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o PENSAMENTO POLITICO DE

OLIVEIRA VIANNA *

Coordenador e eventual substituto do Presidente


THEMISTOCLES CAVALCANTI: DJ ACIR MENEZES
Participantes: EVARISTO DE MORAES FILHO; ARTHUR
CESAR FERREIRA REIS; MIGUEL DE ULHOA CINTRA

Djacir Menezes - Damos início aos trabalhos lamentando duas au-


sências. Uma - já duas mesas-redondas fazemos sem a sua presença -
é a do Min. Themistocles Cavalcanti, e a outra do Prof. José Arthur Rios,
especialista na obra de Oliveira Vianna. Infelizmente, faltam esses dois
elementos; mas temos aqui duas presenças de alto valor cultural. Já sa-
bemos - os senhores são habitués aqui - que este questionário é apenas
uma provocaçãozinha aleatória. Cada um se dirige, dentro da obra, para
os rumos que entender. Apenas desejaria saber quem aceitaria tomar a
palavra em primeiro lugar para iniciar o debate sobre o pensamento
político de Oliveira Vianna, certo de que esse pensamento político envolve,
naturalmente, premissas sociológicas, que implicam um conhecimento mais
extenso da obra, como é do conhecimento de todos.
Aí estão as 10 perguntas, que podem ser ou não respondidas, direta
ou indiretamente, a bel-prazer dos debatedores. Publicado o resultado
desta mesa-redonda na revista, devemos ter uma visão da atualidade dos
problemas tratados por Oliveira Vianna.
Com a palavra o Prof. Reis.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Inicialmente, vou discordar de todo o
plano apresentado porque Oliveira Vianna não foi apenas um homem que
tinha um pensamento autoritário. A observação dele e a constatação da
problemática brasileira eram muito grandes. Oliveira Vianna foi cientista
político, sociólogo, jurista, antropólogo historiador. Distinguiu-se em todas
essas áreas. Sofreu a crítica negativa e o aplauso imoderado. Eu próprio
contestei-o a propósito do capítulo sobre a formação da Amazônia, no
livro A Evolução do povo brasileiro, em artigo do Jornal do Comércio,
de Manaus, sem que ele se tivesse magoado sequer comigo. Contestei-o
mostrando que ele desconhecia inteiramente o problema da Amazônia.
Era um saudosista, um ufanista, um racista, um autoritário, um liberal-
democrata? Acreditaria na federação brasileira? São perguntas que eu for-
mulo.

• Mesa-redonda do Instituto de Direito Público e Ciência Política. da Fundação


Getulio Vargas.

R. Cio pol., Rio de Janeiro, 22(2) :27-45, abr.ljun. 1979


Silvio Romero, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Tavares Bastos
influenciaram a sua formação? Sua biografia foi escrita com as minúcias
necessárias? A interpretação de sua obra, de seu pensamento, já foi rea-
lizada? Os pronunciamentos negativos de Nelson Werneck Sodré, que o
acusa de ignorar história, geografia e, portanto, de não poder ser um
sociólogo, em A Ideologia do colonialismo, são fundados? Seus recentes
analistas propuseram-no acertadamente? Por acaso, Jarbas Medeiros, em
Ideologia do autoritarismo no Brasil, e mais Paulo Edmundo de Souza
Queiroz, em Sociologia política de Oliveira Vianna, e Evaldo Amaro
Vieira, em Oliveira Vianna e o Estado corporativo teriam, em seus traba-
lhos, dado uma interpretação suficiente da obra e do pensamento de
Oliveira Vianna? São perguntas que eu faço.
A Evolução do povo brasileiro, o Ocaso do império, O idealismo da
Constituição, Populações meridionais do Brasil, Pequenos estudos da psi-
cologia social, Problemas de política objetiva, Raça e assimilação, As
Instituições políticas brasileiras, Introdução à história social da economia
pré-capitalista no Brasil são os livros-chave de sua contribuição para a
análise e a compreensão da problemática brasileira sob os ângulos político,
social-antropológico, jurídico e cultural. A História da economia capitalis-
ta no Brasil e a História da formação racial do Brasil - ambas inéditas,
esta em parte, pois teve capítulos divulgados em Terra de Sol e no Jornal
do Commércio, do Rio d~ Janeiro - completam o inventário. Neste jornal,
a parte referente ao contingente negro na formação social do Brasil e,
naquela revista o prefácio à obra e o primeiro capítulo sobre raça e
relações telúricas.
Oliveira Vianna acreditou na superioridade de raças e de povos. Era
fiel ao pensamento de outros antropólogos de seu tempo.
Djacir Menezes - Tenho uma curiosidade que gostaria de satisfazer.
Por que razão, até hoje, tendo sido reeditadas obras já demasiado conhe-
cidas, não saiu nenhuma dessas póstumas, desconhecidas?
Arthur Cesar Ferreira Reis - Porque os que estão cogitando disso têm
receio de provocar demais a opinião de certas áreas do Brasil, uma vez
que nesses trabalhos ele tem ainda bem fixo um pensamento autoritário,
um pensamento corporativo e um pensamento racista. Aqui mostrando,
O contingente negro na formação do Brasil é um trabalho monumental
a respeito da participação do negro na formação do Brasil. Este outro
aqui, na Terra de Sol. Num outro volume ele tem todo o plano da obra
e o prefácio do livro. E aqui já um capítulo, Problemas de antropologia
social, raça e relações telúricas, em que ele estuda, com certo vigor, a
influência do clima sobre a formação e as atividades dos que realizavam
a realidade brasileira.
Evaristo de Moraes Filho - Penso que estamos diante de um "vianó-
logo", não é?

