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A DUALIDADE DO CONCEITO DE CULTURA

Roberto DaMatta

Nossa atenção ao conceito de cultura é inversamente proporcional à paixão com que falamos sobre os seus produtos.
Arte, música, literatura, teatro e cinema são, como no futebol, quase sempre discutidos, enquanto a grande categoria que
permite alterar estas coisas – a ideia de cultura - é ignorada. E, no entanto, existe uma dualidade no conceito de cultura.
Há a ideia da Cultura (com “C” grande) e a “cultura” (com “c” pequeno). A entrega de um “prêmio multicultural” é uma boa
oportunidade para refletir um pouco sobre essas duas acepções que, sem espírito crítico, podem levar a uma visão
deformada e confusa da vida social e de seus produtos mais proeminentes e elaborados.

Na visão corrente - a dos suplementos literários e das revistas semanais – a “Cultura” com “c” maiúsculo engloba “cultura”
como estilo de vida. Dessa perspectiva, haveria um padrão ideal de manifestação artística, literária e dramática dentro do
qual caberiam todos os outros costumes e manifestações humanas. Os grandes artistas do Ocidente seriam o ponto para
onde tenderiam todas as outras expressões intelectuais e emocionais. Essa é uma maneira linear e englobante de falar de
“cultura “. Um jeito que obviamente limita a problemática da diversidade e da equivalência de outros valores e formas
simbólicas. Nesse sentido preciso, a “Cultura” canibaliza as “culturas”, fechando espaços para manifestações locais e
singulares, quase sempre lidas como “atrasadas”, “ingênuas”, “primitivas” e, usualmente, “desinformadas”, “elementares”
e “subdesenvolvidas”.

Vistas como apêndices da grande “Cultura” produzida nos países centrais, essas manifestações não têm vida própria e
luz interior, pois seriam meros ensaios e bisonhas caricaturas das técnicas e da obra que só o Ocidente produziu, esse “
Ocidente” que, nesse contexto, assume o papel de medida universal de todas as coisas.

Mas como, mais precisamente, “Cultura” e “cultura” se diferenciam? Como sugeri acima, ideia de “Cultura” confunde-se
com a noção progresso e com o prestigioso e bem estabelecido conceito de “civilização”. Neste nível, “Cultura” e
civilização são sinônimos e remetem a uma visada evolucionista e universalista da sociedade e da história. Já a “cultura”
(com “c” minúsculo) é a palavra central do vocabulário romântico, um vocabulário centrado não nos contratualistas
ingleses, mas nos holistas alemães e, em seguida, na tradição antropológica contemporânea. Uma tradição que tem
insistido em compreender o distante e respeitar o diferente, estando interessada no desvendamento de instituições
exóticas e “primitivas” - coisas como o canibalismo e o politeísmo, os rituais de possessão e o carnaval, a ausência de
Estado e a vingança, a dádiva e as formas de família... Dentre todas as disciplinas humanas e sociais, a tradição
antropológica tem sido a única a relacionar criticamente universalismo cientificista com particularismo histórico, um diálogo
esquecido das disciplinas “sociais” centrais, como a economia e a ciência política, que abraçaram sem remorso os valores
empiricistas do Iluminismo.

Resistindo tanto a redução positivista quantos aos delírios românticos, essa visada tem testemunhado (e denunciado) os
efeitos trágicos do “progresso” tecnológico nas sociedades tribais e pago um preço por isso. Sua crítica relativizadora à
ideia de progresso e atraso, de civilização e de selvageria, tem sido lida como um traço francamente conservador a até
mesmo reacionário. Aqui não se fala em “Cultura” e natureza humana, mas em “culturas” como expressões mutuamente
traduzíveis e irredutíveis entre si e das várias possibilidades do ser humano.

