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COMO NÃO FAZER FILMES


13 LIÇÕES DA PRODUÇÃO DE UM FILME DE GUERRILHA NA
AFRICA

SCAM REPUBLIQUE

Fomos contratados para dirigir o filme SCAM REPUBLIQUE (EUA-


Camarões). A história é simples: NICO, um jovem estudante, descobre que
sua mãe está doente, mas o tratamento é caro, então ele entra em uma
gangue de scammers1 para levantar dinheiro. Dirigir uma produção gringa
de um estúdio indie de L.A, era uma ótima oportunidade.
Ken, produtor do filme, gostou do nosso trabalho no SOROCHE. Por
uma felicidade do destino ele estava procurando por um diretor com
experiência na guerrilha. Após meses de negociações o longa foi
confirmado. Decidimos nos preparar de verdade para o projeto. Li o roteiro
dezenas de vezes, a ponto de decorar cada virgula. Decupei o filme e
preparei todo o plano de filmagem junto ao diretor de fotografia.

SE PREPARE PARA O SET

90% do trabalho do cinema acontece fora do set. Por isso se prepare


bem. Realizador perdido e despreparado resultará em uma equipe perdida.
O cinema de guerrilha não tem espaço para enrolação ou perda de tempo.
Não confunda praticidade no set com fazer as coisas malfeitas, apressadas
ou de qualquer jeito. O diretor prático é ágil no set porque fez a lição de
casa, ou seja, preparou-se durante meses para realizar o trabalho: decupou
o roteiro, desenvolveu um plano de filmagem e sabe exatamente o que
quer em cada tomada. Quanto mais você se preparar para o trabalho,
melhor será sua performance no set.
1 Golpistas e agiotas virtuais.

BEM VINDO À ÁFRICA

– Você será sequestrado. ÁFRICA, Cuidado! Disse um mendigo, há


apenas alguns dias antes do embarque, para o Jesus, o diretor de fotografia
que convidei para trabalhar no filme que seria rodado justamente na...
África. Independentemente de ser só uma coincidência ou se de fato o
sujeito tinha poderes de prever o futuro, aquilo era tudo que não
precisávamos ouvir perto de cruzar o oceano. Tomamos as vacinas
necessárias e resolvemos o burocrático processo de visto, que exigia que os
passaportes fossem enviados para embaixada do Camarões em Brasília.
Finalmente tinha chegado o dia do embarque. Nada apagaria a
empolgação. A primeira parada seria no Aeroporto Internacional
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Mohammed V – Casablanca, o céu estava lindo, e deu para ver nitidamente


a cidade de Casablanca. O aeroporto é burocrático. Longas filas. Fizemos
amizades com algumas missionárias. Depois de passar o dia lá, embarcamos
para Camarões, onde supostamente Ettiénne, um primo de Ken, iria nos
receber e nos levar para a base onde ficaríamos durante as gravações.
Desembarcamos no modesto Aeroporto Yaoundé Nsimalen. Pegamos
nossas malas, onde tinham pelo menos 50k em equipamentos e fomos para
o desembarque. Esperávamos ser recebidos por alguém segurando uma
plaquinha com nossos nomes. Mas ninguém apareceu. Tudo que tinha
eram inumeros taxistas em seus velhos carros amarelos, cheios de adereços
e customizações. Como éramos os únicos brancos no local, chamávamos a
atenção. Os hostis taxistas pegavam em nossas malas sem autorização, para
guardar no taxi, a abordagem era irritante. Levantei a voz contra um deles
e o clima ficou tenso. Em um país estrangeiro nunca é bom perder o
controle. Já tinha passado uma hora do lado de fora do Aeroporto em plena
madrugada, quando tive a brilhante ideia de perguntar para eles se alguém
conhecia o tal do Ettiénne: – Eu sou o Ettiénne! Respondeu o primeiro
taxista, tempo depois, um segundo se impôs: – Não, sou eu que sou o
Ettiénne! Então, um terceiro surgiu do nada: – Eles estão mentindo, na
verdade, o Ettiénne sou eu! E assim sucessivamente. A bizarra situação nos
deixou apreensivos. Liguei para o Ken que, surpreso, falou que daria um
jeito. Logo um taxista nos levaria para o Hilton. Ver aquela pequena e escura
estrada de Yaoundé foi um momento único e emocionante. Estava
agradecido. Chegamos ao Hilton, a parte interna parecia um palácio de tão
lindo. Dentro do hotel havia pessoas que faziam parte da elite local. Em um
determinado momento, duas jovens montadas ao estilo Beyonce olharam
para nós: – Devem achar que também somos ricos. Comentei com Jesus.
Claro que, pagando 280,00 dólares em um quarto, não era difícil pensar
assim, o ponto é que nem eu nem o Jesus iríamos arcar com aquele custo.
Liguei para o Ken para avisar sobre o custo que ele nos reembolsaria,
irritado ele gritou: – Fuck! Fuck! Fuck! Fuck! Então, respirou fundo e mais
calmo completou: – Tudo bem, Kaco, pago assim que chegar. Antes de
desligar, ainda sobrou tempo para mais um grito: – Fuck! No dia seguinte a
logística do Ken funcionou e fomos transferidos para um hotel mais simples.

A FALHA LOGÍSTICA CUSTARÁ CARO

Quando planejamos um filme, focamos muito tempo pensando na


câmera, atores, direção de arte e muitas vezes esquecemos de uma parte
vital e pouquíssimo comentada: a logística. Negligenciar a logística irá
custar um dinheiro altíssimo do seu orçamento. Evite surpresas que irão
atrapalhar sua produção. Faça um plano logístico inteligente, compre
passagens, reserve hotéis com antecedência e certifique de que todos os
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detalhes estejam de fato corretos.

