Você está na página 1de 10

38 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n.

3 2 | d e ze mb ro 2016
ARTE EM CAMPO INSTÁVEL: estratégias de ativação
poética para além da galeria

Luiza Interlenghi

arte contemporânea campo instável


além da galeria espaços de liberdade

Intervenções, instalações e ocupações, na virada dos anos 2000 no Brasil, apontam


as possibilidades de interligação da galeria aos espaços sociais. Essas estratégias
ocupam e ultrapassam as bordas moventes do campo da arte, cuja instabilidade se
torna visível e manipulável. Defendem, assim, posições críticas e a manutenção de
espaços de liberdade.

Na década seguinte ao retorno à democracia, ART IN AN UNSTABLE FIELD: strategies for poetic
no âmbito de uma produção que se singulariza activation beyond the gallery | Installation,
no Brasil e transita internacionalmente com a intervention and occupations by specific artists,
at the turn of the 21st century in Brazil, point to
globalização, diversos artistas, reiteradamente,
possibilities of the gallery’s connection to social
apontam para as possibilidades de interligação da spaces. These strategies occupy and transcend
galeria aos espaços sociais. A cidade e seus extra- the moving borders of contemporary art, and
tos temporais são reintegrados ao campo da arte, make the instability of the field of art visible and
able to be manipulated. They uphold thereby
física e simbolicamente, tornando-o intensamente
critical positions and maintain spaces of freedom.
instável. Ainda que realizados de modo indepen- | Brazilian contemporary art, instability of
dente, Cruzamento (2003-2004), de Renata Lu- the art field, beyond the gallery, spaces of
cas, Extensor (2001-2010), de João Modé, Fundo freedom.
falso (2010), de Matheus Rocha Pitta, Costumes
(2003-2006), de Laura Lima, assim como Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (2002) e Via-
gem ao centro do céu e da terra (2002), de Cildo Meireles intervêm de modo exemplar na galeria e além.
Ocupam, habitam e ultrapassam as fronteiras do campo da arte, cuja instabilidade se torna criticamente
visível. Então, uma temporalidade que captura, desacelera, e outra que se abre momentânea e livremen-
te são mantidas em tensão. A inquietude quanto à extensão, plasticidade e repercussão dessa condição
instável, justo em sua interseção com o viver, é como uma indagação de caráter epistemológico, reposta
em diferentes metáforas do instável.

Cildo Meireles, Viagem ao centro do céu e da terra, 2002.


Orto de’ Pecci. Arte all’Arte 7, Siena, Itália. Ferro, perfuração no
solo e alvenaria. Aprox. 30 x Ø 0,80m Foto: Galleria Continua

A R T I G O S | LU I Z A I N T E R L E N G H I 39
Pela construção de passagens literais e simbóli- compensado e a percepção de sua proximidade
cas para contextos externos, a galeria, entendida com a galeria são cruciais para o acontecimento
aqui como chave modernista do sistema da arte, poético. Distinta, entretanto, da torção topológi-
que em certa medida resiste, é pressionada a se ca nos movimentos construtivos no Brasil, assim
abrir para outras espacializações e temporalida- como do gesto poético neoconcreto de subsumir
des. Os movimentos, tensões e forças específicas o fora dentro, a alteração tangível na rua, em
que esses trabalhos deflagram, se considerados sua relação com a galeria, nos fala da simultanei-
por uma metodologia histórico-crítica totaliza- dade de ambas as posições possíveis do objeto.
dora, pareceriam caóticos. Sabemos que a arte
1
Demonstra a potência de uma dupla inscrição,
contemporânea, como afirmou Hal Foster, “pa- tanto dentro como fora da galeria, de onde sua
rece flutuar livre da determinação histórica, da presença pode ser avistada e para onde, em sen-
definição conceitual e do julgamento crítico”.2 tido inverso, eventualmente aponta. É, porém, a
Porém, quando identificadas e analisadas em possibilidade intermitente de reversão da cidade
suas condições específicas, essas flutuações indi- em espaço da arte que ilumina por um instante
cam modos de resistência aos padrões homoge- o funcionamento desse campo instável, toman-
neizantes do viver. do-o positivamente.

