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Editora Lumen Juris

Rio de Janeiro
2019
Copyright © 2019 by
Marcus Lívio Gomes
Luís Eduardo Schoueri

Categoria: Direito Financeiro e Tributário

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


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Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

T822t

A tributação internacional na Era pós-BEPS / coordenadores: Marcus


Lívio Gomes, Luís Eduardo Schoueri. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Lumen
Juris, 2019.
344 p. ; 23 cm.

Inclui bibliografia ao final de cada artigo.

ISBN 978-85-519-1597-4

1. Direito internacional. 2. Direito tributário. 3. Tributação. I. Gomes,


Marcus Lívio. II. Schoueri, Luís Eduardo. III. Título.

CDD 343

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Nota à 2a edição

Prof. Marcus Livio Gomes


Nos últimos três anos, desde a edição da primeira edição deste livro até
o presente, ocorreram diversas evoluções no Brasil e no mundo no que tange
à interpretação e implementação das ações BEPS.
No Brasil, observa-se que já em 2016 foram abertas consultas públicas
que levaram à edição de instruções normativas que dispõem sobre:
(i) Definição de atividade econômica substantiva para fins de identifi-
cação de regimes fiscais privilegiados:
De acordo com a exposição de motivos da Receita Federal1 “No âmbito
do Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), criado pelo G20 em
parceria com a OCDE, com objetivo de prevenir a erosão da base tri-
butável de lucros de garantir que as atividades econômicas estivessem
sendo tributadas onde estivessem gerando valor, o conceito de substân-
cia econômica foi amplamente discutido, especialmente na Ação 5, que
trata do combate às práticas tributárias danosas”. Assim, o objetivo
de incluir esta definição na Instrução Normativa 1037/2010 que trata
dos paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados era deixar claro o
entendimento de que, quando uma holding desenvolve atividade eco-
nômica substantiva para fins brasileiros deve existir recursos humnos
e materiais dispiníveis “Ao estabelecer critérios objetivos de recursos
humanos e materiais compatíveis com as atividades realizadas, o con-
ceito de substância econômica permite a extensão de incentivos fiscais
a atividades essencialmente gerenciais, que não representam compra
ou venda de bens ou serviços.”2
(ii) Procedimento Amigável no Âmbito das Convenções e dos Acordos
Internacionais Destinados a Evitar a Dupla Tributação:
Embora os tratados assinados pelo Brasil tenham cláusula que preve-
ja o Procedimento Amigável (mais conhecido em inglês como Mutual
Agreement Procedure – MAP) - embora com algumas peculiaridades
locais como a ausência da cláusula arbitral - essa cláusula sempre foi
pouco utilizada por parte dos contribuintes brasileiros.

1 Consulta Pública RFB 7/2016, disponível em http://receita.economia.gov.br/sobre/consultas-


publicas-e-editoriais/consulta-publica/arquivos-e-imagens/consulta-publica-rfb-ndeg-07-2016.pdf
2 Ob cit
Conforme exposição de motivos da Receita Federal3, “Atualmente, o
procedimento amigável não se encontra disciplinado em norma espe-
cífica da RFB, muito embora esse fato não tenha prejudicado a análise
por parte da Administração Tributária de casos apresentados. Contu-
do, cumpre observar que a integralidade dos casos submetidos a proce-
dimento amigável hoje sob análise advém do exterior. Esse dado pode
estar relacionado ao desconhecimento do sujeito passivo residente no
Brasil da possibilidade do procedimento amigável. Assim, a primeira
motivação da proposta de IN é dar maior transparência ao procedi-
mento amigável ao sujeito passivo, indivíduos ou empresas, residen-
tes no Brasil, de modo que possam melhor usufruir dos benefícios dos
ADT.” Acrescenta-se que conforme reconhecido pelas autoridades fis-
cais, a Ação 14 que trata do MAP “se insere o padrão mínimo para
soluções de controvérsias entre Estados Contratantes constante do re-
latório da Ação 14. Foi nesta ação que os países participantes do Projeto
BEPS acordaram mudanças importantes em sua abordagem de resolu-
ção de controvérsias por meio de padrão mínimo que visa garantir que:
i) as obrigações do ADT relacionadas ao procedimento amigável se-
jam implementadas na boa fé e que os casos sejam resolvidos de modo
rápido; ii) os processos administrativos que promovem a prevenção
e rápida resolução dos procedimentos amigáveis sejam implementa-
dos; iii) que os contribuintes, quando elegíveis, possam ter acesso ao
procedimento amigável.” Assim, em 2016 foi editada a Instrução Nor-
mativa 1669/2016, posteriormente revogada pela Instrução Normativa
1846/2018, que passou a ser mais clara para os contribuintes.

Em 2017 foi formalizado o pedido de adesão do Brasil à OCDE4 sendo


que em 2019, o Decreto 9.920 Institui o Conselho para a Preparação e o Acom-
panhamento do Processo de Acessão da República Federativa do Brasil à Or-
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE.
O ponto crítico para tal adesão do ponto de vista tributário, já objeto de
diversos debates entre a OCDE e a Receita Federal, são as normas de preços de
transferência (que o Brasil inclusive indicou, no relatório das ações 8-10 em 2015
que não pretendia alterar). Essas ações 8-10 apresentam importantes orientações
para aplicação de preços de transferência aos intangíveis no contexto global.

3 Consulta Pública RFB 8/2016, disponível em http://receita.economia.gov.br/sobre/consultas-


publicas-e-editoriais/consulta-publica/arquivos-e-imagens/consulta-publica-rfb-no-08-2016.pdf
4 https://oglobo.globo.com/economia/brasil-formaliza-pedido-de-adesao-ocde-21415527
No âmbito dos preços de transferência, ainda, a Receita Federal também
instituiu a Declaração País a País (Country by Country Reporting) através da
Instrução Normativa 1681/2016, conforme ação 13 do BEPS, tendo fechado
acordos de troca de informações internacionais com mais de 100 países e ini-
ciado, em 2018, a troca de informações das declarações país a país.
Outra questão do Brasil é que, enquanto diversos países da OCDE assi-
naram o Instrumento Multilateral – Multilateral Instrument da ação 15 do
BEPS, que permite a alteração e atualização automática dos tratados, o Brasil
segue fazendo suas alterações de forma bilateral. Até a presente data, diversos
tratados foram atualizados, seja somente no artigo referente a troca de infor-
mações (como Noruega), seja para alterar definições de serviços técnicos, den-
tre outros (como Argentina) ou incluir uma equiparação de serviços técnicos
a royalties (como Suécia). Ademais, o Brasil assinou novos tratados, ainda não
em vigor com países considerados paraísos fiscais (Emirados Árabes) ou com
regimes fiscais privilegiados (Cingapura) e com Suíça e Uruguai.
No contexto mundial, os principais debates se encontram no âmbito da Ação
1 que trata da economia digital e sua tributação, ação ainda não concluída em de-
finitivo pela OCDE no que tange aos tributos diretos. Isto levou os diferentes pa-
íses a implementar iniciativas unilaterais para a tributação das novas tecnologias.
O Brasil já aplica a tributação na fonte, sendo a solução de consulta sobre
Software as a Service – SaaS 191/2017 inclusive citada em relatório da OCDE
como exemplo desta forma de tributação e assim, e não alterou a forma de
tributar as novas tecnologias em vista do BEPS, diferentemente dos países da
União Europeia e a própria Comissão Europeia que instituíram novos tribu-
tos e fatos geradores. Entretanto, a guerra fiscal local acerca da incidência do
ICMS x ISS sobre as novas tecnologias se acirrou. O Brasil também buscou re-
gulamentar melhor a tributação dos criptoativos principalmente no que tange
às pessoas físicas, objeto da IN 1.188/2019.
Ademais, no que tange aos instrumentos híbridos, novas legislações no
âmbito dos países da União Europeia mudaram o tratamento dado aos Juros
sobre Capital Próprio, proibindo benefícios anteriormente concedidos em vis-
ta da possibilidade de sua dedução no Brasil (conforme ação 2 do BEPS).
A própria OCDE emitiu novas pesquisas e relatórios no âmbito das di-
versas ações.
Desta forma, tornou-se essencial a atualização desta obra.
Sumário

Relatório do Projeto de Pesquisa Coletiva “Base Erosion and Profit


Shifting (BEPS)”, conforme apresentado na 1ª edição desta obra....................... 1
Marcus Lívio Gomes

Parte I - Relatório Geral e Coerência

1. O Projeto BEPS: ainda uma Estratégia Militar .............................................. 31


Luís Eduardo Schoueri 

2. Combate às Práticas Fiscais Danosas e a Soberania Fiscal dos Estados..... 57


Clara Gomes Moreira

3. O Plano de Ação 4 do Projeto BEPS da OCDE –


Limites à erosão da base tributária através da dedução
de juros e outras compensações financeiras........................................................79
Edgar Santos Gomes
Rafael Dinoá Mann Medeiros
Felipe Senges Pereira

4. O Projeto BEPS da OCDE e o Plano de Ação 3: Fortalecimento


das Regras de CFC – suas atualizações no cenário global................................97
Luís Cesar Souza de Queiroz
Ana Paula Saunders

5. Dedutibilidade de Juros e Outros Pagamentos Financeiros -


A Ação 4 do BEPS sob a Ótica dos Países em Desenvolvimento................... 117
Paulo Penteado de Faria e Silva Neto
6. A Ação 2 do Projeto BEPS da OCDE e seus Possíveis Efeitos no Brasil.... 153
Diogo Ferraz Lemos Tavares
Durval Portela
Elidie Palma Bifano
Luis Gustavo Carmona Sanches
Rafael Capanema Petrocchi

Parte II – Substância e Convenção Multilateral

7. From the Guiding Principle to the Principal Purpose Test:


the burden of proof and legal consequences..................................................... 213
Marcus Livio Gomes

8. Intangíveis na Esfera do Transfer Pricing Âmbito do


BEPS e Direito Brasileiro: uma nova Era...........................................................239
Márcio Oliveira
Doris Canen

9. Beps: para quem?Avaliando o Projeto da


OCDE a partir do Princípio Arm’s Length.......................................................259
Raphael Assef Lavez

10. BEPS e o Plano de Ação n. 10: Considerações sobre Serviços


de Baixo Valor Agregado, Método de Commodities e o Método
da Divisão de Lucros Transacionais................................................................... 291
Paulo Ayres Barreto1
Hugo Marcondes Rosestolato da Costa

11. Os Serviços Intragrupo no Plano de Ação 10


do Projeto BEPS e o Contexto Brasileiro........................................................... 317
Paulo Arthur Cavalcante Koury
12. O Controle de Preços de Transferência em Operações
com Intangíveis no Contexto do BEPS e a Perda da
Hegemonia do Princípio Arm’s Length.............................................................345
Roberto Codorniz Leite Pereira

13. Desenvolvimento de um instrumento


multilateral: Ação 15 do Projeto BEPS ..............................................................383
Roberto Duque Estrada
Ana Paula Saunders
Daniel Vieira de Biasi Cordeiro

Parte III – Transparência e Economia Digital

14. O Conceito de Estabelecimento Permanente – Evolução do


Conceito e as Alterações Propostas pelo Plano de Ação 7 do BEPS.............. 413
Ronaldo Apelbaum

15. O Plano de Ação 13 do BEPS: Reflexões sobre o


seu Conteúdo e Aplicação à Realidade Brasileira.............................................437
Vinicius Bentolila
Francisco Lisboa Moreira

16. Desafios à implementação global das regras de mandatory disclosure......459


Stéphanie Samaha

17. O Plano de Ação n° 12 do BEPS e seus


Reflexos na Política Fiscal Brasileira..................................................................483
Fernando Daniel de Moura Fonseca
Júlia Furst Nóbrega de Oliveira

18. Os Problemas Relacionados à Ação nº 11 para o Combate ao BEPS....... 513


Luiz Felipe de Toledo Pieroni
19. O Conflito de Competência entre o ISS
e o ICMS à Luz do RE 688223/PR - BEPS......................................................... 535
Maurine Morgan Pimentel Feitosa

20. A Ação 12 do BEPS e o Fracasso da MP nº 685.......................................... 581


Ricardo Lodi Ribeiro

21. Economia Digital e Estabelecimento Permanente Virtual –


Considerações sobre a Ação 1 ............................................................................ 611
Rodrigo Cipriano dos Santos Risolia
Relatório do Projeto de Pesquisa Coletiva
“Base Erosion and Profit Shifting (BEPS)”,
conforme apresentado na 1ª edição desta obra

Marcus Lívio Gomes


Professor Adjunto de Direito Financeiro e Tributário da
UERJ. Juiz Federal.

Introdução: O Projeto BEPS da OCDE


O presente projeto teve por objetivo examinar as propostas apresentadas
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
à luz da rede de tratados para evitar a dupla tributação celebrada pelo Brasil
(CDTRs) e legislação doméstica em decorrência do Projeto Base Erosion and
Profit Shifting (BEPS), identificando pontos de convergência e distanciamento,
de modo a tornar possível a elaboração de uma pesquisa ampla e profunda
que pudesse servir de base para os operadores do Direito Tributário brasileio.
O Projeto BEPS visa atacar formas de planejamento tributário “agressi-
vo”, em desconexão com as atividades econômicas correlatas, e tem por objetivo
combater o agravamento da erosão da base tributável e atingir uma maior mo-
ralidade tributaria. Tal problemática deu origem a 15 (quinze) planos de ação,
traçados e desenvolvidos pela OCDE, com o apoio do G-20, a fim de atacar
distintas formas de BEPS, utilizadas no sistema tributário internacional. Tais
discussões e trabalhos preparatórios culminaram na publicação de resultados
de tais análises, publicadas em Outubro de 2015, sob a forma de recomendações
finais especificas para cada uma das ações que visam combater tal realidade.
Coerência, substância e transparência passaram a ser tratadas como pi-
lares ideais de um novo sistema tributário internacional. O audacioso projeto
foi recebido com euforia por autoridades fiscais e parte da sociedade civil. Em
contrapartida, as multinacionais e os contribuintes em geral ficaram receosos
das possíveis mudanças legislativas e do respectivo impacto em suas atividades
negociais. Isto porque o projeto tem a pretensão de querer resolver, num curto

1
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

espaço de tempo, uma série de mazelas e inconsistências nas atuais regras de tri-
butação internacional, o que pode provocar resultados ineficazes e temerários.
As recomendações da OCDE, que agiu com mandato do G-20 no âmbito
do Projeto BEPS, causaram grande comoção no sentido de substanciais altera-
ções das atuais regras de tributação internacional. O Brasil, ainda que não seja
membro oficial da OCDE, como integrante do G-20 está diretamente envolvido
com o trabalho e interferiu em sua elaboração. Neste sentido, necessita estar
atento a tais discussões e mudanças de paradigma, pois as regras de tributação
internacional figuram como relevante vetor de atração de investimentos e como
uma das bases para o desenvolvimento de uma economia globalizada.
Contudo, mesmo em pleno século XXI, a ideia da implementação de tais
ações globais nos regimes tributários nacionais, área intimamente relacionada
à soberania nacional, é extremamente audaciosa. Nesse sentido, a análise dos
possíveis impactos do BEPS na legislação tributária nacional é pertinente tan-
to sob o ponto de vista estatal, quanto sob o ponto de vista dos contribuintes,
em especial às sociedades empresarias que realizam operações transnacio-
nais. As autoridades estatais precisam atentar para a forma de implementação
das ações, bem como os contribuintes precisam estar cientes do procedimento
prático de adequação às novas regras, respeitando seus direitos e garantias.
Um dos principais propósitos do Projeto BEPS é estabelecer a coerência
a nível internacional da tributação da renda das pessoas jurídicas. Apesar de
reconhecer que “a política tributária está no cerne da soberania dos países”, o
plano de ações sustenta que, como consequência da globalização, as políticas
tributárias domésticas não mais podem ser “desenhadas isoladamente”.
É questionável, contudo, se a soberania dos Estados está realmente sendo
levada em consideração no desenvolvimento do projeto. O BEPS tem a preten-
são de ser neutro no que diz respeito à discussão sobre a tributação na fonte
versus tributação na residência. Assim, alegadamente, não pretende restringir
o direito do Estado da fonte de tributar determinados rendimentos, nos casos
em que assim foi bilateralmente acordado. No entanto, sob o suposto intento
de se enfrentar o abuso, observa-se uma clara tendência de privilegiar a tribu-
tação na residência em detrimento da tributação na fonte.
Muitos são os exemplos de medidas propostas pelo BEPS que limitam a
capacidade do Estado da fonte de atrair investimentos. Clamando por meca-
nismos capazes de enfrentar as distorções causadas por instrumentos híbri-

2
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dos, o plano de ação conclui pela necessidade de se complementarem as regras


destinadas a evitar a dupla tributação “com um conjunto de padrões funda-
mentalmente novo desenhado para estabelecer a coerência na tributação da
renda das pessoas jurídicas”.
Enquanto o descasamento na qualificação de rendimentos entre os países
é considerado danoso porque reduz o montante global pago pelo contribuinte,
os efeitos das soluções adotadas no sentido de privilegiar a tributação na resi-
dência são imediatos. As alternativas propostas, como um todo, atribuem ao
Estado da residência a decisão a respeito de eliminar ou não a situação de du-
pla (não) tributação. Apesar de esta opção privilegiar o Estado da residência,
o plano de ação reconhece que “pode ser difícil determinar qual país de fato
perdeu receita tributária”.
O Projeto BEPS também implica larga discricionariedade para as Adminis-
trações Tributárias, o que tem sido amplamente questionado no âmbito dos países
desenvolvidos e adquire contornos ainda mais preocupantes em países cujas insti-
tuições encontram-se em estágios menos avançados de desenvolvimento.
A transparência almejada pelo BEPS diz respeito tão somente aos contri-
buintes e não se adequa à necessidade dos países subdesenvolvidos, em que é
necessário proteger-se também o contribuinte contra o seu próprio Estado ou,
ainda mais dramaticamente, contra terceiros Estados. Quando as instituições
democráticas falham em proteger as garantias fundamentais de seus próprios
cidadãos, ampliar o poder dos Estados contra os indivíduos sob a prerrogativa
de aumentar-se a arrecadação soa desproporcional.
O trabalho da OCDE nos diferentes tópicos dos planos de ações suposta-
mente inclui “um processo de consulta inclusivo e transparente”, assim como
“um diálogo de política de alto nível com todas as partes interessadas”. Nes-
te sentido, este projeto de pesquisa também debate o processo decisório no
âmbito do BEPS e o verdadeiro nível de participação da sociedade civil nos
resultados trazidos nos relatórios.
Com este propósito, o projeto de pesquisa ora apresentado buscou exa-
minar, caso a caso, a compatibilidade entre as propostas lançadas pela OCDE,
no contexto do Projeto BEPS, com o direito tributário brasileiro, sempre con-
siderando as muitas idiossincrasias da Constituição da República de 1988 e
também os interesses de defesa da base tributável nacional, tendo como foco
a compatibilidade deste projeto com a rede de tratados para evitar a dupla tri-

3
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

butação celebrada pelo Brasil e sua legislação doméstica concernente às regras


de tributação internacional.
Com isso, objetiva-se traçar ações e alternativas a serem apresentadas a
órgãos da sociedade civil e, eventualmente, ao Poder Legislativo, para garantir
a racionalidade das regras de tributação internacional brasileiras, bem como
assegurar que uma eventual internalização de regras construídas e pensadas
para ordenamentos distintos sejam internalizadas no Brasil sem um prévio
juízo crítico, evitando-se inconstitucionalidades e até mesmo o surgimento de
novos embates judiciais entre Fisco e contribuintes.
Nesse particular, o principal problema enfrentado pela pesquisa foi iden-
tificar quais as recomendações derivadas do Projeto BEPS são compatíveis
com nosso sistema tributário, bem como a forma pela qual as mesmas pode-
riam ser internalizadas ou, se não compatíveis, os mecanismos pelos quais os
efeitos negativos de tais incongruências poderiam ser neutralizados, no intui-
to de não acarretarem perda de competitividade para a economia brasileira.
Em especial, a possibilidade de celebrar um tratado multilateral que afetará
toda a rede de tratados para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil,
distintos entre si pelo fato de terem sido assinados ao longo de cinco décadas.

Justificativa: A erosão da base tributária e as mudanças


na tributação internacional de pessoas jurídicas
(Base Erosion and Profit Shifting)
O fenômeno da globalização aumentou a integração das economias na-
cionais, apresentando relevantes impactos ao redor do globo. Naturalmente,
as atividades transnacionais apresentam consequências no âmbito da tribu-
tação interna, pela necessária interação entre sistemas tributários. De modo
a não permitir que a tributação internacional representasse um entrave ao
comércio global, ao longo do século XX foram criadas regras para reduzir os
impactos da bitributação em situações pertinentes a mais de uma jurisdição.
Ocorre que diminuídas as hipóteses de dupla tributação, grandes contri-
buintes passaram a praticar planejamento tributário de forma ousada, além
de evasão fiscal, de forma a reduzir ou eliminar a carga tributária sobre suas
atividades. Ademais, a redução de distâncias e fronteiras, assim como a mo-

4
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

bilidade de capital, mudaram a forma como negócios são realizados e como


lucro é gerado, não permitindo que as regras de tributação conseguissem
acompanhar tais mudanças.
Com isso, ao longo dos anos, tem se tornado clara a obsolescência do sis-
tema tributário internacional. Em consequência dos complexos problemas cor-
relatos à maior integração da economia, percebeu-se que apenas um sistema de
governança global poderia vir a intervir nas ações desses grandes contribuintes,
visto que as legislações nacionais são falhas em muitas situações relativas a ne-
gócios transnacionais, deixando brechas que permitem a indesejada não tribu-
tação dessas atividades. Para enfrentar tais práticas abusivas, que prejudicam
negócios, contribuintes e governos de forma geral, considerou-se necessário de-
senvolver tal processo de cooperação entre diferentes atores e níveis.
Visando combater o agravamento do problema da erosão da base tribu-
tável das nações em razão de planejamentos tributários internacionais tidos
como “agressivos”, a OCDE publicou em 12 de fevereiro de 2013, por provo-
cação do G-20, estudo intitulado “Endereçando a erosão da base tributável e a
transferência artificial de lucros”1.
Nesse documento, que gerou grande repercussão no plano internacional,
foi intentado o dimensionamento das perdas enfrentadas pelos Estados em de-
corrência do que se convencionou denominar de BEPS (Base Erosion and Profit
Shiffting). Essa problemática deu origem a diversos planos de ação, traçados e
desenvolvidos no âmbito da própria OCDE, por mandato do G-20, os quais
tiveram seus resultados e recomendações publicados no curso do ano de 20152.
Restando claro que uma vez trazidas a lume as recomendações da OCDE
no âmbito do Projeto BEPS vêm dando lugar a um forte movimento de altera-
ção das regras de tributação internacional, e considerando o interesse brasilei-
ro de participar nos mercados internacionais, importando e exportando capi-
tal e produtos, parece inegável o interesse do Brasil na realização de pesquisas
de profundidade com relação a essa nova conjuntura internacional.