A MORADIA EM YAOUNDÉ

Depois que nos instalamos no Hotel mais simples, eu e o Jesus


decidimos conhecer a cidade. Era meu primeiro dia na África negra e não
fazia ideia do que encontraria. Domingo de sol. Cidade tranquila. Andamos
sem rumo, chegamos a uma rotatória que unia nove avenidas. Camarões
não é um país turístico, por isso chamávamos a atenção dos populares, que
nos encararam. Tive uma sensação de estranhamento com aquele lugar tão
diferente. A arquitetura brutalista em tons de creme me chamou a atenção,
vi ótimas oportunidades para a criação de planos. Tiramos uma foto de um
complexo de prédios hexagonais, de onde saíram dois seguranças irritados
gritando em francês conosco. Paramos em uma salinha onde fomos
repreendidos. A hostilidade acabou, quando falamos que éramos
brasileiros. Surgiu a fome, fomos a uma pizzaria. A pior que comi na vida.
Apenas um pedaço de massa temperado, com uma quantidade miserável
de queijo. Converti o preço, era tão cara quanto uma pizzaria tradicional de
São Paulo.
No dia seguinte, Ken finalmente chegou, e as coisas ficaram mais
tranquilas. Fomos para a casa, que seria nossa moradia durante a produção.
A residência ficava em um pequeno condomínio de quatro casas siameses
perto do estádio Ahmadou Ahidjo, onde gravaríamos o clímax do filme. O
local era ajeitado, porém pequeno, feito para apenas quatro pessoas. O
problema é que éramos oito naquele imóvel de dois quartos. No primeiro
quarto ficaram os americanos: Yacob, Ken, Felix e Adam. Já no segundo
ficaram: eu, Jesus, Sony e Valery. Como o nosso quarto tinha uma cama de
casal, fui obrigado a dividir com o Jesus.
Valery, primo do Ken, era o cozinheiro da casa. Diariamente
comíamos um temperado arroz com feijão e, às vezes, frango. Gostava da
experiência de comer algo diferente, porém os outros moradores não
pareciam apreciar o exótico tempero.
Estávamos sempre trabalhando em função do filme, mas também
havia momentos de descontração como: dançar, cantar e – claro – brigas:
as pessoas pegavam emprestado as coisas sem pedir, meu cabo de celular
sempre estava sendo usado por alguém. Em um determinado momento,
sumiu o computador de um dos americanos, a desconfiança foi em cima de
um rapaz que frequentava a casa. Dias depois, o flagrei vestindo minha
blusa: – Que bom que você estava cuidando dela! Em seguida, peguei minha
blusa de volta!
Além da equipe titular do filme, a casa recebia muitas pessoas:
produtores, atores, figurantes, garotas, artistas e alguns membros da elite
local. O ambiente era intenso. A economia que o Ken fez, superpovoando a
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casa, gerou uma inesperada contrapartida, a imersão de todos os


envolvidos.

CONSTITUA UMA BASE CINEMATOGRÁFICA

Durante o período de gravação, tenha uma base cinematográfica. Ou


seja, uma casa onde sua equipe possa se hospedar e conviver. A base irá
criar um ambiente de foco e imersão, favorecerá a criatividade e a
circulação de ideias, otimizará a gestão, aumentará a produtividade,
diminuirá custos de alimentação e logística, economizará tempo com
deslocamentos, além de outras vantagens. Ter uma base é um pilar
fundamental para a execução de um filme de guerrilha.

MONTANDO O ELENCO

Precisávamos conseguir locações e pelo menos uns quinze atores,


entre eles um para ser o ARMED ROBBER, personagem icônico da obra.
Estava preocupado com o cronograma. Fomos buscar as locações na
faculdade de Yaoundé, para a cena da universidade. Estávamos perdidos
quando encontramos Steve, um simpático sujeito que se vestia de maneira
peculiar. Ele não só nos mostrou onde ficavam as salas, como também foi
solicito e gentil. Falamos das nossas dificuldades com a produção, então ele
se ofereceu para ajudar com o elenco. Nós, que não tínhamos nada, de
repente tínhamos tudo, graças ao Steve. De alguma maneira, tornamo-nos
amigos e, em um determinado momento, ele resolveu cantar. Fiquei
impressionado: – E se o Steve for o ARMED ROBBER? Ken concordou. No dia
seguinte, Steve organizou um almoço na faculdade com atores interessados
em participar do filme: – Ken, é você que está pagando a comida desse
povo? Perguntou o Jesus – Er... acho, que sim... Limitou-se a responder.
O casting seria em um Hotel. Sem tempo para teste de elenco,
entrevistaríamos 30 interessados. A seleção em questão foi tratada como
um grande evento pelo Ken, com direito a coquetel. Nesse dia, conheci o
talentoso protagonista Sony, que se tornaria um grande amigo meu. Ken
fez um discurso apaixonado: – Sejam bem-vindos à produção internacional
SCAM REPUBLIQUE, uma parceria entre EUA e Camarões. Tempo depois,
gastei meu inglês para improvisar um discurso genérico sobre
comprometimento. Ninguém aplaudiu. Eu e o Steve entrevistávamos as
pessoas, Jesus tirava foto dos candidatos. Ken fazia um social. Duas meninas
chamaram a nossa atenção para preencher dois papeis distintos. Mas não
sabíamos qual perfil era melhor, definimos por meio de cara e coroa.
Quanto ao resto, escolhíamos pela aparência. Perguntei para um dos
candidatos se falava inglês, ele confirmou, porém, na entrevista, ficou claro
que não falava nada. Se era capaz de mentir para pegar o job, é porque
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queria fazer parte daquilo. Aprovei pela ousadia. Esse foi o nível do casting.
Apesar de alguns bons atores como Sony, Adam e outros, a falta de
um teste de elenco gerou um grande problema: o filme contaria com atores
inexperientes, caricatos e descomprometidos. Na cena da faculdade, por
exemplo, um dos atores não decorou o texto. Perdemos horas em um
improdutivo trabalho. Jesus se irritou e falou em uma estranha mistura de
inglês com português: – Você não respeita os outros, deveria ter se
preparado! Colocamos o roteiro em lugares estratégicos do set para ajudar
o ator. As meninas, que escolhemos pela sorte, percebemos que havíamos
trocado os perfis. O jovem que não falava inglês até era comprometido, mas
não tinha técnica nenhuma. Em uma cena em que o personagem dele
apanhava, ele começou a rir. Sony se irritou: – Ninguém ri quando apanha,
filho da mãe! Foram muitos problemas do tipo. Tive que simplificar as falas
do roteiro para viabilizar o filme. Sei que o Ken não ficou feliz com a minha
interferência nos diálogos, por outro lado ele sabia que, se não fizéssemos
algo, não teríamos o filme.

FAÇA TESTE DE ELENCO

Jamais coloque em seu um filme um ator com o qual você não tenha
feito teste de elenco. Não subestime a importância do teste para achar os
bons atores. Lembre-se, é difícil um filme ser bom se a atuação for ruim. O
teste de elenco não serve só para testar a técnica do ator, mas também a
sua adequação para o perfil do filme, não só no que tange a atuação, mas
também na movimentação, aparência e até mesmo comprometimento.

