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ENTRE PAREDES

TÂNIA MARTINS

O portãozinho aberto em quarenta e cinco graus. Pequeno, de vigas finas com pontos de
ferrugem e marcas de tinta raspada a canivete ou, possivelmente, unhas. São quatro
passos até o alpendre. O piso vermelho, torto, brilha sob luz do poste de madeira no
canto esquerdo da casa. O padrão da eletricidade fecha aquele canto, mas, antes, se vê
folhagens, poucas, sufocadas por tocos de cigarro, latas e uma caixa vazia de meias Du
Loren. Do lado direito o relógio da SAE esguichando água.
A porta da sala engole a metade de um tapete de tiras redondas e, talvez, manchado de
barro. Talvez não haja coisa alguma nele, pois está escuro na sala. Uma cadeira dá as
costas para a televisão embargando a passagem para a cozinha, mas, nesta, há luz, uma
luz inesperadamente forte que a cortina de renda, sim, de renda, mas recoberta com
tecido no tom mais escuro da renda, não deixa passar. Alguém, o último que saiu ou
entrou, esqueceu-se de trancar a porta, ela, a mãe provavelmente.
Pai e irmão viram televisão até chegar o sono. O irmão vestira uma camiseta com
logotipo de um hotel da Flórida no peito e o sono o abatera no meio de um comercial.
Seus papéis caem do bolso, a calça encobre o pé de um tênis. Arrastara-se até a cama e
dorme com as pernas de fora do colchão. A luz do vitrô vela ou flagela seu sono: O
corpo moreno, belamente torneado, cuecas, não cuecas, mas um short em que deve ter
se metido bêbado de sono, minguado e vadio, deixa à mostra uma parte do seu sexo.
O cheiro do pai fumante e de suor de muitos dias no corpo, e que estivera vendo tevê
com óculos que achou na rua dia destes, continua no ar. Sentara-se sobre um dos braços
da almofada no outro canto do sofá, num braço já defeituoso, este, próximo à porta de
saída, e ali dorme de mau jeito. Perto do jarro sobre a mesa com caneta, vê-se lápis de
cor e duas flores secas dentro, folhetos distribuídos hoje na missa da manhã encobrem
os brincos da irmã que saiu e ainda não voltou. Ao lado uma caixa de sapatos com
santinhos e fotografias dentro.
A luz da cozinha fere os olhos, torneira semi-aberta, chumaços de papel queimado pelo
chão, um gato passeia pela pia. A porta que divide o corpo da casa do quartinho do pai
ao fundo está trancada. Seqüência de vasilhas destampadas, vazias sobre o armário, pia
e fogão, murmúrio interrompido da geladeira, um cheiro distante de comida no meio do
calor.
O banheiro no corredor marca distância entre o quarto do irmão e delas, da mãe e da
irmã. Ela, a irmã, ainda não voltou: O “Fantástico” com os Gols da Rodada foram-se há
séculos e ela não voltou. A fresta do quarto delas coincide com a porta do guarda-roupa
de espelho, aparições tumultuadas ali: Cintos invadindo o espaço das pinturas, pentes,
um secador de cabelo que ela tomou emprestado de uma amiga que trabalha em um
magazine. Marcas de batom na toalha jogada sobre a cama de solteiro.
Na outra cama em paralelo a mãe está deitada sobre uma colcha de retalhos. Suas pernas
– uma delas com uma cicatriz logo acima dos joelhos - fazem um quatro. Deitou,
dormirá? De bruços, um braço apoiando a cabeça voltada pra parede, cabelos foscos em
desalinho. Se não fosse magra, decerto os ombros impediriam de ver-lhe o rosto, mas
este, de olhos cerrados, traiçoeiramente vigilantes, expõe-se juncado por rugas incisivas,
pálidas e implacáveis.
Agora ela ouve o barulho que esperava, mexeu-se toda, talvez se pusesse de pé em um
salto, mas algo a re-impeliu imóvel.Primeiro o trinco do portãozinho. Esperava batidas