1 OECD, Addressing Base Erosion and Profit Shifting (OECD Publishing 2013), Disponível em:
http://www.oecd.org/tax/addressing-base-erosion-and-profit-shifting-9789264192744-en.htm.
Consulta em: 27/12/2015.
2 Final Reports. Disponível em: http://www.oecd.org/ctp/beps-2015-final-reports.htm. Consultado
em: 01/04/2016.

5
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Além dos instrumentos híbridos, já referenciados, outro bom exemplo dos


desencontros que saltam aos olhos quando se compara a realidade brasileira
com a vivência internacional é que em 13 de maio de 2014, por meio da Lei nº
12.973/2014, o Brasil alterou as regras de tributação da renda em bases universais,
tema que foi amplamente analisado no bojo do Plano de Ação 3 do Projeto BEPS,
onde se chegou a conclusões incompatíveis com as novas regras brasileiras.
Em síntese, buscou-se ressaltar a relevância do exame crítico das propo-
sições do Projeto BEPS em face do contexto brasileiro, bem como da análise
segregada do relevo que se pode (ou não) imprimir às conclusões deste projeto
em relação ao ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, parece ser esse o
papel mais relevante a ser exercido pelo estudo doutrinário do direito em face
de um contexto tão propenso a análises apressadas.
Como o tema é global, cada alteração unilateral ou mesmo de apenas
um grupo de países ou região, poderá significar um retrocesso, acarretando
inclusive a indesejada dupla tributação ou mesmo a falta de tributação, efeitos
que são desde há muito tempo as grandes preocupações das nações em termos
de circulação de riqueza e tributação internacional.
E essas são apenas algumas das muitas incompatibilidades que se so-
bressaem em uma primeira e ainda superficial comparação entre as normas
brasileiras de tributação internacional e a realidade internacional. Quando
tomamos em conta o nível cada vez crescente de internacionalização da eco-
nomia brasileira, tais diferenças têm efeitos lógicos: (i) a perda de competiti-
vidade das empresas brasileiras para acessar mercados internacionais; e (ii) a
perda de atratividade do Brasil para atrair investimentos produtivos externos.

Objetivo: Projeto de Pesquisa Coletiva BEPS


Uma vez publicadas as recomendações da OCDE com vistas ao combate à
erosão da base tributável e a alocação artificial de lucros, restou claro que muitas
e significativas alterações legislativas seriam necessárias para que os sistemas
tributários europeus, bem como dos demais países membros da OCDE, a elas
se adequassem, o que se aplica à extensa rede de tratados para evitar a dupla
tributação celebrados por todos os países envolvidos direta e indiretamente nos
trabalhos, que visam combater o planejamento tributário agressivo.

6
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O projeto de pesquisa dedicou-se a examinar a viabilidade de haver polí-


ticas tributárias harmonizadas no presente contexto de diversidade econômi-
ca, social e política entre os países. Expõe-se, assim, o quão enviesado é o Pro-
jeto BEPS, no sentido de privilegiar a tributação na residência e limitar a tri-
butação na fonte, sob a máscara de se tratar de medidas anti-abuso. Também
discutiu a ampla discricionariedade atribuída às Administrações Tributárias,
por meio das leis domésticas e cláusulas de acordos sugeridas pelo BEPS, em
detrimento dos direitos fundamentais dos contribuintes. Outrossim, o caráter
supostamente inclusivo do Projeto BEPS, e de seus correlatos planos de ações,
como um todo, também são questionados.
Pretendeu-se, assim, desenvolver uma perspectiva crítica sobre as medidas
de harmonização sugeridas por organizações internacionais, utilizando-se como
método a discussão dos planos de ações. A discussão da adequação de medidas
multilaterais ao presente cenário é um pano de fundo comum a todos os debates.
Com efeito, o conteúdo da análise do projeto de pesquisa compreende: (i)
Action 01: Digital economy; (ii) Action 02: Hybrid mismatch arrangements; (iii) Ac-
tion 03: CFC rules; (iv) Action 04: Limit base erosion via interest deductions and
other financial payments; (v) Action 05: Harmful Tax Practices, Transparency and
Substance; (vi) Action 06: Prevent treaty abuse; (vii) Action 7: Prevent the artificial
avoidance of PE status; (viii) Actions 08, 09, 10: Assure Transfer Pricing and va-
lue creation; (ix) Action 11: Establish methodologies to collect and analyze data on
BEPS and the actions to address it; (x) Action 12: Require taxpayers to disclose their
aggressive tax planning arrangements; (xi) Action 13: Re-examine transfer pricing
documentation; (xii) Action 14: Make dispute resolution mechanisms more effecti-
ve; e (xiii) Action 15: Develop a multilateral instrument.
Quanto ao Brasil, resta nítido que o país tem seu sistema tributário cons-
truído sobre bases e premissas próprias, muitas vezes distintas daquelas sobre
as quais se debateram as propostas do Projeto BEPS, o que o levou a celebrar
tratados para evitar a dupla tributação seguindo uma política fiscal própria,
no contexto de um país em desenvolvimento que busca atrair investimentos,
incluindo, por exemplo, cláusulas de matching credit e tax sparing, verdadei-
ros benefícios fiscais aos investidores internacionais que buscam a jurisdição
brasileira para investir. Nesta senda, convém questionar qual o grau de aplica-
ção do Projeto BEPS à nossa jurisdição?

7
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Isso põe o Brasil em uma situação peculiar frente a seus concorrentes


internacionais, uma vez que:
I. Visando evitar a perda de competitividade, o país precisa ter regras
compatíveis com as práticas internacionais, de modo a não gerar inefi-
ciências que não existam nas demais jurisdições;
II. As novas recomendações da OCDE, apesar de não serem universal-
mente aceitas in totum, estão na agenda da comunidade internacional,
com destaque para a Europa, onde diversas diretrizes já foram inclusi-
ve internalizadas unilateralmente por algumas jurisdições, com desta-
que para Holanda, Inglaterra e Irlanda3.
III. Essas mesmas recomendações figuram como aperfeiçoamentos para
sistemas tributários já existentes, sistemas esses que são substancial-
mente distintos do brasileiro, onde se destaca a existência de uma cons-
tituição profundamente analítica, mormente em matéria tributária.
IV. Dada as diferenças estruturais e sistêmicas existentes entre o sistema
tributário brasileiro e os sistemas tributários da maioria dos países
membros da OCDE, as propostas de aperfeiçoamento desses últimos
podem, ou não, ser compatíveis com o sistema tributário brasileiro.
V. A recepção de um convênio multilateral poderá afetar uma rede in-
ternacional de mais de 3.000 tratados para evitar a dupla tributação,
provocando, em tese, conflitos de aplicação/interpretação da legislação
tributária e, consequentemente, novas hipóteses de dupla tributação e/
ou dupla não tributação.

Logo, ainda que seja de interesse do Brasil adequar-se às práticas inter-


nacionais, ou, ao menos, neutralizar eventuais efeitos negativos decorrentes
das incompatibilidades existentes, não é prudente uma simples internalização
das mais recentes diretrizes.

3 É interessante o caso dos EUA, que pretendem adotar algumas, mas não todas as medidas. Isso
evidencia que esse país percebe que nem sempre tem a ganhar com o BEPS. Afinal, quando um país
de fonte evita BEPS e com isso aumenta sua tributação, os EUA, como país de residencia, acabam
por ter de dar maior crédito, por causa do maior imposto pago no exterior. Nesse sentido, há um
nítido conflito de interesses, a evidenciar que o BEPS será “digerido” de forma distinta pelos países
desenvolvidos vis-à-vis países em desenvolvimento.

8
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Pelo contrário, é necessária a realização de um estudo quanto à com-


patibilidade ou não das aludidas recomendações com o Sistema Tributário
Constitucional brasileiro, além de outras considerações de ordem política e
econômica, para que se possa decidir de forma prudente quanto à conveniên-
cia de internalizá-las, ou mesmo quanto aos possíveis mecanismos de que o
país dispõe para neutralizar efeitos negativos decorrentes da manutenção das
disparidades de regramento.
Dada essa conjuntura, e considerando que as regras de tributação inter-
nacional figuram como relevante vetor de atração de investimentos, e também
como uma das bases para o desenvolvimento de uma economia globalizada,
como a do Brasil, é de clareza solar a atualidade e utilidade de pesquisas que
versem sobre essa temática.
Em particular, o objeto da pesquisa foram as recomendações derivadas
do projeto BEPS vis-à-vis sua compatibilidade com nosso sistema tributário,
rede de tratados para evitar a dupla tributação e legislação doméstica brasilei-
ra, bem como a forma pela qual elas poderiam ser internalizadas ou, se não
compatíveis, os mecanismos pelos quais os efeitos negativos de tais incongru-
ências poderiam ser neutralizados, no intuito de não acarretarem perda de
competitividade para a economia brasileira. Em especial, a possibilidade de
celebrar um tratado multilateral que afetará toda a rede de CDTRs celebra-
dos, e também a legislação doméstica brasileira, distintos entre si pelo fato de
terem sido assinados ao longo de cinco décadas.
Nesse contexto, o presente projeto teve o objetivo geral de identificar pon-
tos de convergência e distanciamento, de modo a tornar possível a elaboração
de uma pesquisa que pudesse sindicar todos os quinze planos de ação do Pro-
jeto BEPS, sempre considerando as muitas idiossincrasias da Constituição da
República de 1988 e também os interesses de defesa da base tributável nacional,
visando a otimização das normas brasileiras de tributação internacional, bem
como a compatibilização das mesmas com as novas tendências internacionais.
Os objetivos específicos foram traçar alternativas e proposições a serem
apresentadas, na forma de subsídios doutrinários, a órgãos da sociedade civil,
Poder Legislativo, Poder Judiciário e instituições públicas do Ministério da
Fazenda, tais como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, a Secreta-
ria da Receita Federal e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, de forma
a garantir a racionalidade das regras de tributação internacional brasileiras,

9
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

rede de tratados e legislação doméstica, bem como assegurar que uma even-
tual internalização de regras construídas e pensadas para ordenamentos dis-
tintos sejam internalizadas no Brasil sem um prévio juízo crítico, evitando-
-se inconstitucionalidades e ilegalidades e até mesmo o surgimento de novos
embates judiciais entre Fisco e contribuintes.

Convênios de Cooperação Acadêmica


Interinstitucional: VALE e UERJ
A presente pesquisa está inserida no bojo de um projeto acadêmico mui-
to maior, que engloba a empresa VALE S/A (VALE) e o Programa de Pós-
-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPG-
DirUERJ). A VALE, uma das mais expressivas multinacionais brasileiras, de-
cidiu se antecipar às discussões governamentais e fomentar o conhecimento
acadêmico a respeito do assunto.
Com este desiderato, a UERJ e a VALE celebraram em 10/09/2013 Con-
vênio de Cooperação Acadêmica inédito com o intuito de implementar uma
Cátedra de Direito Público no âmbito do PPGDirUERJ. A justificativa da
cátedra é a promoção do avanço do conhecimento nas áreas do Direito Tri-
butário e Direito Regulatório, com foco nos grandes segmentos econômicos
nacionais, por meio da execução de projetos de pesquisa (monografias, dis-
sertações e teses), da formação de recursos humanos e da disseminação dos
conhecimentos gerados.
A VALE teve como objetivo tornar-se pioneira na aproximação do em-
presariado nacional com a academia, investindo recursos financeiros para con-
tribuir com a formação de pesquisadores de alto nível no âmbito do Programa
de Pós-Gradução Stricto Sensu, mestrado e doutorado, da UERJ. Espera-se que
as pesquisas produzidas possam subsidiar os formuladores de políticas fiscais,
Ministério da Fazenda e Secretaria da Receita Federal, assim como os órgãos
encarregados de julgar as controvérsias fiscais, Poder Judiciário e Conselho Ad-
ministrativo de Recursos Fiscais-CARF na melhor solução das lides.
A Cátedra de Direito Público é um projeto pioneiro de cooperação Uni-
versidade-Empresa (VALE/UERJ), a qual envolve a realização de congressos,
seminários, workshops, publicação de livros e monografias, projetos de pes-

10
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

quisas individuais e coletivos e, especialmente, bolsas de estudos e produtivi-


dade para pesquisadores internos e externos, alunos do mestrado e doutora-
do, assim como docentes da UERJ.

Metodologia e Plano de Trabalho: Estrutura


do Projeto de Pesquisa Coletiva BEPS
Com a finalidade de integrar a Cátedra de Direito Público com as ativi-
dades do PPGDirUERJ, foram incluídas na grade do mestrado e doutorado da
Linha de Pesquisa Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento as dis-
ciplinas “Tributação Internacional-BEPS” e Direito Tributário Comparado-
-BEPS”, sob a coordenação do Professor Marcus Lívio Gomes, Pesquisador-
-Líder da Linha de Pesquisa em Direito Tributário desta Cátedra de Direito
Público, envolvendo os alunos do mestrado e doutorado e pesquisadores que
participaram do projeto de pesquisa coletiva.
Desde que a Linha de Pesquisa em Finanças Públicas, Tributação e Desen-
volvimento do PPGDirUERJ foi criada, não havia sido implementado grupo de
pesquisa institucional, como disciplina do mestrado e doutorado, sobre a Tri-
butação Internacional com foco no BEPS. Com efeito, as bolsas de estudo e pro-
dutividade, assim como os recursos financeiros para as atividades acadêmicas,
propiciadas aos alunos da Cátedra de Direito Público – pesquisadores, mestran-
dos, doutorandos e docentes - derivadas dos recursos financeiros do Convênio
de Cooperação VALE/UERJ – poderão mudar este panorama, iniciando um
ciclo de produção acadêmica sobre a temática do BEPS, transformado a UERJ
num centro de referência nacional sobre o Direito Tributário Internacional.
Em razão da Cátedra, foram formados grupos de estudos para cada um
dos planos de ação desenvolvidos pela OCDE no Projeto BEPS, os quais conta-
ram com a participação de alunos do mestrado e doutorado da UERJ e da USP,
professores da UERJ, USP, PUCRS, FGVSP, FGVRJ e Complutense de Madrid,
advogados brasileiros e estrangeiros (Holanda e Argentina), consultores de di-
versas grandes empresas nacionais e internacionais e Procuradores da Fazen-
da Nacional, cujo material foi gravado e disponibilizado, junto com as apre-
sentações, através do link: https://www.youtube.com/watch?v=CY922IIZh4U.

11
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em paralelo, desenvolvia-se no Departamento de Direito Econômico,


Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP a Linha de Pesquisa
“Argumentação e Decisão na Reconstrução de um Sistema Tributário Justo,
Eficiente e Competitivo”, no âmbito da qual se propôs o Projeto Acadêmico
“Inserção do Sistema Tributário num Cenário de Competição Internacional:
A Proteção de Investimentos Estrangeiros no Brasil e de Investimentos Brasi-
leiros no Exterior”. Fruto de tal pesquisa, os Professores Luís Eduardo Schou-
eri e Roberto Quiroga Mosquera ofereceram, no segundo semestre de 2015,
a disciplina de pós-graduação (mestrado e doutorado) intitulada “Políticas
Tributárias Harmonizadas em um Mundo Diversificado: para além do BEPS”,
com amplo estudo da doutrina estrangeira, gerando uma série de monogra-
fias atualizadas sobre o tema.
Diante da coincidência dos estudos em ambas as universidades públicas,
pareceu natural que, no ano de 2015, fosse celebrado Convênio de Cooperação
Interinstitucional USP/UERJ, envolvendo Projeto de Pesquisa Coletiva na USP
sobre o Projeto BEPS, coordenado pelos Professores Luís Eduardo Schoueri e
Marcus Livio Gomes, com diversas atividades culminando com a realização de
aula conjunta por videoconferência entre os alunos destas instituições, assim
como a integração das pesquisas dos alunos da USP na presente obra coletiva.
Quanto ao plano de trabalho, assumiu-se a estrutura de pesquisa coleti-
va, objetivando formar grupos de pesquisadores comprometidos com a estru-
tura metodológica e objetivos do Projeto BEPS. No curso das atividades dos
grupos de estudos criados para cada um dos quinze planos de ação, foram
realizadas reuniões, objetivando-se discutir o andamento da pesquisa, bem
como a relação dos dados obtidos com o suporte teórico que sustentaram os
debates. Os grupos foram responsáveis pela elaboração de trabalhos finais,
contendo os principais resultados e conclusões das pesquisas, além das apre-
sentações temáticas nos seminários.
Neste contexto, no primeiro semestre de 2015 foram realizados quatorze
(14) seminários, sob a coordenação do Professor Marcus Lívio Gomes, para
discutir os trabalhos de cada grupo de estudo, no âmbito do Convênio de Co-
operação VALE/UERJ. Os seminários foram abertos à comunidade jurídica,
com entrada franca, realizados no Rio de Janeiro, a fim de debater cada uma
das ações do Projeto BEPS, entre 24 de agosto e 27 de novembro de 2015.

12
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Foram realizados os seguintes painéis, assim como estruturados os se-


guintes textos:
>> Ação 1 do Projeto BEPS: Os desafios fiscais da economia digital.
>> Pesquisadores do Seminário: Ernesto Johannes Trouw, Isabel Cunha,
Leonardo Homsy e Victor Polizeli;
>> Pesquisadores do Textos: Guilherme Silva Galdino, Maurine Morgan
Pimentel de Oliveira, Ricardo André Galendi Júnior e Rodrigo Cipria-
no dos Santos Risolia;
>> Ação 2 do Projeto BEPS: Os efeitos dos instrumentos híbridos.
>> Pesquisadores do Seminário: Diogo Ferraz, Durval Portela, Elidie Palma
Bifano, Gustavo Carmona Sanches e Rafael Capanema Petrocchi;

Pesquisadores do Textos: Débora Alexandroni Mare, Diogo Ferraz, Durval


Portela, Elidie Palma Bifano, Gustavo Carmona Sanches, Luís Eduardo Schoue-
ri, Rafael Capanema Petrocchi, Ramon Tomazela Santos e Renata Emery;
>> Ação 3 do Projeto BEPS: Como fortalecer as regras CFC.
>> Pesquisadores do Seminário: Ana Paula Braga Saunders, Luís César
Souza de Queiroz, Marcus Lívio Gomes, Renata Cunha Santos Pinhei-
ro e Renata Ribeiro Kingston;
>> Pesquisadores dos Textos: Ana Paula Braga Saunders, Diogo de Andra-
de Figueiredo, Marcus Lívio Gomes, Renata Cunha Santos Pinheiro,
Renata Ribeiro Kingston, Sergio André Rocha;
>> Ação 4 do Projeto BEPS: As deduções de juros e outras compensações
financeiras.

Pesquisadores do Seminário: Edgar Santos Gomes, Felipe Senges Pereira


e Rafael Dinoá Mann Medeiros;
Pesquisadores dos Textos: Edgar Gomes, Felipe Senges Pereira, Paulo
Penteado de Faria e Silva Neto, Phelippe Toledo Pires de Oliveira, Rafael Di-
noá Mann Medeiros e Renata Emery;
>> Ação 5 do Projeto BEPS: As práticas tributárias prejudiciais. Transpa-
rência e Substância.

13
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Pesquisadores do Seminário: André Oliveira, Gustavo Alves, João Dácio


Rolim e Kristal Schneeweiss;
Pesquisadores dos Textos: Clara Gomes Moreira, Frederico A. Fonse-
ca, João Dácio Rolim e Kristal Heine Schneeweiss;
>> Ação 6 do Projeto BEPS: Utilização abusiva dos tratados.

Pesquisadores do Seminário: Alberto Xavier, Carlos Renato Vieira, Flavio


Eduardo Carvalho, Gustavo Noronha, Jose Manuel Almudi Cid, Lucia Sahin,
Marcos André Vinhas Catão, Raquel Alves e Renata Emery;
Pesquisadores dos Textos: Carlos Renato Vieira, Flavio Eduardo Carva-
lho e Pedro Augusto do Amaral Abujamra Asseis;
>> Ação 7 do Projeto BEPS: Recusa artificial ao Estabelecimento permanente.

Pesquisadores do Seminário: André Carvalho, Paulo Caliendo, Raphael


Furtado, Richard Dotoli e Rodrigo Caldas;
Pesquisadores dos Textos: André Carvalho, Paulo Caliendo, Raphael
Furtado, Richard Dotoli, Rodrigo Caldas e Ronaldo Apelbaum;
>> Ações 8 e 9 do Projeto BEPS: As regras de Transfer Pricing e a tributa-
ção dos intangíveis.

