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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA PRESENCIAL

ANA LUIZA OLIVEIRA DANTAS

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DOS/AS PROFESSORES/AS EM CONTEXTO DE


ATAQUE À EDUCAÇÃO POR MEIO DO PROJETO DE LEI ESCOLA SEM PARTIDO

NATAL / RN
2019.1
1

ANA LUIZA OLIVEIRA DANTAS

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DOS/AS PROFESSORES/AS EM CONTEXTO DE


ATAQUE À EDUCAÇÃO POR MEIO DO PROJETO DE LEI ESCOLA SEM PARTIDO

Artigo científico apresentado ao curso de Pedagogia da


UFRN, polo Natal, sob a orientação da Professora Doutora
Marisa Narcizo Sampaio, como requisito parcial para a
conclusão do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia.

NATAL/ RN
2019.1
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FOLHA DE APROVAÇÃO

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DOS/AS PROFESSORES/AS EM CONTEXTO DE


ATAQUE À EDUCAÇÃO POR MEIO DO PROJETO DE LEI ESCOLA SEM PARTIDO

Este Artigo foi julgado adequado para obtenção da aprovação no componente curricular
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO II do Curso de Pedagogia Presencial Natal-RN.

ANA LUIZA OLIVEIRA DANTAS

DATA: 25/06/2019

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________
Profª. Dra. Marisa Narcizo Sampaio – Orientadora

_____________________________________________________
Profª Dra. ​Cynara Teixeira Ribeiro ​(UFRN)

_____________________________________________________
Profª Dra. Cláudia Rosana Kranz (UFRN)
_____________________________________________________

( X ) Aprovado ( ) Reprovado

NATAL / RN
2019.1
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PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DOS/AS PROFESSORES/AS EM CONTEXTO DE


ATAQUE À EDUCAÇÃO POR MEIO DO PROJETO DE LEI ESCOLA SEM PARTIDO

1
ANA LUIZA OLIVEIRA DANTAS

RESUMO

O presente trabalho pretende discutir acerca da produção de subjetividade dos/as professores/as


em um contexto de ataque à Educação, especialmente no que se refere ao projeto de lei Escola
Sem Partido. Para tratar desse tema foram realizados estudos sobre subjetividade docente, projetos
políticos, de lei e de educação e sua influência na formação docente e na Educação pública no
Brasil. O estudo realizado adotou a concepção histórico cultural para discutir e relacionar os
conceitos de subjetividade, desenvolvimento profissional e educação, como também elementos
que perpassam esses conceitos. Com apoio nos pressupostos da Teoria da Subjetividade
desenvolvida por González Rey, concebe-se aqui a subjetividade como um sistema pessoal
complexo de compreensão do mundo, que se transforma a partir das experiências do sujeito e na
sua relação e interação com o outro; processo que está em constante produção e integra várias
funções psíquicas como pensamento, emoções, e sentimentos. A subjetividade do professor
tratada nessa perspectiva, se configura nas esferas da vida pessoal e profissional, de maneira
intrínseca e complementar. Para enriquecer a discussão sobre a produção de vida e de saberes
dos/as professores/as, contou-se com a contribuição do autor Antônio Nóvoa, que compreende a
pessoalidade do sujeito como fonte de sustentação, identidade e resistência para a sua
profissionalidade. Com base nesses fundamentos, foram realizadas análises e prospecções críticas
sobre os impactos das propostas presentes no Projeto de Lei Escola Sem Partido na subjetividade
dos/as professores/as, como também um prognóstico para enfrentamento dos efeitos do projeto de
lei. Este artigo identifica o Projeto de Lei Escola Sem Partido; os impactos do projeto e o que ele
representa; e a resistência da profissão diante das propostas.

Palavras chave:​ Subjetividade; Escola Sem Partido; Docência.

1
Graduanda do Curso de Pedagogia – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Natal / RN
– analuizadantas94@gmail.com
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LISTA DE SIGLAS

PL - Projeto de Lei
ESP - Escola Sem Partido
MESP - Movimento Escola Sem Partido
PCESP - Professores o Contra Escola Sem Partido
MBL - Movimento Brasil Livre
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
ESCOLA SEM PARTIDO E A ATMOSFERA DE PERSEGUIÇÃO E MEDO 8
IMPACTOS DO ESCOLA SEM PARTIDO NA SUBJETIVIDADE DOCENTE 16
REFLEXÕES SOBRE A RESISTÊNCIA DOCENTE E O PROJETO ESCOLA SEM
PARTIDO 25
REFERÊNCIAS 28
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INTRODUÇÃO

Resultado da análise de Projetos de Lei (PL), artigos e bibliografias de estudos já


publicados sobre o Movimento e Projeto de Lei Escola Sem Partido (ESP), e das produções dos
movimentos sociais contrários e a favor do PL ESP, o presente trabalho busca refletir sobre a
produção de subjetividade dos/as professores/as em contexto de ataque à educação por meio do
Projeto de Lei Escola Sem Partido.
A importância desse estudo perpassa uma preocupação constante sobre o meu processo
formativo e o de outras/os professoras/es. Na tentativa de encontrar resposta a uma questão
latente, sobre quais elementos constituem os/as professores/as, que me acompanha desde a
infância até os dias de hoje, me propus a investigar um dos muitos fios que tecem o tecido
complexo da vida dos/as professores/as: a produção de subjetividade docente. Na infância, me
perguntava: “como os/as professores/as sabem tudo o que sabem?”. Já na Universidade, imbuída
da visão pedagógica e certa de que não há uma fórmula mágica do saber, a questão foi
reelaborada: “como se formam as/os professoras/es?”.
O caminho percorrido e a ser percorrido começa a ser desvelado: um processo interno de
autoinvestigação, leva ao encontro entre os dois processos: minha formação como aluna e como
docente, que produz quem eu sou. Não existe uma resposta definitiva para a questão posta, pois
entendo que há tempos e lugares orgânicos, constituídos por pessoas, que materializam a realidade
a partir de discursos, ideologias e culturas. Pessoas que constroem e reconstroem o que
conhecemos. Por isso, assumir uma postura reflexiva diante da história pessoal e social dos
sujeitos reafirma a premissa de que existe uma pessoalidade inegável na nossa profissionalidade, e
que nos formamos em um campo vasto de saberes, experiências e memórias, nunca neutro.
Entrei na Universidade Pública em 2013, no curso de Pedagogia. O país era governado
por uma Presidenta, Dilma Rouseff. E, apesar das dificuldades da educação, resistia uma
esperança. Existia expectativa de melhora nos investimentos para a educação como um todo,
como também perspectiva de condições mais dignas de trabalho e vida para os/as professores/as.
O acontecimento inédito no país, uma mulher no mais alto cargo do poder executivo, inspirava
mudanças positivas à sociedade brasileira, sobretudo para a classe trabalhadora.
8