A PRIMEIRA CENA DO SCAM

Existem dois momentos incríveis para qualquer cineasta que faz um


filme: quando bate a claquete para rodar a primeira tomada e quando bate
a claquete para rodar a última. Finalmente iríamos iniciar a gravação. A cena
em questão era simples. NICO (Sony) chegaria atrasado em seu entediante
trabalho em uma loja de conveniência e seria repreendido por seu patrão.
Uma cena expositiva sem nada de especial. Mas que seria rodada numa
locação sensacional, cheia de elementos coloridos e, como tudo naquele
país, com aquele ar de cinema! Além de nós e os gringos, nossa equipe
também tinha os bons profissionais locais: Hervé e Yves no som, Ghislain
como produtor e o segundo diretor Engo. No local, comecei a montar as
luzes. Perguntei para o dono da loja qual era voltagem: – 110v. Liguei a luz,
a mesma teve um curto e estourou na minha cara. Centenas de cacos foram
diretamente para meu rosto, mas por sorte nenhum no olho! Por conta dos
cortes, meu rosto começou a sangrar de uma maneira que só o corte de
vidro é capaz de fazer. Engo me ajudou estancar o sangue e a limpar o
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ferimento. Passado o susto, era hora de gravar. Valery bateu a claquete e


anunciou: – SCAM REPUBLIQUE - TAKE 01.

PREVINA ACIDENTES COM A LUZ

As luzes são frágeis e necessitam de cuidados extras. Antes de gravar,


certifique-se de que todas estão funcionando. Tenha cases profissionais
para que o transporte seja feito de maneira adequada. Etiquete todos os
equipamentos de acordo com suas respectivas fontes. Muitas fontes de
plugs idênticos podem ter voltagens diferentes e, na correria do set, não é
incomum que haja uma troca acidental. De preferência para luzes com
fontes bivolts. Tenha sempre em mãos um medidor de voltagem.

BAGUETE RECHEADA COM MACARRÃO

Quando cheguei a Yaoundé lembrei da cidade de La Paz, por certas


particularidades que ambas capitais dividem. Por conta disso, achei que os
preços seriam similares. Na Bolivia você se alimenta com pouco, porém foi
chocante constatar que no Camarões é o oposto. O preço da alimentação é
assustador, ainda mais se levarmos em conta a renda da população.
Isso teve consequências na gravação. A alimentação de set era
péssima. Os lanches variavam entre baguetes recheada com macarrão e
pão molhado na gordura de porco. Todo dia a mesma coisa. Eventualmente
os membros da equipe saíam do set para complementar a alimentação com
dinheiro próprio. Em um certo dia, o elenco desapareceu por duas horas,
para comer algo, atrasando o já apertado cronograma da produção. Eu e o
Jesus ficamos putos. Tivemos que ir atrás dos atores e definir regras mais
rígidas para a produção, caso contrário não teríamos filme. Defini que
ninguém poderia abandonar o set sem a minha autorização: – Meu diretor,
eu estou aqui, ainda não fugi! Sony adorava fazer essa piada.
Piadas à parte, o tempo que perdemos com stress, atrasos,
indisposição dos atores por conta da alimentação péssima não teve graça.
A alimentação inadequada, junto aos problemas de infraestrutura do país,
como as constantes quedas de energia no set, teve consequências no filme.
Em um determinado momento, uma figurante camaronesa, inconformada
com a péssima alimentação, convidou-nos para jantar em sua casa: – A
comida do Camarões não é isso! A casa aparentemente humilde por fora,
se revelou confortável por dentro. Foi servido um banquete de comida
tradicional camaronesa. Adorei conhecer. Chamou-me a atenção o Fufu,
um tipo de pão de mandioca que parece chiclete, além do peixe, baba de
quiabo e nozes. Só achei estranho o fato de a família que nos serviu não ter
sentado à mesa conosco, era como se fosse um restaurante e nós, os
gringos, fôssemos consumidores. Conversar com uma pessoa nova é como
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ler um novo livro, e eu teria adorado conversar com eles, mas infelizmente
comemos em um constrangedor silencio. Sony, negro e camaronês, não
havia sido convidado para o jantar. Ele se sentiu excluído. Com lágrimas nos
olhos, entendeu que a garota foi racista por só ter chamado os gringos.
Claro que a comida de set não era a única a causar problemas,
eventualmente rolavam algumas brigas na casa por supostos furtos de
comida em nossa base. Até mesmo o controverso tempero do Valery era
motivo de discórdia. Certa vez, Ken trouxe uma pizza para casa. A equipe
devorou a pizza em segundos e não sobrou nenhum pedaço para ele, que
ficou puto. Jesus riu da situação e retrucou: – Quem mandou comprar só
uma pizza! Essa foi nossa pequena vingança contra Ken e suas baguetes.

ALIMENTAÇÃO É PRIORIDADE

Fome acaba com a produtividade, tira o foco e irrita. Evite pratos


quentes, pois eles precisam ser preparados. Delivery só em último caso,
pois é caro. Opte pela praticidade dos lanches: pão integral, frios, frutas,
legumes e, principalmente água, costumam ser suficientes para uma
refeição saudável. Embalagens individuais facilitam o transporte e a
distribuição do lanche. Se o orçamento permitir, pequenos mimos como um
bombom certamente irão melhorar o humor da sua equipe! Provenha
alimentação de mesmo valor para diferentes profissionais do set, isso é
uma forma de mostrar que todos são importantes, oferecer comidinha
quentinha para sua atriz favorita enquanto negligencia a alimentação do
estágiario é totalmente errado.

TEMPESTADE DE AREIA

Foi na edição do SOROCHE que percebi a importância de captar mais


material extra. Cada tomada a mais que se faz em um set, melhor é a
edição. Durante a gravação do SCAM, eu estava sempre com a câmera em
mãos, mesmo nas folgas. Afinal, algumas das melhores cenas da vida
surgem em momentos que nós menos esperamos: eu e dois dos principais
atores, Sony e Felix, havíamos saído da base para comer algo. Enquanto
andávamos na rua, senti um arrepio. Repentinamente o dia se tornou noite.
O céu ficou turvo. Era uma intimidadora tempestade de areia. Todos
começaram a correr da ventania, um pescador na pressa de fechar sua
barraca, deixou cair um peixe no chão, que logo foi apanhado por um
popular faminto, crianças indiferentes se divertiam com o fenômeno e por
conta da visibilidade baixa, um distraído senhor quase foi atropelado por
um apressado táxi. Completo caos. Não pensei duas vezes! Aproveitando
aquele momento único, improvisei algumas cenas junto aos atores que,
acostumados com aquele fenômeno, não entendiam minha empolgação.
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Afinal, quando teria chance de filmar aquilo novamente?

