à
Covid-19 e a medidas de segurança, as oficinas de nova cartografia social foram rea-
lizadas em número reduzido de pessoas e fragmentada em quatro das seis comuni-
dades que formam o Território Mendonça. (pág. 1)
Figuras 04 a 06: Oficinas de elaboração dos croquis em papel, mapas em tecido e
desenho de ícones para as legendas. (pág. 2)
Figuras 07 e 10: Visitas às comunidades e coleta de pontos de GPS em fontes naturais
de água, tecnologias de armazenamento de água entre outros lugares importantes
para o mapa das águas. (pág. 3)
Assim, o meu maior sonho sabe, é a perfuração de um poço, porque aqui é Figuras 11 e 12: Mapeamento de lugares e práticas que são referências para acesso
tão difícil. [...] Meu maior sonho era um poço. [...] Porque assim, é o carro que à água. (pág. 4)
bota, o carro-pipa. Tão pertinho do Amarelão pra cá, de Jardim ou de Pedra Figura 13: Cacimba usada para irrigar manualmente o cultivo de cajueiros na comu-
Preta o canto mais perto que tem. Aí entra governo, sai governo, promete e nidade de Amarelão. (pág. 5)
não cumpre. Às vezes eu fico chateada, quando eles vêm pra cá pedir voto, Figura 14: Maria Betânia Soares nos tanques de pedra da comunidade de Cachoeira.
aqui não tem voto não, entra governo e sai governo com a mesma promessa.
(pág. 6)
(Maria Betânia Soares, Cachoeira)
Figuras 15 a 17: Desenho do Tanque de Pedras na comunidade do Amarelão; pote
de barro usado para armazenar à água para beber; açude na comunidade de Assen-
tamento Santa Terezinha. (pág. 7)
A gente sempre solicitou a vin- famílias, pras famílias ter água para Figuras 18 e 19: Açude dos Bodes no Assentamento Santa Terezinha; e tanque Carre-
da de uma adutora pra cá, nossa so- beber, pra cozinhar, pra fazer os afa- tia na comunidade de Cachoeira. (pág. 8)
licitação sempre foi de uma adutora, zeres domésticos e para criar peque- Figura 20: Cacimba João Boi. (pág. 9)
porque nosso Território tem um divi- nos animais, plantar uma horta, tem
Figura 21: Produção de alimentos com irrigação no Assentamento Marajó. (pág. 12)
sor histórico nessa questão da água. o suficiente. O problema é que a maior
Figuras 22 a 24: Desenhos elaborados para representar as práticas de roçado, cultivo
Primeiro, essa história que ‘ah porque parte da água do nordeste é gasta por
de palma e horta. (pág. 13)
no nordeste não chove’, isso não exis- quem pode pagar água, desviar água
Figura 25: Legendas do mapa de tecido da comunidade de Serrote São Bento. (pág. 14)
te, chove sim e tem estudos, pesquisas de um rio, e quando a gente solicitava
Figura 26: Dona Chiquinha buscando água no poço de Serrote São Bento. (pág. 15)
da Agência Nacional das Água, muitas uma adutora é pela demanda popu-
pesquisas na ASA que é a Articulação lacional do Território e porque as fa- Figuras 27 e 28: Ícones desenhados durante as oficinas que representam lugares,
do Semiárido sobre essa questão da mílias daqui, elas querem ter acesso à práticas e situações associadas à questão da água. (pág. 16)
quantidade de chuva, que chove aqui água em casa, como todas as pessoas Figuras 29 a 32: Formas de acesso à água no Território Mendonça. (pág. 17)
nas piores secas, chove pouco, mas têm, como todo o brasileiro quer e de- Figura 33 a 36: Baldes e caixas de água são comuns no cotidiano Mendonça. (pág. 18)
chove o suficiente para abastecer as via ter. (Tayse Campos, Amarelão) Figura 37: A principal demanda do povo Mendonça é a efetivação do direto à água,
por meio da água encanada. (pág. 19)
Figuras 38 e 39: Poço e cacimbão da Associação Comunitária do Amarelão. (pág. 20)
20 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE ÁGUAS DO TERRITÓRIO MENDONÇA 21
22 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE

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