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Adolf Eichmann entrou para a SS em 1932, como um jovem ambicioso que não aguentava mais

o seu emprego de vendedor viajante e que se via como um fracassado perante os olhos de sua
família e do meio social. A SS representava a possibilidade de um recomeço em sua vida, além
da construção de uma carreira. Assim, não foi por convicção que ele decidiu seguir esse rumo;
aliás, ele nunca conheceu o programa do Partido Nazista e, desde o início de seu
interrogatório, insistiu em declarar que não tinha nada contra os judeus; ao contrário, ele tinha
razões pessoais para "não ir contra" os judeus.

Foi designado, a princípio, para o Departamento de Informação. Como as coisas ali também
eram muito tediosas, ficou aliviado quando foi transferido, após alguns meses, para um
departamento novo referente aos judeus. Era o ano de 1935, quando a Alemanha introduziu a
convocação geral e anunciou os planos de rearmamento, quando Hitler fazia seus discursos de
paz e era admirado como um grande estadista, pois o desemprego havia sido eliminado e a
hostilidade do regime ainda não se voltara inteiramente para a perseguição de judeus
enquanto judeus (embora, desde 1933, já houvesse a exclusão dos judeus do serviço público).

Logo que chegou ao novo departamento, seu chefe exigiu que ele lesse um famoso clássico
sionista e foi, a partir daí, que Eichmann converteu-se ao sionismo e tornou-se um "idealista".
Em março de 1938, já promovido a tenente pelo seu conhecimento abrangente do judaísmo,
foi mandado para Viena, a fim de organizar uma "emigração forçada" de judeus.

A estonteante disposição de Eichmann, primeiro na Argentina, depois também em Jerusalém,


a admitir seus crimes devia-se à aura de sistemática hipocrisia que constituía a atmosfera geral
do Terceiro Reich. “Claro” que ele havia desempenhado um papel no extermínio dos judeus;
ele agora “gostaria de fazer as pazes" com eles.

As distorções da realidade que Eichmann fazia eram horríveis por causa do horror com que
elas lidavam, porém não eram tão diferentes do que se via usualmente na Alemanha pós-
Hitler. Toda a sociedade alemã protegeu-se, durante anos, contra a terrível realidade com o
mesmo auto-engano de Eichmann.

De qualquer forma, apesar dos esforços da promotoria, durante o julgamento de Eichmann,


todo mundo podia perceber que ele não era um "monstro", mas sim um burocrata medíocre.

Ele declarou que “considerava os judeus como oponentes para os quais era preciso encontrar
uma solução mutuamente justa”. Segundo ele, era interesse dos judeus deixar o país, apesar
de nem todos os judeus compreenderem isso, e ele buscou ajudá-los nisso, de modo que
centenas de milhares de judeus conseguiram escapar a tempo. Nos primeiros anos, havia um
acordo mútuo altamente satisfatório entre as autoridades nazistas e a Agência Judaica para a
Palestina. É claro que eles não tinham consciência das sinistras implicações desse acordo...

O problema de Eichmann era que ele não conseguia lembrar nenhum fato que pudesse
sustentar a sua história no julgamento. Sua memória só funcionava a respeito de coisas que
influenciaram diretamente a sua carreira.

Aquele ano em Viena, da primavera de 1938 a março de 1939, coincidiu com uma época em
que o regime nazista abandonou sua atitude pró-sionista. E, em fevereiro de 1939, Eichmann
mandou chamar os líderes do judaísmo alemão para explicar seus novos métodos de
“emigração forçada”.

Entre 1937 e 1941, Eichmann recebeu quatro promoções. Em Viena, ele mostrara o seu valor e
passou a ser reconhecido como autoridade em questões de emigração. Em 1939, ele foi
nomeado para estabelecer mais um centro de emigração de judeus em Praga. A guerra eclodiu
em setembro daquele ano e, após um mês, Eichmann foi chamado a Berlim para ser chefe do
Centro para a Emigração Judaica, quando não se podia mais pensar numa solução para a
questão judaica em termos de “emigração forçada”.

Foi somente com a eclosão da guerra que o regime nazista tornou-se abertamente totalitário,
graças em boa parte à fusão do Serviço de Segurança da SS (ao qual Eichmann pertencia) com
a Polícia Regular do Estado, que fazia parte da Gestapo. O resultado foi o Escritório Central da
Segurança do Reich, onde Eichmann tomou posse de um novo cargo.

