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EMPREGO DOMÉSTICO
Christine Jacquet
Ao explicar o siginificativo excedente femi- res, cuja variação se daria em função da popula-
nino nas populações das cidades pré-industriais ção ser urbana ou rural. Ele expressa, na verda-
da Europa Ocidental, Antoinette Fauve-Chamoux de, o caráter sexuado dos movimentos migrató-
(1998) concluiu que era determinante o papel da rios, a saber, uma sobrefeminilidade das trocas
imigração feminina, sobretudo das domésticas na entre o rural e o urbano e uma sobremasculinida-
formação das populações urbanas. No Brasil con- de dos fluxos entre o urbano e o rural (Tabela 1).
temporâneo, a população urbana caracteriza-se Em outras palavras, o êxodo rural, que alimenta
também por um alto desequilíbrio entre os sexos: o crescimento da população urbana, é um fenô-
94 homens para cada cem mulheres;1 nas capitais, meno majoritariamente feminino. No que diz res-
a desproporção é ainda maior (o número de ho- peito às domésticas2 brasileiras, verifica-se que
mens baixa para 91 a cada cem mulheres). Nas elas participam ativamente do desequilíbrio entre
zonas rurais, ao contrário, observa-se um consi- os sexos, pois na população urbana dos diferen-
derável déficit feminino (109 homens para cada tes Estados do Brasil nota-se uma estreita correla-
cem mulheres). O desequilíbrio entre os sexos
ção entre o excedente feminino e a presença de
seja entre citadinos, seja entre camponeses, não
domésticas (Gráfico 1). Assim, entre os onze Es-
pode ser atribuído a uma natalidade ou a uma
tados que apresentam os maiores déficits mascu-
mortalidade diferenciada entre homens e mulhe-
linos na população urbana (Maranhão, Piauí, Cea-
rá, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Artigo recebido em maio/2002. Alagoas, Sergipe, Bahia, Distrito Federal, Rio de
Aprovado em abril/2003. Janeiro), oito registram, também, a maior propor-
Composta por 95% de mulheres, das quais Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.
dois terços têm entre quinze e 24 anos,4 a popula-
ção doméstica de Fortaleza concentra uma taxa que se casaram em 1991 tinham entre quinze e de-
elevada de migrantes nativas da zona rural zenove anos: em Fortaleza (Gráfico 3), essa pro-
(68,4%).5 A distribuição por faixa etária das domés- proção alcança apenas 25%; contudo, esses dados
ticas no momento de sua migração para Fortaleza agregam as mulheres das zonas rurais e das zonas
mostra que 84% deixaram seu município com ida- urbanas, mascarando, assim, a maior precocidade
des entre dez e 19 anos.6 Ora, essas idades coinci- das uniões nas zonas rurais. A justaposição desses
dem com aquelas do ingresso das jovens do cam- dois calendários – migratório e matrimonial – sus-
po no mercado matrimonial local. Com efeito, no citou a hipótese, a qual analisaremos neste traba-
interior cearense, a prática do casamento precoce lho, de que o motivo da migração dessas jovens é
não é rara: conforme o IBGE, 42,4% das solteiras de ordem matrimonial.
URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165
Tabela 1
Imigrantes* com Menos de Dez Anos Ininterruptos de Residência no Município
Por Situação de Domicílio e Sexo
Situação do domicílio anterior/
situação do domicílio atual Homens Mulheres Taxa de masculinidade
Rural/Urbano 2.174.647 2.323.743 93,6
Urbano/Rural 974.843 881.124 10,6
Saldo 1.199.804 1.442.619 83,2
* Imigrantes: pessoas não naturais do município.
Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.
mento, que ela tem seu carro, que ela tem tudo, de escassez relativa favorável a seu casamento – o
que ela tem seu trabalho, aí chove de homens. Ago- número de mulheres é deficitário na faixa etária
ra se uma mulher for separada e se for pobre, tem entre quinze e 29 anos. Pode-se perguntar, a pro-
nada, os homens não querem dela. Chegam apenas pósito, se o excedente masculino, observado nos
com a idéia de fazer sexo e pronto, usá-la, a mulher municípios de origem das domésticas, não torna
não tem mais valor para eles (Entrevista 3). as uniões mais precoces, já que a questão do ca-
samento estaria mais presente para as jovens nas-
Em suma, apesar de as domésticas deixarem cidas em municípios com menor número de mu-
seu município quando entram no mercado matri- lheres. Nos outros municípios, a diferença
monial local, a coincidência entre esses dois ca- homens/mulheres, apesar de positiva, está mais
lendários não pode ser explicada por qualquer equilibrada. Assim, quando se analisa os dados re-
rejeição ao casamento: as jovens migrantes repre- lativos aos municípios onde nasceram as domésti-
sentam seu futuro conforme o modelo que defi- cas, verifica-se que a zona rural destes são pecu-
ne o acesso das mulheres à posição adulta a par- liarmente bem providas de homens em idade de
tir do matrimônio, modelo cujos contornos são se casar. Portanto, a hipótese de déficit masculino
desenhados pelo meio de origem. Devemos ver, não explica absolutamente a migração das domés-
portanto, nestas primeiras observações, a invali- ticas, ao contrário, há uma ligação entre o exce-
dação da hipótese inicial ou continuar trilhando dente masculino e a saída dessas jovens. O pro-
