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3 2 | d e ze mb ro 2016
ARTE EM CAMPO INSTÁVEL: estratégias de ativação
poética para além da galeria
Luiza Interlenghi
Na década seguinte ao retorno à democracia, ART IN AN UNSTABLE FIELD: strategies for poetic
no âmbito de uma produção que se singulariza activation beyond the gallery | Installation,
no Brasil e transita internacionalmente com a intervention and occupations by specific artists,
at the turn of the 21st century in Brazil, point to
globalização, diversos artistas, reiteradamente,
possibilities of the gallery’s connection to social
apontam para as possibilidades de interligação da spaces. These strategies occupy and transcend
galeria aos espaços sociais. A cidade e seus extra- the moving borders of contemporary art, and
tos temporais são reintegrados ao campo da arte, make the instability of the field of art visible and
able to be manipulated. They uphold thereby
física e simbolicamente, tornando-o intensamente
critical positions and maintain spaces of freedom.
instável. Ainda que realizados de modo indepen- | Brazilian contemporary art, instability of
dente, Cruzamento (2003-2004), de Renata Lu- the art field, beyond the gallery, spaces of
cas, Extensor (2001-2010), de João Modé, Fundo freedom.
falso (2010), de Matheus Rocha Pitta, Costumes
(2003-2006), de Laura Lima, assim como Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (2002) e Via-
gem ao centro do céu e da terra (2002), de Cildo Meireles intervêm de modo exemplar na galeria e além.
Ocupam, habitam e ultrapassam as fronteiras do campo da arte, cuja instabilidade se torna criticamente
visível. Então, uma temporalidade que captura, desacelera, e outra que se abre momentânea e livremen-
te são mantidas em tensão. A inquietude quanto à extensão, plasticidade e repercussão dessa condição
instável, justo em sua interseção com o viver, é como uma indagação de caráter epistemológico, reposta
em diferentes metáforas do instável.
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Pela construção de passagens literais e simbóli- compensado e a percepção de sua proximidade
cas para contextos externos, a galeria, entendida com a galeria são cruciais para o acontecimento
aqui como chave modernista do sistema da arte, poético. Distinta, entretanto, da torção topológi-
que em certa medida resiste, é pressionada a se ca nos movimentos construtivos no Brasil, assim
abrir para outras espacializações e temporalida- como do gesto poético neoconcreto de subsumir
des. Os movimentos, tensões e forças específicas o fora dentro, a alteração tangível na rua, em
que esses trabalhos deflagram, se considerados sua relação com a galeria, nos fala da simultanei-
por uma metodologia histórico-crítica totaliza- dade de ambas as posições possíveis do objeto.
dora, pareceriam caóticos. Sabemos que a arte
1
Demonstra a potência de uma dupla inscrição,
contemporânea, como afirmou Hal Foster, “pa- tanto dentro como fora da galeria, de onde sua
rece flutuar livre da determinação histórica, da presença pode ser avistada e para onde, em sen-
definição conceitual e do julgamento crítico”.2 tido inverso, eventualmente aponta. É, porém, a
Porém, quando identificadas e analisadas em possibilidade intermitente de reversão da cidade
suas condições específicas, essas flutuações indi- em espaço da arte que ilumina por um instante
cam modos de resistência aos padrões homoge- o funcionamento desse campo instável, toman-
neizantes do viver. do-o positivamente.