Na intervenção Cruzamento, de Renata Lucas, a Com uma corda apenas, o Extensor, de João
cidade, exatamente nas cercanias de espaços ins- Modé, abre um percurso a ser percorrido e man-
titucionais da arte, encontra-se “em obras”, em tém o olhar em trânsito, entre a galeria e o lado
processo específico de transformação. Chapas de de fora (como áreas verdes e parques urbanos,
compensado que demarcam a área em que duas que integram temporalidades viventes à arqui-
ruas, avistadas da galeria, se cruzam marcam a tetura institucional). Cada Extensor distende o
interseção de fluxos, uma área de passagem ins- lugar da intervenção, cujas cercanias são recon-
crita em várias direções, sem se reduzir a uma sideradas como espaços provisórios de circula-
delas. A forma desenhada pelos compensados é ção da arte. Nas versões já realizadas, o Extensor
simples e claramente identificável. Semelhante, parte de uma amarração observável, institucio-
porém, a mero tapume na cena urbana, estabe- nalmente ancorada, para navegar. Na ocupação
lece uma continuidade com o lugar em que se Para o silêncio das plantas, no Parque Lage, a
posiciona, o que mantém a intervenção no limiar corda atada às palmeiras que margeiam o aces-
do desaparecimento como obra. Na iminência de so às Cavalariças cruza a galeria e segue até um
dissolver-se nas flutuações temporais da paisa- ponto indefinido encoberto pela vegetação. Esse
gem, o objeto, entretanto, se sustenta; por proxi- extremo oculto que tensiona e sustenta o Exten-
midade, relaciona-se visual e espacialmente com sor, produz uma extensão poética sem repouso
a galeria. Abre, assim, um campo simbólico que da galeria. Ameaça dispersar as bordas de sua
dá visibilidade à condição cambiante da produ- sólida arquitetura em um campo instável que o
ção, recepção e institucionalização da arte. Entre olhar falha em abarcar. Quase vazia – com espar-
a rua e a galeria há um percurso percorrido que sos objetos, instrumentos musicais, pouco mobi-
pressupõe um engajamento corporal A imprevi- liário –, a galeria foi habitada diariamente pelo
sível, porém provável, distinção das chapas de artista, que coletou pequenos achados ali depo-

40 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 2 | d e ze mb ro 2016


sitados, além de desenhar
nas paredes e desenvolver
outras atividades.3 Sabe-
mos que “a transformação
dos objetos é contextual,
uma questão de recolo-
cação. Quando isolado, o
contexto dos objetos é a
galeria”, afirma O’Doherty
ao analisar Merzbau, de
Kurt Schwitters, e demons-
trar como a galeria leva a
que em seu interior mesmo
os objetos comuns sejam
“destransformados” em
arte.4 Enquanto sublinha a
potência da ausência, do Renata Lucas, Cruzamento, 2003. Folhas de compensado posicionadas na interseção das ruas
Dois de Dezembro e Praia do Flamengo, Centro Cultural Oduvaldo Viana filho (Castelinho do
silêncio e do vazio, Modé Flamengo), RJ Foto: Beto Felício