Eichmann pensou em três soluções diferentes para a questão judaica. Todavia, nenhuma
dessas ideias teve sucesso. Agora, a única “solução”, a Solução Final era o extermínio. Heydrich
já vinha trabalhando nesse sentido havia anos, mas Eichmann não fazia parte dos altos círculos
do Partido; agora, ao progredir do grau de “portadores de ordens” ao de “portadores de
segredos”, ele teve de fazer um juramento especial. Assim, ele viu os preparativos para futuras
câmaras de gás, um dos campos de extermínio do Leste, e foi encarregado de inspecionar o
centro de extermínio das Regiões Ocidentais da Polônia, onde se usaram caminhões de gás.
Viu também judeus serem fuzilados em Minsk; a fila de judeus, na estação ferroviária de
Treblinka, avançando para serem asfixiados; e visitou várias vezes Aushwitz. Ele viu apenas o
suficiente para estar plenamente informado de como funcionava a máquina de destruição:
havia dois métodos de matança, o fuzilamento e a câmara de gás.

Em setembro de 1941, Eichmann organizou suas primeiras deportações em massa da


Alemanha e do Protetorado. A verdade é que ele poderia ter pedido transferência, mas a ideia
de desobediência era impossível para ele.

Nenhuma das várias “regras de linguagem” criadas por Hitler para camuflar as coisas teve mais
efeito na mentalidade dos assassinos do que o decreto em que a palavra “assassinato” era
substituída por “dar uma morte misericordiosa” (afinal, a morte por asfixia de gás era indolor).

Em janeiro de 1942, houve a Conferência de Wannsee, a fim de coordenar todos os esforços


na implementação da Solução Final, pois era necessária a cooperação de todos os ministérios e
de todo o serviço público. Eichmann, que nunca havia tido um contato tão próximo com tantos
“altos personagens” viu suas possíveis dúvidas sobre aquela solução sangrenta se dissiparem
então (quem era ele para “ter suas próprias ideias sobre o assunto”?); e ele logo se tornou
perito da “evacuação forçada”, de modo que os judeus tinham de se registrar e preencher uma
série de formulários e questionários sobre suas propriedades (para que estas fossem tomadas
mais facilmente) e, assim, eles eram reunidos nos pontos de coleta e embarcavam nos trens.

O papel desempenhado pelos próprios líderes judeus na destruição de seu povo é um dos
elementos mais sombrios do acontecido. E Eichmann ressaltou que o fator mais potente para
aplacar sua consciência foi o fato de não ver efetivamente ninguém contrário à Solução Final.
Eichmann sempre se deslumbrou com a “boa sociedade” e sempre acreditou no sucesso. Ao
falar sobre Hitler, ele mencionou que a trajetória de sucesso dele bastava para que se
subordinasse a ele. E a sua consciência ficou tranquila quando viu o zelo e o empenho com que
a “boa sociedade” de todas as partes reagia aos seus atos. A sua consciência, enfim, falava com
a voz da respeitável sociedade à sua volta (A única forma de se viver no Terceiro Reich e não
agir como nazista era retirando-se de toda participação significativa da vida pública, o que
pouquíssimos alemães de fato fizeram, embora muitos tenham afirmado depois que sempre
foram “internamente opostos” ao regime).

Tanto quanto podia ver, Eichmann cumpria o seu dever; ele não só obedecia ordens, como
também seguia a lei.

A ordem de Himmler, no outono de 1944, para suspender o extermínio e desmontar as


instalações dos pavilhões da morte, quando já era evidente que a Alemanha ia perder a guerra
e quando uma “ala moderada” da SS surgira, brotou de sua convicção de que os poderes
aliados saberiam como apreciar esse ato. Foi nessa época que Eichmann, tendo sido
transferido para a Hungria, teve sua última crise de consciência, passando a sabotar algumas
das ordens de Himmler, pois ele sabia que estas iam contra as de Hitler. Logo, em janeiro de
1945, ele foi transferido para um departamento insignificante que se ocupava da “luta contra
as igrejas”.

Em 1942, também começaram as deportações na Europa Ocidental (França, Bélgica, Holanda,


Dinamarca e Itália – vale destacar que as autoridades dinamarquesas sabotaram as ordens
alemãs, declaradamente, e ajudaram a embarcar os judeus para a Suécia, e houve resistência
também na Itália), nos Balcãs (Iugoslávia, Bulgária, Grécia e Romênia – nenhum judeu búlgaro
foi deportado; em contrapartida, os romenos exibiram uma violência mais brutal do que em
qualquer outro lugar) e na Europa Central (Hungria e Eslováquia).