Na intervenção Cruzamento, de Renata Lucas, a Com uma corda apenas, o Extensor, de João
cidade, exatamente nas cercanias de espaços ins- Modé, abre um percurso a ser percorrido e man-
titucionais da arte, encontra-se “em obras”, em tém o olhar em trânsito, entre a galeria e o lado
processo específico de transformação. Chapas de de fora (como áreas verdes e parques urbanos,
compensado que demarcam a área em que duas que integram temporalidades viventes à arqui-
ruas, avistadas da galeria, se cruzam marcam a tetura institucional). Cada Extensor distende o
interseção de fluxos, uma área de passagem ins- lugar da intervenção, cujas cercanias são recon-
crita em várias direções, sem se reduzir a uma sideradas como espaços provisórios de circula-
delas. A forma desenhada pelos compensados é ção da arte. Nas versões já realizadas, o Extensor
simples e claramente identificável. Semelhante, parte de uma amarração observável, institucio-
porém, a mero tapume na cena urbana, estabe- nalmente ancorada, para navegar. Na ocupação
lece uma continuidade com o lugar em que se Para o silêncio das plantas, no Parque Lage, a
posiciona, o que mantém a intervenção no limiar corda atada às palmeiras que margeiam o aces-
do desaparecimento como obra. Na iminência de so às Cavalariças cruza a galeria e segue até um
dissolver-se nas flutuações temporais da paisa- ponto indefinido encoberto pela vegetação. Esse
gem, o objeto, entretanto, se sustenta; por proxi- extremo oculto que tensiona e sustenta o Exten-
midade, relaciona-se visual e espacialmente com sor, produz uma extensão poética sem repouso
a galeria. Abre, assim, um campo simbólico que da galeria. Ameaça dispersar as bordas de sua
dá visibilidade à condição cambiante da produ- sólida arquitetura em um campo instável que o
ção, recepção e institucionalização da arte. Entre olhar falha em abarcar. Quase vazia – com espar-
a rua e a galeria há um percurso percorrido que sos objetos, instrumentos musicais, pouco mobi-
pressupõe um engajamento corporal A imprevi- liário –, a galeria foi habitada diariamente pelo
sível, porém provável, distinção das chapas de artista, que coletou pequenos achados ali depo-
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Tratado, porém, como registro, documentação, – em que são oferecidas vestimentas em vinil
esse cenário reivindica existência material, o que transparente, elaboradas com cortes, dobras e
é reafirmado pela presença oculta, mas concreta, colagens.7 Formam bicos, escamas, sacos, ra-
das peças na galeria, tal como corpos empare- bos, máscaras que podem ser manipulados e
dados – o título do vídeo remete a death drive, vestidos pelo público. A metáfora que aproxima
pulsão de morte. Vencida a escada, adiante, a Novos costumes e o funcionamento do mercado
partir do mezanino, a visão do topo da parede da moda mantém a tensão entre familiaridade
de projeção revela seu interior, em que as peças e estranhamento. Sugere modos de interação
do desmanche exibido no vídeo foram oculta- que guardam certa proximidade, embora na di-
das. O percurso prossegue com a passagem pelo ferença, com a experiência da arte: o tempo de
fundo falso de uma geladeira, que leva a outra provar os Costumes, a escolha de alguns entre
sala. Essa geladeira é idêntica à que aparece no os demais, a visualização da própria imagem no
convite da exposição, apropriada de reportagem espelho e a exposição ao olhar do outro. Logo,
policial que revela a passagem secreta para ocul- porém, a trivialidade é rompida pelo uso das ves-
tar o jogo ilegal com máquinas caça-níquel. A timentas, que devolve, refletida no espelho do
manipulação pelo artista de objetos e imagens provador, uma imagem alterada, como a de um
atribui valores intercambiáveis entre ambos: os estranho. Frequentada por outros, estranhos que
objetos, em plena matéria, tratados simbolica- se observam mutuamente, a Loja esboça uma
mente e as imagens imateriais, como registros de comunidade imaginária de adeptos de Novos
fatos. Esse caráter (frequente nas fotografias cri- costumes.8 A dupla inscrição de Novos costumes
minais) de verificação e revelação de fatos pouco no território institucional – jogo estético e mer-
visíveis retorna em um segundo objeto no meza- cado – estabelece um conflito que deixa ver o
nino. Como um duplo, uma geladeira idêntica, já embaçado limiar entre arte e sociedade. Por
sofre alterações em seu desenho interno, para instaurar temporariamente essa ambivalência no
simular a arquitetura da galeria ocultada pela interior do sistema da arte, os conhecidos víncu-
los entre arte e mercado são ludicamente eviden-
intervenção do artista. Fotografias policiais de
ciados. Não propriamente para suprimi-los, mas
corpos emparedados são coladas nessa carcaça.
antes inscrevê-los em sistema distinto, provido
Com essas ambivalências, a visão freudiana da
de linguagem própria, sobretudo, um sistema
coexistência das pulsões de vida e de morte é
corruptível, alterável, para o qual cada um dá
retomada a partir da experiência contemporânea
sua contribuição de acordo com sua facção.9 A
da imagem, cuja aparição volátil, multiplicada
Loja dissemina pequenas rupturas, porosidades
na cultura de massa, determina cada vez mais
através das quais as diferenças respiram. Suas
a organização do viver. Paredes falsas, espaços
relações internas não apagam nem suspendem,
internos velados e desvelados, refazem o duplo
como na radicalização da imersão na instalação,
funcionamento, o vínculo vital e destrutivo entre
a consciência das condições de exibição na ga-
arte e mercado.
leria, na Bienal, no museu, no mercado de arte.