Em contraste com o cenário esperançoso que encontrei ao entrar na Universidade,


vivencio, ao final da minha graduação, a tentativa do governo atual (2019) de desmontar a
educação pública no Brasil. Os discursos perversos proferidos por governantes contra os/as
professores/as aniquila qualquer perspectiva de melhora para a educação. E mais, nos retira
direitos, nos perseguem, e nos desumanizam. Outra estratégia para o desmonte é o corte dos
recursos destinados à agenda da Educação, que repercute no funcionamento básico das estruturas
das instituições de ensino, e na continuidade dos projetos que visam formar e qualificar
professores/as. É nesse contexto que pretendo analisar os impactos do projeto de lei ESP na
produção de subjetividade dos/as professores/as.
Para fundamentar o estudo aqui realizado, foi adotada a abordagem histórico cultural para
discutir e relacionar os conceitos de ​subjetividade individual e social, produção de sentido, e
docência, ​como também os elementos que perpassam esses conceitos.
Foram discutidas problemáticas relacionadas aos aspectos que contribuem para a
reconfiguração na subjetividade dos/as professores/as, e os impactos do sentido persecutório do
Movimento e do Projeto de Lei Escola Sem Partido nos processos de subjetivação docente. Para
fundamentar este estudo, foi realizada análise de documentos e de estudos já publicados sobre a
temática, em diálogo com as teorias desenvolvidas por Antônio Nóvoa e González Rey.
Este trabalho se divide em três partes que compreendem as seguintes sessões: 1) Escola
Sem Partido e a Atmosfera de Perseguição e Medo, que discute as intenções e articulações dos
projetos de lei, com base na leitura e interpretação crítica do histórico do Movimento Escola Sem
Partido (MESP) e dos textos dos PL 7.180/14, 867/15 e 246/19); 2) Os Impactos do Escola Sem
Partido na Subjetividade Docente, onde reflito sobre o processo formativo, pessoal e profissional,
dos/as professores/as e o desenvolvimento da sua prática em meio a atmosfera de medo e
perseguição ; 3) Reflexões sobre a Profissão Docente e o Projeto Escola Sem Partido em que
apresento reflexões sobre a pessoalidade e a importância do trabalho coletivo, através
comunidades de práticas e movimentos sociais, como estratégia de resistência para a profissão
docente em tempos de crise.

ESCOLA SEM PARTIDO E A ATMOSFERA DE PERSEGUIÇÃO E MEDO

Meu primeiro contato com a temática se deu por meio de imagens, vídeos e textos
contendo declarações agressivas, vagas e caluniosas direcionadas aos/às professores/as por parte
dos idealizadores e defensores do Movimento Escola Sem Partido (MESP). Em contraponto, e
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proporção qualitativa superior, me deparei com o Movimento “Professores Contra o Escola Sem
Partido” que se mobiliza para denunciar o caráter ideológico e persecutório do PL ESP.
De início foram analisados os Projetos de Lei, o projeto original e seus apensados. Foi
analisado também o histórico de acontecimentos entre o período de criação da associação MESP
(2004) até se tornar Projeto de Lei (2014). Durante 10 anos, período percorrido até se tornar
projeto de lei nacional, o MESP se empenhou em acusar os/as professores/as de doutrinar
ideologicamente seus/suas alunos/as, sem conseguir sequer, nesse tempo, uma prova de que essa
prática aconteça de maneira generalizada.
O MESP surgiu em 2004, por iniciativa do então procurador do Estado de São Paulo,
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Miguel Nagib , motivado supostamente por uma insatisfação pessoal , buscando com o
movimento combater a “doutrinação” política, religiosa e sexual nas escolas. “[...] O site do
movimento o apresenta como “apartidário” e diz que “não defende e não promove nenhum tópico
da agenda liberal, conservadora ou tradicionalista. Logo, não é de direita. Mas os apoiadores do
movimento vêm quase exclusivamente desse espectro [...]” (Revista NOVA ESCOLA, 2016).
Entre os idealizadores do movimento, encontramos uma rede de sociabilidade estranha aos
problemas da Educação Pública no Brasil. Além de Miguel Nagib, coordenador e criador do
MESP e da Associação ESP, temos: Bráulio Porto de Matos, Olavo de Carvalho, Nelson Lehmann
da Silva, entre outros políticos e religiosos, todos filiados ao Instituto Liberal, organização
neoliberal vinculada ideologicamente à direita conservadora no Brasil. Entre os apoiadores do
MESP temos também agremiações como o MBL (Movimento Brasil Livre), um dos protagonistas
na reivindicação pelo impeachment de Dilma Rouseff, e o ​Revoltados Online ​(iniciativa popular
de combate aos corruPTos do poder”, como informa a ​fanpage da organização). ​O esquema
abaixo mostra as organizações, agremiações e movimentos sociais a favor do Escola Sem Partido
e os discursos dos quais ele se nutre.
 

2
Miguel Francisco Urbano Nagib, define-se como coordenador do movimento. Ele é advogado, articulista do
Instituto Millenium (instituição privada de ensino, da qual o citado se desvinculou recentemente), escritor dos Deveres
do Professor – criado para o ESP – e proprietário da Escola Sem Partido Treinamento e Aperfeiçoamento Eireli – ME
(Treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial) e da Associação Escola Sem Partido (Atividades de
associações de defesa de direitos sociais).
3
Entrevista em que Nagib informa sua motivação para o ESP. Disponível em: <brasil.elpais.com/brasil
/2016/06/23/politica/1466654550_367696.html>. Acesso em: 22/09/2019.
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Esquema organizado pela autora (2019)
 
A falácia da escola neutra é desmontada não só pelo argumento antropológico, de que é
impossível existir uma escola neutra, como também a partir das associações dentro do próprio
movimento, que tem clara base ideológica e política.
O texto do programa foi elevado à projeto de lei em 2014 (PL 7180/14) e tramitou na
Câmara dos Deputados, tendo como autor o então deputado Erivelton Santana (PSC), e como
relator o deputado Flávio Bolsonaro (PSC), compondo assim a primeira comissão do projeto. O
PL ESP tem como objetivo inscrito alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação:
 
O Projeto de Lei nº 7.180, de 2014, de autoria do Deputado Erivelton Santana,
propõe alterar o art. 3º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir
entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou
responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação
escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. (PL
7180/14, 2014)
 
O PL ESP teve maior repercussão entre 2015 e 2018, quando foi apensado a outros PL de
caráter municipal e estadual; concomitantemente, uma onda de ameaças contra professores/as se
intensificou, legitimada pelos PL antes mesmo de serem votados. Em vista disso, a categoria
dos/as professores/as e estudantes mobilizou-se no sentido de combater a censura na Educação. O
4
Professores Contra o Escola Sem Partido (PCESP) é um dos grupos mais atuantes no

4
“​O ​Professores contra o Escola Sem Partido começou como uma página no ​Facebook de reunião e divulgação de
notícias relativas aos avanços do movimento de mesmo nome, “Escola Sem Partido”, criado em 2004 por um
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acompanhamento constante da evolução dos PL, como também na produção de materiais que
investigam e tentam desconstruir as propostas e estratégias presentes no MESP e PL ESP.
Reforçam com essa mobilização, o que Nóvoa (2009) indicaria como a reivindicação da presença
pública dos/as professores/as, a comunicação com a sociedade sobre o trabalho educativo. O
PCESP atua nesse sentido comunicando com a sociedade através de várias plataformas midiáticas
(​Instagram, Facebook, blogs, podecast, Youtube​).