o caminho do casamento, interessando-nos, mais blema consiste, então, em interpretar esse fato, ou
especificamente, pelo estado do mercado matri- seja, descobrir por que as mulheres que aspiram a
monial local? Com efeito, levando em conta a um estabelecimento social autonômo pelo matri-
amplitude dos movimentos migratórios que atra- mônio deixam seu município, caracterizado por
vessam o Ceará, uma hipotética escassez relativa uma taxa de masculinidade alta. De uma situação
de homens, nos municípios de origem das do- propícia ao casamento, elas partem para Fortale-
mésticas, devido a uma alta emigração masculina, za, onde o contingente masculino é muito defici-
teria como conseqüência obrigar as moças casa- tário a partir de dez anos de idade, chegando a ser
douras a se deslocarem. bastante significativo entre quinze e 29 anos (Ta-
bela 3). Talvez o excesso de homens nos municí-
O valor social dos rapazes do interior pios de origem não seja o bastante para realizar os
projetos matrimoniais. O que estaria em causa não
Quando se compara a taxa de masculinida- seria então a quantidade, mas a qualidade dos
de da população rural dos municípios de nasci- cônjuges potenciais disponíveis localmente, ou
mento das domésticas8 e a dos outros municípios seja, seu valor social. Ante a desvalorização dos
cearenses, pode-se observar que os lugares de ori- homens daqueles municípios, as mulheres opta-
gem das migrantes se caracterizam por taxas de riam por um mercado que oferece maior diversi-
masculinidade elevadas (Gráfico 6). Em outras pa- dade. Nessa perspectiva, a migração para Fortale-
lavras, as domésticas freqüentemente provêm de za poderia ser definida como uma “mobilidade de
municípios nos quais, na zona rural, a razão de prospecção matrimonial” (Bozon, Héran, 1987).
sexo é bastante desequilibrada. Porém, não são
todos os homens que estão em idade de se casar,
e a abundância de idosos ou crianças não pode- Uma estratégia de reconversão?
ria satisfazer os desejos femininos de conjugalida-
de. Nesse sentido, a Tabela 2 apresenta, por faixa Verificar a validade da hipótese referida im-
etária, a taxa de masculinidade das zonas rurais plica previamente elaborar o perfil dos cônjuges
cearenses, discriminando os municípios de origem potenciais e, então, circunscrever o campo de
das domésticas dos demais municípios. Nos pri- suas alianças, dando enfoque às modalidades
meiros, as mulheres encontram-se numa situação de formação dos casais nas zonas rurais.
168 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52
Gráfico 6
Distribuição dos Municípios Cearenses, Segundo a Taxa de Masculinidade da População Rural
Tabela 2 Tabela 3
Distribuição dos Municípios Cearenses, Taxa de Masculinidade por
Segundo a Taxa de Masculinidade Idade em Fortaleza, 1991
nas Zonas Rurais em 1991
Município de Taxa de
Faixa etária nascimento Outros municípios Idade
masculinidade
das domésticas 0-4 anos 103,5
0-4 anos 97,3 97,5
5-9 anos 100,9
5-9 anos 97,0 97,5
10-14 anos 93,5
10-14 anos 93,2 94,4
15-19 anos 80,6
15-19 anos 84,2 88,3
20-24 anos 90,9 98,6 20-24 anos 83,6
25-29 anos 95,3 97,7 25-29 anos 83,6
30-34 anos 98,3 103,7 30-34 anos 83,3
35-39 anos 103,0 104,9 35-39 anos 80,3
40-44 anos 100,4 106,3 40-44 anos 82,5
45-49 anos 100,5 103,5
45-49 anos 80,6
50-54 anos 100,5 104,0
50-54 anos 78,6
55-59 anos 104,8 106,7
60-64 anos 95,6 98,4 55-59 anos 76,1
65-69 anos 87,4 91,3 60-64 anos 71,1
70 anos e + 89,8 89,9 65-69 anos 72,6
Total 94,8 97,4 70 anos e + 62,7
Fonte: Base de dados Samba, 2000. Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.
URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 169
quando a criança nascer, devia ser dada logo a A oposição dos pais nem sempre também é
uma pessoa que eu não conhecia. suficiente para impedir seu casamento. Um meio de
forçar o consentimento familiar consiste na fuga
Menos que o nascimento de uma criança ile- com o moço reprovado. Normalmente, quando isso
gítima, está a derrogação à obrigação de solidarie- ocorre, os jovens buscam o apoio de um membro
dade, que Nilda deveria ter manifestado com seu da família do rapaz – irmãos ou tios –, que os hos-
irmão, deixando de encontrar seu namorado, já peda provisoriamente e desempenha o papel de
que isso prejudicava a honra familiar. intermediário para formalizar o casamento com os
Contudo, nem sempre as moças se confor- pais da jovem que, por sua vez, se sentem na obri-
mam à vontade paterna. Nilda continuou, duran- gação de aceitar a união, pois a fuga, nesse caso,
te algum tempo, sua relação amorosa, apesar de equivale à perda da virgindade da moça. Mas che-
proibitiva. E se até pouco antes do nascimento gar ao ponto de se opor ao casamento não é algo
Nilda submeteu-se ao veredicto familiar – não recorrente, nem tão necessário, já que as jovens
tendo abortado teria de dar a criança a uma famí- aprenderam desde a infância a se submeter ao in-
lia “adotiva” –, após o nascimento, ela decidiu teresse familiar garantido pelo pai. Ademais, como
observou Bernard Vernier (1991) em sua análise
criar sua filha, arriscando, com isso, provocar uma
sobre a sociedade karpathiota, “a posição social de
ruptura familiar.