Na 27 Bienal de São Paulo, com Novos costumes
a
Tampouco estabelece uma posição externa à ga-
(2006) Laura Lima refez a galeria como Loja – leria. A poética aqui é disseminada pela reversão
com provadores, araras, vendedores e espelhos simbólica interna do espaço institucional, por
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Laura Lima, Novos Costumes 2006, 27ª Bienal de São Paulo Foto: Acervo da artista
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gem no ato de consumo, corresponsabiliza cada condição de cruzamento, interseção e extensão,
indivíduo pela preservação dos recursos naturais. cada situação poética comporta indeterminações,
No Extensor de Para o silêncio das plantas, de como a de uma linha que se perde em um ponto
Modé, os hiatos entre as trocas sociais e as de- inatingível. Há um desafio ao legado comum da
mais formas de vida no planeta são enfrentados imersão na instalação (que permite a manipulação
pela proposição de passagens que vão ao encon- da presença do espectador) por um cálculo mais
tro de outras sensibilidades. Extensores musicais, aberto e processos que não se atêm a um reduto
as trilhas sonoras dedicadas às plantas arriscam no interior da galeria. Ao explorar espaços e
ligações estéticas com formas de vida situadas temporalidades para além da galeria, esses artistas
fora do simbólico. A ciência avança nessa fron- extraem potência dos riscos de dispersão de
teira, como mostram os livros disponibilizados suas poéticas nas experiências que transcorrem
na galeria das Cavalariças do Parque Lage, po- socialmente. Lidam com o grau de imprevisibilidade
rém com objetivo operacional. Modé busca os da vida, resgatam espaços de negociação das
ritmos compartilhados, a comunicação possível, diferenças e de resistência das instâncias de
como celebração do viver. De modos distintos, liberdade que persistem no campo instável da arte.
ambos remetem aos limites do humano e inevi-
tavelmente à finitude, abordada no vídeo Drive
Trhu #2, de Rocha Pitta, exibido na Progetti, cujo NOTAS
título evoca a pulsão de morte. Ainda em Fundo 1 As considerações de Hans Belting sobre os limites
falso #2, as fotografias de reportagens policiais da história totalizadora quanto à arte contemporâ-
coladas na geladeira-maquete situada no meza- nea contribuíram para as análises aqui apresenta-
nino exibem corpos que foram emparedados. das. Ver Belting, Hans. O fim da história da arte. São
Vale lembrar que a designação do corpo como Paulo: Cosac & Naify, 2006.
“vivente” por Laura Lima já remete a seu opos-
2 Foster, Hal. Contemporary extracts, E-flux Journal,
to, o corpo sem vida.17 Viagem ao centro..., de
n. 12, jan. 2010.
Cildo Meireles, porém, retoma as modalidades
afetivas do conviver por meio de um imaginário 3 Com a reprodução de trilhas sonoras intermiten-
socialmente compartilhado. Ativa a memória da tes e nunca repetidas, o artista rompeu o silêncio
fábula sobre alcançar as nuvens, capaz de refa- poético da mata, cujos sons ocorrem fora do dis-
zer temporariamente alguns laços comunitários curso.
em seu entorno.
4 O’Doherty, Brian. O olho e o espectador. In No
Os trabalhos aqui analisados põem em evidência interior do cubo branco. A ideologia do espaço da
a condição instável do campo da arte e a arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
possibilidade de, então, propor alternativas e
5 As situações poéticas abertas por esses artistas
reversões temporárias entre espaços previamente
não seriam passíveis de inscrição num esquema for-
qualificados como artísticos, seu entorno e
mal, como na analogia de Rosalind Krauss com as
além. Desfazem pontual e temporariamente
oposições binárias de um modelo matemático. Ver
bordas institucionais que, como as paredes de Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado.
um labirinto, dissimulam e aprisionam. Nessa Arte&Ensaios, Rio de Janeiro, n. 17, dez. 2008.
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