Em dezembro de 2018, o PL 7180/14 e apensados foram rejeitados no Voto em Separado,


que “[...] Ocorre quando o autor do voto em separado diverge do parecer dado pelo relator [...].”
(SENADO NOTÍCIAS). Segundo parecer proferido no Voto em Separado, os PL foram rejeitados
por promover censura e apresentar imprecisões conceituais e inconsistências argumentativas com
relação às problemáticas levantadas pela comissão do ESP. O projeto desconsiderava,
amplamente, a complexidade existente na relação ensino-aprendizagem, assim como o aporte das
muitas teorias/correntes pedagógicas que tentam explicá-la, para relativizar a relação entre a
liberdade de aprender e a liberdade de ensinar. É, de maneira geral, com estes argumentos que os
idealistas do PL fundamentam a proposta, que cria limites onde, para a maioria dos educadores/as
contemporâneos/as, deve haver liberdade. Resultado do Voto em Separado, o projeto foi rejeitado
por “[...] promoverem inconstitucional censura, por confundirem Educação no sentido amplo e
Ensino, por trazerem definições imprecisas e por desrespeitarem o princípio constitucional de
gestão democrática do ensino público [...]” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, VTS 1 PL 7180/14).
No entanto, no início do ano 2019 foi apresentado um novo PL à Câmara dos Deputados.
O texto do PL 246/19 se modifica em relação ao projeto arquivado (7180/14 e 867/15) e seus
apensados, para se enquadrar em um parâmetro mais aceitável constitucionalmente, mas mantém
os mesmos interesses do PL rejeitado. No trecho que versa sobre a justificação do PL 246/19, a
5
autora Beatriz Kicis faz a seguinte afirmação:
 
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de
suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas, bem como para fazer com que eles
adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual

advogado chamado Miguel Nagib. ​Somos ​um grupo de estudantes e professores que se opõem aos projetos de lei
incentivados por este movimento que tramitam em várias casas legislativas do país. Para combater este retrocesso
buscamos na página e neste blog informar e produzir conteúdo de análise e reflexão sobre o crescimento e
organização do ESP, visando fundamentar nossos argumentos para desconstruir o apoio que eles conquistaram nos
últimos anos.” (disponível em: <​https://profscontraoesp.org/sobre/​> acessado em: 15 junho 2019.
5
Beatriz Kicis, advogada e procuradora do DF aposentada, é cunhada de Miguel Nagib e membro do grupo
Revoltados Online.
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– incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. (PL
246/19, 2019)
 
complementa ainda:
 
Diante dessa realidade – amplamente comprovada pela Comissão Especial
destinada a proferir parecer sobre o PL 7.180/2014 e apensados, conhecida como
“Comissão Escola sem Partido” ‒, entendemos que é necessário e urgente adotar
medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas
escolas e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. (PL 246/19, 2019)
 
 
A “realidade amplamente comprovada” a que se refere no texto não compreende nenhuma
pesquisa ou documento que possa, de fato, respaldar essa afirmação. O texto infere que práticas de
doutrinação política e ideológica são exclusivamente praticadas por professores/as que não
corroboram dos mesmos princípios, ideológicos e conservadores, que os autores trazem como os
pilares da ética e moral.
É possível identificar que os focos de interesse para as alterações são os mesmos. No
“combate” a ideologia nas escolas, que se mantém desde o projeto original, quer garantir: a) a
precedência dos valores familiares sobre os conteúdos científicos; b) retirar o teor crítico e
reflexivo das discussões político social na escola, a partir do silenciamento das vozes existentes na
comunidade escolar (estudantes, professores/as); c) distanciar a escola do seu compromisso social
no combate às desigualdades. Em síntese, todas essas mudanças têm como foco controlar o
comportamento do/a professor/a, cerceando sua liberdade, autoridade e autonomia. Os PL
reforçam essa intenção através de um conjunto de recomendações, denominado “Deveres dos
professores”, que deverá ser afixado na porta das salas de aula, definindo quais os “limites” da
liberdade do professor, instigando os/as alunos/as a denunciar caso se sintam contrariados. As
denúncias serão analisadas por uma comissão especial, a mesma que defendeu a implementação
do PL arquivado, e caso seja constatado o “crime de doutrinação”, os/as professores/as irão
responder judicialmente.
A possível implementação do PL ESP tem levantado discussões acerca do comportamento,
ou posicionamento, político-social dos/as professores/as nas salas de aula, compreendidos por
alguns grupos identitários como “doutrinadores”. Embora o termo “doutrinadores”, fazendo
menção direta a pessoa professor, tenha sido destituído no PL atual (246/19), por não ser claro
quanto ao conceito, foi observada a substituição dos termos considerados imprecisos no projeto
que foi arquivado. O termo “doutrinadores”, que designa práticas de doutrinação, presente nos PL
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7180/14 e 867/15 foi substituído por “manipulação psicológica” no PL 246/19. O termo é


utilizado no Art. 3º, com a seguinte afirmação: “É vedado o uso de técnicas de manipulação
psicológica destinadas a obter a adesão dos/as alunos/as a determinada causa” (art. 3º, PL 246/19).
No ítem 5 da Justificação do PL 246/19 é detalhado a que se refere o termo substituto:
 
5) A liberdade de ensinar, obviamente, não confere ao professor o direito de se
aproveitar do seu cargo e da audiência cativa dos alunos, para promover os seus
próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas,
morais, políticas e partidárias; nem o direito de favorecer, prejudicar ou
constranger os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais
ou religiosas; nem o direito de fazer propaganda político-partidária em sala de
aula e incitar seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
nem o direito de manipular o conteúdo da sua disciplina, com o objetivo de obter
a adesão dos alunos a determinada corrente política ou ideológica; nem,
finalmente, o direito de dizer aos filhos dos outros o que é certo e o que é errado
em matéria de religião e de moral. (PL 246/19, 2019)

Os conteúdos, ético, moral e político, aos quais os defensores do ESP se opõe são
fundamentais formação crítica e reflexiva, já que o limite posto na liberdade do/a professor/a
limita também a experiência de uma escola plural para os/as alunos/as.
O termo manipulação psicológica compreende “ [...] ​um tipo de influência social que visa
mudar o comportamento ou a percepção dos outros por meio de táticas indiretas, enganosas ou
dissimuladas [...]” (Wikipedia, 2019)​. Nesse sentido, “ [...] a manipulação psicológica é qualquer
ação intencional que influencia a pessoa à crença ou comportamento, causando mudanças nos
processos mentais [...]” (Wikipedia, 2019). Dessa forma, relacionar o termo “manipulação
psicológica” à prática docente é uma estratégia dos defensores do ESP para reforçar a ideia de que
existe uma suposta fragilidade do/a aluno/a em relação à autoridade do/a professor/a, que se baseia
em duas premissas questionáveis. De um lado busca alimentar no imaginário social a ideia de que
o/a aluno/a é uma “tábula rasa” e totalmente vulnerável às influências dos/as professores/as,
concepção que já foi desconstruída por pesquisadores da psicologia no século, entre eles Jean
Piaget e Lev Vygotsky. De outro lado, infere que os/as professores/as em geral dominam e
utilizam “técnicas de manipulação psicológica”, tendo total controle sobre os/as alunos/as e se
utilizam dessas para obter adesão deles/delas às suas convicções pessoais. Em ambas
desconsideram que existem diversas influências, contextos, e grupos aos quais os alunos estão
imersos e constituem a própria identidade.
Sob a justificativa de uma suposta busca pela neutralidade no ensino, o PL ESP conduz
seus interesses a serviço da própria ideologia. Em comentário feito em vídeo sobre o projeto de
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6
lei, o professor ​VLADMIR SAFATLE (2017, s/n ) diz, em ​tom eufêmico, que “o projeto ESP
parte de uma premissa correta para chegar a uma conclusão totalmente falsa”. A premissa correta
se trata da necessidade real de uma estrutura educacional que possibilite aos nossos alunos uma
experiência plural” (SAFATLE, 2017, s/n). No entanto, essa estrutura de direito já é garantida nos
parâmetros legais e por isso não se faz necessária uma nova lei ou modificação na lei atual (LDB).
A conclusão falsa, segundo Safatle (2017), corresponde ao fato de que, os idealizadores do PL
ESP,  
Pessoas que nunca pisaram em uma sala de aula enquanto professores, chegaram
à uma conclusão difícil e que não é comprovada por nada, a não ser por
experiências que aparecem aqui ou alí, e não tem nenhuma comprovação de
estudo. De que, de fato, nós vivemos em uma situação na qual nossas escolas são
absolutamente monolíticas, monofônicas, que elas não dão espaço para
absolutamente nada, a não ​ser um tipo de perspectiva unilateral e autoritária. Isso,
eu diria, que é simplesmente falso. (SAFATLE, 2017, s/n)