Pesquisadores do Seminário: Doris Canen, Márcio Ávila e Márcio Oliveira;


Pesquisadores dos Textos: Doris Canen, Márcio Oliveira, Raphael Assef
Lavez e Roberto Codorniz Leite Pereira;
>> Ações 10 e 13 do Projeto BEPS: As regras de Transfer Pricing e as ações
que aumentam o valor de produtos, serviços e negócios pela transfe-
rência de operações de alto risco.

Pesquisadores do Seminário: Francisco Lisboa Moreira, Hugo Marcondes


Rosestolato da Costa, Paulo Ayres Barreto e Vinicius Bentolila de Almeida;
Pesquisadores dos Textos: Débora Ottoni Uébe Mansur, Francisco Lis-
boa Moreira, Gabriel Gervason Resende, Hugo Marcondes Rosestolato da
Costa, Natália Barbosa Alves, Paulo Arthur Cavalcante Koury, Paulo Ayres
Barreto e Vinicius Bentolila de Almeida;

14
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

>> Ação 11 do Projeto BEPS: As metodologias para coleta e análise de da-
dos sobre os fenômenos econômicos do BEPS.

Pesquisadores do Seminário: Agostinho Netto, Juliana Candido e Mar-


cus Lívio Gomes;
Pesquisadores dos Textos: Agostinho Netto, Juliana Candido e Luiz Fe-
lipe de Toledo Pieroni;
>> Ação 12 do Projeto BEPS: Orientações aos contribuintes para que noti-
ciem seus planejamentos tributários agressivos

Pesquisadores do Seminário: Fábio Fraga, Mário Nascimento, Michel


Batista, Ricardo Lodi Ribeiro e Roberto Haddad;
Pesquisadores dos Textos: Fernando Daniel de Moura Fonseca, Mario Nas-
cimento Souza Neto, Michel Batista, Ricardo Lodi Ribeiro e Stéphanie Samaha;
Ação 14 do Projeto BEPS: Mecanismos de solução de conflitos.
Pesquisadores do Seminário: Donovan Mazza Lessa, Fernando Raposo
Franco e Priscila Faricelli de Mendonça;
Pesquisadores dos Textos: Alina Miyake, Donovan Mazza Lessa, Fer-
nando Raposo Franco e Priscila Faricelli de Mendonça;
>> Ação 15 do Projeto do Projeto BEPS: BEPS: Desenvolvimento de um
Instrumento Multilateral.

Pesquisadores do Seminário: Ana Paula Braga Saunders, Daniel Vieira


de Biasi Cordeiro, Moisés Carvalho, Roberto Duque Estrada e Verônica Melo;
Pesquisadores dos Textos: Ana Paula Braga Saunders, Caio Augusto
Takano, Daniel Vieira de Biasi Cordeiro e Roberto Duque Estrada;
Evento final: Relatórios finais do BEPS, novidades e suas consequências
no Brasil.
Pesquisadores do Seminário: André Oliveira, Diogo Ferraz, Ernesto
Johannes Trouw, Felipe Senges, Luís Eduardo Schoueri, Marcos An-
dré Vinhas Catão, Marcus Lívio Gomes, Renata Ribeiro Kingston e
Sergio André Rocha;

15
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

As detalhadas pesquisas e a troca de idéias por meio das apresentações


geraram como fruto a presente obra coletiva, composta de 03 (três) volumes,
47 (quarenta e sete) pesquisadores e 40 (quarenta) artigos que abordam sob
diversas perspectivas as distintas ações do Projeto BEPS e suas consequências
a partir de um prisma nacional. 
O convênio de cooperação VALE/UERJ propiciou também a criação de
grupo de pesquisa no diretório de grupos da plataforma Lattes/CNPq (Projeto
BEPS – Tributação Internacional), sob a coordenação do Professor Marcus
Lívio Gomes, certificado e atualizado, com o escopo de aumentar a sinergia
entre os pesquisadores e as instituições envolvidas.
O projeto de pesquisa coletiva ora apresentado também encerra o ciclo
de pós-doutorado iniciado pelo Professor Marcus Lívio Gomes no Institute
for Austrian and International Tax Law at WU Wien, onde permaneceu como
pesquisador visitante no ano de 2013.

Marco Teórico: Aspectos dos Action Plans do BEPS e seus


efeitos na rede de tratados e na legislação domestica brasileira
Restando claro que uma vez trazidas a lume as recomendações da OCDE
no âmbito do Projeto BEPS vêm dando lugar a um forte movimento de altera-
ção das regras de tributação internacional, e considerando o interesse brasilei-
ro de participar nos mercados internacionais, importando e exportando capi-
tal, produtos e serviços, parece inegável o interesse do Brasil na realização de
pesquisas de profundidade com relação a essa nova conjuntura internacional.
Neste sentido, passamos a destacar os principais aspectos dos relatórios
dos pesquisadores quanto às ações do Projeto BEPS, de forma a ilustrar o vo-
lume de controvérsias que poderão gerar, o que fazemos de forma livre e indi-
reta, sem descuidar da referência aos seus autores.
Guilherme Silva Galdino, Maurine Morgan Pimentel de Oliveira, Ricar-
do André Galendi Júnior e Rodrigo Cipriano dos Santos Risolia, trataram
das mudanças decorrentes da economia digital, objeto do Plano de Ação 1
do Projeto BEPS. Ressaltam que as manifestações de riqueza assumem novas
formas e a lei tributária, para garantir a justiça, a isonomia e a capacidade
contributiva, precisa ser repensada.

16
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Essa nova sistemática fiscal é de difícil construção, porque sempre deve con-
siderar a fluidez da economia digital, ou seja, a mobilidade de diversos fatores,
como a dos intangíveis, em que o produto pode ser alterado ao longo do tempo;
a dos clientes, que não possuem barreiras para adquirir ou deixar de consumir
determinado produto ou serviço digital; e mobilidade do próprio negócio digital,
em que sua presença física é mínima e pode ser controlado de qualquer local.
O relatório desta ação apresenta os princípios da tributação diante da
economia digital e relata algumas situações de evasão de tributos pelos fatores
discorridos, apontando algumas soluções. Uma delas, a ampliação do con-
ceito de Estabelecimento Permanente, a abarcar o mercado consumidor, que
ordinariamente não é levado em consideração como elemento de conexão na
tributação internacional.
A legislação tributária atual mostra-se ineficiente para taxar a economia
digital de maneira satisfatória, não atingindo a capacidade contributiva dos
agentes. A estrutura em que ela se calcou falha nesses negócios justamente por
suas características de mobilidade e volubilidade. Agentes econômicos inter-
nacionais, além de poderem escapar da tributação no país da fonte, concorrem
com as empresas residentes, muitas vezes não sendo tributadas por paraísos
fiscais, o que causa distorção no mercado. Daí a necessidade de ampliação e
atualização do conceito de Estabelecimento Permanente.
Os Estados podem implementar medidas para forçar as empresas inter-
nacionais a se registrarem no país, através da retenção do tributo na fonte,
como uma norma indutora, uma vez que potencialmente é mais vantajoso
ser tributado como um residente a ter os lucros tributados, na integralidade, a
uma alíquota a certo ponto elevada.
Os países em desenvolvimento podem ser afetados por essas medidas, no
sentido de que eles dependem de um grande número de tratados contra a bitri-
butação firmados e com o conceito de Estabelecimento Permanente ajustado, ou
serem signatários de instrumentos multilaterais, o que não é comum em países
de Terceiro Mundo que passam por momento de abertura do mercado e não
possuem vasta gama de acordos firmados como os países de Primeiro Mundo.
Por outro lado, a ampliação do conceito de Estabelecimento Permanente
pode dificultar a presença de empresas de países emergentes em países desen-
volvidos, haja vista a diversidade da burocracia interna, o que pode represen-
tar reserva de mercado por parte dos países de Primeiro Mundo. Os membros

17
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

da OCDE precisarão considerar os pleitos dos países emergentes, porque dada


a mobilidade dos fatores e a volatilidade dos negócios, caso os países em de-
senvolvimento não adiram às propostas do BEPS, poderão receber mais em-
presas digitais que o farão visando à evasão fiscal, e tributarão os lucros na
integralidade, ainda que à alíquota diferenciada.
Débora Alexandroni Mare, Diogo Ferraz, Durval Portela, Elidie Bifa-
no, Gustavo Carmona Sanches, Luís Eduardo Schoueri, Rafael Capanema Pe-
trocchi, Ramon Tomazela Santos e Renata Emery apontam o desalinhamento
contemplado no Plano de Ação 2, cujo objeto é descrever medidas suscetíveis
de neutralizar os efeitos das assimetrias legais em negócios denominados hí-
bridos, propondo evitar que ocorra em todos os países envolvidos na tran-
sação, regra geral, a dupla dedução (DD), assim como a não incidência de
tributos (NI) sobre pagamento que tiver sido dedutível em alguma jurisdição.
Isso porque a implementação da solução não é tão fácil quanto se apre-
senta, pois por trás do tema há uma importante questão de política econômica
e fiscal, própria de cada país. De fato, as vantagens fiscais representadas por
deduções e não tributação somente surgem por conta de legislações internas
que introduzem benefícios para atender interesses próprios, ainda que pos-
sam eles ser conjugados com tratados para evitar a dupla tributação, potencia-
lizando os efeitos de afastar a arrecadação.
Muitas vezes, ademais, uma não tributação ou uma dedução não pode
ser qualificada como benefício tributário, já que não passa de decisão consis-
tente e coerente no sistema tributário em que está inserida. Nesse caso, se faz
necessária uma alteração legislativa, ou mesmo uma revisão de todo o ordena-
mento tributário, questão de soberania dos Estados, o que desde já invalidaria
esse tipo de recomendação.
Ana Paula Braga Saunders, Diogo de Andrade Figueiredo, Marcus Lí-
vio Gomes, Renata Cunha Santos Pinheiro, Renata Ribeiro Kingston e Sergio
André Rocha obtemperam outro desencontro que salta aos olhos quando se
compara a realidade brasileira com a vivência internacional quanto ao Plano
de Ação 3. Em 13 de maio de 2014, por meio da Lei nº 12.973/2014, o Brasil
alterou as regras de tributação da renda em bases universais, tema que foi am-
plamente analisado no bojo deste plano de ação, onde se chegou a conclusões
incompatíveis com as novas regras brasileiras.

18
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A título ilustrativo, podemos considerar o fato de que as regras brasilei-


ras atingem, indistintamente, todas as empresas, controladas por entidades
brasileiras, que sejam domiciliadas no exterior, independentemente de qual-
quer indício de abuso, prevendo a tributação imediata dos resultados contá-
beis auferidos por essas.
Ora, essa previsão vai em sentido diametralmente oposto às recomenda-
ções da OCDE, onde podemos observar que a tributação imediata de contro-
ladas no exterior, onde efetivamente se desconsidera a personalidade jurídica
dessas mesmas controladas, figura como medida excepcional, apenas aplicá-
vel quando exista indícios de abuso (excesso de renda passiva, empresas domi-
ciliadas em paraísos fiscais, diferimento quanto à distribuição dos lucros, etc).
Ademais, a compatibilidade da legislação de transparência fiscal inter-
nacional (CFC rules) com os tratados internacionais para evitar a dupla tri-
butação é outro tema cercado de grandes polêmicas doutrinárias e jurispru-
denciais, já tendo sido, inclusive, objeto de decisão do Tribunal de Justiça da
União Europeia no caso Cadbury Schweppes4.
Edgar Gomes, Felipe Senges, Paulo Penteado de Faria e Silva Neto, Pheli-
ppe Toledo Pires de Oliveira, Rafael Dinoá e Renata Emery comentam o Plano de
Ação 4, cujo objeto é a proposição da limitação da dedutibilidade de juros e outros
pagamentos de natureza financeira com base em percentual do lucro da entidade.
O relatório final desta ação propõe um novo critério de dedutibilidade de
juros: um percentual variável de 10% a 30% do lucro da entidade (calculado
com base no EBITDA), sendo que esta regra pode ser complementada por um
percentual do lucro de todo o grupo em âmbito mundial, entre outras reco-
mendações, a saber: (1) a fixação de um limite mínimo abaixo do qual a regra
não se aplica; (2) a exclusão de juros pagos em razão de financiamentos de
projetos públicos de infraestrutura; e (3) a possibilidade de utilização futura
da parcela de juros não utilizada ou glosada por superar o coeficiente.
Ainda que as recomendações da OCDE neste âmbito possam parecer
tentadoras para as Administrações Tributárias dos países, notadamente na-
queles que ainda não utilizam o lucro como parâmetro para a dedutibilidade

4 Tribunal de Justiça da União Europeia, Processo C-196/04, 12/09/2006. Disponível em: http://curia.
europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30db59f0bf58c61f4a26bedbfca4594cabc9.e34Kax
iLc3qMb40Rch0SaxuKc3v0?text=&docid=63874&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&o
cc=first&part=1&cid=76414. Consultado em: 01/04/2016.

19
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de juros, como é o caso do Brasil, sua eventual adoção deve ser precedida da
análise de algumas peculiaridades de nosso sistema: (1) a existência dos “juros
sobre capital próprio (JCP)”; (2) a efetividade das atuais regras de limitação de
dedutibilidade de juros, ainda mais rígidas em relação aos pagamentos efetu-
ados a jurisdições com tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados; e
(3) a rígida repartição de competências tributárias, a exigir do legislador fede-
ral, na decisão sobre dedutibilidade, a conformação com o conceito de renda
espelhado no artigo 43 do Código Tributário Nacional.
Portanto, a adoção deste plano de ação pode impactar no investimento
estrangeiro em momento delicado da economia brasileira.
Clara Gomes Moreira, Frederico A. Fonseca, João Dácio Rolim e Kristal
Heine Schneeweiss relataram o Plano de Ação 5, cujo objeto são as práticas
tributárias prejudiciais. Destacam que a OCDE já havia endereçado o tema no
relatório Harmful Tax Competition, em 1998, não obstante agora se preten-
da atualizar estes trabalhos, propondo-se ênfase na transparência e substân-
cia nas operações transnacionais, em especial o intercâmbio de informações
numa escala global, sobretudo quanto aos regimes preferenciais, e a exigência
de atividade substancial para qualquer regime privilegiado.
No que concerne ao Plano de Ação 6, Carlos Renato Vieira, Flavio Eduardo
Carvalho e Pedro Augusto do Amaral Abujamra Asseis endereçam as conclusões
do relatório final desta ação, onde a OCDE recomenda que os países promovam
alterações em seus tratados de modo e prever uma regra geral anti-abuso baseada
no propósito principal das transações (PPT - Principal Purposes Test).
Tais normas servirão, na opinião da OCDE, para que os países possuam
instrumentos jurídicos a fim de impedir que os contribuintes utilizem de forma
abusiva os tratados, como se dá nos denominados casos de Treaty Shopping, onde
as evidências devem ser pesadas para determinar se é razoável concluir que um
arranjo ou transação foi realizado ou arranjado com tal propósito.
Em que pesem as recomendações da OCDE, deve-se ressaltar a neces-
sidade de que os ordenamentos jurídicos, e em especial o brasileiro que tem
as raízes da tributação fincadas na Constituição, tragam normas internas ex-
pressas sobre a forma de desconsideração de atos ou negócios jurídicos na se-
ara tributária, sob pena de os benefícios previstos nos tratados internacionais
se tornarem mais um fator de insegurança para os contribuintes em geral.

20
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Caso o Brasil adote a PPT rule em seus tratados, nos moldes sugeridos pela
OCDE, com baixo grau de determinação, sem que esteja acompanhada de nor-
mas internas que imponham mais transparência e previsibilidade nas relações
entre Fisco e contribuintes, permitir-se-á que essas novas normas internas con-
flitem com a legislação do outro país contratante e com os respectivos CDTRs.
Resta evidente que as mudanças sugeridas pela OCDE têm pontos positi-
vos e que serão necessários novos institutos jurídicos para promover o comba-
te aos planejamentos tributários abusivos. No entanto, o que deve pautar essas
modificações são, acima de tudo, a segurança jurídica e a igualdade material
dos contribuintes, evitando-se soluções paliativas ou medidas inapropriadas
à realidade brasileira.
Outra situação onde se observa uma clara discrepância entre o regramento
brasileiro e as práticas recomendadas pela OCDE pode ser identificada quando
analisamos as regras brasileiras de preços de transferência aplicáveis às commodi-
ties, que representam 65% do total de exportações do país5, tratadas nos Planos de
Ação 8, 9, 10 e 13. Este tema foi objeto das pesquisas realizadas por Débora Ottoni
Uébe Mansur, Doris Canen, Francisco Lisboa Moreira, Gabriel Gervason Resen-
de, Hugo Marcondes Rosestolato da Costa, Márcio Oliveira, Natália Barbosa Al-
ves, Paulo Arthur Cavalcante Koury, Paulo Ayres Barreto, Raphael Assef Lavez,
Roberto Codorniz Leite Pereira e Vinicius Bentolila de Almeida.
Sobre o tema, as diretrizes internacionais possuem clareza hialina no
sentido de que as contribuições prestadas por entidades vinculadas presentes
na cadeia de produção, distribuição e comercialização de commotities cotadas
em bolsa devem ser remuneradas de acordo com o princípio arm’s length.
Nesse particular, foi reconhecido que a utilização de traders, distribui-
dores, agentes e outros intermediários se mostram como lugar comum na
comercialização global de commodities, razão pela qual a forma pelas quais
tais intermediários devem ser remunerados é uma das questões centrais ao se
estudar o controle fiscal desse mesmo mercado.
Já no Brasil, por força de ato infralegal, publicado meses antes da divul-
gação dos resultados finais do Plano de Ação 10 do Projeto BEPS, que abordou
essa temática, a participação de traders, distribuidores e agentes foi absoluta-

5 Fonte: United Nations Conference on Trade and development. New York and Geneva, 2015. Disponível
em: http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/wir2015_en.pdf. Consultado em: 01/04/2016.

21
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mente desconsiderada, restando os contribuintes impossibilitados de conside-


rar a real cadeia de comercialização de seus produtos para fins de definição do
preço parâmetro fiscal.
Quanto aos serviços intragrupos, se pode extrair do Plano de Ação 10
que no nível pré-legislativo as conclusões do relatório final do Projeto BEPS
acerca da compatibilidade entre o regime eletivo e simplificado para serviços
intragrupo de baixo valor agregado, pautado em margem fixa, e o arm´s leng-
th, associadas à relevância do discurso de legitimação do BEPS para qualquer
medida legislativa doméstica nele inspirada, vislumbra-se relevante oportuni-
dade para que se introduza, claramente, por via legislativa, uma maior flexibi-
lidade no modelo brasileiro, admitindo-se prova em contrário das margens da
legislação ou facultando ao contribuinte o uso de outros métodos.
Quanto à interpretação dos tratados já firmados, em função de o Brasil
ser membro do G20 e ter declarado que utilizará as recomendações do rela-
tório no contexto de sua própria legislação interna, é possível dar relevância
à circunstância de ter o relatório final ressaltado que o art. 9º da Convenção
Modelo da OCDE, que determina o uso do padrão arm´s length, é compatível
com o uso de presunções baseadas em margens fixas de lucro, conquanto essa
forma de aferição dos preços de transferência seja eletiva para o contribuinte.
No nível de interpretação da lei interna as conclusões do relatório final das
Ações 8 a 10 do Projeto BEPS assumem relevância interpretativa como fator que
corrobora com a interpretação de que as margens previstas na Lei nº 9.430/96
podem ser afastadas em certas situações, mediante provas de seu descabimento.
Já quanto à qualificação de fatos em face do direito interno (qualificação das
atividades levadas a cabo nos contratos de rateio de custos como serviços, por
exemplo), não se pode dar relevância alguma às conclusões do BEPS.
O Plano de Ação 11, relativo à transparência, foi objeto das pesquisas
realizadas por Agostinho Netto, Juliana Candido e Luiz Felipe de Toledo Pie-
roni. O objeto deste plano de ação é estabelecer metodologias para a coleta e
análise dos dados sobre a erosão da base tributária e transferência de lucros,
bem como fomentar ações para o seu combate. Segundo os pesquisadores,
este plano de ação padece de diversas inconsistências que poderão representar
obstáculos ao resultado pretendido, ou seja, o combate efetivo ao BEPS.
Esta ação necessita de grande aceitação e assinatura dos países dos G-20
e também dos membros da OCDE, como ainda de outras jurisdições, pois

22
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sem uma adesão geral e massiva, a própria premissa e os benefícios que jus-
tificaram a transparência ficarão comprometidos. O sucesso deste plano de
ação dependerá da coordenação das jurisdições, o que se mostra muito difícil,
tenha-se como exemplo a própria União Europeia, onde as ações para a uni-
formização da tributação enfrentam grande resistência dos Estados.
A questão do planejamento tributário deve ser analisada e enfrentada,
se for o caso, no campo das alterações legislativas, como bem propõem sobre
o Plano de Ação 12 Fernando Daniel de Moura Fonseca, Mario Nascimento
Souza Neto, Michel Batista, Ricardo Lodi Ribeiro e Stéphanie Samaha.
Ressaltam os pesquisadores que deve ser intensificada a transparência
(mútua) entre fisco e contribuinte e do estabelecimento de um clima de coo-
peração entre administração e administrado. No entanto, a ausência de uma
definição sobre planejamento tributário agressivo leva as discussões em senti-
do oposto, pois gera insegurança jurídica e faz com que o contribuinte possa
apresentar resistência às regras de mandatory disclosure.
No que diz respeito à noção de transparência fiscal internacional, as dis-
cussões apresentadas neste plano de ação continuam sendo unilaterais, com
foco exclusivo nas necessidades das Administrações Tributárias, deixando as
demandas dos contribuintes à margem. Embora este Plano de Ação seja criti-
cável em alguns pontos, fato é que a sua tentativa de implementação no Brasil,
por intermédio da MP n° 685/2015, desrespeitou várias das recomendações
do relatório final, bem como o próprio ordenamento jurídico nacional, o que
corroborou com a perda de vigência deste ato normativo.
Assim, é preciso que se inclua na pauta de discussões a necessidade de
reduzir a complexidade dos sistemas tributários, repensar o número excessivo
de leis e de deveres instrumentais, melhorar a acessibilidade do contribuinte
às autoridades fiscais e incrementar a clareza e a consistência das interpreta-
ções sobre a legislação tributária.
Alina Miyake, Donovan Mazza Lessa, Fernando Raposo Franco e Prisci-
la Faricelli de Mendonça sindicaram o Plano de Ação 14, cujo objeto é o forta-
lecimento dos mecanismos de solução de conflitos. A preocupação da OCDE
com a solução de conflitos tributários é legítima e mostra-se muito alinhada
até mesmo com as questões domésticas brasileiras, pois é notório que os meios
postos à disposição do Fisco e contribuintes brasileiros não produzem solu-
ções satisfatórias às controvérsias tributárias.