Como a acusação estava primordialmente interessada no sofrimento do povo judeu e nas


dimensões do genocídio contra ele praticado, era lógico começar pelo Leste Europeu, terminal
de horrores de todas as deportações, de onde não havia escapatória e local que fora o centro
da população judaica da Europa antes da guerra. O problema era que as provas ligando
Eichmann ao Leste eram escassas, já que muitos arquivos haviam sido destruídos pelos
nazistas. Ainda assim, se Eichmann não fosse considerado culpado antes mesmo de aparecer
em Jerusalém, os israelenses jamais teriam ousado capturá-lo ilegalmente na Argentina. Seu
papel na Solução Final havia sido exagerado, como agora se descobria, pela sua própria
bazófia, pelos acusados em Nuremberg e em outros tribunais pós-guerra tentarem se livrar das
próprias culpas às custas dele, e, principalmente, pelo seu contato próximo com funcionários
judeus, uma vez que era o oficial alemão “perito em assuntos judaicos”.

Durante as últimas semanas da guerra, a burocracia da SS ficou ocupada com a falsificação e


destruição de documentos, porém, no caso de Eichmann, toda a sua correspondência havia
sido endereçada a outros departamentos do Estado e do Partido, cujos arquivos caíram nas
mãos dos Aliados. E esses documentos foram utilizados pela acusação no julgamento.

O que logo se comprovou é que Israel era o único país do mundo onde testemunhas da defesa
não podiam ser ouvidas e onde certas testemunhas da acusação não podiam ser interrogadas
pela defesa. O dr. Servatius acabou expressando abertamente, mais tarde, a esperança de
poder vender qualquer memória de seu cliente. Eichmann, a propósito, escreveu um “livro” no
intervalo entre o recesso da corte em agosto e o pronunciamento da sentença em dezembro.

Eichmann ocupou o banco de 20 de junho a 24 de julho, um total de 33 sessões e meia. Já 62


sessões foram gastas com testemunhas de acusação.

Ele fora capturado por soldados norte-americanos e levado a um campo para homens da SS,
onde numerosos interrogatórios não descobriram sua identidade. Conseguiu escapar, com a
ajuda de outros prisioneiros, para uma charneca, onde trabalhou como lenhador por 4 anos.
Em 1950, conseguiu contato com a ODESSA, uma organização clandestina de veteranos da SS,
e atravessou a Áustria até a Itália, onde um padre franciscano, perfeitamente informado de
sua identidade, arranjou-lhe um passaporte de refugiado com o nome de Richard Klement e o
mandou para Buenos Aires. Lá, ele obteve documentos e permissão de trabalho como Ricardo
Klement, finalmente escreveu à mulher e, em 1952, trouxe a ela e seus filhos para viver com
ele. Em 1955, deu uma entrevista a um jornalista holandês, e, na verdade, fez várias tentativas
de romper o anonimato, sendo até estranho que o Serviço Secreto israelense tenha demorado
tanto para descobri-lo. Enfim, em 11 de maio de 1960, ele foi capturado por três homens.
Apresentou dois motivos para a sua cooperação com as autoridades do processo: estava
cansado do anonimato e queria fazer a sua parte para aliviar a carga de culpa da juventude
alemã.

Em 11 de dezembro, a corte foi retomada para pronunciar a sentença. Os três juízes


condenaram Eichmann em todas as 15 acusações, embora fosse absolvido em alguns
particulares. Os itens de 5 a 12 tratavam de “crimes contra a humanidade”; todos os crimes
enumerados nos itens de 1 a 12 levavam à pena de morte.

Eichmann, há de lembrar-se, insistiu que era culpado apenas de “ajudar e instigar” a realização
dos crimes dos quais era acusado, que ele próprio nunca havia cometido nenhum ato aberto.
O julgamento, para grande alívio de todos, reconhecia, de certa forma, que a acusação não
conseguira provar que ele estava errado nesse ponto (um ponto importante, pois esse não era
um crime comum quanto à sua essência, assim como o criminoso não era comum). Em seu
depoimento final, Eichmann declarou: “Não sou o monstro que fazem de mim”, “Sou vítima de
uma falácia”. Sua culpa, pensava ele, provinha de sua obediência, e a obediência é louvada
como virtude. Sua virtude havia sido abusada pelos líderes nazistas e só eles mereciam
punição.