leves, mas o que ouviu foi o segundo trinco girando só uma vez. Copo do armário para a
pia depois de ter se chocado com a porta da geladeira, chaves, fru-fru e a porta do seu
quarto.
- Você viu? A mãe perguntou.
- O quê – Disse a filha.
Nasceu manequim, quase não cabe dentro da casa. Uma princesa seqüestrada em uma
choupana, uma high-society perdida no subúrbio, primeira grandeza entre pedregulhos.
- Você viu? Procure, vamos! – A mãe repete.
A primeira voz era fininha, amigável, pedinte. Fosse a primeira vez, diria “minha filha”,
e a filha responderia meigamente: O quê, mamãe? Era um Cristo, um pôster sobre a
cama, em preto e branco. A foto de um destes delicados filhos da classe média que
deixam os cabelos crescer e se armam de uma límpida melancolia.
- Aí na parede, namora a ele, Jesus!
Foi uma ordem, calou. Ela meio que sorriu.
- Onde foram? – perguntou.
- Estava chato. – A filha responde.
Nada mais detém os movimentos pontiagudos do seu corpo: Pôs-se de costas baixando
o tom. A outra vai e vem pelo quarto desentulhando a cama.
- Ele apareceu?
- Não.
- Mas, então?
- Tá, mãe, apareceu.
- Certo. Então você falou pra ele que não tem nada a ver com... - Abaixando a voz ainda
mais.
- A mãe dele me chamou de...
Agora o rosto dela virou enterrando-se na parede. Sua voz saiu como se fosse baldes de
pedra sendo içados de um poço:
- Falei pra não chegar tarde, é vida que se leve?
- Mãe, durma.
- Por que você não reza?
- Mãe.
- Você nunca se defende!
- Quero dormir, mãe.
- Acreditei em vocês no começo, lembra?
- Foi há tanto tempo!
- Que tanto tempo? Ano passado!
- Pois é.
- Gosta dele demais, não é? Morre.
- É.
- Eu já te falei que ele não dá futuro, procura outro.
- Da minha vida cuido eu - Ela diz, deitando-se.
- Mas o quê que eu faço com você? Você não entende!
- Eu sei da minha vida.
- Como te fiz boba, minha filha. Fiz além de minhas forças, sabia?
- Tá bom, mãe, ele estava em casa, satisfeita?
- Mentira! Mentira dele, não vê? Você é o seu resto de noite!
Pausa. Os olhos dela fixos na laje.
- Rua a essa hora é só perigo, devassidão.
- Ah, ah, ah! Como é? Mais uma palavra nova!
- Você conhece esta palavra!
- Tá, mãe, então, conheço!
Ela de pé no meio do quarto repentinamente, ah, sabia, desconfiava, tinha certeza,
braços abertos, agitados como um boneco ventríloquo.
- Conhece!
- Então conheço.
- Sua suja, sua nojenta, outra vez entupida! Você conhece esta palavra! O que foi desta
vez? Um coquetel, uma salada maldita? Vai vomitar agora pra eu ver, vagabunda!
E vapor de roupas arremessadas, um pé descalço golpeia o piso, seguido de outros
golpes.
- O que foi desta vez? Dinheiro pra casa é que ninguém tem! Sua mula, minha filha,
pelo amor de Deus, droga não, tudo, menos droga! - Choro – Fala! Foi na veia, na boca,
no nariz? Bebeu, fumou ou picou-se, que diabo fez? – sombras, gonzo a porta,
abalroamento de outra porta, a do banheiro. Novamente embate de braços, choro.
Macios, compridos e frágeis os da filha. O vulto da mãe é uma lagartixa esmagada na
parede.
- Vomita.
- Me deixe em paz, mãe.
Súplica débil, morrente. Sim, ela olhou os olhos da filha, secos e vermelhos como se
alguém os tivesse machucado somente entre as pálpebras. Ancorada na porta do
banheiro, doce e tristemente. O zíper da saia da mãe desceu, seus velhos pés cirandam
pelos cômodos, mãos correm por panelas, gavetas e forros em busca de uma faca.
Depois interrompe, afasta-se de tudo aquilo e ajoelham-se, com as mãos postas em cruz,
no meio da cozinha!

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