23
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O sucesso da implementação desta ação depende da vontade política dos


países em alterar ou celebrar acordos de bitributação e promover alterações
legislativas com as recomendações do minumum standard e das best practices.
Com relação à vontade política do Brasil, as manifestações da Receita Fede-
ral do Brasil (RFB) no âmbito do BEPS demonstram que muito embora esta
ação não seja prioritária ao país, há comprometimento para garantir acesso ao
procedimento amigável dentro daquilo que prevê o minimum standard, pelo
menos no que diz respeito a temas de preços de transferência.
Comparativamente com o processo judicial e administrativo, o número
de casos submetidos ao procedimento amigável é irrisório, para não dizer ine-
xistente. A adoção do Mutual Agreement Procedure (MAP) e da arbitragem,
assim, seriam bem-vindos como forma de desafogar a expressiva quantidade
de conflitos tributários que aguardam por anos a fio por solução judicial e/ou
administrativa, afora propiciar solução célere e tecnicamente adequada.
No entanto, mudanças legislativas se fazem necessárias para que a arbitra-
gem tributária seja viável e efetiva, assim como alterações legislativas perpetrem
transação, conciliação e até mesmo formas de solução de conflitos tributários
por câmaras especializadas, o que enfrenta grande resistência do Fisco.
Ana Paula Braga Saunders, Caio Augusto Takano, Daniel Vieira de Biasi
Cordeiro e Roberto Duque Estrada tratam do Plano de Ação 15, cujo objeto
é o estabelecimento de um Convênio Multilateral, a ser celebrado entre os
países, de forma a possibilitar a incorporação dos planos de ações pelas juris-
dições sem a necessidade de renegociação dos mais 3.000 CDTRs celebrados,
posto que bilaterais.
Em suma, a concretização das ações sugeridas pela OCDE, no âmbito do
Projeto BEPS, demanda (i) alterações às leis internas; (ii) edição de atos admi-
nistrativos e (iii) modificações em tratados bilaterais contra a dupla tributa-
ção. Esse último é o caso do Plano de Ação 2 (instrumentos híbridos), Plano
de Ação 6 (abuso de tratados ou Treaty Shopping), Plano de Ação 7 (estabele-
cimento permanente) e Plano de Ação 14 (solução de conflitos).
A alternativa do instrumento multilateral tem sido sustentada pela
OCDE como a mais ágil e eficaz para concretização das medidas em ques-
tão, tendo em vista que seria extremamente complexo promover alterações
em mais de três mil tratados bilaterais contra a dupla tributação atualmente

24
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

em vigor. Não obstante, existem diversos desafios à concretização de tratados


multilaterais e não são poucas as críticas à sua adoção.
É de conhecimento geral que o sucesso do instrumento multilateral pres-
supõe um consenso político de larga escala na ordem mundial, o que é quase
impossível de alcançar quando na mesa de negociações se sentam países com
diferentes graus de desenvolvimento, com economias muito distintas, que
têm relações bilaterais com particularidades de difícil acomodação em um
tratado multilateral.
É impensável promover alterações em nossa convenção contra a dupla
tributação para acomodar interesses das grandes economias da OCDE em de-
trimento de uma agenda de compromissos e parceria histórica, fundamental
ao equilíbrio regional, o que costuma ocorrer entre as CDTRs celebradas pelo
Brasil com os países latino-americanos.
Acresce que ainda pairam dúvidas quanto à posição que será adotada pelos
Estados Unidos que, conquanto esteja participando do grupo ad hoc criado pela
OCDE para desenvolver o instrumento multilateral, por vezes emite sinais de
desagrado com certas posições da OCDE, vista como um símbolo da burocracia
europeia. Com efeito, recentemente, o Secretário do Tesouro norte-americano
expressou reservas quanto ao Projeto BEPS, especialmente em relação ao Plano
de Ação 15, colocando em dúvida a sua efetiva adesão ao instrumento, conside-
rada fundamental para o sucesso do projeto à escala mundial.
Do ponto de vista brasileiro, é provável que o interesse do instrumento
multilateral esteja centrado essencialmente na Ação 6, relativa às medidas que
coibiriam o abuso no uso dos tratados, já que não temos maiores discussões
jurídicas a respeito de instrumentos híbridos (Ação 2), o conceito mais amplo
de Estabelecimento Permanente previsto nas convenções não encontra corres-
pondência na lei interna (Ação 7) e a solução de conflitos tributários pela via
da arbitragem, posto que ausente previsão legal a regulamentá-la, ainda não
exista óbice constitucional a tal instituto (Ação 14).
E como será a relação entre os países que adotaram o instrumento mul-
tilateral e os países que não o adotaram? E o que dizer das opções comer-
ciais adotadas de boa-fé por contribuintes à luz de um determinado tratado
antes da alteração promovida pelo instrumento multilateral sob os auspícios
do Projeto BEPS? Prevalecerão as regras anteriores em proteção à boa-fé e ao
princípio pacta sunt servanda, ou serão aplicáveis as novas regras de forma

25
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

retroativa. Parece que o instrumento multilateral trará um ambiente jurídico


bastante tormentoso e inseguro.
Como se viu, não são poucas as questões que deverão ser superadas para
a concretização do instrumento multilateral, tal como planejado pela OCDE.
Só o futuro dirá como os países se coordenarão para ter êxito na implemen-
tação das medidas do plano BEPS que demandam modificações nos tratados
bilaterais contra a dupla tributação.
Em síntese, buscou-se ressaltar a relevância do exame crítico das propo-
sições do Projeto BEPS em face do contexto brasileiro, bem como da análise
segregada do relevo que se pode (ou não) imprimir às conclusões do projeto
em relação ao ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, parece ser esse o
papel mais relevante a ser exercido pelo estudo doutrinário do direito em face
de um contexto tão propenso a análises apressadas.
Como o tema é global, cada alteração unilateral ou mesmo de apenas
um grupo de países ou região, poderá significar um retrocesso, acarretando
inclusive a indesejada dupla tributação ou mesmo a falta de tributação, efeitos
que são desde há muito tempo as grandes preocupações das nações em termos
de circulação de riqueza e tributação internacional.
E essas são apenas algumas das muitas incompatibilidades que se so-
bressaem em uma primeira e ainda superficial comparação entre as normas
brasileiras de tributação internacional e a realidade internacional. Quando
tomamos em conta o nível cada vez crescente de internacionalização da eco-
nomia brasileira, tais diferenças têm efeitos lógicos, conforme já ressaltado:
(i) a perda de competitividade das empresas brasileiras para acessar mercados
internacionais; e (ii) a perda de atratividade do Brasil para atrair investimen-
tos produtivos externos.

Importância da obra: a pesquisa acadêmica de excelência


Nesse sentido, resta clara a importância desse audacioso projeto de pes-
quisa coletiva, unindo o interesse dos mais relevantes segmentos econômicos
nacionais, representados pela VALE, preocupando-se em se antecipar a emi-
nentes mudanças na legislação tributária, com a academia nacional, represen-
tada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pela Universidade de São

26
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Paulo, centros de excelência no estudo do Direito Tributário, acompanhando


de perto as discussões acadêmicas desenvolvidas no plano internacional.
Conforme ressaltado, o presente trabalho busca contribuir com discus-
sões e alternativas a serem apresentadas a órgãos da sociedade civil e, eventu-
almente, ao Poder Legislativo, a fim de garantir a racionalidade das regras de
tributação internacional brasileiras. Além disso, busca ainda assegurar que a
eventual internalização de tais mudanças seja adaptada às particularidades
de nosso sistema jurídico, evitando inconstitucionalidades e o surgimento de
novos embates entre Fisco e contribuintes, assegurando, principalmente, os
direitos fundamentais.
Fomentando estas atividades de pesquisa, a obra ora apresentada conta
com o apoio dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos no âmbito de núcleo
de pesquisa dentro da UERJ, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tributação
Setorial (NEPTS), coordenado pelos Professores Ricardo Lodi Ribeiro e Mar-
cus Lívio Gomes, cadastrado junto ao CNPQ, com o objetivo de consolidar a
participação do Rio de Janeiro no cenário acadêmico nacional internacional,
em matéria de Finanças e Tributação concernente à tributação setorial.
Relevante registrar o apoio integral, incondicional e irrestrito do Pro-
fessor Ricardo Lodi Ribeiro, representante da Cátedra de Direito Tributário
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e dos advogados da Diretoria
Jurídico-Tributária da VALE, representada na Cátedra de Direito Tributá-
rio por Octávio Bulcão Nascimento, Ana Carolina Coelho e Renata Ribeiro
Kingston, os quais não só removeram todos os obstáculos para que o projeto
avancasse, como também impulsionaram todas as suas ações.
Não poderíamos deixar de ressaltar a inestimável colaboração do Clara Go-
mes Moreira, Dóris Caren, Fábio Fraga, Gabriel Gervason Resende, Juliana Can-
dido, Raquel Alves e Renata Cunha Santos Pinheiro, cujo apoio ao projeto como
um todo foi fundamental para o seu sucesso, pois toda grande realização se faz
pela cooperação e força de vontade de um grupo e não de esforços isolados.
Destaca-se também a valiosa contribuição do Instituto Tecnológico da
VALE (ITV), o qual operacionalizou o convênio de cooperação UERJ-VALE,
possibilitando que o presente projeto de pesquisa fosse levado a cabo com pa-
drão de excelência. Contribuíram decididamente para este próposito Cristina
Assimakopoulos e Denile Boer.

27
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Um agradecimento especial a todos os pesquisadores que contribuíram


para a realização deste sonho, que incansavelmente trabalharam para o suces-
so dos seminários e apresentação das valiosas pesquisas que compõem a obra
coletiva que ora se apresenta.

28
Parte I - Relatório Geral
e Coerência
1. O Projeto BEPS: ainda
uma Estratégia Militar 

Luís Eduardo Schoueri 
Professor Titular de Direito Tributário da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Vice-Presidente do
Instituto Brasileiro de Direito Tributário. 
 
Resumo: O presente artigo evidencia a abordagem eminentemente mili-
tar trazida pelo Projeto BEPS da OCDE em relação ao fenômeno denominado
erosão da base tributária e transferência de lucros. Com efeito, argumenta-se
que o contribuinte é colocado como o inimigo a ser enfrentado, consolidan-
do-se uma aliança entre Estados que, na verdade, possuem interesses antagô-
nicos no presente contexto tributário internacional. 
Palavras-chave: BEPS – Cooperação – Alocação de jurisdição. 
 Abstract: This article shows that the BEPS Project poses essentially a
military approach towards the so-called base erosion and profit shifting phe-
nomenon. In this context, it is sustained that the taxpayer is treated as the
enemy to be faced, giving rise to an alliance between States which, actually,
pursue antagonistic interests in the international tax scenario. 
Keywords: BEPS – Cooperation – Allocation of taxing rights. 

Introdução 
Se a aceleração do processo de globalização tem sido, justificadamente,
motivo de júbilo da parte daqueles que veem na integração de economias e
diminuição de fronteiras um fator para o crescimento econômico e para o
desenvolvimento social, a existência de Estados encarregados da promoção
de objetivos nacionais impõe a dura realidade da necessidade de recursos fi-
nanceiros suficientes para custear exigências crescentes. No modelo de Estado
Fiscal (Steuerstaat), a tributação surge com a justificação do financiamento da
atuação dos entes públicos. Seus limites jurídicos se apresentam nos Ordena-

31
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mentos nacionais, encarregados de assegurar, em maior ou menor grau, os


direitos dos contribuintes (SCHOUERI, 2011; SCHOUERI, 2015a, pp. 23-37).
A facilitação da circulação de pessoas e capitais, entretanto, surpreende como
novo limite às pretensões tributárias dos Estados nacionais. O incremento na
gama de possibilidades para a estruturação dos modelos operacionais das em-
presas, sobretudo, das multinacionais implica também os modelos operacio-
nais próprios de cada país cederem lugar a modelos globais, cujas estruturas
são baseadas em escala regional e mundial (OCDE, 2013, p. 7).
A redução de recursos disponíveis para a tributação vem sendo conhe-
cida pelo acrônimo BEPS –  Base  Erosion  and  Profit  Shifting  – que procura
indicar, de um lado, a redução da base tributária (i.e.: dos recursos sujeitos à
tributação) e, de outro, a translação de lucros de grupos multinacionais para
jurisdições cuja tributação seja mais favorável ao detentor da riqueza. 
A constrição da base tributária é fenômeno que se explica pela conjunção
de diversos fatores. A responsabilidade dos próprios Estados não pode ser ne-
gada, pois em muitos casos os contribuintes nada mais fazem, senão valerem-
-se de alternativas que os ordenamentos tributários apresentam, seja de modo
explícito (incentivos fiscais os mais variados), seja em virtude de falhas e la-
cunas, paradoxalmente surgidas em virtude do excessivo detalhamento das
legislações. Ademais, não se pode perder de vista terem os Estados deixado de
lado os objetivos de transparência da política tributária, afastando o clima de
previsibilidade e segurança jurídica, requisitos indispensáveis para a atuação
sadia da iniciativa privada (SCHOUERI e BARBOSA, 2013). Desestimulada
esta, a consequência imediata é a ainda menor base econômica para a tri-
butação. Some-se, por fim, a opacidade dos gastos públicos, e ter-se-á criado
um clima de antagonismo entre Estado e contribuinte, tornando improvável
qualquer cooperação entre ambos.
Em feliz passagem, OWENS (2013, p. 156) cunhou a expressão "analogia
militar" ("military analogy") para se referir à atuação pretérita das administra-
ções tributárias dos Estados frente à evasão tributária: identify the target (eva-
ders), take them out. Em que pese o autor utilize a analogia para descrever
uma realidade que entende estar se modificando, vez que as administrações
estariam migrando para um sistema que entronizaria a prevenção, o Projeto
BEPS demonstra-nos que a analogia remanesce útil. 

32
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A mentalidade militar reinante não deixa de se revelar no que concerne


às recentes movimentações que se presenciam no cenário internacional: iden-
tificado o inimigo (empresas multinacionais), parte-se para alianças (entre Es-
tados), desenvolvendo-se uma estratégia (não por acaso, denominada "Plano
de Ação"), coordenadas por um Alto Comando (tarefa delegada pelo G20 à
OCDE). O objetivo declarado não é a destruição do inimigo, mas sua sujeição
à pax a ser imposta pelos vencedores. Eventuais baixas de guerra (desapare-
cimento de empresas, redução de empregos e, consequentemente, de receitas
tributárias) deixam-se explicar pela mesma lógica. As alianças, por sua vez,
duram apenas até que se alcance o objetivo de guerra: vencida esta, cada qual
segue seu caminho, não sendo de se estranhar, daí, que o comprometimento
de cada parte esteja limitado por visões individuais antagônicas. O pós-guerra
não pode ser desprezado e cada parte aliada deseja sair em posição melhor,
desprezando, daí, os interesses legítimos dos demais envolvidos. 
A falha do modelo teórico assim concebido é imediata: baseia-se em ra-
ciocínio causalista, que faz crer que cada fenômeno tenha uma causa, bastan-
do eliminar a última para que se afaste o indesejado. Como visto, BEPS se ex-
plica por uma série de fatores, muitos deles de responsabilidade dos próprios
Estados. A estratégia militar não se compatibiliza com o reconhecimento das
próprias falhas, imputando-se ao inimigo a origem de todas as mazelas.
O presente estudo apresenta, de modo sumário, as propostas trazidas pela
OCDE em seu Plano de Ação, visando a identificar, no Plano Estratégico, o ini-
migo a ser combatido. Em seguida, examinam-se o arsenal (ações) e seu potencial
destrutivo. A análise identificará que alguns aliados são preservados pelo Alto
Comando (não por acaso, aqueles que o controlam), enquanto outros poderão
ser sacrificados. A conclusão apresentará uma crítica à visão militar, propondo a
alternativa da cooperação como único meio para se ter a paz duradoura. 

1. O Surgimento do Plano Estratégico:


Base Erosion and Profit Shifting Action Plan 
 A pedido dos ministros de finanças do G20, a Organização para a Co-
operação e Desenvolvimento Econômico ("OCDE") apresentou, em reunião
realizada nos dias 19 e 20 de julho de 2013, o Base Erosion and Profit Shif-

33
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ting Action Plan ("Projeto BEPS"), a fim de combater a erosão fiscal e a trans-


ferência de lucros para jurisdições de baixa tributação. 
O símile com um Plano Estratégico apresentado por um Alto Comando
militar é inevitável. De início, identifica-se o inimigo. Neste sentido, explica
o relatório de apresentação do Projeto BEPS (OCDE, 2013, pp. 7-8), o intenso
crescimento da economia digital, além de permitir que os negócios tenham
várias atividades produtivas longe da localização de seus clientes, também te-
ria contribuído para que especialistas explorassem os limites do planejamento
tributário, proporcionando às multinacionais mais confiança na tomada de
posições fiscais audaciosas (não surpreendentemente, identificadas pelo Alto
Comando como "agressivas"). Consequentemente, as multinacionais conse-
guem reduzir de forma significativa a sua carga tributária, o que, segundo
o relatório, teria gerado tensão social relativa a questões de justiça tributá-
ria. Resultado: a erosão da base tributária e a transferência de lucros (BEPS)
acabariam por prejudicar os governos, os contribuintes e os negócios. 
Num passo seguinte, passam a ser analisadas as batalhas até então tra-
vadas e as razões por que não foram vitoriosas. Assim, anota-se que embora
os padrões internacionais tenham buscado resolver os conflitos gerados pela
integração dos regimes tributários nacionais, respeitando a soberania dos
Estados, lacunas continuariam a existir (OCDE, 2013, p. 9). Ou seja, ainda
que, em muitos casos, as regras atuais tanto nacionais quanto internacionais
devessem conduzir a resultados "corretos", que não dariam origem ao BEPS,
haveria deficiências nas normas vigentes que criariam oportunidades para
que rendimentos gerados por operações transnacionais não fossem tributa-
dos em lugar nenhum ou ficassem indevidamente sujeitos a tributações bem
baixas (OCDE, 2013, pp. 9-10). 
Em síntese, o diagnóstico identificado pelo Alto Comando conduz à
necessidade de uma aliança, em oposição aos esforços de guerra unilate-
ralmente adotados pelas potências belicosas. Afirma-se que as deficiências
acima apontadas, juntamente com a falta de uma ação internacional coorde-
nada, poderiam induzir, por parte de alguns Estados, a tomada de medidas
unilaterais (OCDE, 2013, p. 10). Isso, porém, geraria insegurança jurídica e
dupla tributação não remediada. Dessa forma, para assegurar a soberania
tributária dos países e evitar o agravamento da atual conjuntura, o Projeto
BEPS defende ser essencial o consenso entre os Estados com relação às ações

34
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a serem tomadas (OCDE, 2013, p. 10), as quais devem balizar as novas regras
internacionais a fim de garantir a coerência na tributação dos rendimentos
transnacionais (OCDE, 2013, p. 13). 
Defendida a aliança, é o momento de se reconhecer que a existência de
um inimigo comum não implica uma total comunhão de interesses. Em ver-
dade, a análise mais detida do Projeto demonstra que, em muitos casos, con-
cretizou-se aliança em torno de assunto sobre o qual existe polarização. Daí
a necessidade de se regrar, de antemão, o fruto da pilhagem. Afinal, se desde
os mais remotos tempos se reconhece ao vencedor o direito de se apossar dos
bens (e, em tempos antigos, mesmo da pessoa) do vencido, não poderia ser
diferente num cenário de combate ao BEPS. É por isso que o Relatório nota o
receio de alguns países em relação a como as regras internacionais repartirão
as jurisdições tributárias entre os Estados da Fonte e os Estados de Residên-
cia. Diante de tais preocupações, a OCDE afirma que o Projeto BEPS não se
destina diretamente a mudanças aos padrões internacionais de atribuição de
jurisdição para tributar, mas concentra-se no combate ao BEPS (OCDE, 2013,
pp. 10-11). Conforme se verá, este posicionamento, que indica cautela na cons-
trução da aliança militar, pode vir a enfraquecer a própria estratégia eleita já
que, num cenário de guerra, baixas são inevitáveis, não sendo adequado de
antemão assegurar que não haverá perdas. 
O sucesso de qualquer Plano Estratégico depende do conhecimento de
seus objetivos. De acordo com o Projeto BEPS, o foco não seria rechaçar todo
e qualquer tipo de não tributação ou de tributação reduzida, mas combater
aquelas "associadas a práticas que segregam artificialmente os rendimentos
tributáveis das atividades que os geram" (OCDE, 2013, p. 10). Ou seja, o Proje-
to BEPS pretende, a partir de mudanças nos padrões internacionais, reajustar
a tributação no intuito de restaurar os efeitos e os benefícios pretendidos pelas
regras internacionais, as quais não teriam acompanhado o ritmo do desenvol-
vimento dos negócios (OCDE, 2013, p. 13). 
Definido o objeto, passa o Plano Estratégico a definir propriamente os pas-
sos a serem tomados dali em diante. Assim, o Projeto BEPS identifica 15 (quinze)
ações necessárias para enfrentar a erosão da base tributária e a transferência de
lucros, estabelecendo prazos e identificando recursos necessários e a metodologia
adequada para a implementação dessas ações (OCDE, 2013, p. 11).