um indivíduo dependia, antes de tudo, da de seus
pais. É preciso levar em conta a extrema depen-
Disse a minha irmã: “vou te dizer uma coisa que
dência dos filhos [...] para entender melhor sua
não vai gostar mas infelizmente para você e feliz-
submissão às decisões familiares”. Quando essa
mente para mim, não vou dar essa criança, vou
submissão exacerba as tensões no seio da família
ficar com ela, vou fazer o que precisar, vou pedir
pelos constrangimentos rigorosos que pesam sobre
esmola se precisar mas não vou dar”. Ela ficou
os membros do grupo, à medida que os conflitos
chateada porque não sabia como dizer a meu pai.
intrafamiliares ameaçam a continuidade das rela-
Foi falar com ele dizendo que eu queria que eles ções, há o incentivo a procurar acordos. A irredu-
entendessem, que me aceitem com minha filha. tibilidade do pai de Nilda foi quebrada ao aceitar a
Fiquei lá na casa da minha irmã esperando a res- decisão de sua filha de ficar com o bebê porque,
posta. Quando voltou, minha mãe tinha manda- alguns anos antes, uma de suas filhas, a mais ve-
do tudo, fraldas, mamadeira. Nasci pela segunda lha, recusando sujeitar-se à sua vontade, fugiu do
vez. Passei ainda 28 dias em Santa Quitéria, aí mi- domicílio parental com dezessete anos, rompendo,
nha mãe veio me buscar com minha filha. A gen- desde então, qualquer contato com sua família.
te chegou em casa e meus dois irmãos não que- Ora, a pertença a um grupo de parentesco deter-
riam minha filha. Ficavam zangados porque mina não apenas a posição de cada um no seio da
achavam que tinha feito uma coisa muito ruim: comunidade, mas também sua identidade social.
ter uma criança sem estar casada e em seguida Nas palavras de Martine Segalen (1984):
criar problemas. Nem queriam que eu me casas-
se com meu namorado, aí ter filho era pior. Aí fi- [...] encerrado na sucessão das gerações, inscrito
caram um mês sem ir na casa dos meus pais. Aí em redes de colateralidade, referenciado em rela-
ção à origem geográfica familiar, cada um reco-
meu pai chamou eles, explicou que não podiam
nhece seu lugar. As redes dão um sentimento de
me desprezar por causa disso, que podia aconte- estabilidade, de pertença, funcionam como um
cer com todo mundo, que eu não era a primeira. sistema de identificação.
Não entravam no quarto da menina, nem olha-
vam para ela mas eu dizia nada. Depois de al- Foi categórica a resposta de uma jovem quan-
guns tempos, foram ver a menina e sei que hoje do lhe foi sugerido a possibilidade de romper as
é o coração da casa, nem uma mosca pode tocar relações com sua família: “acho que não poderia fi-
nela, tem 5 anos e tudo mundo adora ela. car sem vê-los, seria como se não tivesse dono”.
URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 171
Gráfico 7
Proporção de Estabelecimentos com Menos de 5 ha e
Proporção de Arrendatários e Ocupantes
As importantes mudanças que afetaram as cas dessa população apresentam grande probabi-
estruturas agrárias cearenses conduziram à preca- lidade de conduzir as jovens oriundas desse meio
riedade da condição e da posição do pequeno à desclassificação social e, mais ainda, a uma des-
proprietário. A exploração de minúsculas parcelas classificação permanente.
herdadas não possibilita mais a reprodução da A procura dos fatores que determinaram o
economia familiar. Para permanecer na agricultu- desprestígio dos homens no meio rural, suscitada
ra, uma porção crescente de famílias tem de ar- pela proposta deste estudo, segundo a qual uma
rendar ou ocupar as terras ou procurar atividades lógica matrimonial condiciona o deslocamento
complementares. Na agricultura, a mão-de-obra das jovens até Fortaleza, nos levou a verificar o
progrediu muito (de 46% entre 1960 e 1995, pas- respaldo de uma hipótese formulada em termos
sando de 801.492 para 1.170.724). Contudo, esse de estratégia de reconversão. Notamos que “as
aumento resulta exclusivamente do crescimento chances objetivas de reprodução do grupo”
do número de pequenos estabelecimentos explo- (Bourdieu, Boltanski, Saint-Martin, 1973) perten-
rados pelo trabalho familiar. As unidades médias cente ao pequeno campesinato são restritas local-
e, sobretudo, grandes, suscetíveis de contratar as- mente, o que contribuiu para a diminuição do
salariados, registram regressão de pessoal ocupa- “valor social” dos jovens nesse ambiente e a con-
do (respectivamente -26% e -52% entre 1960 e secutiva migração das mulheres. Todavia, este
1995). Então, se a população agrícola cresceu foi modelo, baseado apenas na leitura das estruturas
por causa, antes de tudo, do crescimento do nú- econômicas, não dá conta da dimensão subjetiva,
mero de responsáveis e membros não remunera- essencial neste caso, cujo esclarecimento é indis-
dos da família, que representavam 80% da força pensável à compreensão da lógica dos comporta-
de trabalho agrícola, em 1995, e apenas 45%, em mentos individuais.
1960. O contingente de empregados diminui bas-
tante, tanto em valor relativo como em absoluto.