lança luz em modalidades


de forças pouco visíveis que se mantêm (ainda parede falsa em que foi projetado um vídeo, até
que no campo já distendido da arte) e que per- o mezanino.6 Enquanto a baixa luminosidade
mitem observar o próprio sistema da arte. Decisi- dessa sala contribui para dissimular a arquitetu-
vas relações entre suas instituições e o viver são, ra, Drive Thru #2 exibe, com atmosfera notur-
então, problematizadas. na, o desmanche de carros como procedimento
escultórico. A imagem projetada, entretanto,
Em Cruzamento e Extensor, um recuo tático
deixa escapar certas irregularidades: o contorno
quanto às instâncias subjetivas permite que
dos corpos dos dois mecânicos que trabalham
o campo da arte, em suas condições próprias,
juntos, a iluminação usada por eles, as bordas
inesperadamente, possa ser observado. Ambos
do carro apresentam linhas duplas, fantasmas,
remontam, em certa medida, à ativação do en-
contaminações na cor. De fato, o vídeo é editado
torno do objeto, própria da escultura no campo
com a sobreposição de duas filmagens de ações
ampliado, identificada por Rosalind Krauss.5 Po-
equivalentes – dois carros de mesmo modelo e
rém, ao entrecruzar e estender o registro sim-
cores diferentes foram desmontados. A fusão de-
bólico da galeria ao seu entorno, distinguem-se
sestabiliza a imagem e essa instabilidade fornece
daquele intuito de afirmar a arte em sua estrita
pistas para eventos correlatos que, tal como a ar-
objetividade.
quitetura falseada da galeria, põem o espectador
A exposição Fundo Falso #2 (2010), de Matheus em estado de atenção. A sobreposição leva a que
Rocha Pitta, abriu um circuito interno alternativo os corpos dos mecânicos se tornem translúcidos,
na Progetti, cuja arquitetura foi alterada, desde a musculatura reapresentada como espectro,
o bloqueio da sala principal no térreo, com uma aparição, em um espaço discretamente fluido.

A R T I G O S | LU I Z A I N T E R L E N G H I 41
Tratado, porém, como registro, documentação, – em que são oferecidas vestimentas em vinil
esse cenário reivindica existência material, o que transparente, elaboradas com cortes, dobras e
é reafirmado pela presença oculta, mas concreta, colagens.7 Formam bicos, escamas, sacos, ra-
das peças na galeria, tal como corpos empare- bos, máscaras que podem ser manipulados e
dados – o título do vídeo remete a death drive, vestidos pelo público. A metáfora que aproxima
pulsão de morte. Vencida a escada, adiante, a Novos costumes e o funcionamento do mercado
partir do mezanino, a visão do topo da parede da moda mantém a tensão entre familiaridade
de projeção revela seu interior, em que as peças e estranhamento. Sugere modos de interação
do desmanche exibido no vídeo foram oculta- que guardam certa proximidade, embora na di-
das. O percurso prossegue com a passagem pelo ferença, com a experiência da arte: o tempo de
fundo falso de uma geladeira, que leva a outra provar os Costumes, a escolha de alguns entre
sala. Essa geladeira é idêntica à que aparece no os demais, a visualização da própria imagem no
convite da exposição, apropriada de reportagem espelho e a exposição ao olhar do outro. Logo,
policial que revela a passagem secreta para ocul- porém, a trivialidade é rompida pelo uso das ves-
tar o jogo ilegal com máquinas caça-níquel. A timentas, que devolve, refletida no espelho do
manipulação pelo artista de objetos e imagens provador, uma imagem alterada, como a de um
atribui valores intercambiáveis entre ambos: os estranho. Frequentada por outros, estranhos que
objetos, em plena matéria, tratados simbolica- se observam mutuamente, a Loja esboça uma
mente e as imagens imateriais, como registros de comunidade imaginária de adeptos de Novos
fatos. Esse caráter (frequente nas fotografias cri- costumes.8 A dupla inscrição de Novos costumes
minais) de verificação e revelação de fatos pouco no território institucional – jogo estético e mer-
visíveis retorna em um segundo objeto no meza- cado – estabelece um conflito que deixa ver o
nino. Como um duplo, uma geladeira idêntica, já embaçado limiar entre arte e sociedade. Por
sofre alterações em seu desenho interno, para instaurar temporariamente essa ambivalência no
simular a arquitetura da galeria ocultada pela interior do sistema da arte, os conhecidos víncu-
los entre arte e mercado são ludicamente eviden-
intervenção do artista. Fotografias policiais de
ciados. Não propriamente para suprimi-los, mas
corpos emparedados são coladas nessa carcaça.
antes inscrevê-los em sistema distinto, provido
Com essas ambivalências, a visão freudiana da
de linguagem própria, sobretudo, um sistema
coexistência das pulsões de vida e de morte é
corruptível, alterável, para o qual cada um dá
retomada a partir da experiência contemporânea
sua contribuição de acordo com sua facção.9 A
da imagem, cuja aparição volátil, multiplicada
Loja dissemina pequenas rupturas, porosidades
na cultura de massa, determina cada vez mais
através das quais as diferenças respiram. Suas
a organização do viver. Paredes falsas, espaços
relações internas não apagam nem suspendem,
internos velados e desvelados, refazem o duplo
como na radicalização da imersão na instalação,
funcionamento, o vínculo vital e destrutivo entre
a consciência das condições de exibição na ga-
arte e mercado.
leria, na Bienal, no museu, no mercado de arte.
Na 27 Bienal de São Paulo, com Novos costumes
a
Tampouco estabelece uma posição externa à ga-
(2006) Laura Lima refez a galeria como Loja – leria. A poética aqui é disseminada pela reversão
com provadores, araras, vendedores e espelhos simbólica interna do espaço institucional, por