A ausência de documentos, dados, ou pesquisas que possam comprovar o problema


generalizado das práticas de doutrinação e manipulação por parte dos/as professores/as faz com
que os idealizadores do ESP recorram a uma estratégia discursiva (bélica), amplamente utilizada
por governos autoritários, para “validar” seu movimento: a ideia de “perda do mundo” para os
inimigos. Sobre essa estratégia, podemos utilizar a profunda análise de Arendt sobre as estratégias
implementadas pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, na criação da ideia do “inimigo
comum”, como referência para compreender essa lógica. “[...] Para a autora, a realidade ficcional
construída pelos nazistas era sustentada por uma mentira meticulosa e assustadora: o mundo era
dominado pelos judeus, era então necessário que os bons impedissem esse domínio [...]” (Revista
Brasileira de Educação, 2018). Nessa mesma lógica, a narrativa “vilanesca” criada pelo
movimento ESP atribui culpa aos/às professores/as (inimigos) por uma suposta doutrinação
ideológica unilateral de esquerda dos/as alunos/as, como também os acusa de travar uma batalha
contra os costumes morais impostos pela família tradicional, sobretudo, nas escolas públicas no
Brasil. Esse discurso é utilizado para criar um consenso social que, sem dados oficiais ou estudos
que possam comprovar a existência desses mecanismos, pretende respaldar a perseguição aos/às
professores/as. Esta narrativa é infundada, inverossímil, e intenta materializar no imaginário social
a figura do professor como vilão. Defende uma posição ideológica que, convenientemente,
fomenta o discurso de ódio aos/às professores/as.

6
As citações diretas de Vladmir Safatle neste trecho são transcrições da fala do professor em vídeo disponível no
YouTube: https://youtu.be/9X4BJcyQAQU.
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No canal Professores Contra o Escola sem Partido (YouTube), o professor Fernando de


Araujo Penna (2019) discorre sobre essa estratégia discursiva:
 
O ódio aos professores funciona como um ponto de centralização e união de várias
identidades que se sentem ameaçadas por essa figura imaginária criada, por
movimentos como o Escola Sem Partido, do professor doutrinador. Essas
identidades em questão são baseadas em uma visão de mundo conservadora, que
trata como inquestionáveis e invioláveis os valores judaico cristãos, a civilização
ocidental, a família dita tradicional, o capitalismo, e as relações de mercado. Tudo
e todos que contestam esses pressupostos são tratados como inimigos cuja as
identidades são simplificadas e descaracterizadas e em seu lugar só resta um
espantalho, um avatar que simboliza o mal que precisa ser destruído. É dessa
forma que o professor é desprovido da sua identidade profissional, educador e
formador de cidadãos, no lugar, só restando a metáfora que o redefine como
criminoso, abusador e inimigo. (FERNANDO PENNA, 2019. s/n)
 
Os ataques à educação e à comunidade docente têm se intensificado nos últimos anos, em
7
níveis cada vez mais preocupantes e violentos. São comuns relatos de professores/as que
sofreram violência física e, ou, simbólica, praticadas por sujeitos que ocupam os altos cargos do
governo e judiciário, como também por parte de pais e alunos/as, deliberadamente. No Rio Grande
8
do Norte , o caso recente (2018) do professor de história de uma instituição privada que foi
ameaçado pelo pai de um aluno por “fazer menções políticas” em uma aula sobre a Lei Rouanet,
se configura, dentro dos parâmetros do PL ESP (7180/14), como uma postura aceitável, pois,
segundo este documento, o pai agiu dessa forma apenas para garantir o “respeito às convicções do
aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a
educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” (PL 7180/14,
2014).
Vivenciamos, na atual conjuntura social, o desmonte da escola pública como espaço que
deve promover aprendizagens para a vida dos educandos e dos educadores. O atual governo
anuncia um projeto de ensino que aumenta o fosso da desigualdade entre a educação pública e a
privada no Brasil. Enquanto o MESP faz críticas ao construtivismo e a Paulo Freire, as escolas
9
privadas de elite , cujas mensalidades chegam a R$ 10.000, visam em seus projetos educativos
promover o pensamento crítico e reflexivo, reconhecendo o/a aluno/a como um sujeito do mundo
e ativo na produção de seu conhecimento. Ironicamente, o PL ESP, a partir de seus pressupostos,

7
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/11/19/interna-brasil,720153/professores-relatam-amea
cas-por-conta-do-projeto-escola-sem-partido.shtml <acessado em: 15 de junho de 2019>.
8
https://www.revistaforum.com.br/professor-sofre-ameaca-de-eleitor-de-bolsonaro-por-falar-de-lei-rouanet-em-aula/
<acessado em: 15 de junho de 2019>.
9
https://www.avenues.org/pt-br/sp/missao-avenues/
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pretende banir o uso dessa abordagem na rede pública para tornar o ensino mais técnico, menos
crítico e reflexivo. Configura-se assim um contexto segregativo, a escola com liberdade sobre seus
métodos de ensino para os ricos, e a escola pública, técnica, alienada para os pobres.
Os movimentos de cerceamento de liberdade do ensino nas escolas públicas imprimem a
lógica do capital, e operam na manutenção do status quo para que não sejam contestados. Para
manter a massa alienada, uma escola sem voz, sem crítica, sem reflexão. Cabe aqui fazer uma
breve alusão à um conceito trazido por George Orwell em seu livro “1984”. No romance
distópico, Orwell (1949) cria o conceito de ​Crimideia,​ que nada mais é que o ​crime de
pensamento​. No contexto criado por Orwell, o governo tenta, por meio da vigilância, controlar os
pensamentos de seus cidadãos a fim de inibir qualquer pensamento subversivo, que pudesse
contestá-lo. Para detectar os sujeitos que fossem capazes de, meramente, pensar em desafiar a
autoridade do governo foi criada uma patrulha policial especial, a chamada “polícia do
pensamento”. “A polícia do pensamento” tinha por função identificar e punir, com a morte, os
sujeitos que cometiam o ​Crimideia.​
A semelhança entre o cenário criado por Orwell e o contexto que vivenciamos no Brasil é
surpreendente. As articulações e o ​modos operandi ​das classes dominantes e conservadoras para
fazer valer seus interesses e se manter no poder são as mesmas estratégias montadas por governos
ditatoriais: a alienação da massa; na burocratização dos espaços de debate; na extinção dos das
políticas sociais; na tentativa de desqualificação dos movimentos sociais, e no silenciamento da
voz coletiva. A atmosfera de suspeita e o incentivo ao denuncismo gerada, mesmo antes da
implementação PL ESP, fragiliza as relações entre professores/as e alunos/as e instaura no lugar
do afeto, o medo e a desconfiança. Assim como no contexto criado por Orwell, onde o governo
disponha do Ministério da Verdade, que tinha por função recriar a história do passado para
controlar o presente e convencer a população da necessidade de controle sobre o pensamento dos
“subversivos”, o PL ESP tenta legitimar, por meio dos seus discursos e narrativas vilanescas
veiculadas na mídia, a necessidade de uma lei coercitiva para punir os sujeitos que corroboram
com ideais estranhos aos dos idealizadores do PL.