35
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Não deixa de ser notável a afirmação de que essas ações teriam como
premissas a transparência, a segurança jurídica e a previsibilidade para o se-
tor privado (OCDE, 2013, p. 14). É bem verdade, porém, que esses pressupos-
tos foram entendidos como sinônimo de pressa, pois os prazos estabelecidos
para a publicação das ações foram de, no máximo, pouco mais de dois anos
(OCDE, 2013, pp. 24-25). Se no papel o Plano Estratégico parece funcionar, a
realidade da guerra não tarda a demonstrar que muitos invernos serão enfren-
tados pelos exércitos aliados, cabendo ao Alto Comando notar que não basta,
para vencer a guerra, contar com alto poder de fogo da artilharia (represen-
tada pela edição de leis): também a infantaria, representada pelas autoridades
tributárias, será necessária para as lutas corpo-a-corpo; a engenharia cons-
truirá pontes e outras vias (tratados multilaterais) para a marcha do exército,
sem falar na intendência, a quem caberá assegurar o tempestivo suprimento
de recursos (trocas de informações).

2. As Frentes de Batalha Definidas:


as Ações de Combate ao BEPS 
É na apresentação das Ações que o Projeto BEPS descortina sua estra-
tégia. Utiliza-se a expressão "holística" para caracterizar o Projeto, a revelar
que as batalhas não podem ser compreendidas, senão no contexto do todo da
guerra que se encerra. Assim, um mesmo campo pode ser atacado por diver-
sas frentes, assim entendidas as Ações, o que implica ver-se frustrada a crítica
a qualquer das Ações isoladas, sem que se veja a atuação conjunta. Numa ba-
talha com diversas frentes, cabe ao Alto Comando assegurar a harmonia dos
ataques, sendo a ação concertada requisito para o sucesso da empreitada. De
igual modo, algumas lacunas que a análise de uma Ação, isoladamente, possa
identificar haverão de ser supridas por outras Ações. A estratégia baseada em
ataque simultâneo carrega o óbvio risco de que a falha em qualquer das fren-
tes possa colocar em risco todos os demais batalhões. 
Não é objetivo deste estudo detalhar o estudo de cada uma das Ações.
Basta que se apontem algumas fraquezas que, se não corrigidas, acabarão por
colocar em risco a abordagem holística proposta pelo Projeto BEPS. 
 

36
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ação 1 - Abordar os Desafios Fiscais da Economia Digital 


De um ponto de vista estrito, os desafios da economia digital não se
confundem com BEPS, embora seja inegável que o ambiente digital poten-
cialize as oportunidades de planejamento tributário internacional. Com
efeito, aqueles desafios surgem exatamente em virtude da constante inova-
ção tecnológica, onde novas realidades, antes não concebíveis, tornam-se
corriqueiras, exigindo do legislador agilidade para se adaptar às novas for-
mas de negócio. Questões sobre qualificação de rendimentos, coleta e aná-
lise de dados e atribuição de lucros proporcionados pela economia digital.
(OCDE, 2015a, p. 158) tornam-se relevantes. 
Tratando-se de negócios antes inconcebíveis, não é próprio falar em ero-
são da base tributária, já que a ideia de erosão pressupõe a preexistência de
uma base, desaparecida a partir de uma prática a ser combatida. Daí que os
desafios da economia digital vão além da preservação das bases tributárias,
caminhando – para se manter o paralelo militar – para a conquista de novos
territórios. Desnecessário dizer que tais conquistas não se fazem em jogo de
soma zero: os contribuintes tendem a buscar alternativas para preservar seu
território longe do poder de fogo do conquistador. Este, por sua vez, necessita
do desenvolvimento de novas armas, capazes de atingir distâncias antes ini-
magináveis. É esse, em síntese, o teor da Ação 1 do Projeto BEPS.
Em tal contexto, o Projeto BEPS afirma ser necessário analisar os dife-
rentes modelos de negócios e as suas constantes mudanças a fim de ter uma
melhor compreensão dos instrumentos de criação de valor neste setor (OCDE,
2013, p. 14). Dessa forma, o objetivo da Ação 1 não é apenas identificar as prin-
cipais dificuldades impostas pela Era da Informação na aplicação das normas
tributárias internacionais, mas também desenvolver opções detalhadas para
solucionar esses problemas, adotando uma abordagem ampla e considerando
ambas as tributações, direta e indireta (OCDE, 2013, p. 15). 
Em 5 de outubro de 2015 foi publicado o relatório da Ação 1, o qual, den-
tre outras coisas, rechaça a possibilidade de se dar tratamento distinto (“ring-
-fencing”) à economia digital em relação ao restante da economia em razão de
aquela estar se tornando a própria economia (OCDE, 2015a, p. 73 e 157). Essa
conclusão merece aplauso, já que tem a seu favor a evidente busca da igualdade
concorrencial. Esta exige que aqueles que atuam em um mesmo mercado sejam

37
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

submetidos a regras similares, o que não pode conviver com regimes tributá-
rios distintos. Afinal, é inegável que a economia digital aproxima fornecedores
dos consumidores, os quais têm imediato acesso aos produtos, em nada se di-
ferenciando, substancialmente, as compras físicas das virtuais. São as seguintes
características-chave da economia digital e seus modelos de negócios apontados
como relevantes sob a perspectiva tributária: mobilidade (com relação a intan-
gíveis, usuários e atividades econômicas); dependência de dados; a difusão de
modelos de negócios multilaterais; tendência ao monopólio e ao oligopólio; e
volatilidade devido às baixas barreiras para a entrada no mercado e também em
razão do rápido desenvolvimento tecnológico (OCDE, 2015a, p. 157).
Possivelmente o tema mais sensível identificado em uma das conclusões
presentes nesse Relatório Final é o próprio questionamento sobre a adequação
dos elementos de conexão hoje vigentes. Isso porque, ao reduzir a necessidade
de presença física, torna-se possível indagar se as regras que nela se baseiam
continuam adequadas (OCDE, 2015a, p. 147). Essa questão, se não resolvida no
âmbito do próprio Planejamento Estratégico, poderá inviabilizar a própria ba-
talha, diante do impasse dos exércitos aliados, todos temerosos de abrir mão de
terrenos já conquistados. A história das guerras revela que nem sempre a toma-
da de territórios é motivo de comemoração, podendo antes tornar-se um trans-
torno, se não planejada (impossível não se lembrar do fracasso napoleônico na
frente russa). Do mesmo modo, ao se assegurarem as conquistas na economia
material, deixam-se de lado os vastos e férteis terrenos da economia digital, cuja
conquista exige que se sacrifique parte dos terrenos antes tomados. No âmbito
do BEPS, deve-se ver que se os Estados fincam o pé nos atuais critérios de tri-
butação, baseados na presença física (estabelecimento permanente) e ao mesmo
tempo se propõem a não conferir tratamento diverso ao comércio virtual, então
a própria tributação da economia virtual se torna inviável.
Mais adequado seria estabelecerem-se novos critérios para a tributação,
desvinculados da presença física em um território e, uma vez definidos, es-
tendê-los ao comércio real. Não por outro motivo, o estranhamento da dou-
trina em relação à inserção, no âmbito do Projeto BEPS, da questão da aloca-
ção de jurisdição sobre a tributação na economia digital, é patente (BRAU-
NER e BAEZ, 2015, pp. 4-5; HONGLER E PISTONE, 2015, p. 2). Afinal, por
que há de ser tratado como abusivo o comportamento do contribuinte em
ambiente acerca do qual não existem regras definidas?

38
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No que se refere à economia digital, mais importante que a observân-


cia de regras por parte dos contribuintes é a alocação de jurisdição entre os
Estados. A ausência de comunhão de interesses entre os membros do G20 a
esse respeito é notória. 
Assim, a Ação sobre economia digital torna evidente que os países aca-
baram por forjar uma aliança sem cuidarem antes dos conflitos entre os alia-
dos. O resultado é que ao lado da guerra travada com o inimigo comum, outra
disputa, sobre a qual a Ação 1 é reticente, trava-se entre os aliados em torno
do poder de tributar dos Estados. Este é um prélio entre Estados. Tendo-se por
verdadeiro anacronismo a exigência de presença física para que se possa falar
em tributação (BRAUNER e BAEZ, 2015, p. 4), resta negociar quais seriam os
novos elementos de conexão, aptos a garantir ao Estado da Fonte sua parcela
de jurisdição sobre a economia digital. Somente após estabelecida a alocação
de jurisdição é que se poderá proceder à formulação de regras cujo escopo seja
impedir o comportamento abusivo por parte dos contribuintes. 
A esse respeito, resta claro que, ao legar à OCDE – que ainda é, indubitavel-
mente, o "clube dos países ricos" (BRAUNER, 2014, p. 59) – a tarefa de elaborar o
Plano de Ação, parte dos países do G20 entregou a missão de elaborar sua tática de
guerra ao Alto Comando, que não tem compromisso com o pós-guerra; é dizer, a
repartição dos frutos da vitória não será decidida a partir dos esforços ou interes-
ses de todos os envolvidos, mas segundo os critérios definidos por alguns Estados,
mesmo que em detrimento dos aliados que foram fundamentais para a vitória.
Tem-se por evidente, portanto, que o resultado de tal Ação será a subjugação de
alguns Estados por outros, ou a inefetividade dos trabalhos desenvolvidos, por
ausência de consenso em torno de seus fundamentos. A inação, por outro lado,
beneficia o Alto Comando, razão pela qual se tem grande incentivo à formulação
de uma estratégia inviável ou de alcance restrito. 

Ação 2 - Neutralizar os Efeitos dos Instrumentos Híbridos 


Se a ideia de coordenação é essencial para o Plano Estratégico, a Ação
2 enfatiza os efeitos de sua carência: sendo cada Estado livre para esquadri-
nhar suas regras tributárias, não causa surpresa a falta de harmonia entre elas,
implicando qualificações diversas para um mesmo instrumento ou estrutura
societária. Ingressa-se no pantanoso terreno dos instrumentos híbridos. A

39
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ação 2 descreve a erosão da base tributária a partir de binômios como dupla


dedução ou dedução/não tributação, propondo o desenvolvimento tanto de
dispositivos no modelo para acordos de bitributação quanto recomendações
referentes à criação de normas nacionais para neutralizar os efeitos dos ins-
trumentos e entidades híbridos. Assim, a Ação 2 pode incluir: (i) alterações na
CM-OCDE de forma a impedir a utilização de instrumentos híbridos para a
obtenção de benefícios indevidos através dos tratados; (ii) normas nacionais
que obstem a isenção ou a não contabilização de pagamentos dedutíveis pelo
pagador; (iii) dispositivos legais domésticos que proíbam uma dedução a tí-
tulo de um pagamento que não seja incluído como renda do seu beneficiário
e que não esteja sujeito à tributação conforme as regras CFC ou similares; (iv)
regras domésticas que neguem uma dedução a título de um pagamento o qual
também é dedutível em outra jurisdição; (v) se necessário, diretrizes sobre
coordenação ou critérios de desempate, em eventos que mais de um Estado
procure aplicar tais normas a uma operação ou a uma estrutura. Ademais, o
Projeto BEPS enfatiza que conquanto seja difícil apontar os países que per-
deram receitas tributárias em razão de as leis internas das partes envolvidas
terem sido observadas, há uma diminuição do montante global de impostos
pagos por todos esses Estados, o que é danoso à concorrência, à eficiência eco-
nômica, à transparência e à equidade (OCDE, 2013, pp. 15-16). 
Publicado em 2015, o Relatório Final é dividido em duas partes. Enquan-
to a primeira contém recomendações para alterações na legislação doméstica,
a segunda parte estabelece diretrizes para mudanças na CM-OCDE (OCDE,
2015b, p. 11). A regra primária que é recomendada na primeira parte refere-se
à situação de negar a dedução relativa a determinado pagamento na medida
em que ele não é incluído como renda tributável do beneficiário presente na
outra jurisdição ou também é dedutível nesse Estado-Contratante. Ao mes-
mo tempo, a segunda parte afirma que instrumentos híbridos não podem ser
usados para obter benefícios indevidos através dos acordos de bitributação e,
consequentemente, as regras propostas na primeira parte não podem ser obs-
tadas pelos tratados (OCDE, 2015b, p. 12). 
Não deixa de ser interessante, sob a ótica militar que ilumina o Proje-
to BEPS, contemplar o fenômeno descrito na Ação 2 e as medidas sugeridas.
Afinal, conquanto o Relatório BEPS insista em apontar o contribuinte como
agente causador do BEPS, este apenas se dá em virtude da falta de harmonia

40
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

entre os sistemas tributários. É dizer: exércitos aliados trocam tiros e sofrem


baixas, sem que o inimigo comum necessite de outro esforço, além de se pro-
teger das rajadas e trilhar vias traçadas por seus próprios algozes.  
Complexa, em tal cenário, a tarefa do Estado Maior, ao impor a coor-
denação. Implica exigir que um dos exércitos deixe de dar tiros, confiando
exclusivamente no poder de fogo de seu aliado. O dilema está justamente na
confiança que se tem na competência do outro. Exige-se que um Estado co-
nheça os sistemas tributários de tantos outros Estados quantos forem os de
onde provêm investidores, a fim de negar uma dedução, por exemplo, se o
rendimento não for tributável no Estado onde se encontra o beneficiário. A
tarefa hercúlea pressupõe elevadíssimo grau de troca de informações e, de
todo modo, tende a se ver frustrada. Afinal, a complexidade dos sistemas tri-
butários é fato por demais comezinho para ser ignorada pelo Alto Comando.
Se mesmo para consultores tributários não é raro haver dúvida quanto a se
determinado tipo de rendimento está, ou não, sujeito à tributação (o que sem-
pre depende da análise da situação concreta do contribuinte), que dizer de um
Estado estrangeiro, não familiarizado com tais regras e sem acesso aos dados
do contribuinte? Seria necessário que, a cada dedução autorizada em um Es-
tado, fosse feita uma auditoria pelo Estado do beneficiário, a quem caberia
informar se o rendimento foi, ou não, tributado. Evidentemente, nem mesmo
os autores do Projeto BEPS poderiam acreditar possível tal tarefa. À falta de
tal procedimento, entretanto, o que se terá, no máximo, é a identificação de
uma ou outra estrutura favorecida. Movem-se tropas, dão-se alguns tiros e
canta-se a vitória, sem perceber que o inimigo permanece intacto. 
A tal dilema some-se a própria desorganização imposta aos exércitos
nacionais, que passam a ter comportamentos diferentes conforme os sinais
dados pelos aliados. É dizer, contribuintes em situação equivalente sofrem
tratamentos diversos (dedução ou não dedução de uma despesa) motivados
pela forma como outros contribuintes (os beneficiários dos rendimentos) são
tributados em outras jurisdições. Não é difícil imaginar que Judiciários nacio-
nais, se chamados a examinar o tema, poderão entender violada a isonomia
tributária. A solução possível é uniformizar e generalizar a  indedutibilida-
de  de pagamentos, independentemente do tratamento tributário concedido
em outro Estado. Se essa atitude permite conciliar-se com o Princípio da
Igualdade, implica um tratamento igualmente injusto, ao negar a dedução de

41
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

despesas necessárias, malferindo o Princípio da Renda Líquida e colocando


o país que assim proceder em desvantagem, pela extrema onerosidade de seu
sistema tributário. Descartada a hipótese de que todos os sistemas tributários,
uniformemente, abram mão de tributar a renda líquida, reabre-se o cenário
de competição entre aliados, desfazendo-se a proposta de coordenação que se
apresenta como alicerce do Projeto BEPS. 
Não menos relevante é perceber que nenhum aliado parece disposto a
deixar de considerar o cenário pós-guerra, qual seja: ao dobrar-se às exigên-
cias do Alto Comando, um Estado pode vir a desorganizar seu próprio siste-
ma tributário, deixando-o menos atrativo quando finalmente for implantada
a pax. Não causa estranheza, daí, a desconfiança quanto ao fato de que a Ação
2 adota como medida primária a modificação dos sistemas tributários dos
Estados onde estão as fontes dos rendimentos, apenas se considerando alte-
rações nos sistemas tributários das residências dos investidores em âmbito
secundário, quase como reação à inação dos primeiros. 

Ação 3 - Reforçar as normas relativas às Sociedades


Estrangeiras Controladas ("CFC rules”) 
 O Relatório OCDE não desenvolveu, como reconhece a própria OCDE,
nenhum trabalho relevante sobre as regras CFC. A Ação 3 tem como propósito
elaborar diretivas referentes à elaboração de tais regras, já que uma das preocu-
pações do Projeto BEPS é a possibilidade da criação de coligadas não residentes
e da transferência de lucros de uma sociedade residente, por meio dessa coligada
não residente. Regras CFC têm o efeito de neutralizar as eventuais vantagens
obtidas em países de baixa tributação, já que os lucros ali auferidos se veem
imediatamente tributados pelo país da controladora. Sua eficácia, obviamente,
limita-se aos casos em que o desvio de lucros (profit shifting) se faz em sentido
vertical descendente, de nada adiantando no caso de transferência para empre-
sas interligadas ou controladoras no exterior. Não surpreende, daí, que várias
empresas venham adotando o procedimento denominado "inversão" ("tax in-
versions” - AVI-YONAH (2002) e CRACEA (2013)), de modo a tornar interliga-
das sociedades antes controladas, afastando-se da legislação CFC. 
O Relatório Final da Ação 3 estabelece recomendações divididas em blo-
cos, as quais não formam padrões mínimos, mas procuram garantir que os

42
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Estados que as implemente tenham regras que efetivamente impeçam os con-


tribuintes de transferirem lucros para subsidiárias estrangeiras. Os seis blocos
que compõem esse relatório são: (i) conceito de uma CFC; (ii) exceções e re-
quisitos mínimos de uma CFC; (iii) definição de renda; (iv) contabilização de
renda; (v) alocação de renda; e (vi) prevenção e eliminação da dupla tributação
(OCDE, 2015c, pp. 9-10).
Mais uma vez, tem-se ação cuja eficácia parece limitada, pois ao deixar
de lado o tema das inversões, acima referido, acaba por tornar atraentes os Es-
tados cuja legislação CFC seja menos rígida. É dizer, o reforço em uma frente
de trabalho leva o inimigo a concentrar suas forças em frente mais vulnerável.
O Alto Comando não conta com ferramentas para impor seu Plano Estraté-
gico, precisando contar com a boa vontade dos aliados. Não é incomum na
história das guerras, marcada por traições e conluios, que alianças sejam rom-
pidas e antigos inimigos acabem por se unir. Não causará espécie, portanto,
que um aliado propositadamente reduza seu poder de fogo, a fim de facilitar a
fuga do antigo inimigo em sua direção. 

Ação 4 - Limitar a Erosão da Base Tributária através da


dedução de juros e outras compensações financeiras 
Como bom Plano Estratégico, importa prever que a atuação da artilha-
ria, certamente de largo alcance, seja acompanhada pela movimentação da
infantaria, mais dirigida. Assim, se na Ação 2 já se via uma tendência a limi-
tação na dedutibilidade de despesas, a Ação 4 pode ser vista como uma espe-
cialização, já que pretende desenvolver orientações relativas às boas práticas
para a criação de normas que se propõem a evitar a erosão da base tributá-
ria através do uso de despesas de juros e de outras compensações financeiras
equivalentes. Por exemplo, impedir a utilização do recurso a empréstimos de
sociedades relacionadas ou terceiras, com o intuito de obter deduções exces-
sivas de juros ou para suportar a produção de um rendimento isento ou di-
ferido. Isso porque a dedutibilidade da despesa de juros poderia gerar aquilo
que se quer chamar "dupla não tributação" (expressão, de resto, infeliz, dada
a dupla negativa) no caso de investimento estrangeiro e também na hipóte-
se de investimento nacional no exterior. A preocupação referente à dedução
das despesas de juros tem relevo em relação a empréstimos de uma entidade

43
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

coligada, que é favorecida por um regime tributário privilegiado, para criar


abundantes deduções de juros para o devedor, sem a inclusão dos rendimen-
tos de juros  correspondente pelo titular. Do ponto de vista do investimen-
to nacional no exterior, uma empresa pode se valer do endividamento para
financiar a produção de um rendimento isento ou diferido, reivindicando a
dedução das despesas de juros ao mesmo tempo em que difere o pagamento
do tributo. Em suma, para o Projeto BEPS, as regras sobre a dedutibilidade
das despesas de juros devem considerar que o rendimento correspondente aos
juros pode não ser completamente tributado, ou que a dívida subjacente pode
ser indevidamente usada para reduzir a base da receita do devedor, ou até para
financiar uma receita diferida ou isenta (OCDE, 2013, pp. 16-17). 
A implementação desta Ação, mais uma vez, não se fará sem que se en-
frentem questionamentos nas ordens internas. Além da questão da igualda-
de, já mencionada, tem-se a própria rejeição do Princípio da Renda Líquida.
É certo que muitos ordenamentos parecem aceitar que ao se justificar como
norma antiabuso, pode-se admitir que a lei tributária escape dos contornos da
capacidade contributiva. No caso brasileiro, entretanto, com a rígida limita-
ção de competências e com um conceito de renda definido pela Lei Comple-
mentar, a limitação de despesas necessárias pode ser problemática. 