42 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 2 | d e ze mb ro 2016


meio de uma superfície-cenário que parcialmen- seguem enlaçadas ao viver. Em Elemento desa-
te o reveste e encobre, mas também o replica e parecendo/Elemento desaparecido e Viagem ao
revela, já que, embora desativado, deixa ver o fe- centro do céu e da terra, entretanto, a ocupa-
bril teor de negociação mercantil que o sustenta. ção transcorre em áreas públicas, em cidades
É crucial que o trabalho esteja alojado no sistema nas quais ocorrem projetos institucionais já pau-
da arte, pois, apenas quando o estranhamento é tados pela ocupação de ruas, praças, museus e
aí deflagrado, esboça um jogo de forças. Nessas galerias. Elemento desaparecendo..., constituído
condições de coexistência, além do jogo estético pela montagem de uma fábrica de picolés de
(já mapeado no campo da arte), Costumes ativa água e sua comercialização durante a Documen-
um estranhamento como hábito passível de se ta 11, em Kassel, replica e altera o processo de
instalar neste sistema, tornando-o a seu modo produção e as estratégias de comunicação do
desregulado, disfuncional, corruptível. mercado, destituindo-os, porém, da lógica de
Fundo falso, de Matheus Rocha Pitta, e Costu- geração crescente de lucro. A venda do picolé,
mes, de Laura Lima, posicionam-se no próprio produzido em diferentes embalagens, mas, sem-
espaço institucional, em parte, manipulando pre com o sabor água, se confunde com o co-
situações de imersão. Embora não haja afasta- mércio de rua e a oferta de lanches nas grandes
mento físico, há um descolamento imaginário da exposições internacionais.12 Pelo fato de oferecer
galeria, pois, uma funcionalidade limiar é instau- um produto cuja matéria-prima está no centro
rada. Ambos remetem, claramente, à circulação do debate contemporâneo sobre o esgotamento
da mercadoria – seja o mercado ilegal ou o da das reservas naturais, o artista repõe metafori-
moda. Desestabilizam simbolicamente o sistema camente no objeto “picolé de água” o dilema
da arte, facilitando possíveis reversões nos emba- entre o consumo e a sustentabilidade dessas
tes entre o mercado e os espaços de liberdade. reservas. Outra circularidade borgeana se apre-
Às forças internas ao cubo branco que transfor- senta: ao chupar o picolé, toma-se consciência
mam qualquer objeto em arte, identificadas por de que a água já estaria desaparecendo, para se
O’Doerthy, somam-se referências ambivalentes tornar produto. Viagem ao centro... foi realiza-
– peças de desmanche, geladeiras e Costumes do no mesmo ano na cidade de Siena, para o
que, alterados simbólica e fisicamente, aspiram programa Arte All’Arte 7. Uma escada de metal
a retornar aos espaços do viver. enterrada no solo foi projetada 30 metros para
Em instalações referenciais de Cildo Meireles – o alto, como que a interligar dois infinitos: um
como na arquitetura de Através (1983-1989) e, celeste, outro subterrâneo. Durante a escavação
mesmo, na concisa Volátil (1980-1994) – a imer- brotou uma nascente, então apropriada pelo
são está associada a temporalidades próprias de artista para formar um poço do qual a escada
um espaço, até certo ponto autônomo, porém, foi erguida. Esse fato, somado à poética de in-
inscrito na galeria. Tanto física como simbolica-
10 tegração do céu às profundezas, repercutiu no
mente, essas instalações introduzem no âmbito entorno da escultura e o Orto de’Pecci foi sendo
institucional metáforas que instigam a tomada ocupado como praça, lugar de encontros que se
de consciência das relações do espaço-tempo contrapõem à aceleração do tempo própria das
na arte, que, tal como no labirinto borgeano, 11 demandas de produtividade e consumo.