CÂMERAS PORTÁTEIS SÃO MELHORES PARA CINEMA DE


GUERRILHA

Câmeras portáteis são ótimas para filmes de guerrilha. Algumas


possuem qualidade equiparável as câmeras mais robustas. Por ser operadas
por apenas um profissional e não necessitar de maquinário pesado, elas
barateiam e aceleram a produção. Discretas, essas câmeras permitem
gravar sem chamar tanto a atenção, o que para um filme sem orçamento é
essencial. Graças ao hábito de estar sempre com a câmera, captei diversas
tomadas que não estavam previstos no roteiro: feiras, vida urbana, táxis,
pessoas etc... Tomadas que foram úteis na montagem do filme.

O VISUAL DO SCAM REPUBLIQUE

É importante para o filme ter uma identidade visual única que o


distinga. Cada frame precisa retratar a personalidade da obra. Diferente do
cinema de orçamento, no cinema indie temos menos controle do visual.
Sem dinheiro, a parte mais prejudicada é a direção de arte e locações. No
caso do SCAM não houve tanto controle na escolha das locações,
basicamente gravávamos onde conseguíamos. Como quase nunca tinha
visita técnica, era sempre uma surpresa o local. Apesar disso, SCAM é o mais
coeso dos meus filmes. Defini a linguagem que seguiria na direção. Como
estava interessado pelo cinema gráfico de Nicolas Rinding Refn, decidi
aplicar alguns princípios específicos na composição e movimentação de
câmera, onde usamos um slider barato para as paralaxes.
No cinema Indie, o maior responsável pelo visual são as locações e,
para nossa sorte Camarões, é o típico país em que a direção de arte já vem
pronta. Yaoundé é cinematográfica. A empoeirada cidade tem uma paleta
de cor definida: tons de creme e marrom dos prédios, verde das árvores
tropicais, laranja das terras batidas e o amarelo dos icônicos táxis, velhos
modelos dos anos 80, customizados, com luzes de led que iluminavam o
chão, e muitos adesivos. São tão precários que, em um determinado
momento, ao fazer uma curva a porta se abriu me jogando para fora.
Outro elemento importante é a população, que está em todos os
lugares: vendendo peixes e amendoins, jogando bola, trabalhando, ou
aparentemente à toa. Isso enriqueceu o visual. As locações internas
parecem que foram montadas para o cinema. Na Lan house, o local era
cheio de informação: paredes velhas, computadores amarelados dos anos
90, tomadas e fios aparentes compunham um visual estiloso. Inclusive um
dos figurantes dessa cena vestiu uma roupa tradicional africana
coloridíssima. Melhorando a composição. O local mais usado para gravar o
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filme foi a faculdade de Yaoundé. Além das salas de aulas e pitorescas


quadras de basquete, também aproveitamos o alojamento dos estudantes
para rodar o esconderijo dos bandidos: paredes e móveis velhos dividiam o
espaço com um grande pano de motivos africanos que o Ken trouxe dos
EUA. Lá também tinha uma pequena lanchonete que, com luzes de LED e
gelatinas vermelhas e azuis, pudemos trazer alguma influência dos anos 80
ao local. Mas minha locação favorita foi uma humilde casa de família. O
visual da periferia era impressionante, tive a sensação de estar em um
filme. As inúmeras vielas, corredores, crianças brincando, roupas no varal
pareciam feitas sob medida para serem gravadas. Dentro da casa da família,
era ainda mais impressionante: as telhas eram transparentes de forma que
a difusa luz do sol iluminava a poeira do ambiente. Agradeci o privilégio de
dirigir uma cena lá, no cinema, o feio, pode ser justamente o belo.

CONSTRUA UMA ASSINATURA VISUAL

Em cada frame, tomada, ação, movimento, seu filme precisa ter uma
assinatura icônica que o distinga de qualquer outro filme já feito. Sem uma
consistência estética, seu filme soará genérico. Para manter a consistência
visual da sua obra, é necessário que todo seu filme seja conduzido pelos
mesmos princípios de direção. Não adianta em uma cena você usar uma
linguagem de movimento específico e na outra uma linguagem distinta. O
mesmo vale para a música, figurinos, locações e qualquer outro elemento.
Quanto mais você conseguir fazer com que os elementos do seu filme se
comuniquem entre si, mais definida será a assinatura visual dele e mais
profissional sua obra soará.

BRANCO (NÃO) MERECE TROCO

A primeira coisa que o produtor Ken fez, quando chegou dos EUA, foi
nos dar um spray de pimenta: Usem com moderação. Como iríamos gravar
em alguns dos lugares mais perigosos da cidade, fazia sentido ter uma
proteção extra. Após três semanas de trabalho no Camarões,
encontraríamos o primeiro branco que não fosse um de nós, ele estava no
outro lado da rua e simplesmente nos sinalizou, nós devolvemos o aceno.
Camarões não é uma nação turística, então quatro gringos andando juntos,
chamavam a atenção. O Ken, negro, sempre negociava as locações para o
filme, porém, toda vez que o dono do local percebia que a equipe tinha
brancos, ele aumentava o preço. Com os taxistas era a mesma coisa. Ken
nos mandava ficar “escondidos” do outro lado da rua. E somente após
fechar o valor, ele sinalizava para nós entrarmos no carro. Era uma maneira
de não pagar um valor inflacionado.
Mas isso não era nada perto do que costumava acontecer durante as
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gravações nas ruas. Algumas pessoas eram hostis. Queriam boicotar nossa
gravação. Era como se nós não fossemos bem-vindos por uma certa parcela
da população. Às vezes rolavam ameaças: certo dia, um sujeito surgiu com
uma faca para nos intimidar. Ken era sempre o responsável para apaziguar
as coisas, o que geralmente era feito, por meio do dinheiro: – Te dou
dinheiro, grana, e você nos deixa em paz, fechou? Quando não era possível
negociar, mudávamos de local. Teve um sujeito que, de tão insistente,
seguiu-nos por inúmeras quadras, atrapalhando a gravação e nos
provocando.
Certo dia peguei uma corrida de táxi junto com o ator Sony. Quando
chegamos em casa, paguei para o motorista, porém o ressentido homem se
recusou a devolver o troco: – Branco não merece troco. Aqueles centavos
não valiam a briga. Se sacanear alguém fosse fazer o dia dele mais feliz, tudo
bem. Fui até o portão. Toquei a companhia. Porém, quando me dei conta,
vi que o ator não estava ao meu lado. Ele ainda estava discutindo com o
Taxista. Sony, camaronês, negro, que na semana anterior chorou por não
ter sido convidado para o jantar, estava defendendo o branco: – Devolve o
troco dele!
A discussão chamou a atenção de alguns populares que nos
cercaram. O agressivo taxista foi para cima do Sony. Rapidamente, o ator
usou o spray de pimenta contra o motorista que, assustado, gritou de
desespero. A confusão estava armada. Nesse momento, surge o Ken: – Que
merda é essa, Kaco? Apontei para o irritado taxista que ainda lacrimejava.
Ken respirou fundo e foi até o sujeito: – Está bem, cara, tenho dinheiro! Para
infelicidade dos que estavam entretidos com o espetáculo, o dinheiro
encerrou a confusão. O Taxista pegou a grana sem agradecer, entrou no
carro e acelerou fundo cantando o pneu. Ken olhou para nós e falou: –Todo
dia vocês me arrumam confusão!