Ação 5 - Combater de modo mais eficaz as práticas tributárias


prejudiciais, tendo em conta a transparência e a substância 
Por meio da Ação 5, o Alto Comando percebe que podem provir dos pró-
prios aliados os principais incentivos para o avanço do inimigo. Este não se-
gue em campo minado, já que recebe um mapa cuidadosamente elaborado de
modo a trilhar via segura em direção à vitória. Conquanto a OCDE já tenha
publicado relatórios a respeito das práticas fiscais danosas, como o relatório
intitulado Harmful Tax Competition (OCDE, 1998), o Projeto BEPS pretende,
pela Ação 5, reformular esses trabalhos já realizados, dando prioridade ao
aumento da transparência, sobretudo à troca de informações sobre as normas
relativas aos regimes preferenciais, e à obrigação de exigir uma atividade subs-
tancial para qualquer regime privilegiado.
A atuação vai além da aliança formal: a Ação 5 objetiva dialogar até mes-
mo com os países não membros da OCDE a fim de garantir uma abordagem

44
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

global sobre o assunto. Afinal, segundo o Projeto BEPS, somente através de


um consenso internacional sobre o conjunto de normas comuns, será pos-
sível impedir a atual competição que tem levado a uma "race to the bottom”
(OCDE, 2013, pp. 17-18). 

Ação 6 - Prevenir a utilização abusiva


dos Acordos de Bitributação 
Conforme dispõe o Projeto BEPS, a utilização abusiva dos acordos de bi-
tributação é um dos principais pontos de atenção no que diz respeito às práticas
da erosão da base tributária e da transferência de lucros. Por isso, a Ação 6 visa
a desenvolver disposições modelo para tratados de dupla-tributação bem como
recomendações referentes à criação de normas internas que impeçam a concessão
de benefícios previstos nos acordos de maneira inadequada. Ademais, a Ação 6
procura adicionar outro objetivo aos tratados de bitributação, qual seja, impedir
que os acordos gerem "dupla não tributação". Também a Ação tem como escopo
identificar critérios de política fiscal que devem ser considerados pelos Estados ao
celebrarem acordos de bitributação (OCDE, 2013, pp. 18-19). 
Das muitas ressalvas que podem ser feitas com relação a esta Ação, deve-se
dar relevância ao fato de que não se encontra clara a noção de abuso, pressuposto
da Ação. Afinal, se abuso implica o uso além da finalidade para a qual foi concebi-
do o instrumento, importa indagar, ao menos, se ela foi, ou não, atingida.
Os defensores da repressão ao "treaty shopping" entendem que os acordos
de bitributação têm a finalidade de afastar a bitributação em bases bilaterais. Pre-
tendem, agora, introduzir a finalidade de evitar a "dupla não tributação". Deixam
de lado, assim, a finalidade primeira dos acordos: promover os investimentos in-
ternacionais, oferecendo segurança jurídica. Se esta é uma finalidade relevante,
então abusiva será a transação que não reflita investimentos; se estes ocorrem,
então não há que se falar em abuso, mas mero uso dos acordos de bitributação. 

45
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ação 7 - Prevenir que o status de Estabelecimento


Permanente seja artificialmente evitado 
Em muitos casos, as multinacionais fragmentam de maneira artificial
as suas atividades entre várias entidades do grupo, a fim de se enquadrar nas
exceções ao status de Estabelecimento Permanente (EP) enquanto atividades
preparatórias ou auxiliares. Dessa forma, a Ação 7 tem como objetivo atua-
lizar a definição de EP para prevenir abusos, ou seja, impedir que o status de
EP seja artificialmente evitado quanto à erosão da base tributária e à transfe-
rência de lucros (OCDE, 2013, p. 19). 
Não deixa de ser decepcionante o resultado da Ação 7, já que trata de
problemas pontuais (agentes e comissários e fragmentação) que, de resto, já
vinham sendo satisfatoriamente tratados pelos tribunais, com mera interpre-
tação dos textos vigentes. É dizer, dirige-se um batalhão para território onde
não se encontra resistência, desperdiçando-se a oportunidade de um ataque
realmente inovador. As lacunas decorrentes da insistência, pela OCDE, em
manter o EP como critério para repartição de receitas tributárias remanescem
intocadas. Mesmo os pequenos avanços nessa área (estabelecimento de ser-
viços) não são examinados e mantêm falhas facilmente identificáveis. Como
exemplo, pode-se mencionar a insistência em adotar-se critério baseado em
número de dias com presença física, algo paulatinamente irrelevante para que
uma empresa atue em um mercado. A aproximação holística prometida pela
OCDE não se vê confirmada nesta Ação, já que se perde a oportunidade de re-
conhecer que o próprio conceito de EP, enquanto índice de presença no mer-
cado e critério divisor de competências tributárias, deve ser revisto.

Ações 8, 9 e 10 - Garantir que os resultados dos Preços de


Transferência estejam alinhados com a criação de valor 
As atuais regras de preços de transferência, baseadas no princí-
pio arm’s length, não encontraram ainda substituto adequado para a apuração
da capacidade contributiva (SCHOUERI, 2015b). A OCDE reconhece-lhes,
ainda, a virtude de alocarem, muitas vezes, de forma eficiente e eficaz os ren-
dimentos das multinacionais entre as diversas jurisdições fiscais. Entretanto,
aponta não serem raros os casos em que há o uso indevido dessas normas, se-

46
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

parando o rendimento das atividades econômicas que o geram e o transferin-


do para Estados com tributação favorecida. É assim que justifica suas Ações 8,
9 e 10 (OCDE, 2013, pp. 19-20). 
Em comum, as Ações revelam a ideologia de seus formuladores, que iden-
tificam na criação de valor (value creation) o critério para a alocação de receitas
tributárias. Se esta ideia dificilmente se contesta, sua conceituação revela simpli-
ficação que não parece aceitável. Não há dúvida que, para a criação de valor, as
atividades exercidas pelos envolvidos, seus riscos e os ativos empregados sejam
relevantes. A fórmula, entretanto, não esgota os fatores relevantes nem tampou-
co responde ao peso de cada um deles. Basta dizer que deixa de lado a relevância
do mercado consumidor, enquanto fator fundamental para a criação de riqueza.
Quando se tem em conta que o reconhecimento do mercado implicaria a aloca-
ção de base tributável para os Estados onde estão os consumidores (Estado da
fonte), ficam evidentes os riscos a que se exporiam os formuladores do Plano Es-
tratégico (majoritariamente Estados de residência) caso este componente fosse
adicionado. Mais uma vez, evidencia-se que a aliança tem caráter temporário e
o Alto Comando não deixa de lado as relações entre os aliados uma vez derro-
tado o inimigo comum: importa ter presente o objetivo de não se colocarem em
risco os territórios antes conquistados.
A Ação 8 tem como escopo desenvolver normas que impossibilitem a
erosão da base tributária e a transferência de lucros através da transmissão de
ativos intangíveis entre membros de um mesmo grupo. Desse modo, propõe-
-se a Ação 8 a: (i) empregar um conceito abrangente e bem delimitado de ati-
vos intangíveis; (ii) garantir que os lucros associados com a transferência e o
uso de ativos intangíveis sejam adequadamente alocados em função da cria-
ção de valor (conceito, como visto, questionável); (iii) criar normas de preços
de transferência ou medidas especiais aplicáveis às transferências de ativos
intangíveis de complexa valorização; e (iv) atualizar as orientações referentes
às disposições de divisão de custos (OCDE, 2013, p. 20). 
Por sua vez, a Ação 9 lida com riscos e capital. Na estratégia militar,
destroem-se pontes e vias pelas quais poderia passar o inimigo, de modo a
direcioná-lo a campo onde a captura seja mais fácil. Ou seja, essa ação visa
elaborar regras que obstem o BEPS através da transferência de riscos entre
entidades de um mesmo grupo, ou da concessão de uma parcela excessiva do
capital a membros de um mesmo grupo. Para esse fim, propõe-se a adoção de

47
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

normas que impossibilitem que uma entidade concentre retribuições conside-


radas "inapropriadas" em razão de apenas ter assumido riscos contratualmen-
te ou porque injetou capital. Ademais, os retornos devem ser proporcionais
(novamente) à criação de valor (OCDE, 2013, p. 20). Como se vê, nesta Ação
se percebe que o padrão arm´s length, por se basear em critérios de mercado,
apenas reflete preços transacionais. A Ação 9 dá um passo adiante, interferin-
do nas próprias transações, ao interferir na própria liberdade de transferência
de riscos ou propriedade. 
Por fim, a Ação 10 pretende enfrentar as transações nas quais socieda-
des independentes raramente ou jamais participariam. Assim, a Ação 10 tem
como objetivo elaborar regras de preços de transferência ou medidas especiais
para: (i) explicitar as situações nas quais as operações podem ser requalifi-
cadas; (ii) esclarecer o emprego de métodos de preços de transferências, em
especial na divisão de lucros, sob a óptica das cadeias mundiais de valor; e (iii)
se resguardar contra os tipos mais usuais de pagamentos que têm como efeito
a erosão da base tributária (e.g., as comissões de gesto e as despesas da sede)
(OCDE, 2013, pp. 20-21). Mais uma vez, já não se usa o padrão arm´s leng-
th para valorar transações entre partes independentes: ao contrário, propõe-se
desprezarem negócios efetivos, taxando-os de inusuais.

Ação 11 - Estabelecer Metodologias para coletar e


analisar os dados sobre os fenômenos econômicos da
erosão da base tributária e da transferência de lucros e
as ações para remediá-los 
A Ação 11 tem o escopo de garantir informações ao setor de inteligência
do Alto Comando. Conforme enunciado no Projeto BEPS, a transparência a
vários níveis está intrinsecamente ligada à prevenção da erosão da base tribu-
tária e da transferência de lucros. Assim, o desenvolvimento da disponibilidade
e da análise de dados relativos ao BEPS é imprescindível. Consequentemente, o
próprio monitoramento da implementação do Projeto BEPS se faz necessário.
Dessa forma, a Ação 11 procura desenvolver recomendações referentes aos indi-
cativos da dimensão e da repercussão econômica do BEPS, bem como garantir a
disponibilidade de instrumentos para monitorar e avaliar a eficácia e o impacto

48
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

econômico das diversas ações. Portanto, é mister efetuar um exame econômi-


co sobre a dimensão e o impacto do BEPS e possíveis ações para remediá-lo.
Logo, a Ação 11 abrange não só a revisão de um conjunto de fontes de dados
existentes, como também a identificação de novos tipos de dados que precisam
ser coletados e o desenvolvimento de novas metodologias, porém sempre res-
peitando a privacidade dos contribuintes e levando em conta os custos para as
administrações tributárias e o setor privado (OCDE, 2013, pp. 21-22). 

Ação 12 - Exigir que os contribuintes revelem os seus


esquemas de planejamento tributário agressivo 
De acordo com o Projeto BEPS, a transparência também está relacionada
com a necessidade de criação de regras de declaração obrigatória de transações,
esquemas, ou estruturas tributárias que tenham caráter agressivo/abusivo. Con-
tudo, essas normas precisam ser ponderadas com base nos custos para as admi-
nistrações tributárias e para o setor privado, a partir da experiência dos Estados
que possuem tais regras. Em outras palavras, a Ação 12 cuida da necessidade de
disponibilização de informação de maneira tempestiva, orientada e pormenori-
zada, pois isso é crucial para permitir aos governos detectar mais rapidamente
as áreas de risco. Nesse sentido, portanto, medidas cujo objetivo seja melhorar
o fluxo de informações sobre riscos para as administrações tributárias ou pre-
sentes em programas de cooperação e de conformidade entre contribuintes e
autoridades fiscais podem ser bem úteis (OCDE, 2013, p. 22). 
A Ação 12 poderia ser vista como uma exceção à estratégia militar que
inspira o Projeto BEPS, se contasse com incentivos para que os contribuintes
adotassem postura mais transparente em relação às próprias operações. Não
obstante, quando se fala em declaração obrigatória, mais uma vez se parte
para o confronto e imposição, tornando duvidoso o êxito da empreitada. 

Ação 13 - Reexaminar a documentação


de preços de transferência 
As medidas de inteligência exigem que os aliados troquem experiências
e informações. A aliança não se dá apenas no campo de batalha; muitas vezes,
a informação revela-se arma poderosa para a conquista do inimigo. A trans-

49
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

parência engloba os preços de transferência e a análise da cadeia de valor. Isso


porque um dos grandes problemas relativo a esses temas é a assimetria de infor-
mação entre autoridades tributárias e os contribuintes. Desequilíbrio esse que
pode solapar a aplicação do princípio da plena concorrência e elevar as chances
de BEPS. Ademais, as administrações tributárias têm dificuldade em obter uma
visão ampla da cadeia de valor mundial de um contribuinte. Não é à toa, destar-
te, que a Ação 13 visa ao desenvolvimento de normas sobre a documentação de
preços de transferência com o intuito de fortalecer a transparência para a admi-
nistração tributária, levando em conta os custos de conformidade para o setor
privado. Logo, isso inclui nas normas a serem elaboradas o requisito de que as
multinacionais deverão fornecer aos governos informações relevantes sobre a
divisão global dos lucros, sobre as suas atividades econômicas e também os im-
postos pagos nos vários Estados (OCDE, 2013, pp. 22-23). 

Ação 14 - Tornar mais efetivos os instrumentos de


resolução das disputas 
Juntamente com as ações para conter o BEPS, há a Ação 14 que alega
pretender assegurar a segurança jurídica para o setor privado. Para tanto, esta
Ação projeta desenvolver soluções para lidar com os obstáculos que impedem
os Estados de resolverem disputas relativas aos acordos de bitributação sob o
teto do Procedimento Amigável. Esse trabalho também contempla abranger
uma cláusula de arbitragem obrigatória e vinculativa para complementar o
dispositivo do Procedimento Amigável (OCDE, 2013, p. 23). 
A adoção de arbitragem pode, sem dúvida, contribuir para a segurança
jurídica e deve ser aplaudida. Importa, entretanto, ver se os Estados estarão dis-
postos a submeter-se a tanto. Posto que infundadas (SCHOUERI, 2016), não
são comuns restrições a tal procedimento, alegando-se a indisponibilidade do
crédito tributário, ou colocando-se em dúvida a imparcialidade dos árbitros. 

Ação 15 - Desenvolver um instrumento multilateral 


A Ação 15, revela a atuação da engenharia militar, encarregada de cons-
truir ponte para que se possa avançar sobre o território inimigo. Esta ponte apa-
rece na proposta de um Instrumento Multilateral, cabendo à Ação 15 examinar

50
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

questões de direito tributário e de direito público internacional que permeiam


sua elaboração. Em virtude do grande número de modificações que serão exi-
gidas pelas outras ações do Projeto BEPS, a elaboração de um instrumento
multilateral é proposta enquanto uma alternativa inovadora, vez que o elevado
número de tratados vigentes pode tornar todo esse processo muito moroso, so-
bretudo quando os países iniciarem renegociações mais amplas de seus acordos
bilaterais. Ou seja, o instrumento multilateral acaba por constituir uma via aus-
piciosa para corrigir os tratados de bitributação (OCDE, 2013, pp. 23-24). 
Como qualquer obra de engenharia, serão os alicerces que determinarão
a estabilidade da ponte assim construída. Funda-se o Instrumento Multilate-
ral na construção de um consenso, mas, ao mesmo tempo, percebe-se que este
dificilmente será alcançado, admitindo-se que os Estados venham a aderir ape-
nas parcialmente a seus termos. Assim, por exemplo, enquanto alguns Estados
adotarão as cláusulas de limitação de benefícios (LOB), outros preferirão aquela
que buscará um dos principais propósitos (PPT) e outros, finalmente, seguirão
ambas as cláusulas. Se esta característica já aponta para um instrumento poro-
so, agrava-se a perspectiva quando se considera que acordos de bitributação são
instrumentos bilaterais, baseados em concessões mútuas. Por meio de um acor-
do multilateral, um Estado abrirá mão de posições contratuais conquistadas à
custa de diversas concessões, sem ter contrapartida correspondente.

III – À Guisa de Conclusão: do Antagonismo à Cooperação 


A história da Europa ocidental, marcada por guerras contínuas, viveu
uma reviravolta quando países destruídos por dois confrontos de proporções
mundiais optaram por deixar de lado a lógica do confronto, substituindo-
-a pela cooperação. Se a Paz de Versailles, imposta aos derrotados, serviu de
combustível para a Segunda Grande Guerra, o Tratado de Roma, que deu nas-
cimento à Comunidade Econômica Europeia será visto pelas futuras gerações
como marco de uma era que, se não trouxe a paz perene (sem dúvida, con-
flitos ainda existem, muitos de natureza não bélica), certamente trouxe um
progresso memorável, ao tornar evidente que os Estados têm mais a ganhar
ao cooperarem uns com outros. A guerra deixava de ser o único meio para
a conquista de mercados: estes podem ser alcançados, de forma ainda mais
eficiente, a partir da cooperação e da integração econômica. 

51
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No que se refere ao BEPS, é surpreendente que igual lógica não tenha sido
cogitada: não se encontra, no Relatório BEPS, indicação de mecanismos para
que os contribuintes passem a se interessar pelos problemas dos Estados e uns e
outros busquem saídas adequadas. Não parece razoável admitir que o universo
das empresas que atuam no comércio internacional seja formado por entidades
que, visando ao próprio interesse, deixem de lado as necessidades das comuni-
dades nas quais estão inseridas. Ao contrário, se uma regra deve ser estabeleci-
da, esta será no sentido de que as empresas, principalmente as de maior porte,
buscam cumprir suas obrigações. Aliás, não é diverso o que se observou no caso
do BEPS: não parece ser seu principal foco as empresas que atuam contraria-
mente às leis; ao contrário, o que se tem, no mais das vezes, são empresas que,
atuando dentro dos limites legais, acabam por otimizar sua carga tributária.
Em tal cenário, a lógica do confronto leva os contribuintes à defesa de
suas posições. Porque baseadas na legalidade, não há como censurar sua ati-
tude. Aos Estados, resta-lhes mudar as leis, criando-se, daí, um ambiente de
extrema mutação legislativa, cujo efeito pernicioso aos investimentos é ele-
mentar. Não se olvide, ademais, que o ambiente de confronto não permite ao
vencedor tranquilizar-se, já que continuará sob a ameaça de revide do venci-
do, o que somente se afastaria com seu aniquilamento. 
É justamente neste ponto que se revela a necessidade de revisão da lógica
militar que reinou na consecução do Projeto BEPS: o aniquilamento do vencido
é impossível, já que os Estados dependem da saúde financeira de seus contri-
buintes, sem o que não há como exercerem sua pretensão tributária. Se é verda-
de que os contribuintes dependem dos Estados, também estes não podem viver
sem o concurso dos primeiros. A necessidade de cooperação se torna imediata. 
A cooperação, por sua vez, pressupõe transparência. Não como medi-
da imposta, unilateralmente, por quem detenha mais força: a transparência
de todas as partes envolvidas é requisito para que surja a confiança, base de
qualquer cooperação. Se os Estados não confiam nos contribuintes, não há
razão para que estes se aproximem daqueles. Apenas com a confiança na ma-
nutenção das regras do jogo (segurança jurídica) é que se têm investimentos,
matéria prima para o surgimento da base tributável.
A cooperação não deve ser feita apenas no sentido vertical (fisco e con-
tribuinte): igual confiança se espera que os Estados tenham, uns nos outros.
Não se alcança bom termo quando os Estados têm medo de abrir mão de posi-

52
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ções conquistadas no passado. A transparência passa pela revisão de parâme-


tros tidos por imutáveis, mesmo que contrariando o que se pretende chamar
"regime tributário internacional" (AVI-YONAH, 2007). Sem que se ingresse
na controvérsia quanto à existência deste, o fato é que ele é descrito a partir
da lógica dos países que, até hoje, foram capazes de impor seus interesses na
repartição de receitas tributárias. Não é surpresa que a OCDE tenha finca-
do o pé na tributação pelo Estado da residência e o Projeto BEPS não ponha
em discussão esse parâmetro: aberta essa controvérsia, então haverão de ser
considerados os interesses e as legítimas pretensões dos países em desenvolvi-
mento, em sua maioria países importadores de capital. A falta de argumento
para manter o status quo, conquistado mais pela predominância econômica
de seus defensores que pela lógica de seus fundamentos, leva o Projeto BEPS
a abrir mão da discussão. À desejada transparência opõe-se a opacidade de
conquistas passadas levadas a cabo longe da luz do dia. 
O Projeto BEPS surge, pois, com o estigma do conflito e da pressão.
Abrindo mão da transparência, não oferece bases de confiança entre os inte-
ressados. O risco é a perda de oportunidade de se construir uma nova ordem
tributária. O BEPS mudará, por certo, suas feições à luz das novas pressões.
Não parece, entretanto, ter seus dias contados. 

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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55
2. Combate às Práticas Fiscais Danosas
e a Soberania Fiscal dos Estados

Clara Gomes Moreira


Doutoranda em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo.
Advogada no Rio de Janeiro e São Paulo.

