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EM FAMÍLIA

TÂNIA MARTINS

Um ex-programador de computador, atual motorista de agência de publicidade, sua


mulher e duas filhas, vieram morar na Casa 2, ao fundo. Programador de computador,
motorista de agência, o quêque eu tenho com isso? Ele briga com a mulher de vez em
quando – disseram - Cá, cuido eu e mal da minha vida. Casa 1, casa 2, casa 3, vida em
colônia dá nisso, o alheio vira bandeirinha de Sete de Setembro.
Isso de homem bater em mulher é como número de manequim: Se faz em série ao longo
de séculos, não? Velho também é o ditado que diz que em briga de marido e mulher
ninguém meta a colher. Mas, entendo que minha irmã se sinta incomodada: Sentadinha
em uma poltrona fazendo crochê, noite e dia, quase um feto comparada às fotos do seu
álbum de adolescente.É que também por aqui o padrão caiu, há anos.
Dado que não me dou por ofendida pelo barulho vizinho, me comovo com suas
mãozinhas embaralhando-se, cabisbaixa, silenciosa. Com outra parenta matando o
tempo com palavras cruzadas sentada em uma velha cadeira de praia ao seu lado – em
sua beleza - louca - de rainha (preservada) e muito mau humor como emblema da
dignidade perdida.
- Hoje, ele mandou a mulher calar a boca, se não, quebrava todos os seus dentes –
Contam.
- Sempre, quando volta da rua, as meninas não sabem se ficam dentro ou fora de casa,
de tanto medo dele.
- Animal.
Penso em notícias de jornal sobre mulheres que castram os maridos, cozinham suas
partes e dão aos cachorros. Que um dia isso acontece e ninguém entende.
Frequentemente se escuta o monólogo de outro rapaz sentado em um sofá da casa de
esquina. Esposa? Filho? “Você já falou demais, vamos parar por aqui antes que eu
resolva fazer... Você sabe o quê!”. Sempre isso: “Você já falou demais, sabia, já falou
demais”. Raios que nunca se ouve esse alguém, filho ou esposa, falar um “a”!
Evito, a alto custo, colidir privacidade com vizinhos. Mas, acabam coincidindo horários
em casa: Vê-lo de braços cruzados, bermuda branca de doer nos olhos (a essa altura ele
manda sua mulher lavar a roupa bem lavada, passar de novo quando não estão no ponto,
gritos sufocados, ouço baques surdos através da “parede-e-meia”), camiseta cavada,
chinelos Rider, de pé na varandinha. Uma garrafa de cerveja no murinho. Pela porta, os
mais verbosos tons de Chitãozinho e Xororó.
Minha tia-avó, fã de Silvio Caldas, Dorival Caymi, Ângela Maria e Dolores Duran,
dentre outros há muito idos, chama o repertório dele de remela de conjuntivite.
- Imaginem o que ele não escutaria se fosse um magarefe?!
- Olha o preconceito! – Dizem.
- Ah, não, tenha dó! Diz minha irmã apoiando a seletividade de titia. Ela, que vive
sossegadinha e sem lembranças do seu casamento de três anos, deve saber o que diz. Os
homens vêm ao mundo para que outra coisa senão exibir chinelos Rider, atribular seus
filhos, deseja mulher como cão ao osso e depois isentar-se? E nós, mulheres, que os
vivemos retas como a um evento?
Outro dia, ouvi alguém chamar esse vizinho pit bullda porta de um bar:
- Êi, Luiz, quem te viu quem te vê! Agora bebe em casa feito um nenenzinho, é? Quê
que há, meu?!
Ele não se volta.Sobe a rua com duas garrafas de cerveja nos braços. Nestas horas,
como hoje, ela, a esposa, quando não demora na casa de uma sogra, senta-se no seu colo
em uma escadinha e ouvem música e bebem pra se acabarem.
Em outro boteco, mais adiante, alguém torna a chamá-lo:
- Luiz! É você, morando neste fim de mundo? – Ele diminui o passo:
- Moro na casa número 236, à esquerda, apareça lá!
O outro abanou a cabeça.
- Chutaram a lata do Élcio também, sabia? Lá, na agência!
- Rapaz, o bicho tá pegando!
- Feio.
- É o quinto depois de você. Minas barbas estão de molho, olhe aqui, ó, qualquer hora
sou eu que vou pro olho da rua!
- Tá brabo, meu.
- Chega mais, vamos tomar uma pra comemorar essa joça!
