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SCAM REPUBLIQUE
A MORADIA EM YAOUNDÉ
MONTANDO O ELENCO
queria fazer parte daquilo. Aprovei pela ousadia. Esse foi o nível do casting.
Apesar de alguns bons atores como Sony, Adam e outros, a falta de
um teste de elenco gerou um grande problema: o filme contaria com atores
inexperientes, caricatos e descomprometidos. Na cena da faculdade, por
exemplo, um dos atores não decorou o texto. Perdemos horas em um
improdutivo trabalho. Jesus se irritou e falou em uma estranha mistura de
inglês com português: – Você não respeita os outros, deveria ter se
preparado! Colocamos o roteiro em lugares estratégicos do set para ajudar
o ator. As meninas, que escolhemos pela sorte, percebemos que havíamos
trocado os perfis. O jovem que não falava inglês até era comprometido, mas
não tinha técnica nenhuma. Em uma cena em que o personagem dele
apanhava, ele começou a rir. Sony se irritou: – Ninguém ri quando apanha,
filho da mãe! Foram muitos problemas do tipo. Tive que simplificar as falas
do roteiro para viabilizar o filme. Sei que o Ken não ficou feliz com a minha
interferência nos diálogos, por outro lado ele sabia que, se não fizéssemos
algo, não teríamos o filme.
Jamais coloque em seu um filme um ator com o qual você não tenha
feito teste de elenco. Não subestime a importância do teste para achar os
bons atores. Lembre-se, é difícil um filme ser bom se a atuação for ruim. O
teste de elenco não serve só para testar a técnica do ator, mas também a
sua adequação para o perfil do filme, não só no que tange a atuação, mas
também na movimentação, aparência e até mesmo comprometimento.
ler um novo livro, e eu teria adorado conversar com eles, mas infelizmente
comemos em um constrangedor silencio. Sony, negro e camaronês, não
havia sido convidado para o jantar. Ele se sentiu excluído. Com lágrimas nos
olhos, entendeu que a garota foi racista por só ter chamado os gringos.
Claro que a comida de set não era a única a causar problemas,
eventualmente rolavam algumas brigas na casa por supostos furtos de
comida em nossa base. Até mesmo o controverso tempero do Valery era
motivo de discórdia. Certa vez, Ken trouxe uma pizza para casa. A equipe
devorou a pizza em segundos e não sobrou nenhum pedaço para ele, que
ficou puto. Jesus riu da situação e retrucou: – Quem mandou comprar só
uma pizza! Essa foi nossa pequena vingança contra Ken e suas baguetes.
ALIMENTAÇÃO É PRIORIDADE
TEMPESTADE DE AREIA
Em cada frame, tomada, ação, movimento, seu filme precisa ter uma
assinatura icônica que o distinga de qualquer outro filme já feito. Sem uma
consistência estética, seu filme soará genérico. Para manter a consistência
visual da sua obra, é necessário que todo seu filme seja conduzido pelos
mesmos princípios de direção. Não adianta em uma cena você usar uma
linguagem de movimento específico e na outra uma linguagem distinta. O
mesmo vale para a música, figurinos, locações e qualquer outro elemento.
Quanto mais você conseguir fazer com que os elementos do seu filme se
comuniquem entre si, mais definida será a assinatura visual dele e mais
profissional sua obra soará.
A primeira coisa que o produtor Ken fez, quando chegou dos EUA, foi
nos dar um spray de pimenta: Usem com moderação. Como iríamos gravar
em alguns dos lugares mais perigosos da cidade, fazia sentido ter uma
proteção extra. Após três semanas de trabalho no Camarões,
encontraríamos o primeiro branco que não fosse um de nós, ele estava no
outro lado da rua e simplesmente nos sinalizou, nós devolvemos o aceno.
Camarões não é uma nação turística, então quatro gringos andando juntos,
chamavam a atenção. O Ken, negro, sempre negociava as locações para o
filme, porém, toda vez que o dono do local percebia que a equipe tinha
brancos, ele aumentava o preço. Com os taxistas era a mesma coisa. Ken
nos mandava ficar “escondidos” do outro lado da rua. E somente após
fechar o valor, ele sinalizava para nós entrarmos no carro. Era uma maneira
de não pagar um valor inflacionado.
Mas isso não era nada perto do que costumava acontecer durante as
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gravações nas ruas. Algumas pessoas eram hostis. Queriam boicotar nossa
gravação. Era como se nós não fossemos bem-vindos por uma certa parcela
da população. Às vezes rolavam ameaças: certo dia, um sujeito surgiu com
uma faca para nos intimidar. Ken era sempre o responsável para apaziguar
as coisas, o que geralmente era feito, por meio do dinheiro: – Te dou
dinheiro, grana, e você nos deixa em paz, fechou? Quando não era possível
negociar, mudávamos de local. Teve um sujeito que, de tão insistente,
seguiu-nos por inúmeras quadras, atrapalhando a gravação e nos
provocando.