A R T I G O S | LU I Z A I N T E R L E N G H I 43
Laura Lima, Novos Costumes 2006, 27ª Bienal de São Paulo Foto: Acervo da artista

Em Viagem ao centro..., a discussão sobre a te provisório, oscilante, o Extensor é como um


ultrapassagem das bordas e a permeabilidade laço imaginário (o artista relata imaginar que,
das fronteiras com o lado de fora do campo da na versão para a Bienal de São Paulo, a corda
arte pressupõe a inscrição simultânea na arte e transmitiria vibrações externas para o prédio que
na vida. A estrutura, que se projeta para cima chegariam até suas fundações). Como horizon-
e terra adentro, mantém simbolicamente o solo te, não tem posição fixa. Sempre a se expandir,
como horizonte entre essas duas direções. Tal une, interliga e continua indefinidamente. Ao al-
interseção (horizontalidade também demarca- cançar o fora (a mata, a rua), novamente segue
da pelas folhas de compensado sobre o asfalto adentro. Mesmo no limiar do desaparecimento,
em Cruzamento, de Lucas) marca poeticamente como em Cruzamento, de Lucas, essas interven-
o encontro de eixos temporais – o passado his- ções são como “condutores de percepção”, que
tórico, em que houve escassez de água em Sie- tanto abrem cruzamentos e interseções, como
na, e o futuro apontado pelo centro universitá- estendem e conduzem a potência poética da
rio em que se transformou. Viagem ao centro... galeria.13 Concedem, portanto, visibilidade a re-
desenha uma linha de ligação, conceito espacial lações complexas, distintas da mera destituição
que reaparece no Extensor, de Modé que une institucional pela dissolução da arte na vida ou a
espaços e temporalidades. Todo linha, horizon- ocupação da margem, como trincheira. Seus po-

44 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 2 | d e ze mb ro 2016


Matheus Rocha Pitta, Fundo Falso #2, 2010. Interior do mezanino da Progetti, RJ. Foto: Matheus Rocha Pitta.

sicionamentos são simultaneamente de inscrição reflexividade. Afirmam a condição do campo ins-


e afastamento dos espaços institucionais e tanto tável da arte como resultante dos processos de
são lançados por meio da experiência como pelo autoconsciência da plasticidade de seus limites
conceito que emerge na metáfora, como nos e, ainda, como resposta à experiência de fluidez
mostrou Paul Ricoeur.14 Com a força da metá- nas sociedades contemporâneas.16
fora, iluminam chaves conceituais para o acesso
Elemento desaparecendo..., de Cildo Meireles,
aos instáveis limiares da arte e do viver.
abre uma temporalidade própria em que os
Se o caráter reflexivo da modernidade assumiu movimentos de circulação da cidade, da arte
uma inédita dominância nas sociedades contem- e do capital em parte se justapõem para tratar
porâneas ocidentais, como mostra Anthony Gid- dos riscos implicados no consumo insustentável da
dens, de modo análogo, o caráter experimental água – um impasse que entrecruza a arte, a ciência
e reflexivo da arte foi de tal maneira radicaliza- e o viver. Ao destituir o domínio do lucro em uma
do que tornou o campo da arte instável, como estrutura que está na base do capitalismo, o traba-
observado, em certa medida, nas poéticas aqui lho suspende aquele caráter expansionista e homo-
analisadas. 15
As várias estratégias de indagação geneizante. No curso de movimentação da cidade,
quanto aos trânsitos entre arte e vida, os espaços transitoriamente ativada como campo da arte por
institucionais e a cidade sinalizam essa intensa uma ação institucional, a circulação da mensa-