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Arthur Cesar Ferreira Reis - Oliveira Vianna foi uma das minhas
preocupações como estudioso dos assuntos brasileiros. Seu primeiro livro,
A Evolução do povo brasileiro, que abriu o volume 1 do Censo de 1920
para 22, para se ter uma idéia do que era o Brasil, por ocasião do cen-
tenário da Independência, permitiu-me ter o primeiro contato com ele e,
logo a seguir, Populações meridionais. Foram dois livros iniciais, através
dos quais eu me comuniquei com Oliveira Vianna e comecei a admirá-lo
e, a seguir, em muitos pontos, aquilo que ele afirma como verdades e
necessidades do Brasil.
Entendo que Oliveira Vianna foi, realmente, um dos homens que melhor
compreenderam a formação brasileira. As negações que lhe fazem têm
fundamento muito relativo. Ninguém escreve uma obra do gigantismo da
.' sua sem ter cometido falhas, faltas, talvez erros. N a realidade, era uma
obra muito grande que exigia, em conseqüência, uma análise pela sua
vastidão e, pelos seus aspectos múltiplos, um exame e uma interpretação
por um grupo de analistas. Não se pode ficar, apenas, num intérprete.
Ele tem que ser examinado como jurista, como sociólogo, como antropó-
logo, como historiador, como economista, através de seus livros, e também
como o jurista preocupado com os problemas da organização do trabalho
no Brasil.
Como já disse, Oliveira Vianna acreditou na superioridade de raças e
de povos. Sem contestar. Em toda a sua obra está isso. Era fiel ao
pensamento de outros antropólogos de seu tempo. Ele formou, com
Silvio Romero, o seu pensamento que estava acastelado na escola de ciên-
cias sociais de Durkheim, Demonlim de Paly, etc.
A prosperidade do Sul, segundo ele, seria fruto dos contingentes alemães
e de outras etnias estrangeiras, que deram impulso à vida naquelas regiões.
O progresso lento do extremo Norte estaria ligado ao fato de não ter
havido ali a presença daqueles stocks étnico-culturais, sendo operações
de nordestinos, que ele considerou, por certos aspectos, sem os requisitos
para operações de tão alto significado civilizador.
É, justamente, alguma coisa que se pode contestar na obra dele. Quando
escrevi esse artigo no Jornal do Commércio, mandei-lhe uma cópia. Não
se zangou e tenho certeza disso, porque, anos depois, vindo para o Rio
de Janeiro, no gabinete de Max Fleuss, no Instituto Histórico e Geográfico,
fui-lhe apresentado. Ele me abraçou e disse que estava muito grato às
minhas observações; não tinha respondido porque não sabia o meu ende-
reço, mas que gostara pela sinceridade e pela objetividade com que eu
havia formulado restrições àquele capítulo sobre a evolução do povo
brasileiro. E tive, então, uma surpresa. Diz-se que o homem pode ser
revelado pela obra que escreve, que o estilo é o homem; e ele era real-
mente o seu estilo: tranqüilo, sereno, incapaz de uma exaltação na con-
versa. Era o mesmo homem escrevendo: também sereno, tranqüilo, sem
as emoções violentas que poderiam provocar, da parte dos que o lessem,

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uma impressão má a seu respeito. Muitas vezes nós temos surpresas, em
face de não ver no homem o que estava escrito.
Na Universidade de Havana, o reitor, professor e autor de um dicio-
nário de sociologia, de um tratado de sociologia em dois volumes, causou-
me tal surpresa, que eu disse a ele: "Estou profundamente surpreso com
o senhor, professor". "Por quê?", disse-me ele. "Porque li o seu livro a
respeito de Garcia Moreno, presidente do Equador, acusado de ser um
trucidador de multidões e um inimigo do progresso, dentro das linhas do
liberalismo". O livro dele provocava um impacto tremendo, desde a capa,
com a cara de Garcia Moreno parecendo um diabo e, no entanto, ele
era o homem mais tranqüilo, mais sereno, mais moderado que eu já en-
contrara na vida, completamente diferente do que parecia ser.
Evaristo de Moraes Filho - Quem era ele? O Agramonte?
Arthur Cesar Ferreira Reis - O Agramonte.
"Sua informação sobre a formação da Amazônia como parte do Brasil,
não está certa, como provei em meu artigo. Seu estudo sobre a autonomia
acreana é destituído de fundamento." n um artigo que consta deste li-
vrinho aqui. Este livro provocou um mal-estar tremendo no Acre.
Evaristo de Moraes Filho - Sobre psicologia social?
Arthur Cesar Ferreira Reis - n, Pequenos estudos de psicologia social,
em que ele diz: "Os sertanejos acreanos que pleiteiam autonomia plena
de sua terra tramam, com suas próprias mãos, os liames que hão de es-
cravizá-los.
Ora, o que se está verificando, porém, é justamente o contrário; o Acre
desenvolve-se e cria seu progresso, inclusive pelos cursos universitários já
em funcionamento."
E é interessante esses cursos universitários funcionarem no Acre, numa
universidade que é a mais recente do Brasil, com professorado que foi
do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Rio de Janeiro; seus cursos não
estão restritos à formação de elites - cursos de graduação universitária
- porque, no período de férias, esses professores também ampliam os co-
nhecimentos e informam, de acordo com a natureza dos problemas, o
professorado de cursos primário e secundário do estado do Acre, que
vem trazido pelo governo do estado a Rio Branco e lá freqüenta tais
cursos de atualização, de informação, de esclarecimento.
Dizia ele que "eles são gente de outra origem, de outra têmpera, de
outros hábitos". Apesar disso, e nem por isso deixaram de revelar-se com
a decisão de criar. E isso começou com a incorporação do Acre ao
Brasil.
Essa é uma página épica, extraordinária, que refletiu não o primarismo
daquelas multidões, como ele afirma no trabalho. Evidentemente, é um
trabalho escrito sem a informação necessária, sem conhecimento dos clás-

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sicos da história da formação do Acre e, em conseqüência, é um trabalho
cheio de falhas e absolutamente inverídico.
Entre as sugestões propostas no roteiro para esta reunião, tenho a
conchrir, da análise da obra erudita de Oliveira Vianna, que seu pensa-
mento era realmente autoritário. Entendia que o presidencialismo brasi-
leiro realizava-se pela concentração de poderes. Era, aliás, uma tendência
que veio de Bolívar e se consagrou na América Latina, África e Ásia. 1
Entendia que a federação não funcionava. O povo brasileiro não fora
educado para a democracia, comprometida principalmente pela extensão
geográfica e a dispersão populacional.
Com relação à unidade nacional, entendia que não era apenas fruto
da ação de homens públicos como Bernardo de Vasconcelos, mas de um
conjunto de atos que culminaram com o regime unitário vigente no Império.
Ele escreveu uma página, que eu não trouxe aqui, sobre a unidade na-
cional, uma palestra realizada na Rádio Nacional, ainda no período Var-
gas' e, mais tarde, publicada no Jornal do Commércio. É um trabalho
admirável como síntese e é uma das raras explicações para esse fenômeno,
essa coisa estranha, quase inacreditável, que é a unidade nacional, dada
a extensão territorial, à dispersão das populações, a falta de comunicação
que existe entre elas, o desenvolvimento maior ou menor em uma região
ou em outra; enfim, um conjunto de fatores negativos que deviam ser
apresentados para explicar a desagregação, como aconteceu na América
espanhola, enquanto que não valeram para explicar a não-existência dessa
destruição, nem a unidade nacional. Foram outros os elementos que en-
traram na formação, não sendo de desprezar a ação governativa dos ho-
mens que, mantendo o Império, organizando o Império, como forma inicial
da vida do Brasil, conseguiram estabelecer essa unidade.
E aqui cabe uma reflexão: o papel desta cidade na unidade nacional
é de uma importância extraordinária. José Honório Rodrigues, num artigo
publicado no Rio de Janeiro há muitos anos, salientava isso. E já insisti
com ele para que escreva um livro mostrando o papel da cidade do Rio
de Janeiro na formação brasileira e, particularmente, na unidade. Com a
chegada de D. João ao Brasil, o Brasil disperso, que recebia instruções
diretas de Lisboa, porque nunca houve um governo geral realmente diri-
gindo o Brasil, pois cada capitania tinha o seu governo próprio subordi-
nado diretamente a Lisboa, ou ao Rei de Portugal; com a vinda da família
real, o Rio de Janeiro substituiu Lisboa e passou a comandar todas as
iniciativas e toda a vida do Brasil. Fez primeiro um balanço das capitanias
existentes, a respeito das condições em que elas estavam. O Conselho de