Segundo os censos do IBGE, em 1960, 44% da Mobilidade geográfica e mobilidade
força de trabalho da agricultura era composta por social: o emprego doméstico
empregados temporários ou permanentes, em
1995, essa porcentagem caiu para 18%. Na realida- Como sinal de uma melhoria de sua posição
de, sob o aparente aumento da população agríco- social, as domésticas sintetizam sua ida a Fortale-
la, uma dupla mudança se deu, reduzindo conside- za com a expressão “mudar de vida”, manifesta
ravelmente as capacidades de absorção da mão- por meio do uso de superlativos na evocação das
de-obra na agricultura: o crescimento da produti- circunstâncias da migração para a capital:
vidade do trabalho nos estabelecimentos médios
e grandes e o aumento do subemprego nos pe- Matilde: Achava que eu ia ter mais liberda-
quenos. Ora, fora da agricultura, as oportunidades de aqui, que ia conhecer melhor a vida, lá sabia
locais de emprego são muito restritas. Os municí- de nada, aqui seria diferente.
pios do interior (zonas urbanas e rurais) apresen- Lucia: Decidi vir para cá para ter uma vida melhor.
tam uma estrutura socioprofissional pouco diver- alete: Fortaleza era perto da minha cidade, e era
sificada. Artesanato, serviços essencialmente lá que queria recomeçar.
pessoais (confecção, sobretudo), pequenos esta- Raimundinha: Fazia tempo que tinha vontade
belecimentos comerciais, ensino e cargos político- de vir. Minhas primas encontraram um trabalho
administrativos, não chegam a oferecer recursos para mim e vim para questionar a vida, para me-
complementares suficientes e, ainda, menores op- lhorar minha situação.
ções de reconversão. Assim, à medida que no Deuslange: Desde criança eu queria vir, queria
seio do pequeno campesinato a transmissão inter- ter minha própria vida, sem depender de nin-
geracional do estatuto social acontece com muitas guém. Aqui trabalho, ganho meu dinheiro, quan-
dificuldades, as práticas matrimoniais homogâmi- do quero um coisa eu tenho. Lá, quando as pes-
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soas têm um trabalho, ganham uma mixaria e rais adquirem importância em relação a seus fins
nunca me conformei com a pobreza. diretamente econômicos“. Tal abordagem, que faz
Entrevista de grupo: Saí de casa porque queria da migração o resultado de um projeto pessoal de
uma vida melhor e lá não podia ter o que quero ascensão social, permite que não nos detenhamos
para mim. Aí escolhi mudar de vida, vim traba- em uma explicação exclusiva e mecanicamente
lhar para comprar o que eu quero, o que eu de- centrada nos contrangimentos econômicos e na
sejo (Entrevista 4). “resignação à necessidade” (Bourdieu, 1979) como
fundamentos das práticas populares.
O desejo de ascenção social, expressado pe-
las domésticas entrevistadas, nos permite interpre- Ambições matrimoniais e seleção do cônjuge
tar a migração para Fortaleza como uma “conduta
de mobilidade social”, no sentido que a definem A aspiração de promoção social manifestada
Alain Touraine e Orietta Ragazzi (1961). A partir de pelas jovens se traduz também na concepção que
um estudo sobre os operários de origem agrícola, têm do casamento. Embora as migrantes encarem
estes autores se propõem a analisar a migração seu futuro conforme a definição dos destinos fe-
como uma “conduta orientada e significativa de um mininos vigentes no seu meio de origem, defini-
ator”, que resulta, ao mesmo tempo, “de constran- ção segundo a qual o casamento determina, para
gimentos ou de estimulações econômicas e [...] de as mulheres, o acesso à posição adulta, sua con-
um projeto pessoal”. Eles identificam, do ponto cepção do casamento, ao contrário, diverge. En-
de vista analítico, três casos gerais de passagem de quanto nas sociedades rurais as estratégias de
emprego de trabalhador agrícola para o de operá- aliança visam a garantir a continuidade das posi-
rio da indústria, definidos a partir do “tipo de de- ções sociais de uma geração para outra, as migran-
cisão que acarreta a mobilidade”. Em primeiro lu- tes concebem o casamento como um intrumento
gar está o deslocamento. Quando numa zona rural de promoção social: o modelo da homogamia foi
a oferta de trabalho aumenta, em função da im- substituído pelo da hipergamia feminina. Daí o
plantação de uma empresa, o trabalhador agrícola cuidado extremo na seleção do cônjuge:
pode ser contratado sem deixar sua aldeia, ou ins-
talando-se numa aldeia vizinha. Nesse caso, “uma Nilda: Nunca quis de um homem que sabe de
ocasião precisa deu forma a uma intenção, talvez e nada, falo de uma coisa, nem sabe do que estou
mesmo provavelmente latente; a iniciativa não veio falando, pergunto alguma coisa e nem sabe me
do próprio indivíduo”. Em segundo lugar está a responder. Não. Quero alguém que sabe me res-
partida. “Sempre querida ou pelo menos aceita”, ponder, que tira minhas dúdivas, não quero de
corresponde à migração para um centro industrial: um homem burro. Gosto das pessoas inteligen-
o trabalhador agrícola “decide ir trabalhar numa tes, educadas, que sabem um pouco de tudo,
usina, deixar a terra, tornar-se operário”. Por fim que sabem conversar, acho que é muito impor-
está a conduta de mobilidade social que supõe que tante, tem muito valor, quando você conhece al-
“o indivíduo que deixa seu meio social de origem guém que conhece as coisas, principalmente que
seja dirigido por uma vontade ou uma perspectiva sabe falar, acho que é bom, aí você deve dar va-
de ascensão”. Esses três tipos de movimento carac- lor a isso (Entrevista 5).
terizam-se por ter objetivos diferentes: a empresa,
para o deslocamento, a indústria, para a partida, e Se o amor não é esquecido, se conjuga per-
a cidade, para a mobilidade social, sendo que a feitamente com o interesse:
meta, nesse último caso, é “antes de tudo, entrar na
economia e na cultura urbana”. Passa-se, assim, de Albanisa: Eu sou pobre, não vou me casar com
objetivos específicos para gerais e, acrescentam um pobre!