EVITE CONFUSÃO

Nas produções de grande orçamento, é comum fechar logradouros


públicos para gravar as cenas com tranquilidade. Porém, no cinema de
guerrilha, nem sempre você terá condições de enfrentar processos
burocráticos para fechar uma rua, a probabilidade de você dividir o espaço
de set com populares é grande, e isso pode gerar alguns problemas:
curiosidade, xenofobia e hostilidades. Não responda a nenhum tipo de
provocação, se a cena estiver inviável, busque outro lugar. Evite confusão.

ESTOU TRABALHANDO!

Gravaríamos uma cena em uma lanchonete da faculdade de


Yaoundé. Eu, Jesus e a equipe técnica chegamos à locação e fomos preparar
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a gravação. O local era feio, apenas uma estrutura metálica vermelha com
algumas mesas típicas de país tropical, no local ainda tinha um grande logo
de uma marca de café, o que não ajudava na composição. Mas demos um
jeito de melhorar. Usamos umas luzes de led, gelatinas azuis e vermelhas,
para dar um visual anos 80. Estava pronto para rodar, porém Ken e o ator
Felix atrasaram 3h, deixando todos irritados: – Combinamos as 19h, Ken!
Ken retrucou: – Black Time (tempo de preto) é sempre duas horas depois! –
Mas vocês na verdade, estão três horas atrasado! Retruquei. “Black time”
era a expressão favorita do Ken. Toda vez que ele se atrasava, justificava o
atraso como se fosse algo inerente à cor, Hervé, camaronês, negro, e que
nunca se atrasou, não concordava: – Isso não é black time, é “Ken time!”
Finalmente iniciaríamos o trabalho com os figurantes e a própria
dona do local, desgastados pela espera. Como a gravação iria se estender
para além do que havia sido combinado, a dona do local pediu mais
dinheiro para o Ken, que ficou puto e nos cobrou agilidade: – Acelerem essa
merda, pois não quero pagar mais um centavo! Jesus retrucou: – Isso é
problema seu! Em outra diária, Felix e Ken novamente chegaram atrasados,
pois mais uma vez, tinham ido à balada no dia anterior. Felix estava
visivelmente cansado. Na hora de passar a cena, ele dormiu no set. Eu o
acordei e mandei prestar atenção nos ensaios. Porém, ele não conseguia.
Dei continuidade ao trabalho, o filme precisava acontecer. Na hora de rodar
a cena, obviamente ele não estava preparado e errou, atrasando ainda mais
o cronograma, ele então ficou puto: – Você está de sacanagem, Kaco! A
resposta me irritou e perdi o controle: – Sacanagem é o que você está
fazendo com todos aqui! Joguei o roteiro no chão, a caricata reação
tempestiva o acordou. Ainda durante a diária, ele se desculpou pela
confusão, em pouco tempo já estávamos rindo do que havia acontecido.
À noite, como fazíamos todos os dias, fomos em um bar beber, a
desculpa era clara: na nossa base não tinha internet e, para produzirmos o
filme, deveríamos acessar o Wi-Fi dos pubs e combinar as coisas com os
atores e a equipe. Claro que a noite, que sempre começava com uma
cerveja, inevitavelmente evoluía para alguma balada ou inferninho, que
não importa em que lugar do mundo você esteja, é sempre o lugar onde
acontece as coisas mais bizarras: em uma noite, um sujeito colocou cerveja
na nossa mesa e, sem dizer nada, fez dez flexões e saiu fora. Em um outro
dia o caucasiano Jacob pegou um moto-táxi e chegou meia hora depois de
todo mundo, gerando teorias sérias de que ele havia sido sequestrado.
Sempre voltávamos para casa estragados desses rolés, e gravávamos
sem dormir no dia seguinte. Eu estava ciente de que, se seguíssemos aquele
ciclo, não terminaríamos o filme. Sendo assim, eu e o Jesus decidimos voltar
mais cedo para casa. Na hora de pegar um táxi, duas mulheres começaram
a nos encarar: – Deve ser porque somos gringos. Entramos no taxi e as
meninas entraram também. Ficamos perplexos. Elas não falavam nada,
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nem entre elas, nem conosco. Porém, em Yaoundé, diferente do que


acontece na nossa cidade natal, São Paulo, é comum o compartilhamento
de um táxi entre diferentes passageiros e destinos, então talvez fosse só
uma coincidência: nós voltaríamos para nossa casa, e elas iriam para o
destino delas, seja lá qual for. Porém, quando chegamos em casa, elas
simplesmente desceram do táxi e continuaram nos encarando, sem falar
uma palavra. Jesus concluiu: – Elas querem entrar! Honestamente não me
lembro na minha vida de uma aproximação sexual tão bizarra. A verdade,
porém, é que eu não estava com planos de dormir com ninguém: – Fique
com as duas, Jesus! Dormi sozinho. No dia seguinte estávamos
descontraídos, conversando, quando no almoço citamos o caso das garotas.
Yacob, Ken e Felix riram: – Kaco, achamos que você está estressado e
precisasse se distrair um pouco! Concluiu o Ken. Estava tudo explicado.
O problema é que essa vida boêmia abaixou o ritmo do trabalho.
Perdíamos cenas à medida que os dias se passavam. O que antes era
engraçado, tornou-se sério. Algumas cenas, que no roteiro eram grandes
eventos, tivemos que reescrever de maneira que elas ficassem mais rápidas
para gravá-las em diárias cada vez mais corridas. No roteiro, uma cena
completa de suspense do NICO entrando em um banco teve que ser
reduzida a uma tomada de 15 segundos. De atraso em atraso, fomos
boicotando o filme, diminuindo seu apelo e tornando o roteiro mais raso.
Havia dias que não gravávamos nada, de tão mal otimizadas que estavam
as diárias. Em mais um dia de atraso, Jesus não aguentou e estourou de
raiva! Chutou a porta do quarto do Ken: – Acorda, filho de uma puta!
Estamos atrasados de novo! Ken saiu da cama e foi para cima do Jesus.
Tivemos que separar. As brigas se tornaram cada vez mais comum. No
mesmo dia, Jesus e Ken novamente brigaram na balada; em outro, Ken ficou
puto com o Adam, que se trancou com uma das atrizes no quarto e sujou o
lençol com fluidos corporais.
As pessoas deixaram de acreditar. A jovem atriz Nalong estourou: –
Não aguento mais isso! Sony decretou: – Esse filme é uma piada! Jesus
perdeu o foco e não se concentrava mais para o trabalho. Assumi uma parte
da produção do longa e comecei a tratar a produção diretamente com o
Engo e o produtor Ghislain que, embora competente, também estava se
perdendo na confusão. Todos apontavam o dedo para o Ken, inclusive eu.
Com lágrimas nos olhos, ele surtou e gritou: – ESTOU TRABALHANDO,
PORRA! De certa maneira, vê-lo agoniado, sofrendo pressões de todos os
lados, lembrou-me de como eu me sentia nas últimas diárias do SOROCHE.
Assim como ele, também fui contestado. Poucas pessoas imaginam a
pressão que o mentor de um projeto de cinema carrega na alma. Não é fácil
lidar com pessoas mal pagas te julgando o tempo todo. O filme era o projeto
da vida dele, assim como o SOROCHE um dia foi o projeto da minha. A alma
dele estava escrita em cada linha naquela história. Fizemos um pacto de
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finalizar o filme. Os atrasos tinham ficado para trás, era hora de trabalhar
de verdade. Ken acordou quatro da manhã e serviu o café. Saímos e ficamos
basicamente até as 18 horas gravando como nunca havíamos feito.
Conseguimos o que parecia impossível e praticamente recuperamos o
cronograma em umas três diárias densas. Agora, só tínhamos apenas mais
um dia no Camarões e todo um clímax para executar.