Resumo: Esse artigo destina-se ao estudo do plano de ação n. 05 “Com-


bate mais efetivo às práticas fiscais danosas, considerando a transparência e
a substância”. Questiona-se se o combate às práticas fiscais danosas seria um
princípio geral de direito reconhecido pelas nações civilizadas e se ele seria
compatível com a soberania fiscal dos Estados. Isso com o objetivo de de-
monstrar a inexistência de um consenso acerca da sua definição, a falha da sua
base empírica e os seus reais beneficiários.
Palavras-chave: Práticas fiscais danosas. Princípio geral de direito reco-
nhecido pelas nações civilizadas. Soberania fiscal.
Abstract: This article intends to study the action plan No. 05 “Counte-
ring harmful tax practices more effectively, taking into account transparency
and substance”. It is asked whether the fight against the harmful tax practices
would be a general principle of law recognized by civilized nations and whe-
ther it would be compatible with the tax sovereignty of the States. This study
aims to demonstrate the absence of a consensus on its definition, the failure of
its empirical basis and its actual beneficiaries.
Key-words: Harmful tax practices. General principle of law recognized
by civilized nations. Tax sovereignty.

Introdução
Esse artigo destina-se ao estudo do plano de ação n. 05 – “Combate mais
efetivo às práticas fiscais danosas, considerando a transparência e a substância”
(Countering harmful tax practices more effectively, taking into account trans-
parency and substance).

57
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em linhas gerais, esse plano representa a continuação do movimento ini-


ciado pela OCDE, mais notoriamente, em 1998, com a publicação do relatório
“Competição fiscal danosa. Uma questão global emergente.” (Harmful tax com-
petition. An emerging global issue). Esse movimento busca pôr fim à “competição
fiscal agressiva” entre os países. Isso porque essa interferiria negativamente na
tributação, no comércio internacional e na livre alocação dos investimentos.
Questiona-se nas páginas que se seguem sobre o conteúdo e o funda-
mento das “práticas fiscais danosas”. Isso com o objetivo de averiguar se há um
princípio geral de direito reconhecido pelas nações civilizadas (“PGDRNC”)
em torno desse instituto e os reflexos relativos à soberania fiscal dos Estados.
Explique-se: em inúmeras oportunidades, a OCDE (2014, p. 14) sustenta
que “o combate às práticas fiscais danosas é um interesse comum dos países
membros e não-membros da OCDE”6. Desse modo, existiria um “consenso”
entre tais Estados sobre a temática. Ao mesmo tempo, ela afirma que “os paí-
ses mantêm a sua soberania sobre as questões fiscais [...], desde que não entrem
em conflito com os compromissos jurídicos internacionais assumidos”7 (OCDE,
2014, p. 04). Ela assim conclui que (OCDE, 1998, p. 16):
Práticas desse tipo podem ser adequadamente rotuladas como com-
petição fiscal danosa, pois não refletem diferentes julgamentos sobre o
adequado nível de tributação e de gastos públicos, ou a adequada com-
binação entre os tributos e a economia particular, que são aspectos de
toda soberania dos países em matéria fiscal, mas são, por conseguinte,
adaptadas para atrair investimentos ou poupanças originárias de outro
lugar, ou para facilitar a evasão de tributos de outros Estados.8

Essas proposições encerram o seguinte entendimento: o combate à


competição fiscal agressiva não viola a soberania fiscal, na medida em que

6 “[…] combating harmful tax practices is an interest common to OECD and non-OECD member
countries alike.” [tradução livre]
7 “[...] countries retain their sovereignty over tax matters […], as long as they do not conflict with
countries’ international legal commitments.” [tradução livre]
8 “Practices of this sort can appropriately be labelled harmful tax competition as they do not reflect
different judgements about the appropriate level of taxes and public outlays or the appropriate mix
of taxes in a particular economy, which are aspects of every country’s sovereignty in fiscal matters,
but are, in effect, tailored to attract investment or savings originating elsewhere or to facilitate the
avoidance of other countries’ taxes.” [tradução livre]

58
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aquela não está compreendida nessa. Em outras palavras, não é legítimo que
um Estado desenhe o seu sistema tributário para atrair os investimentos es-
trangeiros com o objetivo primeiro de erodir a base de tributável de outro
Estado. Isso em razão do efetivo deslocamento de capitais e/ou da facilitação
de comportamentos abusivos dos contribuintes com relação a esse segundo
Estado. Diferente é a hipótese em que o Estado meramente traça o seu regime
de tributação, compatibilizando as receitas tributárias e as não tributárias, e
as despesas a serem realizadas.
Por conseguinte, duas são as finalidades da tributação: uma “apropriada” e
“aceitável” finalidade arrecadatória ou fiscal, e uma finalidade competitiva abusiva.
Essa última finalidade pode possuir quatro perspectivas: (i) uma primeira
obrigatoriamente fiscal relativa à carga tributária a que estão sujeitas as pessoas ju-
rídicas contribuintes do imposto sobre a renda; (ii) uma segunda referente à trans-
parência e à segurança jurídica, em função da espontânea troca de informações e
da clareza e eficácia do Direito; (iii) uma terceira com relação à igualdade de trata-
mento entre os residentes e os não residentes; e (iv) uma quarta quanto à introdução
e aplicação das normas antiabusivas. Contudo, a delimitação de cada uma dessas
perspectivas é indeterminada, como se demonstrará.
Por todo o exposto, neste artigo, os questionamentos a serem enfrenta-
dos são dois: “O combate às práticas fiscais agressivas é um princípio geral de
direito reconhecido pelas nações civilizadas?” e “O combate às práticas fiscais
agressivas é compatível com a soberania fiscal dos Estados?”.
Esse estudo é dividido em três momentos. Em um primeiro, delimita-se
a “competição fiscal agressiva” tal como fundamentada nos aludidos trabalhos
da OCDE. Pretende-se demonstrar que os consensos sob os quais repousa
esse instituto são falsos e de falha percepção empírica. Longe de expressa-
rem um instituto uniforme entre os países. Em seguida, passa-se ao exame
dos PGDRNC. Um aprofundamento sobre a temática extrapola o objeto desse
estudo. Busca-se apenas demonstrar que a qualificação do combate à prática
fiscal danosa como um PGDRNC esbarra em elementos essenciais dessa fonte
de direito internacional. Por fim, enfrenta-se a possível violação da soberania
fiscal dos Estados, especialmente, daqueles em desenvolvimento. Dessa for-
ma, identificam-se quem são os beneficiários do plano de ação n. 05. Esse é o
debate entre o Estado da residência e o Estado da fonte.

59
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Neste artigo, pretende-se colaborar para uma análise mais profunda so-
bre os dogmas construídos na defesa contra as práticas fiscais consideradas
danosas e o seu confronto com a natureza cooperativa do Projeto BEPS. Acre-
dita-se que discutir com vigor sobre tal temática, de maneira a se coadunar o
combate a essas condutas e a soberania fiscal dos Estados seja uma condição
essencial para eventuais progressos nessa área.

1. Delimitação da prática fiscal danosa:


entre vagueza e contradição

1.1 Divergências doutrinárias


Anzhela Yevgenyeva e Joachim Englisch (2013, p. 626) admitem
inexistir um consenso sobre o que seja uma prática fiscal danosa, em termos
acadêmicos e políticos. A despeito de ser defensor de um PGDRNC de com-
bate a essas práticas, Tulio Rosembuj (1999, p. 320) reconhece não ser cla-
ra a linha que divide a competição fiscal “danosa” daquela “boa”. Dito isso,
inaugura-se esse ponto com um elenco de definições encontradas na doutrina,
objetivando confrontá-las entre si.
Yevgenyeva e Englisch (2013, p. 626) concebem a competição fiscal
como o comportamento não-cooperativo entre os Estados, em que cada qual,
na autonomia da sua soberania, estabelece a sua carga tributária. Entretanto,
em um cenário de competição, os comportamentos individuais não são em
absoluto independentes. Um influencia o outro em uma relação mútua e con-
tínua de superação, observados os diversos limites de consecução dessa opção.
Barry Bracewell-Milnes (1999, p. 87) lembra que não há uma razão
para distinguir a competição entre os agentes econômicos daquela fiscal entre
os Estados. As decisões tributárias de um país quanto ao tratamento dos re-
cursos financeiros estrangeiros, direta ou indiretamente, influenciam as polí-
ticas fiscais concebidas por outros Estados.
Aproximando-se do estudo acerca da finalidade, Rosembuj (1999, p.
317) identifica a competição fiscal por meio da instituição de regimes fiscais
preferenciais, especiais ou excepcionais destinados ao investidor estrangeiro.
Isso porque existiria uma finalidade exclusiva de “tax-driven” em relação aos

60
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

demais países. Nessa concepção, o efeito relevante para a identificação dessas


práticas fiscais danosas é a falsa alocação dos recursos financeiros, em prejuí-
zo das demais jurisdições tributárias.
Em outras palavras, a competição fiscal é “boa” ou “positiva”, quando
não afeta a livre alocação de capitais, uma vez que ela não constitui o fun-
damento primeiro dessa decisão econômica (ROSEMBUJ, 1999, p. 325). Em
sentido inverso, reputa-se que a competição fiscal é “danosa”, na medida em
que causa ou é suscetível de provocar danos aos interesses dos demais Estados
(ROSEMBUJ, 1999, p. 326).
Pergunta-se em que medida esse critério de discrímen é válido, uma vez
que o fator tributário, em muitos casos, constitui um fator decisivo (e primei-
ro) para o deslocamento de uma atividade econômica. Para muitos, essa neu-
tralidade fiscal não possui uma tradução em termos concretos. Trata-se de um
estado ideal a ser perseguido. Ademais, a identificação dos danos provocados
nos demais Estados muitas vezes é incomensurável.
Mitchell B. Weiss (2001, p. 128), de modo complementar ao entendi-
mento de Yevgenyeva e Englisch (2013, p. 626), sustenta que se deveria ques-
tionar sobre a compatibilidade entre a carga tributária a que submetida o sujeito
passivo e os bens e os serviços públicos que lhe são entregues. Isso pois, como
lembram Yevgenyeva e Englisch (2013, p. 626), a tributação de fontes móveis
é justificada pela noção de benefício, em contraposição à capacidade contribu-
tiva, ainda que essa remanesça como um limite da atividade tributária estatal.
Rosanne Altshuler (2014, p. 362) observa que a adoção por uma juris-
dição de uma política fiscal internacional competitiva busca, precipuamente,
elevar a arrecadação de receitas, para fins de melhorar a qualidade de vida nesse
país. Isso através da atração de atividades economicamente relevantes, de inves-
timentos ou meramente de lucros (YEVGENYEVA e ENGLISCH, 2013, p. 626).
Essa dissonância, diriam alguns, de posicionamentos doutrinários no
tocante à finalidade da competição fiscal demonstra a existência de uma plu-
ralidade de objetivos que norteiam a política fiscal internacional de um Esta-
do e podem ser analisadas sob diversas perspectivas.
Com efeito, questiona-se sobre o modo de identificação dessas finalida-
des e a forma do seu inter-relacionamento, seja em uma relação de preponde-
rância, seja em uma relação de complementaridade. Essa avaliação depende,

61
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

enfatize-se, da perspectiva adotada por aquele que a faz – “Danoso com rela-
ção a quem?”. Isso será retomado nesse estudo mais à frente.
Antecipe-se que a imputação do caráter danoso a uma prática fiscal depende
da percepção de certos efeitos concretos, em consonância com a OCDE. Finalida-
de e efeito se somam para esses fins. Não é por outra razão a posição defendida
por Carlo Pinto (1998, p. 387), segundo o qual, a identificação da competição
fiscal danosa se dá pelo efeito econômico da “degradação fiscal” – a aptidão de um
Estado de provocar perdas em outro ou mesmo na livre economia global, em fun-
ção da sua atividade tributária agressiva. Como se verá, também essa concepção é
demasiadamente ampla não sendo de fácil percepção fática.

1.2 Conceitos Imprecisos da OCDE


O conceito de práticas fiscais danosas estipulado pela OCDE centra-se
em duas figuras: no paraíso fiscal e no país de tributação favorecida. Antes que
se prossiga na análise dos “ fatores-chave” de identificação de cada um desses
institutos, expõem-se alguns elementos excluídos (OECD, 1998, p. 08-09) des-
sa definição e as consequências dessa opção.
Desconsideram-se (i) os elementos não-tributários, como os naturais, os
geográficos, os institucionais, a sociedade, os direitos sociais e a infraestrutu-
ra de cada Estado. Essa é uma percepção una das escolhas públicas. Todavia,
essas escolhas refletem uma realidade complexa, em que inúmeros meios e
interesses se confrontam. Ao Estado cabe não apenas equilibrar as receitas e
as despesas. Receitas essas que podem possuir naturezas diversas em função
da capacidade econômica de cada país. Também se define a extensão e a fun-
cionalidade do Estado. Resumir essa complexa equação apenas em tributos
parece ser equivocado.
Isso, especialmente, caso se abrevie esse exame a (ii) uma única modali-
dade de tributo, o imposto sobre a renda. Excluem-se os impostos sobre o con-
sumo e sobre o patrimônio, e as demais espécies tributárias. Explica-se essa
decisão pelo enfoque nas receitas móveis, principalmente, naquelas financei-
ras, nas decorrentes de serviços e nas relativas a bens intangíveis. Contudo,
novamente, o arranjo tributário é plural: no fim, a única riqueza passível de
tributação é a renda (MUSGRAVE e MUSGRAVE, 1980, p. 190). Portanto, a

62
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ausência de tributação em um estágio do ciclo de circulação de riqueza, mui-


tas vezes apenas transmuda a carga tributária para outro, sem que isto efetiva-
mente reduza a carga global.
(iii) A agricultura, a construção civil e a indústria são setores econômicos
afastados por esse estudo. No entanto, são setores, comumente, alvos de medidas
protecionistas tributárias e não tributárias a justificar quiçá uma maior atenção.
Por fim, não possui relevância (iv) a tributação no âmbito da pessoa fí-
sica, bastando a compreensão do tratamento fiscal da pessoa jurídica. Essa
percepção contraria a tributação integrativa adotada por inúmeras jurisdi-
ções (MUSGRAVE e MUSGRAVE, 1980, p. 245-256), além de desconsiderar
o peso da tributação sobre a pessoa física (AVI-YONAH, 2009, p. 792).
Passando propriamente ao estudo sobre o conteúdo das práticas fiscais
danosas, de acordo com a OCDE (1998, p. 19-20), três são as hipóteses que
podem ser vislumbradas: (a) um Estado é um paraíso fiscal e, por isso, não
tributa ou tributa em um valor reduzido, nominalmente, a materialidade eco-
nômica; (b) um país possui um regime fiscal preferencial, em que tributa a
renda, porém, as características preferenciais que lhe são imputadas permitem
com que uma parcela relevante não esteja sujeita ao imposto ou esteja em uma
menor medida; (c) ou, efetivamente, ocorre a tributação sobre a renda, porém,
ela é reduzida em comparação com aquela praticada pelas demais jurisdições.
A OCDE esclarece que essa última hipótese não tem qualquer relevância
para esse estudo, uma vez que não se pretende fixar ou sugerir uma tributação
mínima a ser observada pelos países. Essas são jurisdições de baixa tributa-
ção, que, a despeito dessa condição, conseguem financiar os seus serviços e
bens públicos, sem que erodam a base tributável de outros Estados. Admite-se
que, como se verá, a definição dessa hipótese não é clara.

1.2.1 Paraísos fiscais


Como mencionado, a OCDE (1998, p. 22-25) enumera os “ fatores-chave”
para a identificação dos paraísos fiscais. São esses: (i) a ausência da imposição
da tributação ou a sujeição a uma tributação nominal reduzida; (ii) de manei-
ra similar a um teste sobre a reputação, perquire-se sobre a forma pela qual o
Estado é conhecido, no sentido dele ser visto pelos demais Estados e pelos in-
divíduos como sendo um país onde os não-residentes conseguem “escapar” da

63
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tributação do seu país de residência; (iii) as leis ou as práticas administrativas


inviabilizam a troca de informações com outras jurisdições; (iv) a ausência de
transparência, na medida em que não há clareza quanto ao conteúdo e à efeti-
vidade do ordenamento jurídico – a certeza e a previsibilidade do Direito; (v)
a inexistência da exigência de que a atividade econômica residente/vinculada
ao Estado seja substancial, como no caso das atividades em que não se agrega
qualquer valor naquele país. Fala-se na busca das verdadeiras atividades eco-
nômicas; (vi) por fim, admite-se o acréscimo de fatores não-tributários a esse
exame, como a ausência de um escopo jurídico regulatório, de modo a facili-
tar a prática de um planejamento tributário por meio desses Estados.
Para imputar essa qualificação a um país far-se-á necessária a observân-
cia do primeiro requisito, devendo esse ser somado a qualquer um dos demais.
Com base nessas informações, alguns questionamentos e críticas passam
a ser descritos.
Yevgenyeva e Englisch (2013, p. 625) questionam sobre qual seria a
carga tributária “apropriada” e “aceitável”, alcançando a seguinte conclu-
são: “essa alíquota [carga tributária] “regular” aproxima-se daquela que se-
ria escolhida se não houvesse as constrições impostas pela competição fiscal
internacional”9. Neste artigo, não se contraria essa afirmação, porém, reco-
nhece-se não haver uma definição objetiva do conceito. A percepção de qual
seria o nível de tributação regular, no caso de inexistir a competição fiscal
internacional, implica um exame de probabilidade desconectado da realidade,
sem que haja certeza quanto aos critérios que lhe influenciam.
De qualquer modo, essa definição demonstra a impossibilidade de se traba-
lhar com parâmetros uniformes entre os Estados para a determinação da carga
tributária “regular”. Não é por outra razão a OCDE (1998, p. 15) sustenta não ha-
ver justificativa para que os países tenham igual nível de tributação e de estrutura
dos seus sistemas tributários. Todavia, o órgão admite que haveria standards a
pautarem a tributação interna. Novamente, estes standards não são claros.
Maiores considerações sobre as exigências de transparência e de subs-
tância serão expostas no ponto a seguir, cabendo finalizar esse tópico descre-
vendo as finalidades para as quais se prestam os paraísos fiscais.

9 “This “regular” rate comes closer to the one that would have been chosen without the constraints
imposed by international tax competition […].” [tradução livre]

64
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Neste tocante, a OCDE (1998, p. 22) identifica basicamente três funções: (a)
viabilizar a manutenção de investimentos passivos de holding em seu território;
(b) guardar “papéis” de lucro, a demonstrar o descolamento entre a atividade eco-
nômica e a fonte de sua produção; e, por fim, (c) inviabilizar que as autoridades
fiscais do país da residência exerçam o controle sobre essas atividades, ou seja, fa-
cilitar os comportamentos evasivos e elisivos (abusivos). Ao que pese a relevância
do combate ao comportamento ilícito do contribuinte, vislumbre-se que muitas
dessas hipóteses não são de fácil percepção nem aferição.
Sobre essa estrutura finalística, Altshuler (2014, p. 362) afirma: “é inte-
ressante notar que os paraísos fiscais são em verdade “players” passivos em vários
planejamentos tributários”10. Posiciona-se, nesse estudo, de maneira diversa.
Não há passividade de um Estado, caso esse se proponha a desenvolver uma
estrutura jurídica favorecida direcionada a propiciar que a sua eleição seja um
instrumento para a consecução de planejamentos tributários ilícitos. Diversa é
a hipótese em que isso ocorre, a despeito de um comportamento, diriam alguns,
“regular” do Estado. Nesse caso, não há um nexo de causalidade entre os fatos.
Admite-se que esse comportamento médio não é objetivamente estabelecido.

1.3 Regimes fiscais privilegiados


Em consonância com Altshuler (2014, p. 361), não há nos trabalhos
da OCDE uma descrição do que seja um regime fiscal favorecido, o que seria
compreensível, “[...] na medida em que nem sempre é possível identificar as
previsões tributárias danosas”11 nem aqueles por elas prejudicados.
Passa-se à análise dos “ fatores-chave” (OCDE, 1998, p. 25-34) para iden-
tificar esses regimes: (i) a baixa ou a inexistente tributação sobre a renda rele-
vante; (ii) a restrição desse regime aos não-residentes; (iii) o isolamento, total
ou parcial, desses indivíduos da economia doméstica – “ring-fenced regime”
–; (iv) a ausência de transparência, de compreensibilidade e de previsibilidade
das regras jurídicas; (v) a inexistência da troca efetiva de informação com ou-
tros países; (vi) a ausência do requerimento de que a atividade econômica nele

10 “It is interesting to note that tax havens are actually passive players in many tax planning structures.”
[tradução livre]
11 “[…] as it is not always straightforward to identify tax provisions that are harmful.” [tradução livre]

65
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

residente ou de qualquer forma vinculada seja substancial; (vii) a definição


artificial da base de cálculo; (viii) a falha no cumprimento dos princípios in-
ternacionais de preço de transferência; (ix) a isenção da fonte estrangeira; (x)
a possibilidade de negociação entre o fisco e o contribuinte quanto à alíquota
e/ou à base de cálculo aplicáveis; (xi) o acesso a uma gama de tratados inter-
nacionais em matéria tributária.
De acordo com a OCDE, a identificação do regime fiscal preferencial se
dá pela combinação do primeiro elemento com um dos demais. A pluralidade
desses elementos aumenta a margem de discricionariedade na sua definição.
Assumem ainda relevância (OCDE, 2014, p. 23), como antes menciona-
do, os efeitos econômicos para a definição do caráter prejudicial desse regime.
Apontam-se as seguintes hipóteses: (a) há a transferência de uma atividade
econômica, ao invés da criação de uma nova; (b) a presença dessa atividade é
economicamente inconsistente em relação ao investimento realizado; e (c) o
regime preferencial é a principal motivação para a localização dessa atividade.
Isso para expressar o entendimento da OCDE afirmado no seu estudo de-
senvolvido em 2014 (p. 27 e ss.) com relação à exigência de haver uma atividade
econômica substancial, em conformidade com o “nexus approach”. Esse estabe-
lece que as despesas incorridas para a produção da receita devem guardar uma
proporção com essa, em termos de criação de valor agregado de uma proprieda-
de intelectual. Por assim dizer, as despesas são um proxy para identificar a legi-
timidade da residência e/ou da vinculação dessa atividade com uma jurisdição.
Ao que pese o esforço da OCDE de quantificar a criação de valor em um
Estado por certa atividade econômica relacionada à propriedade intelectual
com vistas a legitimar a tributação imposta, verifica-se que, tal como exposta,
a fórmula de cálculo12 desconsidera a importância que o mercado representa
na criação de valor de uma mercadoria. Isso porque, se as despesas deter-
minam a forma de precificação aceitável e desejável de um bem, o mercado
condiciona os seus limites, podendo agregar-lhe valor.