IMPACTOS DO ESCOLA SEM PARTIDO NA SUBJETIVIDADE DOCENTE

Com apoio nos pressupostos da Teoria da Subjetividade desenvolvida por González Rey,
concebo a subjetividade, conceito principal deste trabalho, como um:
 
17

Sistema processual, plurideterminado, contraditório, em constante


desenvolvimento, sensível à qualidade de seus momentos atuais, o qual tem um
papel essencial nas diferentes opções do sujeito. [...] A flexibilidade, versatilidade
e complexidade da subjetividade permitem que o homem seja capaz de gerar
permanentemente processos culturais que, bruscamente, modificam seu modo de
vida, o que por sua vez leva à reconstituição da subjetividade, tanto social quanto
individual (GONZÁLEZ REY, 2002, p.37)
 
A partir do referencial teórico utilizado neste estudo, entendo a subjetividade enquanto
categoria compreende um sistema pessoal complexo de compreensão do mundo, que se
transforma a partir de experiências e na relação e interação com o outro, que está em constante
produção, e integra várias funções psíquicas como pensamento, emoções, e sentimentos.
Os sujeitos formam modos de ser por meio das experiências que vivem, da síntese das
emoções e sentimentos envolvidos em situações significativas, e as reproduzem na prática social.
Adquirem identidade na relação com os outros, nos processos de rejeição e identificação de
valores e princípios. Esse processo é permanente, acontece desde o momento em que o sujeito
começa a se apropriar de uma cultura familiar, social, econômica e política.
Na construção de subjetividade do professor, o conceito de subjetividade é intrínseco à
produção de saberes docentes gerados no exercício do ​ser, ​em tempo e lugar determinados​. O

processo de subjetivação docente compreende o estabelecimento de conexões entre as
experiências pessoais e profissionais, relativas às formas e tipos de apreensão do conhecimento
que o sujeito experimentou em sua trajetória, sintetizou nas memórias, e as ressignificou a fim de
produzir sentido para sua vida. Sobre a constituição do ser docente a partir da perspectiva
histórico cultural, Casemiro de ​Medeiros Campos (2007, p. 22) explana:

O professor, no curso da sua ação profissional, produz sentidos no contexto


cultural em que se encontram inseridos os sujeitos da ação educativa: professores
e alunos. Assim a produção e significados é fruto da subjetividade do professor
que atua na sua ação como docente. Os saberes do professor são definidos pelo
campo cultural, próprio da educação escolar em permanente construção
(CAMPOS, 2007, p. 22).

A tomada de consciência sobre o próprio processo, a partir da reflexão, possibilita ao


profissional, imbuído da visão pedagógica, compreender concepções educativas, aprimorar a
própria prática, e empreender em projetos de ensino que valorizem seu desenvolvimento
profissional. Conforme expõe Karin Lusia Flesch (2013, p. 13),

Se a identidade e a consciência de si próprio, como revela Jorge Larrosa (1994, p.


66) [...] não é algo que a pessoa progressivamente descobre ou aprende a
descrever melhor. É, antes, algo que se vai fabricando e inventando, [...]”, os
18

espaços de discussão da escola são fundamentais. E o diálogo a principal


ferramenta.
 
Nesse sentido, a escola é o lugar principal na formação das/os professoras/es, pois as
realidades encontradas nas escolas estão além das teorias estudadas nas universidades, e exigem
do/a professor/a a capacidade de compreender, refazer, reorganizar e reinventar a ação docente
frente à complexidade das relações vivenciadas no cotidiano do chão escolar. Sobre isso, Freire
nos ensina: “Não é possível também formação docente indiferente à boniteza e à decência que
estar no mundo, com o mundo e com os outros substantivamente exige de nós”. (2011, p.46).
Os saberes dos professores/as são gerados no mundo, no seu trajeto de vida, na sua
experiência como aluno/a, nas suas relações familiares, sociais, econômicas e políticas, e só
depois agregados aos conhecimentos técnico-científicos sistematizados nos cursos de licenciatura.
Antes de ser um profissional, a/o professor/a é uma pessoa.
Antônio Nóvoa (2011), nos seus estudos sobre formação de professoras/es, volta sua
pesquisa para a dimensão pessoa-professor. Evidencia em seus estudos a importância de se
considerar a dimensão pessoal das/os professoras/es como aspecto inerente e complementar à
identidade profissional. A partir desse pressuposto, desenvolveu a Teoria da pessoalidade no
interior da profissionalidade, que trata a formação técnico-científica e a formação pessoal das/os
professoras/es com igual importância. Afirma que é no desenvolvimento das competências
pessoais, para além dos conhecimentos teóricos, no exercício do trabalho coletivo, da autonomia;
na busca por autoconhecimento, na capacidade de comunicação e de reflexão, que a formação
dos/as professores/as se configura de maneira integral. O processo de desenvolvimento
profissional compreende a evolução dos conhecimentos da dimensão individual para a dimensão
coletiva da profissão. “Trata-se, sim, de fazer evoluir a profissão de uma dimensão individual para
uma dimensão coletiva. Trata-se, sim, de transformar a experiência coletiva em conhecimento
profissional”. (NÓVOA, 2003, p.7).

Em resposta à pergunta “o que seria um bom professor?”, Nóvoa (2009) fala da


dificuldade de se estabelecer uma definição nesse sentido, mas sugere cinco disposições que
caracterizam o trabalho docente significativo nas sociedades contemporâneas. São elas:
1. O conhecimento.
2. A cultura profissional.
3. O tacto pedagógico.
4. O trabalho em equipa.
19

5. O compromisso social.
Dentre essas disposições, cabe reforçar a importância do “Compromisso Social” no
exercício da atividade docente no contexto analisado neste estudo. Nóvoa (2009, p. 31) explica

Podemos chamar-lhe diferentes nomes, mas todos convergem no sentido dos


princípios, dos valores, da inclusão social, da diversidade cultural. Educar é
conseguir que a criança ultrapasse as fronteiras que, tantas vezes, lhe foram
traçadas como destino pelo nascimento, pela família ou pela sociedade. Hoje, a
realidade da escola obriga-nos a ir além da escola. Comunicar com o público,
intervir no espaço público da educação, faz parte do ethos profissional docente.
 
