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Revista do Ministério Público 151 : Julho : Setembro 2017 [ pp.

65-81 ]

O art. 1906.º do Código Civil


e a (in)admissibilidade do regime de guarda
(e residência) alternadas dos menores [1]

André Lamas Leite


Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e da Universidade Europeia (Lisboa)

RESUMO: O artigo analisa a possibilidade legal de o art.


1906.º do CC admitir o regime de guarda e residência alterna-
das dos menores, em caso de qualquer das formas de ruptura
da vida em conjunto dos seus progenitores, dialogando com
as normas constitucionais pertinentes. Por outro lado, estuda-
-se igualmente a existência ou não de uma preferência legal do
ordenamento jurídico quanto à dita guarda alternada.

PALAVRAS-CHAVE: guarda alternada; residência


alternada de menores; princípio constitucional da igual-
dade dos progenitores; figura de referência; critério da
preferência maternal.

I. Objecto
O presente trabalho visa ser um modesto contributo sobre um tema
que, em nosso juízo, não tem merecido grande atenção da doutrina e
que traz a jurisprudência dividida. Trata-se de saber se o art. 1906.º
do Código Civil (doravante, CC), na sua actual redacção, consagra
ou não a possibilidade de guarda alternada dos menores, no âmbi-
to das responsabilidades parentais partilhadas e, em consequência,
da admissibilidade ou não da sua residência também alternada. Em

[1]
O autor agradece vivamente o auxílio no trabalho de pesquisa jurisprudencial
do Sr. Dr. João Fernandes Moreira que esteve na base do presente artigo.
[ 66 ] Revista do Ministério Público 151 : Julho : Setembro 2017

caso de resposta afirmativa a esta pergunta, surge uma outra: pode


ou não retirar-se da Lei alguma preferência nesse sentido, ou seja, de
o superior interesse da criança determinar essa residência alternada?
Depois de uma brevíssima caracterização dos traços funda-
mentais inaugurados em 2008 com a verdadeira «revolução coper-
niciana» operada no domínio do exercício das responsabilidades
parentais em caso de ruptura de casamento ou de relações jurídicas
análogas, analisar-se-á o quadro constitucional ao qual as questões
de partida se terão de ater e, por fim, ensaiar-se-á uma resposta às
inquietações formuladas.

II. 2008: um novo «paradigma» no exercício


das responsabilidades parentais em caso de
ruptura da vida em comum dos progenitores
Como se sabe, a matéria do anterior «poder paternal», hoje «res-
ponsabilidades parentais», tem sido dos sectores normativos
do Direito da Família e dos Menores (ou das Crianças, como é
preferido por alguns sectores doutrinais) que mais modificações
tem conhecido nos últimos anos, fruto de uma crescente e muito
saudável sensibilização do menor como sujeito de direitos, sendo
o seu interesse o paradigma decisório a erigir em pedra de toque
em qualquer decisão judicial que a eles contenda. Esse movimen-
to, muito por influxo da normação internacional, à cabeça da qual
surge a Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada no seio
da ONU, é de saudar num peregrinar civilizacional mais perfeito.
Por outro lado, não se pode perder de vista que os progenitores
são, nos termos do art. 36.º, n.ºs 3 e 5, da CRP [2], iguais entre si, o que
[2]
Que, por comodidade analítica tenção e educação dos filhos. (…)
transcrevemos: «3. Os cônjuges têm 5. Os pais têm o direito e o dever de
iguais direitos e deveres quanto à educação e manutenção dos filhos.».
capacidade civil e política e à manu-
[ 67 ] O art. .º do Código Civil e a (in)admissibilidade
do regime de guarda (e residência) alternadas dos menores
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implica, no que aqui diz respeito, que o Estado deva não só abster-
-se, mas também criar condições positivas no sentido de garantir, na
medida do possível, uma intervenção paritária de ambos na condu-
ção da educação dos seus filhos, não sendo hoje admissível qualquer
preferência de princípio por qualquer um deles. Sabe-se que, durante
muito tempo, em virtude de concepções ideológicas, morais, religio-
sas, sociológicas e de outro jaez, as legislações e, em consequência,
os Tribunais, afirmavam uma «preferência maternal» que, à luz do
novo edifício constitucional saído da Revolução de 1974, passou a
ser materialmente inconstitucional. Em igualdade de circunstâncias,
qualquer um dos progenitores – pai ou mãe – deve exercer as res-
ponsabilidades parentais que lhe cabem e, portanto, decidir os des-
tinos da vida dos seus filhos. E isto, em especial, em situações de
crise na relação afectiva entre ambos, como ocorre no âmbito de um
processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, p. ex..
Regressaremos a este ponto.
Diga-se, por outro lado, que, mesmo a designação de «responsa-
bilidades parentais» aponta, em sentido convergente, para uma cons-
ciencialização colectiva no sentido de que os menores, em situações
de ruptura de casamento ou de outras uniões que lhe sejam equipa-
radas, tenham, quanto possível, um contacto regular com ambos os
progenitores, de modo a que a sua personalidade se forme de maneira
harmoniosa, segundo um contributo necessariamente distinto e mul-
tifacetado dos progenitores. Se dúvidas existissem quanto a este ponto,
o legislador, nas suas vestes penais, deu-nos essa indicação ao incre-
mentar, por via da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, com entrada em
vigor a 1 de Dezembro do mesmo ano, o âmbito de tutela típica do
crime de subtracção de menor nas hipóteses do art. 249.º, n.º 1, al. c),
do Código Penal, sobre o qual já tivemos oportunidade de escrever [3].
[3]
Veja-se o nosso «O crime de sub- in: Julgar, 7 (2009), pp. 99-131, acessível -Lamas-Leite-Subtrac%C3%A7%C3%A3o-
tracção de menor – uma leitura do também em http://julgar.pt/wp-content/ -de-menor-249-CP.pdf (consulta em
reformado art. 9.º do Código Penal», uploads/2016/04/05-Andr%C3%A9- 4/2/2017).

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