I Como se pode verificar em Valdés, Diego. La Ditadura constitucional en America


Latina; Phimtington, Samuel. A Ordem política nas sociedades em mudança; Anderson,
Charles. O Governo de nações agitadas. A inquietação latino-americana; Doré, Francis.
Los Regímenes políticos en Asia; Oliveira Lima, Antonio de. O Poder Executivo nos
estados contemporâneos.

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Estado português passou a funcionar no Rio de Janeiro, organizaram-se
as instituições, montando-se a máquina administrativa, e o Brasil passou,
na sua extensão, na sua dispersão, na sua regionalização, a receber do
Rio de Janeiro todo o comando, as iniciativas e, de certo modo, até uma
pressão para que fosse possível conduzir essa massa imensa de terra e de
gente dispersa, cercada de inimigos - porque a hispano-américa era toda
contra nós - e manter-se a unidade do Brasil. O papel da cidade do
Rio de Janeiro foi, realmente, extraordinário. José Honório Rodrigues
deve escrever esse livro que será, na realidade, o seu grande livro.
Eu queria chamar a atenção para o fato de que citei aqui Simon Bolívar
como um homem que acreditava no poder central do Executivo, no poder
maior do Executivo sobre os demais. Ele foi formado dentro do pensa-
mento democrático de Rousseau mas, na realidade, assumindo o poder
depois de ter vencido nas batalhas a reação espanhola, não conseguiu
realizar o seu pensamento, que absorvera de Rousseau, porque a realidade
hispano-americana era completamente diferente daquela que nós, os pen-
sadores de gabinete, poderíamos imaginar. E, quando chamado a dar
uma primeira Constituição à Bolívia, elaborou um texto que é o primeiro
documento autoritário da história política e institucional da América.
Nesse documento, nessa Constituição, ele dá ao Poder Executivo grandes
poderes, sendo o Legislativo e o Judiciário apenas complementares e
subsidiários, porque, compreendia ele, não era possível governar cedendo
às teorias, em face da realidade negativa.
Djacir Menezes - Com a palavra o Prof. Evaristo de Moraes Filho.
Evaristo de Moraes Filho - Vamos ver o que Prof. Djacir vai conse-
guir, porque, na linguagem de cais do porto, me parece que ele arranjou
dois bagrinhos, não é? Vamos trabalhar para ele.
Muito boa a exposição do nosso querido Arthur Cesar, com a qual
estou de acordo em gênero, número e grau.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Você me permite apenas um acréscimo?
Evaristo de Moraes Filho - Pois não.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Oliveira Vianna teve seguidores fora do
Brasil, foi modelo. A Evolução do povo brasileiro foi modelo para Evolu-
ção do povo uruguaio. Eu trouxe aqui um exemplar para mostrar: Evolu-
ção do povo uruguaio, de José Salgado. Verão, pelo sumário, que o mo-
delo foi justamente A Evolução do povo brasileiro. Evolução da socie-
dade é uma parte do livro, Evolução das instituições políticas, outra. O
modelo foi, evidentemente, brasileiro.
Djacir Menezes - Vinha como introdução ao recenseamento de 20 a 22.
Evaristo de Moraes Filho - Aliás, o primeiro volume grande do pró-
prio recenseamento é o livro dele, que depois saiu em edição particular.

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Arthur Cesar Ferreira Reis - E não devemos esquecer Os horizontes
inéditos de Oliveira Vianna, de Djacir Menezes.
Evaristo de Moraes Filho - Antes, como faz o Arthur Cesar, eu quero
dar uma pequena nota autobiográfica. Dizem que quando nós viramos
os 60 ficamos autobiográficos. Conheci pessoalmente Oliveira Vianna.
Convivi com ele já no fim de sua vida. Ele morreu em 1951. Em 1943,
eu dirigi uma coleção de direito de trabalho editada pelo Max Limonad.
Durval Lacerda e eu a dirigimos e fizemos os convites. Fomos à casa
de Oliveira Vianna, na Alameda São Boaventura, em Niterói.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Freqüentei muito essa casa.
Evaristo de Moraes Filho - Fui lá convidá-lo a abrir a nossa coleção.
É um depoimento curioso. Ele, solteirão, com aqueles robes de chambre
enormes, óculos escuros, uma grande biblioteca e a casa de quintal com
árvores. Em torno das árvores, umas mesas de cimento com os bancos.
Tudo isso bem disposto, fixo. Convidamos Oliveira Vianna a abrir a
coleção e ele o fez, com o livro que saiu em 1943, Os Problemas de
direito sindical. Sentado ao longo da cadeira, de pernas esticadas - ele
era um homem alto - de óculos escuros, não se sabia bem, dada a
tranqüilidade dele - à qual já se referiu Arthur Cesar - se ele estava
dormindo ou atento, por trás dos óculos; então Durval Lacerda dizia para
mim: "você acha que ele está ouvindo mesmo?" Nós falávamos mais do
que ele.
Pois bem, aqui vai o depoimento. Ele escrevia da seguinte maneira.
Vivia com as irmãs, que cuidavam dele, eram suas secretárias, e assim
por diante. Ele escrevia a mão, num manuscrito horrível, numa letra
vertical. Escrevia primeiro o texto, sem nenhuma citação, que saía dire-
tamente dele, de sua criação, e ia jogando as folhas embaixo das árvores.
Logo depois suas irmãs as recolhiam, numeravam-nas e colocavam em
ordem. Depois é que ele acrescentava as notas de pé de página, as refe-
rências, as notas bibliográficas e assim por diante. Isso eu <> vi fazer várias
vezes. Era um homem de temperamento retraído, discreto, mas irascível
se necessário.
Outra coisa: a família Evaristo de Moraes tem muito a ver com ele. Não
ideologicamente, pois meu pai era um socialista, mas era muito amigo
dele e foi quem indicou Oliveira Vianna para substituí-lo como consultor
jurídico do Ministério do Trabalho. Meu pai permaneceu no cargo de
fins de 30 a abril de 32. Saiu com o Collor, quando daquele impasse
devido ao empastelamento do Diário Carioca, e indicou o sociólogo
Oliveira Vianna para substituí-lo. Como vêem, há uma ligação até de
família. E outra coisa, a cadeira de Oliveira Vianna como professor na
Faculdade de Niterói, a chamada Teixeirinha (Teixeira de Freitas), era
de processo penal. Aparentemente nada tinha a ver com ele, com a sua
formação cultural, voltado para a história e para a sociologia.