Em 15 de dezembro de 1961, foi pronunciada a sentença de morte. Em 22 de março de 1962,


iniciaram-se os trabalhos de revisão diante da Corte de Apelação, a Suprema Corte de Israel. O
dr. Servatius agora pedia que Israel oferecesse a extradição. Em 29 de maio de 1962, foi lido o
segundo julgamento, o qual considerava que o acusado não recebera nenhuma ‘ordem
superior’, ele era seu próprio superior; em todo o resto, a Corte de Apelação concordava com
a Corte Distrital. Todos os pedidos de clemência foram rejeitados em 31 de maio, e, nesse
mesmo dia, Eichmann foi enforcado, seu corpo foi cremado e suas cinzas foram espalhadas no
Mediterrâneo fora das águas israelenses. Tal velocidade na execução da sentença de morte foi
extraordinária. Aliás, as irregularidades e anormalidades do Julgamento de Jerusalém foram
diversas e de tamanha complexidade. Contudo, o único traço quase sem precedentes de todo
o julgamento foi Israel ter violado o princípio territorial, ao raptar Eichmann na Argentina.

O crime das Leis de Nuremberg de 1935 (as quais legalizavam a discriminação da maioria
alemã contra a minoria judaica) era um crime nacional; já a “emigração forçada”, que se
tornou política oficial depois de 1938, era da alçada da política de boa vizinhança, pela simples
razão de que aqueles que eram expulsos apareciam nas fronteiras de outros países. Foi
quando o regime nazista declarou que o povo alemão não apenas não estava disposto a ter
judeus na Alemanha, como desejava fazer todo o povo judeu sumir da face da Terra, que
passou a existir um novo crime, o crime contra a humanidade. Se a corte de Jerusalém tivesse
entendido que havia distinções entre discriminação, expulsão e genocídio, teria ficado
imediatamente claro que o crime com o qual se defrontava, o extermínio do povo judeu, era
um crime contra a humanidade. Na medida em que as vítimas eram judeus, era certo e
adequado que uma corte judaica pudesse conduzir o julgamento; mas, na medida em que o
crime era um crime contra a humanidade, era necessário um tribunal internacional para fazer
justiça a ele. Israel reagiu violentamente contra as propostas de um tribunal internacional (vale
lembrar que essa foi a primeira vez em que, desde a destruição de Jerusalém pelos romanos
em 70, os judeus tiveram a possibilidade de julgar crimes cometidos contra o seu próprio povo;
além disso, o argumento de que o crime contra o povo judeu foi primeiramente um crime
contra a humanidade estava em contradição com a Lei (Punitiva) dos Nazistas e Colaboradores
dos Nazistas de 1950, sob a qual Eichmann foi julgado).

Em resumo, o fracasso da corte de Jerusalém consistiu em não ter tomado rédea dos seguintes
pontos: o problema da pré-definição da justiça na corte dos vitoriosos (a justiça, no caso, foi
prejudicada, uma vez que a corte não admitiu testemunhas de defesa); uma definição válida
de “crime contra a humanidade” (conforme já mencionado); e um reconhecimento claro do
novo tipo de criminoso que comete esse crime. O problema com Eichmann era que muitos
homens eram como ele: não eram sádicos monstruosos, mas sim assustadoramente “normais”
– um tipo de criminoso que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente
impossível para ele saber ou sentir que está agindo de maneira errada. Ele simplesmente
nunca percebeu o que estava fazendo; foi pura irreflexão que o predispôs a tornar-se um dos
grandes criminosos dessa época.

Pode-se apontar Eichmann como uma “pequena engrenagem” na máquina da Solução Final e
é fato que o seu crime só podia ser cometido por uma burocracia gigante usando os recursos
do governo. Entretanto, na medida em que continua sendo um crime – e essa é a premissa de
um julgamento – todas as engrenagens, por mais insignificantes que sejam, são transformadas
na corte em perpetradores, isto é, em seres humanos. Resta o problema fundamental
presente em todos esses julgamentos pós-guerra: que os seres humanos sejam capazes de
diferenciar o certo do errado, mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas o seu
próprio juízo, o qual pode estar totalmente em conflito com a opinião unânime da sociedade
respeitável ao seu redor. A responsabilidade política existe apenas à parte daquilo que o
membro individual do grupo fez, e, portanto, não pode nem deve ser levada à corte criminal. E
a questão da culpa ou inocência individual, o ato de aplicar a justiça tanto ao acusado quanto à
vítima, são as únicas coisas em jogo numa corte criminal.

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