A R T I G O S | LU I Z A I N T E R L E N G H I 45
gem no ato de consumo, corresponsabiliza cada condição de cruzamento, interseção e extensão,
indivíduo pela preservação dos recursos naturais. cada situação poética comporta indeterminações,
No Extensor de Para o silêncio das plantas, de como a de uma linha que se perde em um ponto
Modé, os hiatos entre as trocas sociais e as de- inatingível. Há um desafio ao legado comum da
mais formas de vida no planeta são enfrentados imersão na instalação (que permite a manipulação
pela proposição de passagens que vão ao encon- da presença do espectador) por um cálculo mais
tro de outras sensibilidades. Extensores musicais, aberto e processos que não se atêm a um reduto
as trilhas sonoras dedicadas às plantas arriscam no interior da galeria. Ao explorar espaços e
ligações estéticas com formas de vida situadas temporalidades para além da galeria, esses artistas
fora do simbólico. A ciência avança nessa fron- extraem potência dos riscos de dispersão de
teira, como mostram os livros disponibilizados suas poéticas nas experiências que transcorrem
na galeria das Cavalariças do Parque Lage, po- socialmente. Lidam com o grau de imprevisibilidade
rém com objetivo operacional. Modé busca os da vida, resgatam espaços de negociação das
ritmos compartilhados, a comunicação possível, diferenças e de resistência das instâncias de
como celebração do viver. De modos distintos, liberdade que persistem no campo instável da arte.
ambos remetem aos limites do humano e inevi-
tavelmente à finitude, abordada no vídeo Drive
Trhu #2, de Rocha Pitta, exibido na Progetti, cujo NOTAS

título evoca a pulsão de morte. Ainda em Fundo 1 As considerações de Hans Belting sobre os limites
falso #2, as fotografias de reportagens policiais da história totalizadora quanto à arte contemporâ-
coladas na geladeira-maquete situada no meza- nea contribuíram para as análises aqui apresenta-
nino exibem corpos que foram emparedados. das. Ver Belting, Hans. O fim da história da arte. São
Vale lembrar que a designação do corpo como Paulo: Cosac & Naify, 2006.
“vivente” por Laura Lima já remete a seu opos-
2 Foster, Hal. Contemporary extracts, E-flux Journal,
to, o corpo sem vida.17 Viagem ao centro..., de
n. 12, jan. 2010.
Cildo Meireles, porém, retoma as modalidades
afetivas do conviver por meio de um imaginário 3 Com a reprodução de trilhas sonoras intermiten-
socialmente compartilhado. Ativa a memória da tes e nunca repetidas, o artista rompeu o silêncio
fábula sobre alcançar as nuvens, capaz de refa- poético da mata, cujos sons ocorrem fora do dis-
zer temporariamente alguns laços comunitários curso.
em seu entorno.
4 O’Doherty, Brian. O olho e o espectador. In No
Os trabalhos aqui analisados põem em evidência interior do cubo branco. A ideologia do espaço da
a condição instável do campo da arte e a arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
possibilidade de, então, propor alternativas e
5 As situações poéticas abertas por esses artistas
reversões temporárias entre espaços previamente
não seriam passíveis de inscrição num esquema for-
qualificados como artísticos, seu entorno e
mal, como na analogia de Rosalind Krauss com as
além. Desfazem pontual e temporariamente
oposições binárias de um modelo matemático. Ver
bordas institucionais que, como as paredes de Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado.
um labirinto, dissimulam e aprisionam. Nessa Arte&Ensaios, Rio de Janeiro, n. 17, dez. 2008.