Como adjetivo, atribuímos “Cultura” (e “civilização”) a alguém ou a algum grupo como uma prova do seu refinamento.
Pedro, conhecedor de vinhos, ouvinte de música clássica e capaz de ler em francês, inglês e alemão, teria mais cultura do
que João ou Manoel que nada sabem dessas coisas. Nessa acepção, a cultura seria um produto desejável. Seja, como
disse, como o ponto culminante de um “processo civilizatório”; seja como um item a ser obtido, comprado ou adquirido.
Esse sentido tem um sólido sabor normativo, pois ele implica que todo mundo deveria ser como Pedro e ter uma “vasta”,
“bela”, “sólida” ou inegável” cultura e ser “civilizado”. Desse ângulo, a palavra “cultura” filia-se a veneráveis valores
políticos, coincidindo com a noção de “civilidade” e de “sociedade civil”. Desse enlace e dessa visão linear e evolucionária
de “Cultura” como “civilidade” e “civilização” - algo cumulativo e obtido por estágios e etapas - nasce o conceito de
“desenvolvimento” como um modo “progressista”, posto que centrado no eixo econômico, de interpretar as diferenças
entre as sociedades e as nações.

Mas ao fim e ao cabo, essa idéia de cultura assume o exclusivo e o dominante quando afirma que, de um lado, há um
grupo seleto de nações civilizadas, povos que descobriram as leis da história e, por meio delas, um modo de vida racional
e natural, que formam o centro do sistema - e o resto. As coletividades “centrais” e “civilizadas” não teriam costumes,
hábitos e superstições - ou seja, aquela “cultura” que nos distancia de uma visão idealizada de nós mesmos. Nelas, todos
os hábitos seguiriam fórmulas racionais, naturais ou científicas. Em suma, “Cultura”, civilização, sociedade civil e
desenvolvimento fazem parte de um vocabulário positivo, universal e dominante.

Mas a grande descoberta antropológica é que todo mundo tem “cultura”. Lida como um substantivo, à maneira
antropológica, a palavra “cultura” não fala apenas de um processo ou de certos traços de qualidade que podem ser
achados, adquiridos, ensinados ou perdidos, esquecidos e aprendidos, mas de um estado. Nesse sentido a idéia de
cultura traduz duas dimensões fundamentais.

Primeiramente, ela serve para demarcar o processo simbólico por meio do qual a humanidade se diferencia da
animalidade e da natureza. É, pois, com o conceito de cultura que os antropólogos assinalam a diferença capital entre
homens e bichos. Nesse nível, humanidade e cultura são dois elementos indissoluvelmente ligados. Nele, a cultura
significa a capacidade de simbolizar. Um macaco sabe o que é água, mas nenhum macaco jamais conseguirá distinguir
água benta de água potável, filtrada ou destilada. Essa capacidade de apropriação e definição simbólica e arbitrária dos
sentimentos e das necessidades que nos movem é o que tipifica a ideia de cultura como signo da humanidade.

Num segundo nível, a idéia de cultura diz respeito a estilos de vida. A modos de viver e de pertencer a uma dada
coletividade. Aos estilos de classificar, atuar, construir e refletir o mundo. Ela aponta para conjuntos de idéias destinadas a
explicar a perda, o sofrimento, a bonança e, sobretudo, a nossa quase sempre inconfortável consciência de quem somos.
Da nossa finitude e na nossa quase total incapacidade para sairmos de nossos idiomas, momentos históricos,
preconceitos sociais e valores morais. Nesse sentido cultura é valor e ideologia: ela denuncia o nosso privilégio de negar
e de refazer o mundo.

Tais distinções são importantes porque, no caso do Brasil, certas singularidades históricas (fomos “descobertos” e não
“fundados” ou “conquistados” pelos portugueses, nossa herança colonial foi “carnavalizada” pela presença de um rei e de
dois imperadores) e particularidades sociológicas (nossa sociedade foi marcada pela escravidão e pelo hibridismo),
sempre foram lidas como negativas. Ou seja: nossa “cultura”, quando comparada desavisadamente à ideia de “Cultura”
como “civilização” que chegava de fora, era inevitavelmente denegrida e situada como doente, atrasada e inferior.

Para nossas elites, sempre houve uma guerra entre “Cultura” como civilização e “cultura” como estilo de vida ignorante e
atrasado; entre “Cultura”, como vestimenta de sofisticação e marca de superioridade universal, e “cultura” como modo
peculiar de viver, mas interpretada como inferior simplesmente porque era diferente. Para muitos de nós, ter essa cultura
local de misturas era um atraso. Um sintoma de fraqueza e de uma heterogeneidade que, no limite, nos levaria ao
fracasso histórico e até mesmo à catástrofe sociológica.

