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PASSAGEM PELO VELHO OESTE

TÂNIA MARTINS

Quando passou pela sala o chamaram de homem feito, disseram que até mudara os
dentes e fechara uma janela.
O pai perguntou:
- Não quer falar?
Negou. Não vira nada, não tinha visto nada; Falavam sobre aquilo, as mortes.
- Mas você viu a briga?
Mentiu: Não. Entrou no quarto fingindo que ia dormir. Esperando não sabia o quê,
lembrando dos pesadelos que o esperavam no meio dos lençóis, que eram uma
monotonia só: Cai no abismo, de um barranco, em um poço, de um avião ou sobre uma
montanha que nunca tem fim. Ou ainda se danava todo querendo voar.
E havia o que vira a tarde toda na rua, além dos filmes que esquecera de repente.
Devia ser rápido e perguntava: O que tinha a ver filme de bang-bang com nordestinos?
Estava louco ou seus pais não faziam idéia? Não contaria a eles, nunca, poderia viver
com o que sabia desde então, estar em todo lugar por si mesmo. Não sabia se iria
conseguir, nem se seria bom, mas achava que as coisas deviam ser feitas daquele jeito:
Ia embora de casa. Sentia frio na espinha.De qualquer forma o mundo não era nem de
longe a bondade que via em casa.
Antes, precisava saber se seus pais mentiam ao serem como eram. Também já achava
que, mesmo mentindo, eles não tinham o direito de ser como eram. Iria, pois, pela
mesma estrada em que os nordestinos vieram aos montes não fazia muito tempo, mas,
que coincidência? Adiantava-se, será que até para si mesma contaria essa história,
assim, em viés e de trás pra frente? Ora, era fera em matemática na escola e em fazer
filmes de cow-boy, como via no cinema e na televisão. Adorava sair de casa juntando os
meninos da sua idade para rodarem uma fita.
Anteontem, inclusive, a série “O grito do coiote” foi interrompida pela mãe de um deles
que o puxou pelas orelhas bem na hora do “Não se mexa!”. Quanto a si, de bandido fora
promovido a mocinho com uma condição: Devia, sozinho, atravessar a cidade a pé. Foi
assim que mal engoliu o almoço e tocou a andar.
Bom. Verdade que não tinha oito anos ainda, faltando alguns meses. Sabia que a cidade
não era tão grande quanto parecia. Esquecera o nome de umas ruas que Edinho lhe
ensinara – Mapa do catálogo guardado na memória, pra lá do Cazeca. O pai do Edinho
também é um nordestino dono de um boteco e foi neste boteco que as coisas começaram
a acontecer com se fossem de um filme dentro de um filme, ou um filme que acontece
antes, quando artistas ainda nem leram o script.
Eram duas horas da tarde e ele estava lá, encostado na porta daquele boteco do pai de
Edinho, esperando-o desocupar para lhe dar uma canja com os endereços. Olhando o
movimento. Via homens à beira do balcão usando roupas domingueiras, pareciam
amigos.Nunca antes pensara que filme saísse da vida real. As vozes lá dentro faziam
algazarra com nuvens de fumo dentro do boteco e ele estava cá, um pé em um degrau, o
outro embaixo, por assim dizer, descalço na sua pobreza de arroz com feijão e couve.
Ainda teve um lance que achou muito engraçado: Um deles atirou-lhe uma moeda no
peito, decerto pensando que ele era um mendigo ou um órfão. Ficou quieto, ali,
espantado: A moeda não dava para comprar uma balinha, que doidice! Ou aquele
homem brincava porque, como ele, já vira muitos filmes do Velho Oeste? De
repente duas vozes ficaram mais altas que as demais, a roda se abriu, cachorros latiram
lá fora e começou uma pancadaria cerrada. Um era o Sr. Celso, que morava bem em
frente à sua casa. Grandão, ossudo, vermelho feito um índio, nossa! Ficasse pelado e
não teria diferença nenhuma de um índio.