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Djacir Menezes - A cadeira de Evaristo de Moraes.
Evaristo de Moraes Filho - Sim, meu pai foi formado na Teixeirinha,
em 1916.
Vou começar, digamos, pelo fim, quando conheci Oliveira Vianna. Em
1937, tive a pretensão de haver divulgado entre nós a chamada sociologia
rural americana. Dizia isso nos próprios artigos, coisa que fazemos quan-
do somos moços mas que alguns praticam a vida inteira ...
Respondeu-me em longas cartas e fui visitá-lo na consultoria do Mi-
nistério do Trabalho, do qual eu já era funcionário. Gozava ele de absoluta
autoridade, era a cabeça pensante do Ministério, o magister dixit, era
um deus. Arthur Cesar disse com razão que ele era aureolado demais por
um lado e atacado demais por outro. No seu trabalho, ele era um deus,
entronizado, com autoridade absoluta. Às vezes, quando ele já estava
cansado de refletir, quando já tinha dado pareceres múltiplos sobre o mes-
mo assunto, limitava-se a afirmar a sua tese em duas ou três linhas.
Mas ainda surpreendendo este aspecto final de Oliveira Vianna, a
maior glória dele - se "memória desta vida se consente", ele deve estar
feliz - é que a legislação do trabalho consolidada, que temos em vigor
hoje, tudo isso que está em vigor, a parte coletiva, a parte sindical, a
justiça do trabalho, o que há de mais importante, é puro Oliveira Vianna.
A sistemática atual é puro Oliveira Vianna. O modelador, o autor, o
artífice da legislação do trabalho em vigor foi ele. De 32 a 40, foi con-
sultor jurídico do Ministério do Trabalho.
Djacir Menezes - E se cala muito todo esse aspecto dele.
Evaristo de Moraes Filho - Durante oito anos, modelou a legislação
do trabalho, fez - infelizmente a meu ver e não no de Djacir Menezes
- isso baseado na Constituição de 37. Sempre dizia isso, que era preciso
institucionalizar a Carta corporativa de 10 de novembro.
Arthur Cesar Ferreira Reis - E há inclusive uma grande polêmica
em torno disso.
Evaristo de Moraes Filho - Com Valdemar Ferreira.
Oliveira Vianna foi desses homens felizes que, tendo pregado na mo-
cidade e na idade madura uma filosofia social, uma sociologia, uma ciên-
cia política, tiveram oportunidade de realizá-la na prática, de legislar
sobre ela.
Aceito, de certa maneira - e provei isto no meu livro O Problema do
sindicato único do Brasil - uma das pregações de instituições de solida-
riedade social no Brasil, onde predomina um indisfarçável insolidarísmo
nacional. Este, a meu ver, o pensamento central de Oliveira Vianna. Está
presente em todos os seus livros. A tese dele - Arthur falou de passagem
nisso, na formação da nacionalidade brasileira - era de que, dadas a
dispersão do território nacional, as diferenciações geoeconômicas, popu-

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lacionais, geográficas, e assim por diante, e dada, principalmente, a nossa
formação clânica de isolamento e arquipélagos. Ele era um antiindivi-
dualista feroz - a formação clânica do Brasil se deu em tomo de indivÍ-
duos ou de famílias, em fazendas, latifúndios, explorações extensas, iso-
ladas. Daí, Oliveira Vianna achar que esta formação criou o individua-
lismo e o egoísmo brasileiro, a falta de solidariedade entre os grupos e as
pessoas, no Brasil, a falta de espírito público. Daí, também, o que ele
chamava de "insolidarismo brasileiro".
Djacir Menezes - Fator negativo para a democracia.
Evaristo de Moraes Filho - Exato. Daí, partia ele para toda a tera-
pêutica desse mal, com a qual não estou de acordo. E a terapêutica dele
era essa, a que já se referiu Arthur Cesar: o Estado centralizador, a po-
lítica corporativa,· os valores sociais descendo de cima para baixo, do
Estado para a massa e do centro para a periferia. Dizia ele: "Não temos
opinião pública organizada" - esta era uma frase que ele repetia em
todos os livros - "não temos partidos políticos, não temos órgãos cole-
tivos, geradores de energia social". Voltava-se, então, para o sindicalis-
mo. Achava que os sindicatos aglutinavam forças sociais, interesses co-
muns, interesses comunitários. E era preciso, de cima para baixo, vir or-
ganizando o povo brasileiro. Sua política era sempre organizacional, isto
é, orgânica e autoritária. Se se deixasse tudo entregue aos grupos dispersos,
haveria a desagregação. Uma coisa interessante: em 1930, ele chega à
Revolução um pouco atrasado, apesar de seu livro Problemas de política
objetiva, publicado em março de 30, prever o que será a Revolução, em-
bora já se estivesse mesmo no ano de 30 - mas chega com muito pres-
tígio. Se o Min. Themistocles Cavalcanti estivesse presente, iria lembrar-se
disso.
Oliveira Vianna fez parte da comissão do Itamarati, do grupo elaborador
do projeto da Constituição em 1932 e 1933. Agora, uma coisa curiosa:
na comissão, votou contra a representação classista. Foi dos majoritários
nesse grupo do Itamarati. Não entendi bem o seu voto naquele momento.
Depois, foi um dos ideólogos de 1930, assumindo em 1932 o Ministério
do Trabalho e organizando a representação classista em 1933 e 1934,
dando execução a todas as suas idéias. :E: autor do Decreto-lei nl? 1.402
de 5 de julho de 1939, incorporado à Consolidação em 1943, vigente no
Brasil até hoje. Adotou o sindicato único. Achava que os sindicatos múl-
tiplos favoreceriam as forças centrífugas do povo brasileiro e a sua desa-
gregação. Era preciso admitir um sindicato único e atrair todos os tra-
balhadores para ele. Havia até um slogan seu, em que dizia: "sindicato
único não se nega, conquista-se". Achava que, na assembléia geral de cada
sindicato, os trabalhadores compareceriam para discutir. Dizia, com razão:
"sindicalismo é profissão e não credo religioso, nem filosofia, nem ideo-
logia. O indivíduo é carpinteiro, pedreiro, advogado; agora, se é católico,
ateu, ou se tem outra religião, isso é outra coisa". Daí as polêmicas dele