Certo dia peguei uma corrida de táxi junto com o ator Sony. Quando
chegamos em casa, paguei para o motorista, porém o ressentido homem se
recusou a devolver o troco: – Branco não merece troco. Aqueles centavos
não valiam a briga. Se sacanear alguém fosse fazer o dia dele mais feliz, tudo
bem. Fui até o portão. Toquei a companhia. Porém, quando me dei conta,
vi que o ator não estava ao meu lado. Ele ainda estava discutindo com o
Taxista. Sony, camaronês, negro, que na semana anterior chorou por não
ter sido convidado para o jantar, estava defendendo o branco: – Devolve o
troco dele!
A discussão chamou a atenção de alguns populares que nos
cercaram. O agressivo taxista foi para cima do Sony. Rapidamente, o ator
usou o spray de pimenta contra o motorista que, assustado, gritou de
desespero. A confusão estava armada. Nesse momento, surge o Ken: – Que
merda é essa, Kaco? Apontei para o irritado taxista que ainda lacrimejava.
Ken respirou fundo e foi até o sujeito: – Está bem, cara, tenho dinheiro! Para
infelicidade dos que estavam entretidos com o espetáculo, o dinheiro
encerrou a confusão. O Taxista pegou a grana sem agradecer, entrou no
carro e acelerou fundo cantando o pneu. Ken olhou para nós e falou: –Todo
dia vocês me arrumam confusão!
EVITE CONFUSÃO
ESTOU TRABALHANDO!
a gravação. O local era feio, apenas uma estrutura metálica vermelha com
algumas mesas típicas de país tropical, no local ainda tinha um grande logo
de uma marca de café, o que não ajudava na composição. Mas demos um
jeito de melhorar. Usamos umas luzes de led, gelatinas azuis e vermelhas,
para dar um visual anos 80. Estava pronto para rodar, porém Ken e o ator
Felix atrasaram 3h, deixando todos irritados: – Combinamos as 19h, Ken!
Ken retrucou: – Black Time (tempo de preto) é sempre duas horas depois! –
Mas vocês na verdade, estão três horas atrasado! Retruquei. “Black time”
era a expressão favorita do Ken. Toda vez que ele se atrasava, justificava o
atraso como se fosse algo inerente à cor, Hervé, camaronês, negro, e que
nunca se atrasou, não concordava: – Isso não é black time, é “Ken time!”
Finalmente iniciaríamos o trabalho com os figurantes e a própria
dona do local, desgastados pela espera. Como a gravação iria se estender
para além do que havia sido combinado, a dona do local pediu mais
dinheiro para o Ken, que ficou puto e nos cobrou agilidade: – Acelerem essa
merda, pois não quero pagar mais um centavo! Jesus retrucou: – Isso é
problema seu! Em outra diária, Felix e Ken novamente chegaram atrasados,
pois mais uma vez, tinham ido à balada no dia anterior. Felix estava
visivelmente cansado. Na hora de passar a cena, ele dormiu no set. Eu o
acordei e mandei prestar atenção nos ensaios. Porém, ele não conseguia.
Dei continuidade ao trabalho, o filme precisava acontecer. Na hora de rodar
a cena, obviamente ele não estava preparado e errou, atrasando ainda mais
o cronograma, ele então ficou puto: – Você está de sacanagem, Kaco! A
resposta me irritou e perdi o controle: – Sacanagem é o que você está
fazendo com todos aqui! Joguei o roteiro no chão, a caricata reação
tempestiva o acordou. Ainda durante a diária, ele se desculpou pela
confusão, em pouco tempo já estávamos rindo do que havia acontecido.
À noite, como fazíamos todos os dias, fomos em um bar beber, a
desculpa era clara: na nossa base não tinha internet e, para produzirmos o
filme, deveríamos acessar o Wi-Fi dos pubs e combinar as coisas com os
atores e a equipe. Claro que a noite, que sempre começava com uma
cerveja, inevitavelmente evoluía para alguma balada ou inferninho, que
não importa em que lugar do mundo você esteja, é sempre o lugar onde
acontece as coisas mais bizarras: em uma noite, um sujeito colocou cerveja
na nossa mesa e, sem dizer nada, fez dez flexões e saiu fora. Em um outro
dia o caucasiano Jacob pegou um moto-táxi e chegou meia hora depois de
todo mundo, gerando teorias sérias de que ele havia sido sequestrado.