O outro se chamava Adelino, nordestino também, todo mirradinho, macilento e pai de
seis filhos. Celso, depois que lhe deram passagem, deu dois passos, conciliador. Adelino
deu-lhe um tranco, insultou, Celso disse: “Vamos pará com isso, compadre”. Mas
Adelino desentendeu.
Ora. Celso mediu-se com ele, viu que um mano a mano seria covardia de sua parte,
tentou sair fora, mas que nada, Adelino partiu com tudo pra cima dele enquanto
atravessavam a praça e a pendenga se espalhou por três quarteirões.
Assim ele ia junto, eram três.
Viraram uma esquina, dobraram outro quarteirão, iam pela rua parando dez a dez, vinte
a vinte passos. O homem falou mal da mãe de Celso e soltou palavrões de todo tipo.
Algo lhe disse que devia entrar na casa de uma tia, afinal não passava de um menino.
Entrou e encontrou a tia dando a maior bronca no seu pai que, bêbado, estava doido para
ir lá fora, mais uma vez, separar a briga dos seus dois amigos do peito que vieram do
nordeste. Ela gozava a cara dele, dizia que ele nem parava em pé, e enfiou-o porta do
quarto adentro trancando a porta.
Aproveitou a deixa pra cair fora, achando engraçado que, em casa, o pai cantasse de
galo e, ali, não passasse de um pintinho.
Viu Celso entrando no boteco de outro nordestino, mas aquele não era só um bar ou
boteco, era de fato um armazém que vendia de tudo, de fumo de rolo a perfume francês.
Celso pediu uma dose de pinga, a voz saiu seca porque andara correndo de Adelino, e
para evitar o pior. Chegou a tirar o revólver da cintura e por em cima do balcão, pediu
ao Raimundo que o guardasse, mas era tarde demais porque fora até a porta e viu
Adelino chegando. Largou a pinga e pegou a arma, saindo por outra porta. Ainda
murmurou:
- Compadre, não adianta mais.
Adelino abraçou-o no degrau e saíram cambaleando para o meio da rua. Adelino fazia
distância para abrir caminho e bater no peito:
- Mata, mata se tem coragem, peste!
- Celso tropeçava:
- Compadre!
- Vendido! Vendido! Ladrão!
Adelino queria dizer que Celso, homem forte à beça, fora escolhido por uns fazendeiros
em uma empreita, e que ele, Adelino, antes chegara a acertar o negócio, mas preferiram
fechar com o Sr. Celso que era homem de tocar quatro daquelas roças a cada safra com
suas sete filhas de sol a sol e sem mudar de camisa. Ora, vendido, vendido mesmo todos
eram: Caçados no fundo do sertão e largados na pensão de uma conterrânea, uma
nordestina gorda, cheia de luxo, vaidade e vivaldice – Comentou-se em casa. Ficavam
com ela até que os fazendeiros apareciam para escolhê-los a dedo no pátio da pensão e
pagar-lhes a estadia. Dívida feita, corrigida e dobada, o cabra assim ia com elas nas
costas para as invernadas, pindaíbas, pés de morro, várzeas, cerrados e chapadões. Uns
poucos, menos tesos, punham um boteco, como o Raimundo e o pai do Edinho.
- É só esperar para ver o quanto de gente fica rica da noite para o dia à custa deles –
Disseram em casa. Dito e feito: A cidade virou centro exportador de primeiro time.
Na rua, Adelino não parava de ofender.
Celso empurrou-o com a mão esquerda com tanta força que ele pareceu dançar. Na
verdade, parece que aproveitava o empurrão para pensar um pouco no que estava
acontecendo, pois levou muito susto quando tomou o primeiro tiro: BAM! O estrondo.
BUM! Parecia não ser verdade: BAM! BAM! BAM! BAM! BAM!
Tão rápido que ele insistiu:
- Cabrão! – Gritou. Punho fechado no ar, voltando-lhe as costas para levar outro balaço.