Touraine e Ragazzi, “quanto mais o objetivo do Aparecida: Deus me livre de me casar com um
movimento é geral, mais também seus fins cultu- homem pobre. Para sofrer? Claro que eu não que-
URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 175
ro viver às costas dele, quero ter meu próprio ne- parte das moças; seu resultado dependerá do va-
gócio, se tem dinheiro pode montar um negócio lor social dos homens, por um lado, e das cate-
para mim. gorias que as moças empregam para julgar esse
Rita: Vou me casar quando vou ser apaixonada valor, por outro. À medida que as migrantes es-
por um rapaz, quando vou saber que ele me ame, peram do futuro marido uma melhoria em sua
que eu o amo de verdade, que ele tem um bom posição social, um rapaz será avaliado em função
emprego para poder se casar, se não tem um de suas potencialidades promocionais. Nessas
bom emprego como é que a gente pode sobrevi- condições, a desqualificação dos homens do pe-
ver? (Entrevista 6). queno campesinato pode se referir não apenas a
seu empobrecimento, que compromete as chan-
Do mesmo modo, a diferença que percebem ces de reprodução do grupo, mas também à re-
entre casamento e concubinato, segundo o esta- definição dos critérios de avaliação das moças;
tuto socioeconômico do parceiro, testemunha a aliás é o que confirmam os resultados obtidos a
procura de uma ascensão social pelo casamento: partir do estudo do retrato que as pesquisadas
construíram de seu futuro cônjuge. Com efeito,
Vilma: A gente pode viver juntos com um homem François de Singly (1994) constata que as mulhe-
pobre, mas não com um homem rico. Com um res sensíveis a seu sucesso social e casadas com
homem rico, a gente se casa. Se divorcia, a gen- um parceiro de melhor nível cultural, econômico
te tem direitos, a casa, tudo é dividido. e social são particularmente propensas a retradu-
Nilda: Se o rapaz tem mais que a moça, acho que zir esse valor social superior em valor psicológi-
é melhor casar (Entrevista 7). co: “vêem seu parceiro como um interlocutor
atento, um confidente, uma pessoa que desem-
Tal concepção do casamento tem forte inci- penha o papel de “‘terapeuta’” e de apoio”. Do
dência na escolha do marido. Com efeito, en- mesmo modo, conforme as observações de Mi-
quanto nas comunidades rurais o controle paren- chel Bozon (1990), as qualidades psicológicas ou
tal delineia estreitamente o círculo das uniões, o relacionais que as mulheres reconhecem, de bom
sistema de alianças é, apesar de tudo, preferen- grado, em seu futuro cônjuge, por ocasião de seu
cial e não prescritivo, quer dizer, o cônjuge é es- encontro, “remetem à posição social mais eleva-
colhido e essa escolha pertence aos filhos. Ora, da do homem”. Ao descreverem seu cônjuge
Michel Bozon (1991) mostrou que a seleção de ideal, 88,9% das domésticas fazem referência a
um parceiro se efetua também “através de julga- suas qualidades de ordem psicológica (Tabela 4).
mentos que cada um faz sobre os indivíduos que Também, segundo elas, são evidenciadas
encontra“. Assim, no mercado matrimonial, o suas capacidades de comunicação conjugal (“es-
conjunto dos capitais que os jovens detêm, quer cuta o que quero dizer”, “conversa comigo”, “me
dizer, seu valor social, é objeto de apreciação por conta seus problemas”), de compreensão (“sabe
Tabela 4
Qualidades do Cônjuge Ideal Segundo as Empregadas Domésticas
Maninha: Lá a vida é como parada não tem pro- Noventa por cento das pesquisadas declara-
gresso, as pessoas vivem da casa para o trabalho, ram nunca ter trabalhado antes de se tornarem do-
do trabalho para a casa e é assim, não tem even- mésticas. As atividades remuneradas que exerciam
to, nada de novo. O trabalho é sempre o mesmo, antes de ingressar nesse ambiente foram, freqüen-
URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 177
temente, omitidas, tanto nos questionários como nem sabia o que era um trabalho, fazia mas para
nas entrevistas. Da mesma forma, quando interro- mim era nada, era como se fosse uma obrigação
gadas sobre quando começaram a trabalhar de que tinha em casa, considerei como trabalho mais
forma remunerada, muitas indicaram o primeiro tarde, aos 12-13 anos. [O que você fazia nesta
emprego doméstico. Na realidade, 25% das do- casa até 12 anos?] Só fazia brincar porque là na
mésticias entrevistadas já haviam exercido algum minha casa tinha nada e aqui eles me davam mui-
tipo de atividade remunerada, o mais das vezes, tas coisas. Vim para brincar, para passar tempo
artesanal, quando residiam com seus pais, e essas com o menino. [Depois você cresceu…] Aos 12
atividades inscreviam-se na divisão familiar do anos, comecei a lavar fraldas, dar sopa, ajudar a
trabalho. O salário das moças fazia parte da eco- preparar a comida, dar os remédios, pequenas
nomia familiar: era entregue à mãe, que cuidava
coisas assim. [E em seguida?] Acho que o serviço
da organização (aprendizagem, inclusive) do tra-
cresceu junto comigo, tinha condição de fazer
balho de suas filhas. A lógica das despesas ex-
mais, aí devia fazer, como cuidar deles. Varria a
pressava a primazia da família e o lugar residual
casa, passava o pano, fazia as compras.
deixado ao indivíduo (entrevista 9):12
Irene: Vim para brincar, era menina ainda. Aí
quando cresci, ela [a patroa] exigiu mais, cuidava
Helena: Minha mãe fazia chapéus e engomava.