JAMAIS PERCA O FOCO NO PROJETO

Dependendo do tamanho de sua produção, você pode se ver no olho


de um grande furacão. Como líder, investidor e mentor criativo do projeto,
o cineasta de guerrilha acumula muito poder na produção, mas igualmente
muita pressão. Não é fácil lidar com dezenas de profissionais que não foram
remunerados com papel moeda solicitando soluções o tempo inteiro. Além
disso, a produção de um filme (como em qualquer lugar que reúne muitos
humanos) é um convite para distrações externas: baladas, festas,
relacionamentos e até mesmo drogas podem fazer parte do cardápio e o
risco de se deslumbrar é real. Exatamente por essas razões, você, como
mentor da obra, precisa ter uma rígida disciplina e foco.

IMPROVISANDO UM CLÍMAX

Iríamos embora no dia seguinte, mas ainda precisávamos filmar o


clímax – uma sequência de 4 cenas: BAMBA (Nalong) seria sequestrada pela
gangue liderada pelo CAPITÃO AMÉRICA (Ken). NICO (Sony) mataria o líder.
Salvaria sua namorada. E por fim, ele seria preso acusado de assassinato.
Se não bastasse a sequência ser complexa, ela deveria ser de ação, afinal é
o clímax do filme. No roteiro original, essa sequência seria uma perseguição
na savana, envolvendo bandidos, policiais e tiros. Devido à complexidade,
ela deveria ser gravada em três diárias. Porém não tinhamos tempo, nós
voltaríamos para o Brasil no dia seguinte. Então, deveríamos reescrever a
cena para rodar em um dia, e dentro da cidade. Porém, como acharíamos
um lugar para o clímax, se nem internet tínhamos em nossa casa? Ken teve
a sacada de gravar no campo de obras do Estádio Omnisports, que na época
estava passando por uma grande reforma. A locação era espaçosa,
instigante, cheia de tratores e caminhões, e não teria ninguém tentando
nos matar e, o melhor de tudo, estava a menos de 100 metros da nossa
casa. Porém, precisávamos ter autorização: – Deixa comigo. Garantiu Ken.
O desafio era refazer as cenas de forma que ficassem realizáveis nas
novas condições de locação e tempo: a gangue perseguiria o casal em meios
a caminhões de carga e tratores, BAMBA seria alcançada e, para salvar sua
amada, NICO mataria CAPITÃO AMÉRICA, depois enfrentaria o restante da
gangue. Tínhamos outro grande problema: como gravar uma cena de briga
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envolvendo cinco atores sem nenhum tipo de ensaio? A cena de briga que
havíamos gravado anteriormente no filme tinha ficado ruim. Preocupante.
Era o grande dia. Jesus teria que resolver uma questão burocrática. Ou seja,
eu dirigiria e filmaria o clímax. Foda-se linguagem e composição. Não
tínhamos tempo, o filme sairia da maneira mais raiz possível: câmera na
mão. Por sorte, o clima se manteve estável, com um típico mormaço. A
difusão do sol nas nuvens trouxe uma luz solar homogênea que acelerou o
trabalho. Hervé trouxe umas moscas temperadas com ervas para a equipe
comer, pelo menos eram melhores que a baguete recheada de macarrão.
Fiz reconhecimento do local e percebi que os caminhões e tratores
formavam uma espécie de circuito oval de uns 400 metros. Um espaço que
permitia rodar a perseguição, que seria filmada por mim de dentro de um
carro. A solução resolveu o sequestro da BAMBA em menos de duas horas.
Porém ainda restavam mais três cenas. Fomos executar a briga entre
NICO e CAPITÃO AMERICA. Não sabíamos como começar. Elaboramos um
plano. A briga aconteceria em cima de um caminhão. Isso limitaria nosso
espaço de ação e teríamos mais controle. Eu poderia girar a câmera em 360
graus que nossa equipe não apareceria. Depois de pelo menos uma hora de
planejamento, definimos que a briga seria toda improvisada, porém deveria
seguir quatro beats na seguinte ordem: NICO e CAPITÃO AMÉRICA subiriam
no caminhão. Eles trocariam porrada. NICO acharia uma corrente e a usaria
para bater no seu algoz. CAPITÃO AMÉRICA tomaria a corrente de NICO e o
enforcaria com a mesma até NICO se apagar. Claro que havia problemas de
continuidade. A cada tomada a roupa deles ficava mais suja, o boné e a
boina dos personagens caiam em diferentes momentos durante a ação. E
eu sabia que teríamos problemas com a edição, mas não havia o que fazer.
A única coisa que definimos é que quando CAPITÃO AMERICA enforcasse
NICO com a corrente, ambos deveriam de alguma maneira estar sem o
boné. Desencanei de me preocupar tanto com esses detalhes e deixei fluir.
A cada tomada, colocava mais e mais sangue na roupa dos personagens. Fiz
planos detalhes, abertos e fechados, sob o olhar de curiosos populares.
Ainda faltava a parte dois da briga. NICO, que o público daria por
morto, acordaria e mataria seu algoz. Ambos os personagens pulariam para
um outro caminhão e a briga seguiria, só que dessa vez com faca. Gritei para
os populares se alguém tinha uma faca e me deram uma peixeira. Usamos
a mesma técnica de direção e improviso da primeira parte da briga e
encerramos a sequência com NICO esfaqueando o vilão. Usamos um pneu
para simular o corpo do bandido. Colocamos sangue cinematográfico num
saco plástico. Sony esfaqueou o pneu, o saco estourou e o sangue voou para
a lente da câmera. Adorei aquilo! Sony estava cansado: – Não aguento
mais! – Aguenta sim! Respondi. Ainda tínhamos muito a fazer. NICO
precisaria resgatar a BAMBA. A proposta era ser mais uma cena de briga.
Porém não daria tempo. Teríamos que ser práticos. Circulei pela locação
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para pensar numa solução. Achei um contêiner metálico vazio. Usaria a