Mesa-redonda 35
com os líderes católicos, entre os quais Alceu de Amoroso Lima, quando
do pluralismo da Constituição de 1934, porque ele era unitarista, como
vimos. Teve ainda polêmicas com Roberto Simonsen e Evaldo Lodi, que
queriam ter suas federações de indústrias fora do esquema confederacional
de Oliveira Vianna, e com Waldemar Ferreira, privatista, afeito ao direito
comercial, que achava que o poder normativo da justiça do trabalho era
incompatível com a democracia e com a separação dos podere". O pro-
fessor paulista representava o passado.
Arthur Cesar Ferreira Reis (interrompendo) - Sempre foi no sentido
do direito trabalhista.
Evaristo de Moraes Filho - Oliveira Vianna dava esse poder nor-
mativo à justiça do trabalho, que pode criar normas gerais, novas condi-
ções de trabalho, sempre uniformes, homogêneas, sempre aglutinantes,
para toda a categoria. Foi Oliveira Vianna quem elevou o sindicato -
na lei e na doutrina - a pessoa jurídica de direito público, como órgão
colaborador do Estado, como órgão seu de consulta. Dizia que o sin-
dicato não é uma sociedade anônima, um grupo doméstico; é um ente
público, que organiza a profissão, toma parte no planejamento econômico
e, afinal de contas, na própria vida administrativa da nação. É, portanto,
força social, viva, importante. O sindicato passava a ser órgão quase que
paraestatal, neste sentido de colaborar com o Estado, de participar do
poder estatal. Isto, até hoje, está na Constituição. Passou para a de 1946
(art. 159) e está na atual, com as mesmas palavras. O sindicato recebe
funções delegadas do poder público.
Djacir Menezes - E a quem se atribui, então, essa debilidade dos
sindicatos no Brasil? O impulso, de cima, era sempre favorável. O que
verificamos, na vida real, é que o sindicato não desempenha o papel que
deveria desempenhar.
Evaristo de Moraes Filho - Oliveira Vianna dizia que, se não o de-
sempenha, seria muito pior sem esses poderes. Na Constituição de 1934
houve grande influxo católico. Os católicos fizeram pressão e, realmente,
conseguiram a chamada pluralidade sindical. Queriam organizar-se em
circulismo católico. Oliveira Vianna foi contra isso. A lei ordinária, de-
pois, permitiu até três sindicatos. Na realidade, em geral, eram dois.
Cada um tinha que ter 1/3 dos integrantes da categoria. Era necessário
que cada um tivesse, certamente, 33 %. Resultado: um tinha um pouco
mais, sobravam dois sindicatos. Nunca tivemos, propriamente, uma plu-
ralidade sindical. O Estado, diante desta fraqueza sindical, adiantou-se,
passando a tutelar os sindicatos, para conseguir a aglutinação. Getúlio
Vargas, de cuja política nunca fui adepto, pronunciou um discurso bem
significativo a lI? de maio de 1943, em que lançou a chamada "campa-
nha da sindicalização em massa", fazendo a apologia dos sindicatos, a
defesa dos direitos sindicais e a coordenação dos interesses coletivos. Sem-

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pre houve essa campanha no Brasil, o que vem, realmente, confirmar a
tese de Oliveira Vianna. Não temos partidos políticos, não temos sin-
dicatos, não temos universidade, não temos grupos permanentes, ideologi-
camente solidários e atuantes. Tudo é fugaz ou impressivo. São verda-
deiros "sacos de gatos".
Djacir Menezes - É um "saco de gatos" suficientemente atrasado, para
não compreender esse problema.
Evaristo de Moraes Filho - Nós não temos universidade. A UEG
pagava jeton para comparecimento à congregação. Dizia-me o Oscar
Tenório: "este é o único jeito". Nas nossas faculdades federais, em geral,
tudo se resolve em segunda ou terceira convocação, porque para a pri-
meira nunca há número. Recebemos por exemplo, a convocação para
uma assembléia de condôminos: a primeira, às 20,30 horas; a segunda,
com qualquer número, às 21 horas. A das 21 horas, sempre, com o
síndico, o secretário e mais um terceiro é a que resolve sempre. É sempre
a segunda convocação, com qualquer número, que funciona. Seja partido
político, seja sindicato, seja universidade, seja lá o que for, é sempre
aquilo que dizia Oliveira Vianna, citando o Frei Vicente Salvador, que
já no século XVII escrevia: "ninguém é repúblico nesta terra. Cada um
cuida do seu bem particular". Dizia mais: "vai um visitante a uma fazenda
particular. Lá vê o que há de melhor, como na Europa, em comes e bebes,
móveis, louças. Quando sai, onde caminhos, estradas? Isso não existe.
Só o domínio privado, de certa maneira feudal, está organizado. O
público, não".
Djacir Menezes - É o tema mais querido do Capistrano de Abreu.
Evaristo de Moraes Filho - Daí essa formação fragmentária do poder,
por esses senhores rurais, esses senhores feudais, esse poder privado, bem
organizado, com fazendas bem constituídas, sem faltar, nada, como dizia
Frei Salvalor: "nada falta". Agora, na hora de fazer estradas, pontes, etc.,
seria responsabilidade do governo, eles não fazem nada. Isso, no meu
entender, até hoje ainda é a psicologia do caráter nacional brasileiro.
Oliveira Vianna citava, em apoio de sua tese, Euclides da Cunha,
além de Frei Salvador, mostrando sempre isso - que o brasileiro é um
homem de sentimentos à flor da pele. "Um abraço para você, que sauda-
des, vamos nos ver, etc.", mas nunca mais se vêem ou só raramente. É
o entusiasmo fugaz, passageiro. Daí, como disse Arthur Cesar, o fana-
tismo dele por certos povos. Baseado na leitura, principalmente, de Le
Play, admirava os povos anglo-saxônios. Achava que os anglo-saxônios
eram o contrário do povo brasileiro, e citava Taine, que dizia em Notas
sobre a Inglaterra, em 1877: "para o inglês não existe distinção entre
o interesse privado e o interesse público". Quando de manhã ele pega o
Times e começa a ler sobre as finanças públicas, ele o faz como se fosse
o seu próprio orçamento particular. Ele se indigna, escreve carta, pro-