Agora eu nunca aprendi a fazer chapéus, minhas da casa e quando tive 13-14 anos, a cozinheira foi
irmãs sabiam, menos eu. Minha função era engo- embora, aí ela me pediu para fazer o almoço,
mar e lavar, as pessoas me chamavam e eu dava gostou da minha comida, aí continuei até agora
o dinhero a minha mãe, ela comprava o que que- (Entrevista 10).
ria, com o que sobrava, comprava roupas quan-
do achava que eu merecia. Eu trazia tudo para Fora esses casos, o emprego doméstico em
casa, não gastava nada (Entrevista 9). Fortaleza, em virtude da separação residencial, li-
berta as moças da obrigação de participar na eco-
O emprego doméstico em Fortaleza, por- nomia familiar. Assim, apesar de dois terços das
que pressupõe a saída do lar, permite às migran- domésticas afirmarem ajudar seus pais, elas parti-
tes uma maior autonomia fora desse modelo de cipam, na realidade, de maneira irregular na eco-
atividade subordinado à família. Contrariamente nomia familiar com o envio de dinheiro ou de
a uma idéia muito difundida por uma concepção bens materiais como roupas e remédios, e isto in-
economicista da domesticidade, o emprego do- dependentemente de sua idade no momento da
méstico não pode ser analisado exclusivamente pesquisa ou do início da atividade doméstica, ou
como uma estratégia para garantir a renda fami- ainda, do tempo de serviço. As mães reclamam e
liar quando os pais inserem as meninas ainda
as domésticas o confirmam:
muito jovens nesse universo. Essa análise pode
ser aceitável apenas para as meninas que ingres-
[Você manda dinheiro a seus pais?]
saram no emprego doméstico antes de dez anos
Cleoneide: Quando vou lá e que posso dar, dou.
e, portanto, uma minoria (6,3%). Muitas vezes,
Pode ser todo mês, pode não ser, não tem mo-
elas exercem a atividade de “babá”, que consis-
te, sobretudo, em ser companheira de brincadei- mento fixo não.
ras das crianças dos patrões. A natureza das tare- Fátima: Não. Quando vou em casa, quando levo
fas realizadas por essas jovens muda, perdendo dinheiro, eu dou, quando não tenho, eu digo
pouco a pouco seu caráter lúdico, quando, a par- logo: “vim apenas com o dinheiro da passagem”.
tir de treze anos, passam a guardar para elas mes- Elsa: Não, ele [seu pai] pede mas meu salário é
mas seu salário até então integralmente mandado pouco pra dar.
aos pais: Liane: Às vezes, mas não todo mês, às vezes,
Socorro: Não achava que fosse um trabalho, eu quando eu quero (Entrevista 11).
178 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52
os fatores que contribuíram para dificultar a trans- últimos indicadores permitem avaliar o isolamen-
missão de valores entre as gerações. to geográfico, ou seja, a distância de Fortaleza e o
Uma primeira explicação diz respeito ao em- fato de o município ser ou não turístico. A partir
pobrecimento do pequeno campesinato. Se as mo- dessas variáveis,14 chegamos a um índice cujo va-
ças são pouco vinculadas aos valores tradicionais, lor fornece uma escala do encravamento dos mu-
é porque estes lhes parecem ilegítimos à medida nicípios cearenses. Cada modalidade foi afetada
que se tornaram ineficazes para evitar a desclassi- por um coeficiente que vale entre 1 e 3, da seguin-
ficação: os pais não são mais os fiadores de sua te maneira:
inserção social. O destino pode, então, ser pensa-
do em termos individuais. E é o que manifesta a Modalidade Coeficiente
autodeterminação espontânea nos relatos de emi- • Proporção dos ativos ocupando um emprego
gração (“eu não queria ficar lá”, “eu queria sair de fora da agricultura
casa”, “sou eu que tomei a decisão”, “logo [depois 0-19%..........................................................1
da minha saída] não deixei mais ninguém mandar 20-29%........................................................2
em mim, vou onde eu quero”), uma maneira de 30% e mais.................................................3
significar o domínio de seu próprio destino opos- • Número médio de empregados nos estabeleci-
to à submissão ao grupo familiar, domínio que a mentos não-agrícolas
emigração tornou possível. 3 e menos...................................................1
Uma segunda explicação está relacionada à 4 e mais......................................................3
configuração socioespacial dos municípios de ori- • Taxa de população urbana
gem das migrantes. Vários autores mostraram o Taxa inferior à média do Estado …….......1
papel determinante que desempenham as caracte- Taxa superior ou igual à média do Estado...3
rísticas morfológicas do espaço local nos fenôme- • Distância quilométrica de Fortaleza
nos de reprodução social. Patrick Champagne 450 km e mais…....………………..……....1
(1986) observou que nos municípios isolados geo- 250-449 km……………………..................2
gráfica e socialmente os valores tradicionais são 0-249 km…………………………………...3
facilmente conservados e transmitidos, na medida • Município turístico
em que, hegemônicos, impõem-se como evidên- Não……………………………...................1
cias. Ao contrário, nos municípios socialmente he- Sim……………………………………........3
terogêneos e abertos a influênciais exteriores, os
valores tradicionais não estão garantidos. Nesse O índice total de um município foi calculado
meio convivem e interagem indivíduos que ocu- somando-se os coeficientes atribuídos a cada mo-
pam posições sociais variadas e que, portanto, são dalidade das variáveis. Vai de 5, nível máximo de