O compromisso social definido por Nóvoa corrobora com o ideal defendido na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9.394) a qual preconiza, no título II “Dos
Princípios e Fins da Educação Nacional”, Art. 3º: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções
pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância. No entanto “[...] quanto mais se fala
da autonomia dos/as professores/as mais a sua acção surge controlada, por instâncias diversas,
conduzindo a uma diminuição das suas margens de liberdade e de independência [...]” (NÓVOA,
2009, p. 20).

O PL ESP (246/19) se mostra como uma dessas instâncias controladoras da ação docente.
No eixo que se refere aos “Deveres do professor”, Parágrafo único, Artigo 5º, temos um grupo de
recomendações sobre como e o quê o professor não deve ensinar.

1 – O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover


os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas,
religiosas, morais, políticas e partidárias.
2 – O Professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em
razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta
delas.
3 – O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem
incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
4 – Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor
apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e
seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a
respeito da matéria.
5 – O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam
a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
6 – O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores
sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.

Ao contrário do que é defendido na LDB, a garantia da tutela igual do Estado e da família


sobre o ensino de crianças e adolescentes, o PL ESP quer sobrepor os princípios familiares sobre o
20

direito do Estado de abordar conteúdos intelectuais e culturais, produzidos socialmente. Com isso,
conteúdos que precisam ser tratados com emergência nas escolas, como as desigualdades,
violência, racismo, LGBTfobia, diante das demandas existentes na nossa sociedade, podem ser
concebidos por algumas famílias como inadequados.

As ideias difundidas social e culturalmente, por meio de discursos ou outros aparelhos


(projetos de lei, projetos de ensino), criam a atmosfera política social, a que categorizamos como
Subjetividade Social. De acordo com Gonzaléz Rey (2007, p. 24) conforme citado por Costa de
Souza (2015, p. 2) a subjetividade social “[...] se apresenta nas representações sociais, nos mitos,
nas crenças, na moral, na sexualidade, nos diferentes espaços em que vivemos e está atravessada
pelos discursos e produções de sentido que configuram sua organização subjetiva” (GONZÁLEZ
REY, 2010, p.24). Ela marca o ponto de resistência da ordem social, pois “[...] traz, por seu
próprio caráter, opções relativamente reduzidas à pessoa, inclusive, um dos atributos históricos
que caracterizam a ordem social ocidental da subjetividade social é o da adaptação da pessoa à
ordem social estabelecida” (GONZÁLEZ REY, 2007, p.144).
Em meio a um contexto de abuso, violência, desigualdades, intolerância e o cerceamento
da liberdade de discussão, estabelecidas pela ordem dominante vigente e amparada por suas
instituições (escola, mídia) responsáveis por reforçar sua cultura, os sujeitos tendem a reverberar
esses modos nas suas singularidades, e criar uma cultura de reprodução que normatiza esses
modos.
No entanto, q​uando as discussões sobre desigualdades, violência, racismo, LGBTfobia são
fomentadas, à medida que as temáticas são problematizadas coletivamente, os argumentos e
noções são modificados. O favorecimento da reflexão, na troca produtiva entre diversos grupos
auxilia na construção de novos saberes, e na formação de cidadãos mais conscientes.
Por exemplo, na discussão sobre racismo, embora ainda exista uma cultura estrutural por
trás de práticas racistas, o discurso e as práticas são desconstruídos por meio da discussão posta,
10
das reivindicações dos movimentos sociais, pelos sujeitos e através dos aparelhos do Estado . É
galgando esses espaços formativos, como os núcleos dos movimentos sociais, envolvendo a
comunidade nas discussões políticas, e favorecendo o debate público que produziremos sentido 

10
Essencialmente, argumenta Althusser, a permanência da sociedade capitalista depende da reprodução de seus
componentes propriamente econômicos (força de trabalho, meios de produção) e da reprodução de seus componentes
ideológicos. Além da continuidade das condições de sua produção material, a sociedade capitalista não se sustentaria
se não houvesse mecanismos e instituições encarregadas de garantir que o status quo não fosse contestado. Isso pode
ser obtido através da força ou do convencimento, da repressão ou da ideologia. O primeiro mecanismo está a cargo
dos aparelhos repressivos de estado (a polícia, o judiciário); o segundo é responsabilidade dos aparelhos ideológicos
de estado (a religião, a mídia, a escola, a família). (SILVA, Tomaz Tadeu da. 1999).
21

para a realidade que vivemos. Segundo Carlos Roberto Jamil Cury (1985), temos a escola como
um ponto central de difusão, produção, e reprodução de culturas à serviço do Estado. Pois,

[...] as ideias pedagógicas se manifestam na tentativa de a concepção de mundo


da classe dominante se tornar totalizante (apesar de seu caráter particularizante).
Essas ideias se apresentam como tais enquanto se utilizam de instituições
pedagógicas que lhes sirvam de suporte. As instituições são organizações
culturais (no seu sentido amplo) a serviço das ideologias que as veiculam através
de instrumentos de difusão entre os quais os agentes pedagógicos, o material
pedagógico e o ritual pedagógico (grifos do autor) (CURY, 1985, p.87).
 

Fazer com que as escolas e os/as professores/as exerçam suas atividades em sentidos
conservadores e retrógrados, visto que na história da educação já experimentamos duros períodos
de censura e segregação, é ignorar todo o progresso no sentido da superação das desigualdades
como sociedade, e na busca de uma educação de qualidade para todos. Conforme tratado por
Nóvoa (2009) em seu texto “Educação 2021: Para uma história do futuro”, são muitas as
possibilidades para o futuro da educação, porém enquanto investirmos em propostas genéricas e
cristalizadas para resolver os problemas da educação, mais problemas serão gerados, e mais a
sociedade irá sofrer deformações. Em concordância, expõe:

Hannah Arendt escreveu que uma crise apenas se torna catastrófica se lhe
respondermos com ideias feitas, isto é, com preconceitos (1972, p. 225). Tinha
razão. O pensamento contemporâneo tem de ir além do já conhecido e
alimentar-se de um pensamento utópico, que se exprime “pela capacidade não só
de pensar o futuro no presente, mas também de organizar o presente de maneira
que permita actuar sobre esse futuro” (Furter, 1970, p. 7). (NÓVOA, 2009, p. 16)
 
 
As propostas sugeridas pelo PL ESP, assim como o cenário criado pelo MESP, causam
impactos direto à subjetividade dos/as professores/as. Pois, para além do controle sobre o fazer
pedagógico, as propostas do ESP reverberam no saber, no pensar e no sentido da profissão. Para
grande parte dos/as professores/as contemporâneos e dos teóricos da educação, o ensino deve ter
um sentido libertador, para a autonomia, no entanto, nas projeções feitas pelo PL ESP, os
professores/as terão, como via de regra, que ocupar um lugar inexistente na profissão e na
sociedade: o lugar neutro. Tal mudança causa um efeito em cadeia, Beatriz Judith Lima Scoz
(2008, p. 9) afirma que:
quando o professor não é reconhecido como sujeito pensante, ele tende a repetir
modelos padronizados e pré-estabelecidos, tornando os projetos pedagógicos
conservadores, limitando, ao mesmo tempo, sua capacidade para construir
22

conhecimentos. Disso advém algo mais grave: o professor, agindo assim,


dificilmente reconhecerá os alunos como sujeitos pensantes. (SCOZ, 2008, p. 9)

