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HI-FI

TÂNIA MARTINS

Saiu todo moça da frente do espelho, muito perfumado e um certo cansaço. Domingo,
pensou, é uma hecatombe. Passaria no salão da Lia, sua amiga. Depois? Depois dar-se-
ia por perdido a vadiar por aí até perder o rumo de casa.
Voltou ao espelho. Sua idade possível, “não declarada” se fizera sem medo e eventual.
De outras vezesgostara bem mais do jogo de não se reconhecer. Rápido, afastou-se
como quem evita um susto: Mais perfume, um suéter lilás berrante, saiu batendo a
porta.
A doida da Lia telefonou mais cedo querendo falar sério, mas, sabia, podia ser truque,
nada além de intimá-lo a acompanhá-la até sua casa, lá conversarem aventuras e
desditas, quem sabe mais tarde voltarem às ruas em busca de um bar aberto.
Mais tarde ela escapar com um dos bofes que ele tenta namorar...Talvez segunda
brigassem pelo telefone; Quando trabalhavam juntos, era fatal. Ele confessava odiando-
se por se enrolar com mulher, perder tempo, e, Lia, como sempre, daria uma boa
gargalhada chamando-o de paixão. Ou, imprevisível que sabia ser, talvez abaixasse as
trombas de elefante.
- Por que você ficou séria, minha amiga?
- Penso na minha morte.
- Que baixo astral é este, doida!
Distanciaram-se: Ela namorando alguém chamado Humberto e ele retomou seu caso
com o Paulo.Hoje, nem um, nem outro... Lia anda quieta e rara. Muito serviço no salão?
Duvida.Não dizem que esse mundo está cada vez mais cada qual no seu canto chora seu
tanto?
Lia tomou gosto em se vestir, aliás, quanto a isso, o mérito é dele, pois a ensinou a se
sentar com classe, roupa e cabelinho “montados”. O fato é que hoje vai curtir uma
ressaca de Paulo, um coquetel de amarguras chamado Paulo. Sabe que a certa altura vai
se sentir tolo e se atirará nos braços da primeira cara barbuda e morena que lhe aparecer.
- Sofrer desse jeito caiu de moda, meu bem – Ontem outra amiga disse no quarto.
Também perderam a fineza com ele no banheiro da boate na madrugada:
- Penar assim por alguém já é baixaria!
Defendeu-se:
- Você é muito escrota, minha querida.
- E você anda triste feito um bofe.
Paciência.
- Por que você não vem comigo?
- Quero ficar só.
- Você nunca quer ficar só.
- Quero.
- Significa que quer algo novo.
- Não.
- Te conheço.
- Tá bom, prometo a você que vou me lembrar disso na hora da minha morte.
- Paulo, não é?
- Paulo uma ova.
- Não negue.
- Paulo cansaço, minha filha, Paulo muito cansaço.
- Sua filha... Pirou?
- Credo, Lia, que bicho te mordeu?
-Falo sério e você nessa cornice?
- Desculpe, diga.
- Agora? Você acabou com o clima!
- Desculpa!
Não sabe por que ficou generoso, Lia, um gay que fracassa três sonhos se torna um
canalha comum ou generosamente incomum.
- Você fala bonito.
Paulo não devia ter aparecido.
- Disfarça que está requebrando demais.
Leva-o a um canto para chorar, Lia, dar o seu chilique, pelo amor de Deus!
- Você não é só um gay.
- Você sabe que...
- Quero casar com você.
- Para quê, Lia?
- Ora, pra cuidar das suas gripes e fazer de você o mais famoso e charmoso manequim
do Brasil!
- Meus coleguinhas do Exército vão adorar.
- O quê que há? Chega, cara, você tem tudo na vida!
- Tudo o quê, Lia?
- Escritório, elegância na passarela.
- Lia, desfilei há mais de cinco anos!
- Então, esqueça, vá, pensa que sou sua empresária e tenho muita grana.
- Minha querida amiga, que ilusão...
- Ilusão? Sabe quanto faturei este mês? Mais um pouco e serei uma rica e poderosa
mulher.
- Sei.
- Você vai entrar na rota Nova York-Paris-Roma como eu pra minha casa aqui em
Contagem.
- Sei.
E Paulo será o mesmo que fumaça.
- Mais vodka.
- Chega de vodka.
- Mais, Lia.
- Droga de Paulo, seu fraco!
- O seu Humberto também não é lá grandes coisas também não, viu?
- Olhe para mim, estou dando piruetas de preocupação com isso!
- Você é uma mulher forte, Lia.
- Ô, pai, nada pior que bicha em decadência.
- Concordo... Juro, de hoje em diante ando com uma navalha, farei o fígado destes
pederastas todos, vou desenhar uma águia nas suas tripas de pederastas. E irei para as
primeiras páginas dos jornais, claro.
- Meu querido, manhosa, minha flor, conta que bicho te mordeu.
- Vou pra cadeia onde fundarei uma organização de bichas bem perigosas que
aprenderão a defender minhas... purpurinas, deixa quieto que tenho classe, viu.
- Dessa “deprê” o doutor nunca tinha feito, convenhamos.
... Nunca mais cairei depois que...
- Já sei, então é saudade do Exército.
Ficou doida? Que Exército, Lia? Lia toma seus rapazes de vez em quando, mas seu
objeto amoroso também é mulher. Tá, Lia, ficaram juntos uma vez, mas, exatamente
pelo que se passou, aliás, pelo que não se passou, Lia, melhor seria você encontrar
alguém mais estável do que ele pra casar, não acha?
- Tu és uma forte mulher, Lia.
-Não, não sou, estou contigo na falta de alguém mais em conta.
- Prometo que amanhã começo a te fazer feliz.
- Você casa comigo?
- Caso.
- Jura?
- Juro.
... Morou com Luiz... Seu fraco por homens largos, de cara simples como a do Luiz.
Riso franco, barba por fazer. Ele e todos os outros lhe perdoassem o rosto magro,
descarnado da cabeça aos pés, seus gestos secos no escritório que doem como tapa no
ouvido. Falta de curso, elegância que a magia da butique compõe. Toma lá desencontros
sucessivos; A alma de uma pessoa quase nunca está com ela. Acordou sem perceber que
dormiu pensando, que deitou e dormiu três dias assim. Madrugada alta. Lavou o rosto,
bebeu água – A água lhe machucou o estômago. Escreveu: “Lia sua bandida” em um
pedaço de papel na cozinha e o prendeu na parede antes de abrir o gás. Ainda pensou,
como que alheio aos últimos gestos, em ir até lá, falar com Lia, mais uma vez, pois,
certo como dois mais dois, ela,por sua vez, jáentrava em amnésia alcoólica em uma das
mesas do Hi-Fi.

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