detentores de valores também diversos, os quais encravamento, a 15, nível mínimo. Os resultados
são referências imprecindíveis para a avaliação das apresentados no Gráfico 8 mostram a pertinência
condições de vida desses indivíduos. A fim de ve- das observações de Patrick Champagne (1986). O
rificar a validade dessa proposição no caso das do- perfil dos municípios de origem das domésticas e
mésticas, tentamos caracterizar a configuração so- o dos demais municípios, ante os valores tomados
cioespacial de seu município de nascimento em pelo índice, são bastante diferenciados. O primei-
relação aos demais municípios cearenses. Para ro caracteriza-se por uma sub-representação dos
isso, elaboramos cinco indicadores13 a partir de da- índices, entre 5 e 7 (5,0% contra 63,6% para os
dos estatísticos disponíveis. Três deles são destina- municípios onde não há recrutamento de domés-
dos a medir a maior ou menor homogeneidade so- ticas), e uma sobrerepresentação dos índices mais
cioespacial dos municípios: proporção dos ativos elevados (60,0% dos municípios de origem das mi-
ocupando um emprego fora da agricultura, núme- grantes têm um índice entre 11 e 15, sendo essa
ro médio de empregados nos estabelecimentos taxa apenas de 12,7% para as outras localidades).
não-agrícolas e taxa de população urbana. Os dois A atração por Fortaleza é muito pequena em mu-
180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52
Gráfico 8
Distribuição dos Municípios Cearenses, Segundo o Índice de Encravamento
exerceu no passado essa atividade). Então, a saí- duos, entre os quais 162 domésticas; Exploração se-
da das moças é definitiva, conforme suas preten- cundária da base de dados Samba, 2000; Levanta-
sões iniciais. Ora, a domesticidade é um emprego mento de dados estatísticos do IBGE sobre Fortaleza
de juventude e, conseqüentemente, renova-se a e os municípios cearenses.
um ritmo muito rápido: em 1991, dois terços das 4 Fonte: Sine, “Desemprego e subemprego no muni-
domésticas brasileiras tinham menos de 25 anos, cípio de Fortaleza”, 1991.
60,0% delas agrupadas nas faixas etárias com-
5 Esse resultado agrega os dados das investigações
prendidas entre quinze e 24 anos. Em outras pa-
que conduzimos com as empregadas domésticas, a
lavras, depois dos 25 anos, muitas jovens deixam
saber: questionários, entrevistas de grupo e entre-
o emprego doméstico sem, contudo, voltar à zona
vistas individuais (N = 240). A análise a seguir diz
rural; destarte, se a proporção de domésticas na
respeito às migrantes cearenses que representam
população urbana feminina do Brasil atingia ape-
mais de 80% do total das migrantes; desse modo,
nas 3,5% em 1995, a das antigas domésticas, infe-
foram excluídas as oriundas de outros Estados.
lizmente impossível de ser avaliada a partir dos
dados disponíveis, deveria ser muito mais alta, o 6 Vale ressaltar que a migração dessas jovens é indi-
que nos leva a concluir, assim como Antoinette vidual e direta entre o município de origem e
Fauve-Chamoux (1998) em seu estudo sobre as Fortaleza.
cidades européias do século XVIII, que as domés- 7 Fonte: IBGE, PNAD, 1990.
ticas participaram ativamente da formação da po- 8 A fim de reduzir o efeito de flutuações aleatórias,
pulação urbana brasileira. foram considerados municípios de nascimento das
domésticas somente os que apresentavam, em nossa
amostragem, uma freqüência igual ou superior a
NOTAS cinco, o que representa um total de 28 municípios.
Entre os dois censos de 1980 e 1991, houve várias
1 Fonte: IBGE, Censo demográfico, 1991.
mudanças no recorte administrativo dos municípios
2 Trata-se aqui das empregadas domésticas que dor- cearenses: 43 distritos tiveram acesso à autonomia a
mem no emprego, ou seja, as que são classificadas partir do desmembramento de 31 municípios; as
pelo IBGE sob a modalidade “Empregado domésti- domésticas entrevistadas, nascidas num município
co”,da variável “Condição na família”. As diaristas criado após 1980, podiam declarar como lugar de
estão, portanto, excluídas do presente estudo. nascimento o antigo município ou o novo. Em com-
3 Fortaleza é uma das capitais que apresenta não ape- pensação, entre 1960 e 1980, apenas um município
nas um dos maiores excedentes femininos do Brasil, foi fracionado. Os limites da quase totalidade dos
assim como uma das maiores proporções de domés- municípios, portanto, não variaram entre essas duas
ticas em sua população (1,5%). A pesquisa de cam- datas que constituem o período de nascimento de
po consistiu em: Entrevistas individuais semi-dirigi- 95% das domésticas. Por isso, preferimos analisar a
das com empregadas domésticas (n = 48), patroas (n partir das fronteiras municipais de 1980 (ou seja, um
= 13), mães de domésticas de Fortaleza (n = 12). To- total de 140 municípios). Os diversos dados relativos
das as mães residiam em Camocim, município do li- aos novos municípios foram incluídos nos dos
toral norte cearense, de onde eram oriundas muitas
municípios iniciais. Trabalhar a partir de unidades
domésticas já entrevistadas; Questionários com do-
geográficas estáveis permitiu adotar uma perspectiva
mésticas escolarizadas (n = 150); Entrevistas de gru-
dinâmica no sentido de entender as mudanças do
po com domésticas escolarizadas (quatro entrevis-
contexto social no qual as domésticas foram criadas.