Mesa-redonda 37
testa. Oliveira Vianna citava essa pagma, e dizia que tal não acontece
entre nós. Cada um cuida do seu bem particular, não há espírito público.
Essa, no meu entender, é a espinha dorsal do sistema sociológico e po-
lítico de Oliveira Vianna. Na aplicação prática, como remédio, como te-
rapêutica, dizia ele que devemos favorecer toda política, toda instituição,
toda medida que venha a combater o insolidarismo do povo brasileiro.
Daí ser levado à centralização do autoritarismo. Nunca tivemos opinião
pública, vida política organizada, sufrágio universal, que é uma fraude
- são idéias de Oliveira Vianna. Achava - e está no segundo volume
das Instituições políticas - que só devia participar da vida pública quem
já se houvesse organizado previamente em algum grupo social, partido
político, sindicato, uma oposição, instituição, em alguma coisa que mos-
trasse que não era uma simples força individual. Ele não acreditava na
manifestação indivilual, neste sentido. O indivíduo era sempre integrado
a uma categoria, a um grupo, a uma classe orgânica. Esse era o sentido
da sua doutrina; para ele, a sociedade brasileira deveria ser organizada
desde o município, desde os menores grupos - micro grupos sociais -
até chegar ao Estado. Mas sempre organizada. No meu entender, a
espinha dorsal da obra de Oliveira Vianna é o combate ao insolidarismo
nacional.
Djacir Menezes - Apenas com o intuito de provocar um pouco os
dois debatedores, eu faria algumas referências. Primeiro a esse problema
do autoritarismo de Oliveira Vianna. Talvez daí nasça e se fortaleça a
minha simpatia por sua obra, por seu pensamento político. Disse ArthUl
Cesar que ele era sociólogo, jurista, antropologista, historiador, economis-
ta, muitos aspectos de uma personalidade cultural muito rica. Nós esco··
lhemos, justamente, o aspecto político porque, de certa forma, é para onde
convergem todas essas afluências.
Evaristo de Moraes Filho - Para a ação dele no meio brasileiro.
Djacir Menezes - E o ponto central seria esse autoritarismo. As suas
palavras já justificaram muito a existência desse pensamento autoritário.
E me lembro que daí násceu até uma, não digo rivalidade, mas uma
certa incompreensão entre outro grande sociólogo já da geração seguinte
e Oliveira Vianna. - Não darei o nome porque quero fazer uma refe-
rência um pouco ...
Evaristo de Moraes Filho - Nós todos sabemos de quem se trata.
Djacir Menezes - Quando saiu Instituições políticas no Brasil, dois
volumes, deve ter sido por volta de 50 ...
Evaristo de Moraes Filho - Foi em 1949.
Djacir Menezes - Pois em 1950, eu ia com Romeu Rodrigues, subindo
a escada de entrada do Ministério da Fazenda, e vinha descendo um ci-

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dadão alto, magro, calvo, como se acentuou bem aqui, e o Romeu disse:
"Você ainda não encontrou o Oliveira Vianna?" Eu disse: "Por carta."
"Pois agora é pessoalmente." E me apresentou. Como a nossa simpatia
vinha desde os tempos do Ceará, porque ele encontrou no Nordeste qual-
quer coisa que lhe agradou, e tinha sido citado nas Instituições políticas,
foram abordados certos aspectos da sociologia nova que estava aparecendo
cheia de antropologia cultural, etc., e o Romeu, com mais intimidade, foi
logo dizendo: "Mas, mestre, por que o senhor não citou essa nova socio-
logia na sua obra?" Ele riu um tanto ironicamente e disse: "Menino, eu
já faço há muito tempo sociologia independente de todos esses pensa-
mentos posteriores". E há ainda outro fato que eu prefiro não relatar. De
qualquer maneira, naquela serenidade, ele tinha objetivos muito claros e
distinguia muito bem as pessoas.
Evaristo de Moraes Filho - Por volta de 33, quando essa outra so-
ciologia começou a ser empregada - e realmente causou impacto na
intelectualidade brasileira - foi feita em dois sentidos: o primeiro, ne-
gativista da obra de Oliveira Vianna. Ele era atacado em todas as re-
censões bibliográficas desse livro, como sendo a novas sociologia a subs-
tituta, que empurrava a obra de Oliveira Vianna, para lhe tomar o lugar.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Toda a obra posterior desse autor saiu
desse livro. Houve uma ocasião em que eu disse ser o livro capital dele.
E ele me respondeu: "você quer dizer que eu não escrevi mais nada que
prestasse"? "Eu não disse isso, apenas afirmei que desse livro partiu tudo
que você escreveu até hoje."
Djacir Menezes - Inclusive, eles tiravam da obra de Oliveira Vianna
um trecho um tanto transitório para fazer daquilo uma definição completa
de todo o pensamento político e sociológico, como, por exemplo, por ter
falado Oliveira Vianna em dolicocéfalo e na arianização de certas áreas
da população brasileira; eles faziam disso um lema sociológico, a dou-
trina de Oliveira Vianna, quando aquilo era um aspecto transitório a que
ele aludiu sem muita confiança, embora defendesse até certo ponto.
Arthur Cesar Ferreira Reis - No prefácio que faz ao livro História
social do Brasil que, a princípio, tinha intitulado O Ariano no Brasil, ele
diz que muita gente se admira que, sendo um mestiço, defenda essa tese.
Mas ele estava convencido de que era a realidade.
Djacir Menezes - Arthur Cesar se referiu a um ponto sobre o qual
eu tinha insistido com ele para fazer uma conferência. ~ o problema de
Bolívar e o autoritarismo.

Arthur Cesar Ferreira Reis - Assumo um compromisso público: na


próxima reunião do Conselho vou fazer isso.

Mesa-redonda 39
Djacir Menezes - Desde que sentimos em todo esse grupo que faz
essa sociologia moderna, mais ou menos marxizante, embora às vezes seja
um marxismo pré-púbere, essa tendência de deformar Bolívar, no sentido
de um liberal, de um sujeito que, pela primeira vez, ergueu a bandeira da
liberdade na América, o pensamento dele aproxima-se muito mais de
Oliveira Vianna do que ...
Evaristo de Moraes Filho Concordo com você em parte, mas o
próprio Arthur Cesar chamou a atenção para isso e eu confesso que
aprendi hoje com ele. Antes, Bolívar era libertário, era rousseauniano,
era liberal, não há dúvida, e eu tinha essa imagem do libertador, porque
ninguém luta por independência ou faz liberalizações, sem ser um homem
dessa formação. Mas, depois, no poder, quando foi governar, ele fez um
projeto ...
Djacir Menezes - Eu diria um pouco antes do poder, porque sem
organizar aquela massa informe de comandados com uma certa autori-
dade e procurando logo imprimir espírito de disciplina, ele não teria feito
os movimentos que fez.
Evaristo de Moraes Filho - Sim, mas a arma ideológica com que ele
jogava para conseguir isso era exatamente o liberalismo de Rousseau.
Djacir Menezes - Essa era uma arma que funcionava de várias formas,
porque tinha dois gumes. Mas, como dirá mais adiante, fundamentando
tudo, essa conferência que continuo esperando do Arthur Cesar, é na
feitura das constituições que aparece esse pensamento claro, não é? O
autoritarismo.
Evaristo de Moraes Filho - É, não há dúvida.