estrutura para formar o cativeiro onde os sequestradores estariam com a
BAMBA. NICO entraria e seria surpreendido pelos bandidos. Quando
estivesse prestes a morrer, surgiriam do nada policiais e prenderiam todos.
Deus ex machina2? Solução preguiçosa? Sim, mas precisava concluir o job.

O CLÍMAX DEVE SER O PONTO ALTO DO FILME

Um filme ruim pode ser salvo por um grande final, mas nem o melhor
filme do mundo sobrevive se o final for ruim. O clímax é o evento mais
importante do seu filme, deve ter o pico emocional, visual e concluir a
trama da sua obra de maneira satisfatória para o público. Invista seus
recursos e energia nesse grande evento, procure locações épicas e abertas
para trazer maior senso de magnitude para a sequência. Leve seus atores
ao limite. Traga drama, viradas e surpreenda sua audiência.
2- Expressão greco latina, usada quando se força uma solução para o clímax de
uma história.

A PRISÃO

A gravação do clímax do filme chamou a atenção de muitos


populares: brigas, facas, correntes e atores banhados de sangue
cinematográfico, não é difícil imaginar que os mais distraídos tenham
achado que se tratava de algo real. De alguma maneira, assim que acabou
a gravação, a polícia de vestimentas verdes, tradicional boina vermelha e
fortemente armada nos surpreendeu: – Quem é o responsável? Todos
apontaram para mim: o diretor falastrão que não parava de gritar. A polícia
solicitou que fôssemos até o quartel por desrespeitamos a instituição
(tínhamos atores usando a farda), criação de tumulto, filmagem sem
autorização, entre outros delitos. Os atores fardados foram algemados
como se fossem bandidos. Jesus e Jacob, que não são bestas, saíram de
fininho, porém, diferente deles, eu não poderia sair, pois, além de os
policiais já terem me marcado, eles pegaram meu equipamento. A bizarra
cena de policiais algemados, atores ensanguentados e um branco no meio
despertou olhares perplexos dos inúmeros vendedores de amendoins.
Chegamos à velha delegacia para prestar depoimento. Além de mim
e dos atores, alguns produtores do longa, como Ken e Ghislain, também
haviam sido detidos. Tiramos a tradicional fotinha de "criminoso" e fomos
fichados. No começo, a situação estava tranquila: Ghislain, nosso line
producer, estava apaziguando a situação, e os policiais já não pareciam tão
hostis. Porém, em um determinado momento, eles decidiram ligar a
câmera, meu peito ferveu. E se eles deletassem o material? Já tínhamos
perdidos muitas cenas do filme por inúmeros problemas, mas se
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perdêssemos o clímax que era, disparada, a mais importante sequência do


longa, o filme seria completamente anulado. O nosso sonho estava na mão
de um policial hostil que iria avaliar o material para saber se deletaria ou
não. Por sorte eles estavam perdidos com o equipamento: não sabiam
como ligar a câmera. Eu me ofereci para “ajudar”: com a câmera em minhas
mãos mostrei só o que eu queria mostrar. Meu plano deu certo, eles viram
que no material não tinha nada demais e de alguma maneira fiquei com a
câmera em mãos. Achei que a situação ficaria mais tranquila, mas estava
errado. Os injustiçados atores algemados discutiram em francês com os
policiais que, irritados, conduziram-os até uma outra sala. Ouvi gritos.
Ghislain se desesperou. Ele tinha feito de tudo para preservar os atores que,
coitados, não tinham culpa. Porém era tarde, eles agora estavam
literalmente presos. A essa altura eu já tinha escondido o cartão da minha
câmera no meu bolso. Torci para que não encrencassem mais comigo.
O tempo passava. Fiquei preocupado com meu avião que sairia
dentro de poucas horas. Eu não entendia totalmente o que eles tanto
discutiam, pois falavam francês. No entanto sabia que era de mim, pois toda
hora falavam BLANC3. Ken solicitou que nós pudéssemos sair para falar com
a embaixada norte americana, surpreendentemente o policial deixou,
porém, quando Ken me chamou para ir com ele, o Policial gritou: – O BLANC
FICA! Ken prometeu que resolveria a minha situação e saiu. Horas se
passaram e nada do Ken voltar. Ter sentido a privação da liberdade foi
perturbador, ainda mais em um país onde eu já tinha experimentado
xenofobia. O pior de tudo era saber que a detenção estava bem embasada:
a produção de fato desrespeitou as leis e, se eles decidissem que eu deveria
ir para trás das grades, eu não sei se teria meios de contra-argumentar.
Depois de umas seis horas nessa agonia, eu me dei conta que estava prestes
a perder o avião, foi então que eu perdi o controle e comecei a desabafar
3 - Branco em francês
com o Sony, que permaneceu do meu lado me apoiando. Em um
determinado momento, botei a mão no bolso e vi que tinha 120 Euros – o
que na moeda local é uma fortuna. Não tinha coragem de oferecer para os
policiais, pois isso poderia se configurar mais um crime e eu me complicar
ainda mais. Falei para o Sony fazer o serviço sujo. Deu certo: após pagar
minha “fiança”, eles devolveram meu passaporte e fui liberado. A sensação
que tive foi indescritível. Agora era só voltar para o Brasil.
Cheguei na base cinematográfica e arrumei minha mala o mais rápido
que pude. Olhei para o estabilizador de câmera do Ken e perguntei: –
Quanto custou isso? – 120 Euros – Certo, agora ele é meu! Peguei o
equipamento e, enquanto eu colocava na mala, o resignado Ken apenas
sussurrou: – Meu estabilizador... Então me dei conta que uma parte dos
meus equipamentos não estavam na base. Sony se irritou: – Eu falei para
vocês separarem os equipamentos do Kaco, PORRA! Ghislain explicou que
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estava no porta-malas de um carro estacionado na delegacia. Deu-me