tas, ou seja, 41 domésticas); Exploração segundária
dos dados da pesquisa “Desemprego e subemprego 9 Segundo o censo de 1991, 75,1% dos domicílios
no município de Fortaleza” realizada em 1991 pelo particulares permanentes, localizados numa zona
SINE, com uma amostragem aleatória estratificada de rural cearense, constam de uma família nuclear.
2.379 domicílios, o que representa 11.374 indiví- 10 A este propósito, ver Durham (1973).
182 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52
11 Usamos a divisão determinada por Sadi Dal-Rosso _________. (1979), La distinction: critique sociale
(1980). As pequenas unidades contam com menos du jugement. Paris, Les Éditions de Mi-
de 10 ha, as médias, entre 10 e 100 ha, e as grandes, nuit (coleção Le Sens Commun).
100 ha e mais.
BOURDIEU, Pierre; BOLTANSKI, Luc & SAINT-
12 A partir de pesquisas com homens migrantes de
MARTIN, Monique de. (1973), “Les stra-
origem rural, Eunice Durham (1973) chegou à
tégies de reconversion: les classes socia-
mesma conclusão: “o trabalho que o jovem realiza
les et le système d’enseignement”.
com seu pai nunca é mencionado na descrição das
Information sur les Sciences Sociales,
atividades profissionais. A atividade agrícola é incluí-
XII (5): 61-113.
da pelo migrante na descrição de sua carreira apenas
quando é exercida como atividade independante, ou BOZON, Michel. (1990), “Les femmes et l’écart
seja, como trabalho do indivíduo adulto. Isto parece d’âge entre conjoints: une domination
indicar que as crianças e os adolescentes não são consentie. II. Modes d’entrée dans la vie
considerados trabalhadores, mas somente mão-de- adulte et représentations du conjoint”.
obra familiar”. Population, 3: 565-601.
13 Todos os cálculos foram efetuados excluindo Fortaleza _________. (1991), “Apparence physique et choix
das contagens.
du conjoint”. Congrès et Colloques, 7:
14 Cada variável é parcialmente correlata às outras; a 91-110, PUF-INED.
que apresenta os maiores coeficientes de correlação
é a proporção dos ativos ocupando um emprego
BOZON, Michel & HEILBORN, Maria Luiza.
não agrícola; a variável que apresenta os menores (1996), “Les caresses et les mots: initia-
coeficientes é a distância de Fortaleza. tions amoureuses à Rio de Janeiro et à
Paris”. Terrains, 27: 37-58.
15 Tentamos desenvolver uma pesquisa longitudinal
mas, infelizmente, o resultado dessa busca foi decep- BOZON, Michel & HÉRAN, François. (1987),
cionante: conseguimos localizar menos de um quin- “L’aire de recrutement du conjoint”.
to das moças já entrevistadas, tornando impossível Données Sociales, pp. 338-347.
qualquer análise do devir das domésticas.
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184 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52
Ao constatar que as domésticas que Having noticed that the maids who Partant du constat que les employés
residem no emprego, geralmente live in the job place, most of the time domestiques, la plupart du temps
oriundas do meio rural, participam natural of the countryside, have ta- originaires du milieu rural, partici-
ativamente da formação da popula- ken an active role in the formation of pent activement à la formation de la
ção urbana brasileira, este artigo pro- the Brazilian urban population, this population urbaine brésilienne, l’ar-
cura analisar as lógicas que presidem article aims to analyze the logics that ticle tente d’élucider les logiques qui
a migração das mulheres em direção determine the migration of these wo- se réfèrent à l’émigration de ces po-
às capitais, a partir do estudo da po- men towards the capitals, based on pulations vers les villes. Notre étude
pulação doméstica de Fortaleza. A hi- the study of the domestic population se fonde sur l’exemple de la domes-
pótese central desenvolvida é que o of Fortaleza. The central hypothesis ticité dans la ville de Fortaleza. No-
ingresso na domesticidade urbana developed is that the ingression into tre thèse centrale est que l’entrée
atende a um projeto pessoal de ascen- urban domestiticity is seen both as a dans la domesticité urbaine répond
são social e a um objetivo de ordem personal project of social ascension à un objectif personnel d’ascension
matrimonial, que resulta da “desvalo- and a matrimonial objective, resul- sociale et à un objectif d’ordre ma-
rização social” dos rapazes no meio ting in a “social devaluation” of the trimonial, qui résulte de la «dévalori-
rural, decorrente do empobrecimento youngsters in the rural area, as a re- sation sociale» des jeunes paysans,
do pequeno campesinato. sult of the impoverishment of the suite à l’appauvrissement de la pe-
small peasantry. tite paysannerie.