- Vire pra morrer, compadre! – Celso disse. E ele obedeceu! Foi recebendo tiro no peito
e nas costas, passaram na porta do boteco do pai do Edinho de novo e foram pelas ruas
com Celso recarregando o revólver e atirando nele que cambaleava e não caía,
ajoelhava, levantava-se e dava um passo e recebia tiro até a outra esquina.
Ali, já arquejante, deitou em uma calçada.
A dona da casa apareceu na janela para ouvi-lo pedir um copo de água pelo amor de
Deus. Com Celso se aproximando mais e perguntando:
- Dona, por favor, veja se ele já se foi, se não, estou aqui para...
A mulher pôs as mãos na cabeça chamando Deus de novo, garantindo que ele estava
mais que morto, morto cem vezes. Viu tudo. Neste momento, e só nele, saiu correndo
pulando uma cerca de tábua arranhando as pernas, caiu no chão do quintal com aquela
dor forte, de antemão antecipada entre o pavor e a revelação. Voltou à rua mancando,
pensando que haveria uma multidão na praça, porque aquilo não era filme e acontecia.
Ainda era um deserto por lá, exceto pela presença do Sr. Celso, que ia pela avenida.
Grandão, lento, com o revólver 38 na mão direita. Foi atrás dele de novo, estudou seu
tropel macio de índio bamboleando: Fosse filme, haveria a porta móvel e a música cheia
de um salão.Cara fechada, calmo, duro. Aonde ele ia de arma na mão? Virou outra
esquina mais embaixo, subiu um monturo de pedras que fazia degrau para a primeira
loja de um libanês – este, um velho corcunda que bateu a porta bem na sua cara. Calmo,
ele deu meia volta para o meio da rua na maior frieza e, outra vez: Bang! Bang! Bang!
Na outra esquina, outra loja de libanês. Entrou e fez o pedido: Uma caixa de sabonete,
um lenço de cabelo, um corte de vestido. Embrulharam tudo rapidinho, ele esperando,
um monte de nota amassada na mão suada, depois sobre o balcão e o revólver empinado
de novo:
- Seu Canalha! Sou muito homem pra pagar minhas contas, viu? Filha minha veio aqui
e não lhe confiaram meia dúzia de botão!
Os caras ficaram azuis. Mas, perdia forças, chegava ao fim. Não demorou a jogar o
revólver fora e tirar uma faca da cintura que parecia ter asas, de tão larga, grande lâmina
brilhando como seus dentes no escuro. Enquanto isso, pelos buracos das fechaduras das
portas das casas os homens tramavam pegá-lo. Raimundo e outros, por trás,
devagarzinho, na tocaia. Saltaram sobre a faca que caiu no chão, não antes de fazer um
talho enorme na mão de alguém.
E quem pensa que acabou? Arrastaram-no para dentro de um salão de barbeiro,
trouxeram cordas e o enrolaram como a um salame. Ele de olhos fechado e
recomeçaram a pancadaria.Todos vieram: Dono da farmácia, um vereador, um
delegado, um balconista de perfumaria, rapazes e maridos chutaram a sua boca, sua
barriga, todos na cara de uma vez, entre gemidos estranhos e gritos abafados. Pararam
quando uma mulher – e quem? Minha tia – entrou no salão e disse:
- Covardes! Vou soltá-lo pra ver se o enfrentam!
A multidão linchadora saiu envergonhada.
Depois outras pessoas chegavam, desamarraram suas pernas, no meio do corpo,
limparam seu rosto, trouxeram roupa limpa e mais cadeiras aonde sentaram silenciosos,
pois pensavam que estavam em uma espécie de velório.
Voltou para casa com aquela tosse de mulheres vizinhas nos seus ouvidos. Antes de sair
de lá, viu a Lei chegando, bem passada, exibindo barulho de sirene e dragonas, mas,
para ele, a fita já estava completa para meros federais coadjuvantes.

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