Djacir Menezes - Quando falaram aqui em Constituição de 1937, eu


dei um apartezinho, que deve ter sido colhido aí, dizendo ter ela sido uma
grande constituição. Bom, modus in rebus, é preciso se enquadrar um
pouco no tempo para ver até onde vai essa grandeza, mas é porque me
repugnam muito certos episódios que cercaram 1937 ...
Mas as razões do ineditismo de livros já deixados completamente re-
digidos por Oliveira Vianna, e até hoje não publicados, me parecem um
pouco fracas, porque alegar que eles tem tendência autoritária ou coisa
semelhante é muito fraco. Os livros já deviam ter saído, todos esperzm,
como já saíram dois ou três.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Mas os antigos, dos novos nenhum saiu.
Djacir Menezes - Póstumos? Tem um sobre o capitalismo social.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Ele já tinha morrido, foi há mais de 20
anos. Dos atuais, os que estão tomando conta da obra dele, no museu de
Niterói, estão retardando o máximo possível sob essa alegação. Eu vivo

40 R.C.P. 2/79
insistindo e já cobrei até do ex-governador do Estado do Rio; numa
sessão pública, para seu desagrado, eu disse que ele assumiu um com-
promisso e não cumpriu.
Evaristo de Moraes Filho - Um dos que estudaram a obra é o ex-
senador da República, Vasconcellos Torres, que tem um livro sobre ele.
Arthur Cesar Ferreira Reis - É uma biografia.

Evaristo de Moraes Filho - Entre os estudiosos da vida e da obra


de Oliveira Vianna encontra-se Marcos Almir Madeira, que dirigiu a
Casa que lhe leva o nome.
Djacir Menezes - Foi quem passou a prefaciar alguns livros ...
Arthur Cesar Ferreira Reis - Ê justamente junto a ele que eu tenho
lutado pela publicação dos livros ...
Evaristo de Moraes Filho - Mas Oliveira Vianna é um homem que
pertence ao Brasil, e sua obra hoje - autoritária e anti-socialista - é
objeto de vários estudos.
Djacir Menezes - Não pode estar subordinado a injunções políticas
de quem, porventura, esteja na cúpula dos acontecimentos.
Evaristo de Moraes Filho - Oliveira Vianna - coisa curiosa - embora
católico, não era professante; não era um homem, digamos, fanático ou
radical, era quase um agnóstico e teve polêmicas com grupos católicos no
Brasil. Dizia-se pragmático em política.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Mesmo na obra dele, a pre~ença da
Igreja é muito de passagem.
Evaristo de Moraes Filho - Mas foi muito aproveitado pelos católicos
pelo que tinha do chamado "pensamento reacionário". A expressão era
essa mesma, o pensamento reacionário de Jackson de Figueiredo, Álvaro
Bomilcar, Tasso da Silveira na década de 20, porque Oliveira Vianna
sempre foi anticomunista em toda a sua vida e obra; ele negava, por
exemplo, a luta de classes no Brasil. Foi um dos chavões de 1933, quan-
do surgiu aquele outro autor demonstrando que houve algumas lutas de
classes. Pois bem, Oliveira Vianna foi aproveitado pelo grupo católico
mais do que realmente devia, mais do que estava na sua obra e isso
ainda levou a interpretação do seu pensamento mais para a direita, como
acontece também com Alberto Torres. Alberto Torres, sob certos aspectos
era um homem até revolucionário, avançado, mas também, por outro lado,
foi muito conservador. Os integralistas, por exemplo, se serviram muito
de Alberto Torres. Confesso que, por esta razão, tive durante muito tem-
po ojeriza pela obra de Alberto Torres. Em 1932 com 17 anos, e em
1933 ingressando na faculdade, fui bem contemporâneo do Manifesto

Mesa-redonda 41
Integralista de outubro de 1932. Comecei minha vida universitária em
pleno impacto integralista na faculdade, em fevereiro de 1933. Não era
integralista, pelo contrário. Cândido Mota Filho, que foi integralista, es-
creveu um livro sobre "Alberto Torres, tema da nossa geração". Deu-se
uma interpretação integralista, digamos assim, a Alberto Torres. E a
mesma coisa aconteceu com Oliveira Vianna. Todos os reacionários,
todos os autoritários, todos os antidemocráticos, todos os liberticidas se
serviram também do seu pensamento, como disse Arthur Cesar no início.
Quer dizer, radicalizaram-no e deram uma aplicação que nem sempre
estava na sua obra. E tanto não estava na obra dele - isso é que é
curioso - que, quando escreveu Instituições políticas, foi para mostrar
que não era só aquele autor que entendia de culturalismo. Note-se que
nas Instituições ele até abusa das citações culturalistas de antropólogos
americanos, para mostrar que possuía aqueles autores e os conhecia.
Procura fazer uma democracia baseada no povo-massa. Mostra que no
Brasil, desde a administração municipal da colônia, o povo nunca teve
vez, nunca teve voz, sempre ficou marginalizado ou serviu de mera tropa
de manobra.
Arthur Cesar Ferreira Reis - O vereador era o homem bom ...
Evaristo de Moraes Filho - Era o homem bom. Sempre foram as
classes dominantes que decidiam. Oliveira Vianna mostra - e isso é
curioso - nas Instituições que é preciso organizar o povo, o homem-
massa, criar a opinião pública nacional, consciente e esclarecida. É pre-
ciso despertar o povo brasileiro. Aí, nesse sentido, ele não é nada rea-
cionário, é até democrata, mas de uma democracia, é bem verdade, à
sua maneira, talvez orgânica demai·s. De qualquer maneira, combateu
sempre o coronelismo e a clientela eleitoreira dos políticos proporcionais.
Arthur Cesar Ferreira Reis - Nada de coronelismo, enxada e voto.
Evaristo de Moraes Filho - Ele quer organizar o povo para ter voz
ativa e mostra que ele nunca a teve no Brasil. No Brasil colônia, no Im-
pério, na República, sempre foi explorado, sempre decidiram por ele.
Djacir Menezes - Este pensamento leva a uma conclusão, digamos
assim, pedagógica, a educação da massa.
Evaristo de Moraes Filho - Oliveira Vianna era, nesse sentido, um
pedagogo. Resta saber somente qual o conteúdo dessa pedagogia ...
Djacir Menezes - É, portanto, um processo um tanto lento para afastar
a fraude eleitoreira.
Querem acrescentar mais alguma coisa sobre esse grande pensador?
Evaristo de Moraes Filho - O Arthur Cesar ainda há pouco, antes
de chegarmos aqui, me dizia, com razão, que uma das coisas que talvez