46 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 2 | d e ze mb ro 2016


6 A Progetti (RJ) funcionou entre 2008 e 2014 em logomarca própria, aquisição de equipamentos, in-
um sobrado no Centro do Rio de Janeiro. sumos e relações contratuais com fornecedores e
funcionários. A produção foi vendida por carrinhos
7 Costumes, primeira versão de Novos costumes,
que circularam, durante o período da Documen-
confeccionados em vinil azul foram exibidos no Mu-
ta 11, nos espaços públicos da cidade. Ver Anjos,
seu de Arte da Pampulha (2001) e na Casa Triângulo
Moacir dos. Cildo Meireles. A indústria e a poesia.
(2003), quando a galeria comercial foi alterada pela
Arte&Ensaios, Rio de Janeiro, 2004.
artista para funcionar como loja.
13 Condutores de percepção é o título de um tra-
8 Esse sentido de comunidade está presente em
balho de Waltércio Caldas de 1969. Tangenciamos
RhR (1999), projeto colaborativo anterior da artista,
aqui o sentido poético desse trabalho que associa à
em que os participantes se reúnem regularmente e
percepção a qualidade de condutor de um material.
vestem (ali como em situações do cotidiano) unifor-
mes montados por procedimentos simples de dobra 14 Ricoeur, Paul [1988]. O conflito das interpreta-
e costura do tecido. Adotam, ainda, uma lingua- ções: ensaios de hermenêutica. Porto: Rés-Editora,
gem específica para designar o uso e a circulação s/d.
com os uniformes. O grupo tem um administrador,
15 Em A vida em uma sociedade pós-tradicional
inicialmente a própria Laura Lima.
Anthony Giddens discute as sociedades contempo-
9 A artista trabalha com a linguagem, especialmen- râneas, sem se deter na arte contemporânea. Po-
te desde RhR (1999), sobre o qual afirma: “quando rém, a abrangência de suas ideias sugere a corre-
eu começo em 99, eu ainda nem sei que todas essas lação dessa reflexividade com a identificada na arte
coisas [os Costumes e Novos costumes] vão aconte- contemporânea. In Giddens et al. Modernização re-
cer. Eu queria entrar em um terreno de linguagem e flexiva: política, tradição e estética na ordem social
digo que aquilo é uma obra de arte” (Laura Lima em moderna. São Paulo: Unesp, 1997.
entrevista à autora em 29 dez. 2014).
16 Essa fluidez também é discutida por Zygmunt
10 O tempo próprio da imersão na instalação, Bauman em Modernidade líquida, Rio de Janeiro:
como já mostrou Claire Bishop, instiga a autocons- Zahar, 2001.
ciência do corpo. Mas Cildo Meireles introduz mais
17 Laura Lima em entrevista à autora em 29 dez.
intensamente o aspecto simbólico. Ver Bishop, Clai-
2014.
re. Installation art. A critical history. London: Tate
Publishing, 2008.

11 Borges, Jorge Luis. O jardim das veredas que se


bifurcam. In Ficções. São Paulo: Companhia das Le-
Luiza Interlenghi é doutora em história e crítica da
tras, 2007.
arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
12 Enquanto consumidos, os picolés revelavam Visuais da UFRJ, curadora e professora da PUC-
em um dos lados do palito a inscrição “elemento Rio. Este texto é parte de sua tese de doutorado,
desaparecendo” e, no oposto: “elemento desapa- de mesmo título, defendida em 2015, orientada
recido”. Como mostra Moacir dos Anjos, o artista pela doutora Maria Luisa Tavora e co-orientada pela
coordenou a criação da empresa temporária com doutora Ana Maria Tavares Cavalcanti.

A R T I G O S | LU I Z A I N T E R L E N G H I 47

Você também pode gostar