Assim, diz-se: o Brasil não progride porque somos familísticos e entre a lei e o amigo, ficamos sempre com o amigo!
Fala-se também que nossa cultura, fundada em valores hierárquicos, impede a adoção de regras impessoais e
igualitárias, dificultando a modernização do Estado e abertura da sociedade. Como - perguntamos - modernizar o país do
carnaval, da festa, do jogo do bicho e das religiões de possessão que seriam, no mínimo, um testemunho de ignorância e
mau gosto e, no limite, um atestado de nossa indigência e alienação política?

Adotando essa atitude, substituímos a descoberta histórica por uma visão de “cultura” como um obstáculo ao
desenvolvimento, do mesmo modo que nossos ancestrais usavam a velha e superada ideia de “raça”, ou o “clima”, e os
“hábitos alimentares” para condenar o Brasil ao atraso e ao fracasso. Mas a comparação dos dois sentidos da ideia de
“cultura” ajuda a reconciliar processos e a situar diferenças. Se não posso dizer, sob pena de solipsismo autoritário que a
cultura “X” jamais será desenvolvida ou democrática; também não posso supor que a agenda das chamadas sociedades
civilizadas e “ desenvolvidas”, agendas nascidas em meios sociais e históricos igualmente singulares, possa ser aplicada
automaticamente em todos os lugares.

Ela revela que devemos ler a nossa cultura culturalmente, sem reduzi-la a alguns traços tomados como negativos porque
eram comparados com a tal “Cultura” que se tomava como superior ou como mais avançada. Porque assim fazendo, tudo
o que é nosso estaria sempre fora de lugar, enquadrado que está por uma perspectiva que condena o hibridismo ao
inferno sociocultural. O clientelismo é péssimo se lido por oposição aos quadros ideais de um sistema distributivo
igualitário, sem dúvida. Mas aqui, caberia perguntar duas coisas:

Primeiro, se existe mesmo um sistema tão perfeitamente igualitário? Depois, como segunda questão, se deve indagar se
o lado positivo do clientelismo não conta. Ou seja: se ele não seria o modo local de apropriação de problemas colocados
por um sistema universalista, vindo de fora e imposto de cima para baixo, num meio social relacional e hierárquico? Em
outras palavras, lido como traço absurdamente isolado, o clientelismo seria um modo de separar a “cultura brasileira” do
progresso e da democracia liberal, tornando-a incapaz para viver um sistema político moderno. Mas lido como cultura, o
clientelismo seria uma solução viável e sagaz para os problemas postos pelas transformações da sociedade local.

Pois o clientelismo é a ponte que ajuda a ligar o ideal moderno de igualdade (que veio de fora) com o ideal local das
lealdades pessoais, num sistema que nem sempre prima pelas legislações universais e justas. Nesse sentido profundo,
portanto, o clientelismo seria a forma possível de adotar valores igualitários numa sociedade de ossatura hierárquica.
Porque mesmo dando preferência aos amigos, ele já permite escolhas, bem como a contemplação de desempenhos
individuais, ficando a meio caminho entre uma ética do privilégio e uma ética da isonomia.

Vista, portanto, como um modo de ordenar a experiência humana por meios simbólicos, a “cultura” deixa de ser um
obstáculo para ser compreendida na sua dinâmica e na sua positividade. A questão não se reduz a um conflito estéril
entre valores locais (reacionários) e uma agenda global (progressista) . Mas diz respeito, isso sim, a como permitir que
certos valores locais - clientelismo, pessoalismo, magia, transe, carnaval, feijoada, malandragem, lealdade para com os
amigos, amor pela casa, honra pessoal - possam canibalizar valores universais, fazendo com que tenham um sentido
concreto dentro do cotidiano a que eles dão vida e sentido.

Adotar a agenda democrática sem contemplar esses dois sentidos do conceito de cultura, distinguindo ideais universais
das culturas locais, é repetir o que sempre fizemos: copiar a França, sem ter franceses; imitar a Inglaterra e os Estados
Unidos sem, contudo, ter como valor cultural a igualdade e o individualismo.

Num mundo globalizado não há outra saída, senão a de pôr em diálogo essa dualidade de um conceito que, por ser muito
importante, tem de ser usado como indicador de coisas a mudar, sem deixar - e esse é o ponto - de indicar o que deve
permanecer.

Roberto DaMatta

(Publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 20/05/1999)

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