42 R.C.P. 2/79
irritasse Oliveira Vianna era dá-lo como discípulo de Alberto Torres. No
segundo volume das Instituições políticas, que reli recentemente, ele mos-
tra que ambos tiveram pensamentos paralelos, mas independentes. Era
amigo de Alberto Torres,' mas não seu discípulo. Umas das poucas vezes
em que Oliveira Vianna se exalta um pouco - ele que era calmo e tran-
qüilo - é em duas ou três páginas daquele livro em que quer provar
que não segue o pensamento de Alberto Torres. Chega a chamá-lo de
liberalizante, romântico. Diz que ele está muito preso à sociologia euro-
péia, ao pensamento alienígena, e diz mais, que Alberto Torres não era
propriamente um sociólogo, era um filósofo.
Djacir Menezes - Filósofo político.
Evaristo de Moraes Filho - Quer se distinguir de Alberto Torres,
então diz que ele vinha da generalidade para o particular e que ele,
Oliveira Vianna, mágico e sociólogo, parte do particular para o geral, da
observação para a generalidade. Está expresso em seu livro. Acho tudo
um tanto forçado, mas todos nós estamos sujeitos a isso. Quando quere-
mos provar que não estamos filiados, não somos afinal de contas papel
carbono de um outro pensador, exageramos na distinção, negamos demais.
E ele também negou demais a possível filiação a Alberto Torres.
Arthur Cesar Ferreira Reis - O livro central de Alberto Torres, Orga-
nização nacional, é modelado por um livro argentino, Pontos de Partida
para a organização nacional da Argentina, de João Batista Alberdi, que
fugiu da pressão de Rosas, foi para o Chile, abriu banca de advocacia,
ensinava na universidade e escrevia nos jornais. E nos jornais escreveu
uma análise da vida argentina, da sua formação, concluindo por um
projeto de constituição. Com a queda de Rosas ele voltou à Argentina;
estabeleceu-se logo um sistema constitucional, com a Assembléia Consti-
tuinte, e o projeto que ele havia apresentado transformou-se, praticamente
em sua quase-totalidade, na Constituição argentina que regeu o país até
a ascensão de Perón. O nosso Alberto Torres faz a análise da formação
brasileira e conclui com um projeto de constituição, quer dizer, o modelo
era obra de Alberdi que era o inimigo número um do Brasil.
Evaristo de Moraes Filho - Mas, no meu entender, foi conservadora
a Revolução de 30. E isso tem sido a meditação destes últimos anos de
minha vida, porque fui filho de um homem da Aliança Liberal, colabo-
rador da Revolução de 30. A Aliança Liberal, como o nome o diz, era
liberal. Nos primeiros discursos de Getúlio Vargas, ele cita muito Ruy
Barbosa e Nilo Peçanha, prende-se a essa corrente de pensamento, de
modo que a revolução veio para realizar a verdade eleitoral. Seu lema
era "representação e justiça".
Djacir Menezes - :E: Assis Brasil.

Mesa-redonda 43
Evaristo de Moraes Filho - Perfeito. E Assis Brasil foi um dos au-
tores do Código Eleitoral de 1932. Foi uma revolução de superfície, mais,
digamos assim, de clientela eleitoral. Mas depois, no poder, como sempre
acontece, Getúlio Vargas, com sua formação positivista, aparou os ga-
lhos da sociedade brasileira, sem lhe abalar a estrutura. Procurou inte-
grar o trabalhador na sociedade; mas não conseguiu fazê-lo no Estado ...

Arthur Cesar Ferreira Reis - Tudo o que Getúlio pregou por meio
dessa aliança hoje aparece sob novas formas. O Pacto Amazônico quem
sugeriu foi ele, num discurso que proferiu em Manaus, sugerindo a unidade
de vista dos países amazônicos na solução global de seus problemas. E
agora está surgindo o Pacto do Amazonas. E na reunião a que estive
presente em Manaus - eu era governador - voltou-se, em 1967, ao
assunto.

Evaristo de Moraes Filho - Terminando. Embora sendo liberal na


crítica à República Velha, quando no poder, a Aliança realizou a cen-
tralização. Foi uma revolução centralizadora, uma revolução de organi-
zação das forças sociais, de planejamento, de industrialização, de moder-
nização. Resultado: o pensador político, que realmente desde 30 começa
a colaborar, até sua morte, passando pelo Estado Novo; o pensador típico
disso tudo foi Oliveira Vianna.
Toda a crítica de Oliveira Vianna ao idealismo vai ser praticada, vai
ser aceita, pela Revolução de 30. Oliveira Vianna passou a ser, por assim
dizer, o pensador oficial de Getúlio Vargas, ou de 30 para cá. Foi um
homem que tendo feito toda a sua obra histórica, sociológica e de filosofia
social, viu a sua ciência política encontrar aplicação depois de 30. Nisso
ele foi um homem feliz, porque teve oportunidade de realizar as suas
idéias, pelo menos parcialmente. É um fato, sem qualquer juízo de valor.

Djacir Menezes - De fato, antes de 30, o eixo do pensamento político


mais controverso era exatamente o problema do regime representativo. A
ponto de Capistrano de Abreu, com aquela maledicência que tinha, dizer:
"Estou convencido de que o caráter brasileiro é incompatível com eleições
honestas. "

Arthur Cesar Ferreira Reis - Quando foram interrogá-lo sobre a


reforma da Constituição, ele disse: "Meu filho, basta um artigo: todo
brasileiro deverá ter vergonha."

Miguel de Ulhoa Cintra - O senhor referiu-se ao Cóligo Eleitoral de


1932. Quais os principais colaboradores ou elaboradores do Código de
1932?

Evaristo de Moraes Filho - O refator-geral foi João Crisóstomo da


Rocha Cabral, professor de direito nessa época, mas um dos maiores es-
tudiosos da questão eleitoral.

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Arthur Cesar Ferreira Reis - Ele tinha um projeto que nunca tinha
sido considerado, mas depois foi aceito.
Evaristo de Moraes Filho - Exato. De modo que foram Assis Brasil,
João Crisóstomo Cabral e Mário Pinto Serva. Desses nomes me lembro
bem. O Código é de 1932, e admitiu o voto feminino.
Em livro publicado em 1935, fazendo balanço dos primeiros anos da
revolução, Hermes Lima não lhe é favorável.
As oligarquias mudaram de nome ou de mãos, mais não desapareceram.
A verdade eleitoral não foi tão pura e isenta como se esperava. O poder
simplesmente mudou de donos. . . '
Djacir Menezes - Se ninguém mais quer fazer uso da palavra, vamos
encerrar e convido os presentes a irem ao gabinete do Ministro Themis-
tocles Cavalcanti, que já deve ter chegado. Mais alguma pergunta no sen-
tido das nossas pesquisas? (Pausa) Declaramos encerrada a sessão.

Mesa-redonda 45

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