As disposições sugeridas por Nóvoa (2009), como exemplos de características necessárias


para desenvolver uma prática significativa na profissão docente, são alvos de supressão no
contexto proposto pelo ESP. O não reconhecimento do professor como um sujeito pensante e
capaz afeta os aspectos motivacionais que orientam o investimento emocional e intelectual sobre a
profissão. Afeta sua capacidade de produzir novos conhecimentos, e interfere nas relações
construtivas que conduzem à aprendizagem significativa dos/as alunos/as. Na perspectiva aqui
implicada,
 
A motivação é um fator fundamental no processo de desenvolvimento do ser
humano. Todas as ações do indivíduo são guiadas por motivos que se constituem
num desafio constante para ele. Os motivos humanos ativam o organismo,
orientam e reforçam as condutas humanas, buscando atingir de forma satisfatória
determinados objetivos e um conseqüente grau de satisfação. (Revista Intermeio,
2004)
 
A motivação orienta as expectativas profissionais e pessoais, é a partir dela que os sujeitos
produzem sentido para as atividades que realizam. Na docência esse aspecto é afetado pelas más
condições de trabalho, baixos salários, e no contexto proposto pelo ESP de instrumentalização
dos/as professores/as, também estão sendo cada vez mais acentuados os sentimentos de
desvalorização e incapacidade, diminuindo também, cada vez mais, o atrativo para a profissão.
A falta de expectativa diante da profissão reverbera no desenvolvimento da prática dos
professores/as. Um dos aspectos mais importantes da profissão docente, a relação entre aluno/a e
professor/a, se nutre da reciprocidade no reconhecimento das capacidades dos sujeitos envolvidos
no processo de aprendizagem. O professor que está motivado, e orienta-se para o objetivo da sua
profissão, reconhece no/a seu/sua aluno/a a capacidade de orientar-se também para um objetivo.
Para isso, o tato pedagógico é fundamental nesse processo. Conhecer o/a aluno/a, compreender
seus interesses, criar pontes que conduzam seus interesses para uma aprendizagem significativa
exige que o professor atue não somente como profissional, mas requer que mobilize da sua
dimensão pessoal funções que produzam sentido para essa prática.
No contexto proposto pelo PL ESP essa dimensão do ensino é desconsiderada. O ensino é
tratado como mera transmissão de informações, e o aspecto afetivo, ponto central no processo de
construção do conhecimento, é substituído pela tentativa de neutralizar os estímulos que dele
decorrem.
23

Os PL ESP (7180/14; 867/15; 246/19) aqui analisados têm seus ideais atrelados à filosofia
defendida pelo MESP (2004), que serviu como fonte para o texto dos PL, composto
majoritariamente por políticos da bancada evangélica e agremiações de direita, que, supostamente,
buscam combater a doutrinação ideológica, moral, sexual e política por parte dos/as professores/as
sobre os/as estudantes. A partir dessa premissa, os idealizadores do ESP querem criar mecanismos
jurídicos para controlar e punir os professores/as que ultrapassem os limites definidos por eles.
Esse limite, se apresenta como critério no PL 7.180/14 (arquivado), o largo e abstrato “ respeito às
convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem
familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
Embora não existam estatísticas ou dados significativos que representam a recorrência do
problema da doutrinação nas escolas para respaldar cientificamente, ou coerentemente essa
premissa, ela foi desmembrada e renovada no PL 246/19 sob novos termos, no:

Art. 3º É vedado o uso de técnicas de manipulação psicológica destinadas a obter


a adesão dos alunos a determinada causa.
Art. 4º No exercício de suas funções, o professor:
I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus
próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas,
morais, políticas e partidárias;
II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas
convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus
alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos
alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes a respeito da matéria;
V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação
religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções;
 
Os artigos e capítulos dispostos no PL 246/19 mencionados acima expressam, de forma
menos sintética, os mesmos interesses do PL 7.180/14. Em suma, pretende-se que o professor
relativize, neutralize ou iniba toda e qualquer forma de expressão crítica e política em sala de aula.
O ataque ferrenho à categoria dos professores/as por parte dos idealizadores, políticos e
juristas que defendem os PL ESP é apenas uma peça no quadro de desmonte da Educação Pública
24

no Brasil. O PL que institui o programa ESP é direcionado apenas às Instituições Públicas da


União, permitindo que as instituições privadas permaneçam livres para atuar da maneira que
optarem, e estabelecerem suas próprias formas de controle. O desrespeito à norma constitucional
presente na LDB ​(9.394) re​vela que não há limites nem direitos, para esse grupo, que não possam
ser destituídos. As mudanças propostas configuram as principais ameaças à Educação Pública,
gratuita para todas e todos, pois parece favorecer o crescente mercado da educação privada no
Brasil.
Apesar desse modelo não estar implementado, o efeito sombra do PL ESP repercute no
processo de subjetivação dos/as professores/as, onde o impacto das propostas é imediato e direto,
e em toda a sociedade progressivamente.
As narrativas criadas para vilanizar, cercear e depreciar a categoria de professores/as
aproveitam-se da dificuldade histórica dos docentes de reportar seu trabalho à sociedade para criar
uma atmosfera de suspeição que distancia ainda mais a sociedade da compreensão real no que
cerne ao trabalho dos/as professores/as. Aumentada essa distância, os/as professores/as não se
sentirão seguros para se posicionar contra discursos arbitrários, ou falas condenatórias, entre
outras formas de interferências. Sentimentos de insegurança, medo, incapacidade e desmotivação
para exercer a profissão tendem a se tornar um aspecto comum aos professores/as da rede pública,
e mais intensificados no contexto persecutório proposto pelo PL ESP. Esses elementos agregados
à profissão, tendem a torná-la cada vez mais desvalorizada e menos atrativa.
Outro aspecto do PL ESP que pode gerar impacto social negativo é o veto às discussões
sobre as desigualdades. Justificado através do apelo à neutralidade em respeito às convicções
dos/as alunos/as e pais, demonstra um enorme retrocesso frente ao que conquistamos em termos
de progresso de produção científica e intelectual, que mobiliza conteúdos que fundamentam
muitas lutas/políticas sociais. Esse cerceamento revela um enorme desrespeito à diversidade que
compõe tanto os espaços escolares como a sociedade em geral. Caso o projeto seja implementado,
existe uma forte tendência ao aumento dos discursos de ódio e da intolerância às diferenças, sem
possibilidade de se realizar uma intervenção adequada, nas escolas e por meios legais, pois serão
discursos reduzidos à “opinião de cada um”. Esse aspecto silencia a expressão da luta por escolas
democráticas e pela liberdade de ensinar. O esquema abaixo mostra alguns dos possíveis impactos
na subjetividade dos/as professores/as no contexto proposto pelo ESP.
25

 
Esquema organizado pela autora (2019) 
 
Os impactos do Escola Sem Partido na subjetividade dos/as professores/as anunciam um
futuro incerto para a Educação. Por um lado, se não nos organizarmos em defesa da nossa
profissão e produção de vida sucumbiremos às interferências negativas do ESP, que são muitas.
Por outro lado, esse pode ser o momento crucial de organização, a qual todos se unem em defesa
da Educação.