Ele entrou no bar.
Claro, para resolver os problemas financeiros do dono do boteco.Como faz o marido da
minha irmã, casada há oito anos, que chegou hoje mais cedo com sua cunhada, casada
há dez anos, enchendo, neste domingo, a nossa copa de maridos. Aliás, presentes e
ausentes. Foi quando minha irmã relatou seus tormentos diários com o casal vizinho:
- Não agüento mais, vou pedir a casa.
De fato, ainda há pouco estive na varanda para tossir, vi as duas meninas de cócoras
debaixo da caixa de água, trêmulas, choravam?
Voltei à sala jurando que espero mancha no corpo delas para propor exame de corpo
delito, chamo a polícia, a horrorosa cana dura do Brasil, não tem outro jeito.
- Tá doida de chamar a polícia? Se o levam, acabam com a raça dele, isso ou coisa pior,
que é incentivá-lo a bater ainda mais na babaca da mulher.
- De vez em quando a mãe dela vem aconselhá-la a agüentar as pontas, minha filha,
ameaça com o futuro das meninas...
- Não, e isso ainda existe? Disse minha irmã visitante. Sua cunhada também ri de ódio
do que ouviu.
- Quer saber de uma coisa? Ela ainda apanha pouco, sabia?! – Disse.
Minha sogra conta que uma vez achou de entrar em uma dessas brigas para socorrer
uma Fulana do apartamento ao lado do seu e chamou a polícia.
- E?
- E aí que a safada, roxa de pancada, se recusou a assinar a queixa e ela ficou com cara
de tacho. A própria polícia veio falar que elas deixassem aquela história de lado, pois
não valia à pena.
- Que horror!
- Como assim?
Ela explicou.
- Não fale assim.
- Que nada, mulher desse tipo tem fogo no rabo e pouca vergonha na cara, vamos
combinar.
- Ela, a vizinha, coitada, chora, sabe? Pede apoio à mãe para convencê-lo a deixar que
ela arrume um trabalho fora, colocar as filhas em uma creche, ser por si – Disse minha
irmã. Quando a briga vai muito além do bate-boca eles desaparecem por uma tarde, um
sábado ou um domingo.
- Quando vieram alugar a casa, falaram que discutiam de vez em quando, mas, coisa
sem importância, ora, o que acontece lá dentro é uma pancadaria. Sou obrigada a ficar
de cá, escutando. Parece castigo.
É só calarem a boca e o danado de um pastor maluco aqui do outro lado começa a orar
aos berros, já falei que estou pagando pecado alheio ou de outra encarnação, não é
possível!
A cunhada de minha irmã vai rindo da minha irmã mais nova com a anuência risonha de
minha tia-avó e o referendo de minha irmã casada há dez anos em um tácito intervalo de
intenções: Muda-se de assunto ou se fala da própria vida, pois.
– E aí, o João está trabalhando? Alguém perguntou bravamente, mas não fui eu, juro,
pois eu estou de olho no noticiário da TV, que diz: “Marquinhos Chacal envolvido em
inquérito por assalto, tráfico, interceptação de armas e formação de quadrilha”. Pôxa, se
não for queima de arquivo, esse rapaz cuja foto enche o vídeo tem uma “carreira
profissional” e tanto pela frente, não? Um garoto! Vejo três viaturas, escopetas, assalto
frustrado, jogos de imagens, sirenes, corre-corre, ele de camisa rasgada dentro do
camburão.Ih, bandido na TV é essa decepção, vive caindo na mão da polícia feito
patinhos – alguém, cínico, me interpreta!
Take 2:
Sai mais um ministro do governo.
Take 3:
Lá Braga em Nova York filma com Robert Redford.
Hum.
Take 4:
Corintians ainda defende democracia no futebol.
Que sono.
Take 5:
Europa é varrida por um tufão.
Meus pensamentos também.
... O João não quer saber de nada, na moleza de sempre – escuto minha irmã dizer. A
cunhada diz que não sabe o que ainda está fazendo com ele. Conta de uma sua amiga
que também já viveu coisa que o diabo admira: Muito bonita, casou-se com um sujeito
rico, rico a ponto de ter que aprender a comer feito rico.Lá pelas tantas, com filho
estudando no NumberOne e tudo o mais, de repente o cara deu um desfalque enorme em
uma corretora. A polícia veio buscar até os móveis de sua casa e ela deu Graças a Deus
que tudo desabasse desse jeito porque não gostava de um particular lá do marido, que
era promover festinhas com surubas nas quais propunha que trocassem as mulheres.