calafrios saber que teria que voltar lá. Foram 30 minutos até o dono do
carro chegar com a chave. Finalmente as malas estavam prontas!
Passaporte, equipamentos e o mais importante: os arquivos brutos do
filme! Porém faltava menos de uma hora para o avião decolar. Ken mandou
o taxista pisar fundo. No caminho do aeroporto fomos novamente parados
por mais alguns policiais: – Fuck! Gritou o Ken. Tudo que eu menos queria
era encontrar novamente um policial. Porém Ken agiu rápido dessa vez e
prontamente pagou os policiais. Como diz o ditado: crie dificuldades para
vender facilidades.
Logo após o enquadro, o nosso taxista atropelou um motociclista. A
moto caiu no chão, e o motoqueiro ficou agonizando de dor. Populares
curiosos cercaram o carro. Ken falou: – Está bem, tenho mais dinheiro! Ele
mostrou uns dólares para o motociclista que prontamente se levantou,
pegou o dinheiro, xingou o taxista e seguiu seu caminho... mancando. Nesse
momento, Ken começou a chorar, logo o choro se transformou em uma
gargalhada generalizada entre todos ocupantes do carro. Rimos enquanto
o taxista costurava os carros para chegar a tempo no Aeroporto. A gente se
abraçou. Agradeci por termos enfrentados juntos a guerra que foi produzir
esse filme! Em um dia estávamos trocando porrada, no outro éramos
melhores amigos. A vida de um cineasta é mais rica que premiações ou
reconhecimento. É de fato viver uma história e ir até o limite. Talvez aquela
fosse a última vez que nós estaríamos juntos... Nostalgia é o preço que
pagamos por ter vivido a felicidade. Não havia tempo para despedidas.
Fomos para o embarque e, acredite ou não, ainda teria mais um último
problema. Um segurança pegou meu passaporte e dentro tinha o
documento de um camarones aleatório, provavelmente os policiais
esqueceram quando ficaram com meu passaporte. Contei a minha história.
Não sei se ele acreditou, mas, para minha sorte, ele deu uma forte risada
com seus dentes brancos: – OK Blanc, vá embora... Segui meu caminho
apressado para não perder o embarque. Fui o último a entrar no avião.
Jesus comentou: – Achei que você não embarcaria. Essa foi a volta do SCAM.
Ah, sim... os atores foram liberados no dia seguinte.

BUSQUE AUTORIZAÇÃO PARA USO DE FARDAS E SIMULACROS

Se for gravar em lugar público usando: fardas, simulacros de armas


de fogos e/ou armas brancas, você precisa solicitar autorização do
Comando do Exercito. Pois o uso desse tipo de equipamento em lugar
público configura contravenção penal prevista no art 19 do decreto-lei
3.688/41 e o estado tem direito de apreender ele de você. E você pode até
mesmo ser preso. Por isso, atenção com esse tipo de material.
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A DOENÇA DO FILMMAKER

Após voltar da gravação do SCAM REPUBLIQUE, comecei a editar o


filme, estava empolgado e queria fazer o melhor filme possível. Porém Ken
deu diretrizes que eu não concordava. Afastei-me do projeto, pois não tinha
a palavra final. Porém, Ken ficou travado na edição e meses depois me
procurou novamente para editar. Dessa vez, eu estava sem tempo, pois
estava trabalhando em jornada dupla em agências de publicidade, para
juntar dinheiro para o filme WANDERLUST. Indiquei um editor conhecido
meu. Algum tempo depois, o editor alegou que não recebeu a parte do
pagamento. Perguntei ao Ken o que havia acontecido: – O trabalho desse
cara é uma merda!
Depois de uns meses, Ken me mostrou o corte dele. Ele misturou o
filme com imagens genéricas da internet e cenas do making-of em uma
montagem sem sentido. O filme se tornou um remendo, um estranho
documentário, no qual a história foi deixada de lado. Foram muitas brigas
e discussões, nas quais eu tentava inutilmente explicar que ele estava
jogando a obra dele no lixo. Ele se irritou: – Aqui é Hollywood, porra!
Desencanei do SCAM. Porém, tempo depois da gravação, Ken veio
novamente para o Brasil e perguntou se eu poderia editar o filme. Coloquei
duas condições: corte final seria meu e a edição de som, que seria feita no
estúdio do Cello, deveria ser paga à vista. Ken topou. Fomos a uma festa
nesse mesmo estúdio fechar o acordo e tomar uma cerveja. Na hora de
pagar a conta, porém, o cartão do Ken travou. Cello que já conhecia o
desacordo com o antigo editor se impos: – Sabe o que eu faço com
caloteiro? Enfio um cabo de vassoura no cu até rasgar o intestino.
Todos no estúdio ficaram assustados. Mas, sem mais nem menos, ele
emendou: – Zuera! Seja bem-vindo, maninho! Ele então abraçou o Ken.
Editei o filme do zero em apenas 15 dias. Tive que jogar muitas cenas
fora, e o corte final ficou com apenas 50 minutos, o tamanho mínimo para
ser chamado de longa nos EUA. As cenas que não gravamos pelos
problemas no set fizeram falta. Apesar disso, tive muitas ideias para salvar
o SCAM de verdade, mas teríamos que gravar novo material: – Kaco, você
sofre da doença do filmmaker. SCAM já era!
Até entendo o Ken, mas não concordo. Talvez eu insista demais nos
meus filmes e seja apaixonado por meu trabalho. Minha namorada falou
que sou obsessivo pelo meu trabalho. Ela tem razão. Se tivesse dinheiro,
juro que voltaria para Africa, só para materializar a versão do SCAM que
infelizmente só existe na minha cabeça. Fazer filmes às vezes é frustrante.
É duro descobrir que existem coisas que nem a edição pode salvar. A
impotência da falta de recursos, o amargo arrependimento das decisões
equivocadas e das nossas falhas, cortam a alma.
Apesar de tudo, orgulho-me do que vivi nessa produção. SCAM foi
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nomeado como melhor longa em um festival de NY e ainda conseguiu sua


distribuição na África. Cumpriu seu objetivo.

SAIBA A HORA DE PARAR (OU DE INSISTIR)

Como as questões mais complexas da vida, não existe certo ou


errado. Talvez faça parte da vivência do cineasta indie a frustração e o gosto
amargo de ver um projeto não sair da maneira que se queria! E se a luz não
tivesse caído aquele dia? E se não tivéssemos perdido aquela diária? O “se”
não existe no cinema indie. Em algum momento, você precisa deixar seu
projeto ir e olhar para frente, para buscar novas realizaçõe

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