Sempre voltávamos para casa estragados desses rolés, e gravávamos
sem dormir no dia seguinte. Eu estava ciente de que, se seguíssemos aquele
ciclo, não terminaríamos o filme. Sendo assim, eu e o Jesus decidimos voltar
mais cedo para casa. Na hora de pegar um táxi, duas mulheres começaram
a nos encarar: – Deve ser porque somos gringos. Entramos no taxi e as
meninas entraram também. Ficamos perplexos. Elas não falavam nada,
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finalizar o filme. Os atrasos tinham ficado para trás, era hora de trabalhar
de verdade. Ken acordou quatro da manhã e serviu o café. Saímos e ficamos
basicamente até as 18 horas gravando como nunca havíamos feito.
Conseguimos o que parecia impossível e praticamente recuperamos o
cronograma em umas três diárias densas. Agora, só tínhamos apenas mais
um dia no Camarões e todo um clímax para executar.
IMPROVISANDO UM CLÍMAX
envolvendo cinco atores sem nenhum tipo de ensaio? A cena de briga que
havíamos gravado anteriormente no filme tinha ficado ruim. Preocupante.
Era o grande dia. Jesus teria que resolver uma questão burocrática. Ou seja,
eu dirigiria e filmaria o clímax. Foda-se linguagem e composição. Não
tínhamos tempo, o filme sairia da maneira mais raiz possível: câmera na
mão. Por sorte, o clima se manteve estável, com um típico mormaço. A
difusão do sol nas nuvens trouxe uma luz solar homogênea que acelerou o
trabalho. Hervé trouxe umas moscas temperadas com ervas para a equipe
comer, pelo menos eram melhores que a baguete recheada de macarrão.
Fiz reconhecimento do local e percebi que os caminhões e tratores
formavam uma espécie de circuito oval de uns 400 metros. Um espaço que
permitia rodar a perseguição, que seria filmada por mim de dentro de um
carro. A solução resolveu o sequestro da BAMBA em menos de duas horas.
Porém ainda restavam mais três cenas. Fomos executar a briga entre
NICO e CAPITÃO AMERICA. Não sabíamos como começar. Elaboramos um
plano. A briga aconteceria em cima de um caminhão. Isso limitaria nosso
espaço de ação e teríamos mais controle. Eu poderia girar a câmera em 360
graus que nossa equipe não apareceria. Depois de pelo menos uma hora de
planejamento, definimos que a briga seria toda improvisada, porém deveria
seguir quatro beats na seguinte ordem: NICO e CAPITÃO AMÉRICA subiriam
no caminhão. Eles trocariam porrada. NICO acharia uma corrente e a usaria
para bater no seu algoz. CAPITÃO AMÉRICA tomaria a corrente de NICO e o
enforcaria com a mesma até NICO se apagar. Claro que havia problemas de
continuidade. A cada tomada a roupa deles ficava mais suja, o boné e a
boina dos personagens caiam em diferentes momentos durante a ação. E
eu sabia que teríamos problemas com a edição, mas não havia o que fazer.
A única coisa que definimos é que quando CAPITÃO AMERICA enforcasse
NICO com a corrente, ambos deveriam de alguma maneira estar sem o
boné. Desencanei de me preocupar tanto com esses detalhes e deixei fluir.
A cada tomada, colocava mais e mais sangue na roupa dos personagens. Fiz
planos detalhes, abertos e fechados, sob o olhar de curiosos populares.
Ainda faltava a parte dois da briga. NICO, que o público daria por
morto, acordaria e mataria seu algoz. Ambos os personagens pulariam para
um outro caminhão e a briga seguiria, só que dessa vez com faca. Gritei para
os populares se alguém tinha uma faca e me deram uma peixeira. Usamos
a mesma técnica de direção e improviso da primeira parte da briga e
encerramos a sequência com NICO esfaqueando o vilão. Usamos um pneu
para simular o corpo do bandido. Colocamos sangue cinematográfico num
saco plástico. Sony esfaqueou o pneu, o saco estourou e o sangue voou para
a lente da câmera. Adorei aquilo! Sony estava cansado: – Não aguento
mais! – Aguenta sim! Respondi. Ainda tínhamos muito a fazer. NICO
precisaria resgatar a BAMBA. A proposta era ser mais uma cena de briga.
Porém não daria tempo. Teríamos que ser práticos. Circulei pela locação
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Um filme ruim pode ser salvo por um grande final, mas nem o melhor
filme do mundo sobrevive se o final for ruim. O clímax é o evento mais
importante do seu filme, deve ter o pico emocional, visual e concluir a
trama da sua obra de maneira satisfatória para o público. Invista seus
recursos e energia nesse grande evento, procure locações épicas e abertas
para trazer maior senso de magnitude para a sequência. Leve seus atores
ao limite. Traga drama, viradas e surpreenda sua audiência.
2- Expressão greco latina, usada quando se força uma solução para o clímax de
uma história.
A PRISÃO
A DOENÇA DO FILMMAKER