- O quê?! Não acredito!
- No duro.Ela conta que numa noite bebeu demais e desmaiou, acordou aterrorizada na
cama, desconfiada, claro!
Que grotesco!
Escondeu os móveis e tudo o que pôde na casa de uma amiga.
Pelos filhos.
- E depois?
- Olhe, esse homem ficou de tanga, perdeu tudo e sumiu da cidade: Anos depois ela
soube que ele chegou a pegar cabo de enxada e não é que estava rico de novo?
- Puxa, e ela?
- Bonita como é? Divorciou-se dele e arrumou outro, mas não moram juntos, fala que
marido por perto, nunca mais.
- Está certa.
- Certíssima!
Entretanto, conhecem mulheres feias, muito feias que também tiveram sorte, claro.
- Já pensou, Lucíola?
- Um marido rico?
- Marido, não, amante, melhor ainda.
- Hum, que pague a metade da conta de luz e telefone, casa própria, tudo bonitinho.
- Que não encha a cara.
- Se trair, faça bem feito.
- Procuro um assim.
- Eu também!
Certo.
O marido da cunhada de minha irmã vive de venda de imóveis, segundo ela, na lua. O
de minha irmã foi demitido de uma siderúrgica belga, abriu comércio de roupas feitas,
especializou-se em venda de remédios, atualmente arrumou uma namorada
também...São fantásticos. O marido de sua cunhada também andou pulando cerca vezes
sem conta, nega isso, ela sabe, mas, no fundo, é da “filosofia” de que cachorro que
enjeita lingüiça, pau nele. Sorte que ninguém o percebe em má situação para lhe aplicar
a mesma medida, afinal, bebe feito um gambá e nada seu tem dono.
- Mas, como pode ser um traste completo se ele se vira tanto assim?! Digo, ousando um
desequilíbrio.
- Você é que pensa, não firma em nada, ainda metido ao bom da boca!
Hum. Com uma esposa assim, quem precisa de malfeitores?
Pensam o quê? É seu emprego que põe tudo em casa há anos!
- Desculpe.
Marido? Que coisa mais antiga! Alguém se lembra da música “Saudades do Matão”? E
do filme “A ponte sobre o rio Kuwait”? Lembram de “Mazaroppi”? Isso é que é tarde
de domingo. Será que a Prefeitura não poderia fazer circular uma carrocinha como a do
Centro de Zoonozes pra marido, não?
- O vizinho até que é bonito.
- Ela também é uma gracinha.
- São jovens, estão só começando esse soneto.
- Fico horrorizada com a Claudinha, sua filha, Lucíola. Querer se casar com 16 anos!
Fosse minha filha mandava apagar essa idéia, como a cigarro.
- Pensa que não dei conselho? Se conselho valesse.
Só mais uma coisa, como as mulheres casadas desta família se aguentam? Sexo uma vez
por mês e, olhem lá, elas mal respiram! – Penso maldosa.
- Meu sobrinho Paulo é diferente.
- Como assim, é gay?
- Não é isso, ele só pensa em trabalhar e estudar.
- A mais nova da Selma quer ser artista de televisão, sabiam?
- E ela é linda, tomara que consiga!
- Gay é aquele nosso primo.
- O filho mais velho do seu irmão também, como se chama? Roberto, não é?
- Só que ele passou no vestibular e enfrenta faculdade ä noite.
- Que nada, descambou, está se acabando na maconha.
- Mas não dizem que maconha não faz mal?
- Maconha, cocaína... Sei lá. Os pais estão morrendo de desgosto.
- Coitado. A irmã já vive com um traficante.
- É aquela morena clara, de cabelo enroladinho como o da Ísis de Oliveira, Lucy,
lembra?
- Essa, graças a Deus, largou aquilo. Está fazendo tratamento psiquiátrico.
... Vou pedir a casa de volta, de agora em diante só alugo para solteiros.
- Morro de dó das filhas deles, crescerem injuriadas desse jeito.
- Quanta tristeza no rostinho delas!
- Não pediram pra nascer, sô.
- Depois crescem revoltadas ou casam mal, como fez a mãe.
- E nós também, convenhamos.
Riram contrafeitas.
Aos poucos se calaram, esgotadas.Vexada, pergunto se mais tarde irão embora assim,
como vieram, sem qualquer poesia, sentido, compasso ou epílogo.

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