REFLEXÕES SOBRE A RESISTÊNCIA DOCENTE E O PROJETO ESCOLA SEM


PARTIDO

Como prognóstico para esse possível cenário, e também para trabalhar outras dificuldades
relativas à prática docente, ​refletir sobre a prática é um importante exercício de humanização e
comprometimento, é o caminho para romper com o conservadorismo retrógrado imbricado em
propostas pedagógicas como o ESP, e promover novas políticas educacionais e sociais​.

De acordo com González Rey (ibid., pp.128, 162, 164), o reconhecimento da


capacidade pensante do sujeito tem implicações na sociedade atual. As formas de
totalitarismo dominantes e o poder manipulador dos meios de comunicação
dificultam a participação do sujeito como protagonista de seus pensamentos,
impedindo-o de produzir novas opções para viabilizar projetos sociais de
mudanças (GONZÁLEZ REY apud BEATRIZ SCOZ, 2008, p. 9).
 
26

Portanto, é no investimento na capacidade comunicativa, na reflexão, na liberdade, na


autonomia e no trabalho colaborativo que as/os professoras/es encontram recursos para a
sustentação da formação docente ampliados pela dimensão pessoal. Compreender os sentidos da
instituição escolar e dos projetos de ensino, num esforço coletivo, pode dar a estes/as profissionais
ferramentas para se opor às tendências totalizantes e persecutórias.

O movimento social “Professores Contra o Escola Sem Partido” desempenha um papel


11
fundamental nesse sentido, de acompanhamento através do mapeamento , estudo colaborativo,
reflexão, e fala sobre os PL através de plataformas acessíveis para o público. A reivindicação da
presença dos/as professores/as no espaço público é um importante reforço no combate à invasão
de especialistas e discursos empresariais e conservadores, focados nos próprios interesses, que não
compreendem os sentidos democráticos da Educação. Segundo Nóvoa (2009, p. 23)

Os lugares da formação podem reforçar a presença pública dos professores.


Tem-se alargado o interesse público pela coisa educativa. Mas, paradoxalmente,
também aqui se tem notado a falta dos professores. Fala-se muito das escolas e
dos professores. Falam os jornalistas, os colunistas, os universitários, os
especialistas. Não falam os professores. Há uma ausência dos professores, uma
espécie de silêncio de uma profissão que perdeu visibilidade no espaço público.
(NÓVOA, 2009, p. 23)

A invasão de especialistas no espaço público da educação é reflexo da vulnerabilidade e


desvalorização da profissão. Aceita-se, num consenso genérico, que qualquer profissional ou
pessoa possa discutir educação. Para Nóvoa (2009), essa fragilidade se dá pela dificuldade dos/as
professores/as de comunicar para a sociedade sobre seu trabalho, assim
 
Como escreve David Labaree (2000), as práticas docentes são extremamente
difíceis e complexas, mas, por vezes, alimenta-se publicamente a ideia de que
ensinar é muito simples, contribuindo assim para um desprestígio da profissão.
(NÓVOA, p. 33, 2009)
 
Como medida para organização da docência, a fim de qualificar e retomar o prestígio do
trabalho pedagógico, Nóvoa (2009) corrobora com Pat Hutchings e Mary Taylor Huber, sobre a
necessidade do reforço às “comunidades de prática”. Segundo os autores:
 
Pat Hutchings e Mary Taylor Huber (2008) têm razão quando referem a
importância de reforçar as comunidades de prática, isto é, um espaço conceptual
construído por grupos de educadores comprometidos com a pesquisa e a
inovação, no qual se discutem ideias sobre o ensino e aprendizagem e se

11
Projetos Escola Sem Partido no Brasil. Disponível em: <
https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=1AbaBXuKECclTMMYcvHcRphfrK9E&ll=-18.09378639335667%2C
-42.16023121943567&z=3 > (acessado em: 15 de junho de 2019).
27

elaboram perspectivas comuns sobre os desafios da formação pessoal,


profissional e cívica dos alunos. (NÓVOA, 2009, p. 21)
 
No contexto apresentado neste estudo, embora os efeitos do PL ESP alcancem cada
profissional na sua forma subjetiva, os impactos comuns a todos/as os/as profissionais exigem
posturas comprometidas no combate a essas propostas, organizadas no âmbito coletivo. Pois,
 
Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática, reforça-se
um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial para que
os professores se apropriem dos processos de mudança e os transformem em
práticas concretas de intervenção. É esta reflexão colectiva que dá sentido ao seu
desenvolvimento profissional. (NÓVOA, 2009, p. 21)
 
 
Levar a discussão, vivenciada, construída e discutidas pelos/pelas professores/as a partir
dessas práticas de reflexão coletiva, feitas nos diversos espaços, além de contribuir para a
construção de um saber formativo dentro da profissão, auxilia a construir um campo de
compreensão social multifacetado sobre os diversos processos educativos que permeiam teorias,
abordagens e métodos. É com a contribuição dos sujeitos ativos envolvidos nesse processo, que
conhecem a realidade da educação pública no Brasil, que os projetos de ensino devem ser
reformulados a fim de trazer benefícios para toda a sociedade.
Contrário a isso, o PL ESP desorienta as ações, os sentidos e anula a existência dos
diferentes corpos e mentes que constituem a escola. À medida que pretende levar os/as
professores/as à julgamento, condena, concomitantemente, os estudantes à uma formação precária
e alienada nos propósitos de uma formação cidadã que requer, necessariamente, uma formação
crítica, reflexiva e política. O combate aos conteúdos considerados “marxistas”, tais como os
estudos de gênero, desigualdades, diversidade religiosa, revela o empenho das classes dominantes
em manter as suas estruturas conservadoras, o que reverbera na anulação da diversidade a ser
considerada e afirmada como grupo de direitos. A despreocupação dos idealizadores do PL ESP
com o futuro da profissão docente e da Educação Pública no Brasil exige de nós, educadores/as,
uma postura mental crítica e o reforço dos movimentos coletivos, que comuniquem seu trabalho e
envolvam a sociedade na defesa dos seus direitos como sujeito, professor/a e estudante. O
esquema abaixo ilustra as dimensões favorecidas e favoráveis ao fortalecimento da profissão no
contexto de ataque à profissão.
 
28

 
Esquema organizado pela autora (2019)
 
Evidencia-se nesse esquema não só o conhecimento técnico da profissão, mas o reforço à
dimensão pessoal, histórica, social e cultural inerente à ela. Todas essas dimensões perpassam o
trabalho coletivo na reconstrução dos sentidos da profissão. Os espaços formativos, tais como
Universidades, núcleos de movimentos sociais, comunidades escolares, devem unir-se para
combater todos os projetos, sejam de níveis municipais, estaduais ou nacionais, que visam
depreciar a Educação, de maneira organizada e inteligível. É na mobilização dessas disposições
que produziremos os conhecimentos e a força necessária para ser resistência contra qualquer ideal
que não corrobora os princípios de liberdade democrática, com ensino plural, e com o respeito à
diversidade.

REFERÊNCIAS

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da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental.

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<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752>. Acesso
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Câmara dos deputados. Izalci. ​Projeto de Lei n. 867/2015.​ Disponível em:


<http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668>. Acesso
em: 15 junho 2019.
29

CAMPOS, Casemiro de Medeiros. ​Saberes docentes e autonomia de professores.​ Petrópolis, RJ:


Vozes, 2007.

CERQUEIRA, T. et al. (2004). ​O autoconceito e a motivação na constituição da subjetividade:


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