12 (Despesas qualificadas incorridas para o desenvolvimento de um ativo de PI / Total de despesas


incorridas para o desenvolvimento de um ativo de PI) x Total de receitas decorrentes do ativo de PI
= Renda recebida passível de tributação

66
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Como se demonstrará, esse entendimento da OCDE prejudica principal-


mente os países que funcionam como os grandes consumidores do mundo,
em que não há um desenvolvimento do setor de pesquisa e desenvolvimento.
Expõem-se ainda algumas considerações com relação à exigência da
transparência e da troca efetiva de informações entre os Estados.
Essencialmente, com relação à certeza e à previsibilidade do conteúdo e a
eficácia de um ordenamento jurídico a percepção é clara: trata-se de um ideal
almejado pela maior parte das jurisdições, mas de difícil tradução concreta.
Isto é, desconhece-se até o momento um único sistema jurídico que seja abso-
lutamente seguro, em termos jurídicos, de maneira a positivar e a parametri-
zar definitivamente as decisões dos administradores públicos.
Quanto à troca efetiva de informações, transmudou-se de um intercâmbio
facultativo e a pedido para aquele compulsório e automático, sem que se con-
siderem as reais limitações existentes em cada Estado para tanto. Explique-se:
nem todos os países possuem igual capacidade de colher, de manter e de trocar
de modo seguro essas informações. Ademais, cada ordenamento jurídico con-
diciona essa atividade estatal a determinados limites. Rememore-se que, muitas
vezes, trabalha-se com os direitos fundamentais dos contribuintes. Portanto, a
uniformidade de tratamento desconsidera o custo administrativo que essa op-
ção representa e a viabilidade prática e jurídica de que todos a adotem.

1.4 Recomendações e resultados


Nesse tópico, não se pretende exaurir as recomendações realizadas pela
OCDE (1998, p. 41-62) (2014, p. 35 e ss.) para o combate às práticas fiscais dano-
sas. Passa-se a apresenta-las brevemente, expondo-lhes as críticas e os resultados.
As medidas de combate à competição fiscal agressiva podem ser introdu-
zidas por meio de condutas individuais dos países, através da modificação das
legislações e das práticas administrativas domésticas, ou por meio de compor-
tamentos coletivos, em atendimento do ideal cooperativo entre os Estados do
Projeto BEPS. Isso porque, de acordo com esse projeto, as ações individuais
dos países não são aptas a resolver o problema. Essas ações apenas o deslocam
ou o combatem parcialmente. Um approach multilateral é mais apropriado
para a sua resolução (ROSEMBUJ, 1999, p. 320).

67
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

São essas as recomendações: (i) a introdução ou o aprimoramento das


regras antiabuso (regras de subcapitalização, regras CFC e regras de preço de
transferência); (ii) uma maior atenção no tratamento fiscal de certas materia-
lidades econômicas (trust, fundos de investimento e inovações financeiras);
(iii) as restrições à concessão de benefícios fiscais em certas hipóteses; (iv)
uma maior imposição de tributação pelo Estado de residência; (v) uma maior
transparência do Direito doméstico – a garantia da sua certeza e da sua pre-
visibilidade; (vi) a troca de informações entre as jurisdições; (vii) uma melhor
utilização dos tratados internacionais; (viii) a enumeração de uma lista de pa-
íses praticantes da competição fiscal agressiva (OCDE, 2017, p. 15-22; OCDE,
2018, p. 17-32); (ix) a instituição de fóruns de debate internacionais; (x) o en-
volvimento dos Estados membros e não-membros da OCDE; e (xi) a adoção
de medidas não-tributárias de combate às práticas fiscais danosas.
Em um debate sobre o sucesso ou o insucesso destas medidas, a doutri-
na parece divergir sobre os resultados alcançados. Há aqueles que sustentam
a ineficácia dessas medidas, em razão da perda de arrecadação do imposto
sobre a renda das pessoas jurídica em algumas jurisdições (YEVGENYEVA
e ENGLISCH, 2013, p. 625). Outros, em sentido contrário, afirmam a sua efi-
cácia, ao demonstrar a estabilidade da referida arrecadação em certas jurisdi-
ções (AVI-YONAH, 2009, p. 792-793).
Em que pese a validade de cada argumento, os diferentes referenciais as-
sumidos por cada um dos autores impedem com que se possa expressar uma
conclusão sobre a temática. No entanto, neste artigo, reconhece-se a expansão
dessas medidas em todo globo, ainda que a sua eficácia seja discutível.
Analisam-se a seguir as listas elaboradas dos Estados praticantes da
competição fiscal agressiva. Reuven S. Avi-Yonah (2009, p. 785, 792) susten-
ta que o medo dos países de serem elencados nessas listas é um importante
meio de pressão à alteração gradual de comportamento das jurisdições elen-
cadas. Há uma propaganda negativa que motiva a modificação desses regimes
tributários, ou seja, que esses Estados adotem medidas de longo prazo para o
efetivo desenvolvimento das suas economias (OCDE, 1998, p. 11).
Todavia, Rosembuj (1999, p. 329) observa que muitos países e/ou regi-
mes fiscais não foram incluídos nessas relações pelo custo político que repre-
sentavam (e ainda representam). Neste artigo, acredita-se que a imprecisão

68
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

conceitual em torno das práticas fiscais danosas constitui um agravante (e


consequência, diriam alguns) a esse fato, como se demonstrará.

1.5 Breve análise empírica da competição fiscal


agressiva entre os Estados
Antes que se apresente esse ponto, neste artigo, não se pretende sustentar
ser a competição fiscal agressiva entre os Estados “boa” ou “ruim”. Almeja-
-se somente demonstrar que os dogmas sob os quais é construído esse ideal,
segundo alguns autores, não têm uma sólida base empírica que os sustente.
Esse ponto assume especial relevância, caso se queira demonstrar que,
nesse caso, o fato contradiz a teoria. Assim, o fundamento de validade do
combate às práticas fiscais danosas não resta sob o plano da realidade e da
concretude, mas sim sob a autoridade, a soberania e o poder econômico deti-
do pelos Estados que lhe defendem. Essa é a relevância desse ponto, como se
resgatará nas páginas que se seguem.
Inicia-se essa análise com uma proposição de Bracewell-Milnes
(1999, p. 87) segundo o qual: “Se a OCDE tem as suas razões para crer que
algumas centenas de anos de tradição acadêmica sobre o tema das finanças
públicas estão equivocadas, seria interessante saber quais são estas razões.” 13.
Sucintamente expõem-se os argumentos desse economista (BRA-
CEWELL-MILNES, 1999, p. 87-88). (i) Se a competição entre as empresas é algo
desejado, não há fundamento para crer que entre os Estados ela também não o
seja. Isso porque não há uma distinção entre a formação do interesse privado e
aquele público nesse tocante. Os políticos e os particulares opõem-se à competi-
ção, a qual significa não pensar apenas em si, mas também no outro.
(ii) A competição visa a promover o deslocamento de elementos móveis,
não restando razões para a eleição desse enfoque pela OCDE. (iii) De acordo
com a tradicional teoria pública das finanças, os tributos distorcem as ativi-
dades econômicas. Neste sentido, os bens e os serviços móveis devem estar

13 “If the OECD has its reasons for believing that some hundred years of academic tradition on the subject
of public finance are mistaken, it would be interesting to know what these reasons are.” [tradução livre]

69
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sujeitos a uma tributação inferior àquela praticada sobre os imóveis, sob pena
de não ser essa uma atividade tributária neutra.
(iv) Ademais, a redução da carga tributária, muitas vezes, não provoca
uma redução da receita tributária. Em verdade, inúmeros são os exemplos da
sua majoração consequente. E mais, a capacidade de o particular suportar os
tributos é limitada, sendo o ponto ideal da curva aquele que não inviabiliza a
atividade econômica.
Neste sentido, Keith Marsden (1998, p. 51) afirma: “A prova empírica é
clara. A competição fiscal não é danosa.”14. Isso sob o seguinte embasamento:
os Estados que reduziram a sua carga tributária possuíram um maior cresci-
mento econômico e uma elevação da sua arrecadação em relação aos demais.
Não se desconsidera que cada uma destas proposições reflete uma com-
preensão ideológica sobre os limites da intervenção estatal (e supranacional)
nessa matéria, não sendo possível traçar uma uniformidade de entendimen-
tos. Entretanto, reitere-se a finalidade desse ponto: questionar as bases empí-
ricas das posições defendidas pela OCDE.

2. Combate às práticas fiscais danosas como um princípio


geral de direito reconhecido pelas nações civilizadas
Esse tópico tem como ponto de partida o estudo desenvolvido por Ro-
sembuj (1999, p. 329), segundo o qual, com base no trabalho de Klaus Vogel
(1991), o combate às práticas fiscais danosas constitui um princípio geral de
direito reconhecido pelas nações civilizadas (PGDRNC).
A seguir, destacam-se alguns dos argumentos utilizados para a susten-
tação desse entendimento. (i) O PGDRNC se constitui pela transformação de
um dispositivo das legislações domésticas comum a todos os Estados em uma
fonte internacional, independentemente de qualquer documento escrito (RO-
SEMBUJ, 1999, p. 316). (ii) Uma das grandes fontes dos PGDRNC são as dire-
tivas da OCDE, pois elas refletem uma posição intergovernamental, inclusive
dos países não-membros, dada a importância da organização e das opiniões
dos especialistas (ROSEMBUJ, 1999, p. 319). (iii) Não obstante admita-se que

14 “The empirical evidence is clear. Tax competition is not harmful.” [tradução livre]

70
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

não há um PGDRNC que obrigue os países a cooperar entre si no combate


à evasão e à elisão (abusiva) fiscais, a “realidade” favorece o reconhecimento
desse princípio contra os países que permitem que os seus não-residentes de-
les se valham para a consecução do planejamento tributário abusivo. Fala-se
em um poder de retaliação contra esses Estados com esse fundamento (RO-
SEMBUJ, 1999, p. 318-319).
Passa-se a questionar acerca da retidão destas afirmativas.

2.1 Introdução dos princípios gerais de direito


reconhecidos pelas nações civilizadas e o
combate às práticas fiscais danosas
Inicia-se esse tópico com uma exposição sobre os PGDRNC, considerando
o estudo desenvolvido por Luís Eduardo Schoueri (1995) sobre a temática.
Em consonância com esse autor (1995, p. 114 e ss.), nos termos do arti-
go 38 do Estatuto da Corte de Haia, esses princípios devem ser faticamente
confirmados em todos os Estados. Isto é, a sua fonte são os ordenamentos
jurídicos internos de todas as jurisdições (e aqueles internacionais). Segundos
alguns autores, esses princípios podem ser reconhecidos pela análise da maio-
ria dos sistemas jurídicos existentes. No entanto, nesse caso, a legitimidade do
PGDRNC resta fragilizada em face dos países que não o admitem.
Apesar desta última ponderação, com vistas à viabilidade deste estudo, iden-
tifica-se um PGDRNC por meio de um exame de direito comparado que deve
buscar uma amostra significativa dos posicionamentos estatais sobre a matéria.
Por assim dizer, retomem-se as definições expostas sobre as práticas fiscais
danosas. A finalidade “danosa” de alguns sistemas tributários constitui um des-
virtuamento da atividade tributária que visa à obtenção de receitas para a realiza-
ção dos direitos fundamentais dos indivíduos. Em outras palavras, na competição
fiscal agressiva, há a prevalência de outra finalidade: a violação da atividade tribu-
tária dos demais Estados e, portanto, da sua soberania fiscal.
Não é por outra razão o entendimento de Yevgenyeva e Englisch
(2013, p. 622), segundo os quais, a competição fiscal danosa viola a soberania
fiscal dos países, ao restringir a sua capacidade de seguir as suas políticas so-

71
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ciais por meio dos seus sistemas tributários. Por assim dizer, “[...] a competição
fiscal pode ser entendida como uma batalha entre demandas que competem
entre si pela soberania fiscal.”15 (RING, 2009, p. 25).
Na esteira do supradescrito, a identificação dessa condição não é clara.
Não há uma uniformidade de entendimento sobre a extensão e o modo da
prestação de uma atividade tributária “regular”. O que se verifica, ao longo
destas páginas, é a existência apenas de indícios do caráter danoso de cer-
tos regimes fiscais. É ainda questionável, como se verá a seguir, a perspectiva
adotada. Explique-se: pergunta-se sobre quem são os reais beneficiados pela
introdução de medidas de combate às práticas fiscais abusivas.
No entanto, assumindo a possibilidade de identificação da competição
fiscal agressiva, o PGDRNC é uma manifestação do princípio da proibição
do abuso de direito derivado da boa-fé no exercício dos direitos (SCHOU-
ERI, 1995, p. 125). Nesse sentido, em consonância com Alexander C. Kiss
(SCHOUERI, 1995, p. 128), “um Estado exerc[e] um direito, seja de um modo
que impede o exercício pelos outros Estados de seus direitos, seja com um fim
diverso daquele para o qual o direito foi criado, a fim de ferir o outro Estado”.
Assim, na prática fiscal danosa, há um abuso da soberania fiscal.
Para seguir com essa explicação, expõem-se algumas considerações so-
bre o conceito e o conteúdo da soberania fiscal dos Estados. Isso com o objeti-
vo de questionar o aludido abuso de direito e de aferir a essência e a legitimi-
dade desse PGDRNC.

2.2 Soberania fiscal dos Estados e o combate às


práticas fiscais danosas
Em um estudo específico sobre a matéria, Diane Ring (2009) confronta
essencialmente duas proposições acerca da soberania fiscal: (i) “A soberania
fiscal é exercida pelos Estados em caráter absoluto.” e (ii) “A soberania fiscal é
exercida de maneira uniforme pelos Estados.”.
Quanto à primeira afirmação, a autora sustenta que a soberania fiscal
não é um fim em si mesmo, uma vez que “[...] os Estados não exercem as suas

15 “[...] the tax competition debate could be understood as a battle of competing claims to tax
sovereignty.” [tradução livre]

72
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

escolhas de políticas fiscais irrestrita [e livremente] de quaisquer controles [...]”16


(RING, 2009, p. 03-05). E mais, ser um Estado soberano e ter o controle da sua
política fiscal não é um impeditivo para que esse país coopere com os demais.
De igual modo, não há uma uniformidade quanto à extensão do escopo e
do modo de exercício da soberania fiscal pelos Estados (RING, 2009, p. 03, 26).
Isto é, a soberania fiscal não é exercida igualmente pelos Estados. A relevância
desse argumento reside na possibilidade de que um ou mais países imponham
suas posições aos demais em matéria tributária, como se passa a demonstrar.
Ring (2009, p. 18-19) vislumbra as práticas fiscais danosas do seguinte
modo: a tributação é similar a um mercado, as práticas fiscais danosas cons-
tituem as falhas de mercado, que justificam uma intervenção supranacional.
Os meios para esse combate são discutidos mais à frente, mas lembra a autora,
“a competição fiscal é um problema que não pode ser regulado precisamente
porque envolve Estados soberanos”17 (RING, 2009, p. 20).
Enfatize-se que essa descrição da competição fiscal agressiva se coaduna
com a perspectiva defendida pelos Estados por ela geralmente prejudicados –
os Estados de residência.
E continua a autora: em um contexto de celebração de tratados inter-
nacionais tributários nos termos dos modelos internacionais e do combate
internacional à competição fiscal agressiva, sempre há o argumento de que
essas estruturas são “inadequadas” e “injustas” com relação aos países em de-
senvolvimento. Isso porque esses Estados necessitam de “uma maior fatia da
torta global da tributação” (RING, 2009, p. 29).
Prosseguem Yevgenyeva e Englisch (2013, p. 625) para afirmar que os
benefícios percebidos por pequenas economias em razão das práticas fiscais
danosas são reduzidos em face do “desejo” de cooperação para a abolição des-
ses regimes preferenciais, devendo serem por ele superados.
Quanto a essa última concepção alguns pontos devem ser enfatizados. (i)
A percepção de que o ganho da maioria dos países supera aquele da minoria
não se sustenta. Rememore-se que as receitas tributárias percebidas são des-
tinadas ao atendimento dos direitos fundamentais. A simplificação do debate

16 “[…] states do not exercise unimpeded control over tax policy choices […]” [tradução livre]
17 “Tax competition is a problem of sovereign states that cannot be regulated precisely because they
are sovereign states.” [tradução livre]

73
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a uma mera constatação matemática desconsidera a justificação da atividade


tributária subjacente. (ii) A referência apenas às pequenas economias subesti-
ma as inúmeras práticas fiscais danosas realizadas pelos países em desenvol-
vimento e desenvolvidos. Por fim, (iii) a imprecisão conceitual acerca da com-
petição fiscal agressiva inviabiliza com que se delimitem todas as jurisdições
participantes. Se por um lado, como antes mencionado, uma definição obje-
tiva de cada instituto é difícil em face da gama de condutas passíveis do seu
enquadramento; por outro, o refinamento dos sistemas jurídicos, mormente,
dos Estados desenvolvidos – apesar de iguais efeitos àqueles comumente rotu-
lados sob essa qualificação – os tornam ilesos ao controle. Por todo o exposto,
a argumentação ponderativa supramencionada não se sustenta.
Como se passa a demonstrar, a legitimidade do combate às práticas fis-
cais danosas reside na soberania dos Estados que a defendem, conceituam
e aplicam. Por assim dizer, o confronto de concepções exposto neste artigo
encerra um debate político entre os países. Nesse estudo, não cabe sustentar
a retidão ou o equívoco de cada posicionamento. Entretanto, admite-se que,
tal como a OCDE e o Projeto BEPS se posicionam sobre a matéria, mitiga-
-se a soberania dos países, especialmente, daqueles em desenvolvimento. Essa
percepção não é desconhecida pela doutrina: a soberania fiscal não é exercida
livremente nem constitui um fim em si mesma.
Essa é a peculiaridade do reconhecimento de um PGDRNC nesse caso:
um movimento realizado por Estados desenvolvidos impôs-se aos demais pa-
íses. Em grande parte, esses últimos modificaram as suas políticas internacio-
nais e as suas legislações internas. Por conseguinte, há um fenômeno externo,
por meio do qual o “consenso” entre os Estados não é construído autonoma-
mente por cada jurisdição, mas sim pela pressão de países com elevados pode-
res político e econômico.
Dito isso, resta expor possíveis caminhos a serem tomados para a afir-
mação desse PGDRNC. Ring (2009, p. 18-19) vislumbra três medidas: (i) a
divisão dos ganhos tributários. Neste artigo, admite-se que essa proposta é
de difícil concretização. (ii) A celebração de acordos não tributários. Por fim,
(iii) o aprofundamento dos laços cooperativos entre os Estados. Esse último
elemento também é o enfoque de Rosembuj (1999, p. 320), segundo o qual, a
cooperação entre os Estados é relevante seja pela existência de tratados sobre
a matéria, seja por um PGDRNC.

74
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Conclusão
Pretendeu-se ao largo destas páginas demonstrar não haver um concei-
to uniforme nem objetivo acerca das práticas fiscais danosas. A doutrina e a
OCDE não as definem de modo conclusivo. Não obstante, tal como descritas,
elas encerram, essencialmente, a tutela dos interesses dos Estados de residência.
Dessa feita, o reconhecimento de um PGDRN nesse caso decorre de um
“consenso” fruto dos poderes econômico e político de alguns países desenvol-
vidos, a refletirem na alteração do comportamento dos demais Estados, os
quais passaram, ainda que de maneira não uniforme, a incorporar medidas
de combate à competição fiscal agressiva.
A evolução dessa temática perpassará um aprofundamento das relações de
cooperação entre os Estados. Não se tratam de monólogos, mas sim de diálogos
entre os países, com vistas a aperfeiçoar os conceitos e as medidas de controle.

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77
3. O Plano de Ação 4 do Projeto BEPS
da OCDE – Limites à erosão da base
tributária através da dedução de juros
e outras compensações financeiras

Edgar Santos Gomes


Mestre (LL.M.) em direito tributário internacional pela Universida-
de de Leiden na Holanda. Professor de direito tributário internacional em
cursos de Universidades Brasileiras e estrangeiras. Membro da Internatio-
nal Fiscal Association (IFA) e da Society of Trust and Estate Practitioners
(STEP). Sócio de Terciotti Andrade Gomes Donato Advogados.

Rafael Dinoá Mann Medeiros


Mestre (LL.M.) em direito tributário internacional pela
Universidade de Leiden na Holanda. Mestrado em Contabilidade
Gerencial e Tributária, Fucape Business School, Vitória-ES. MBA
em Auditoria Integral – IFRS, Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Bacharel em Ciências Contábeis, Unisul, Curitiba-PR. Ba-
charel em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Felipe Senges Pereira


Advogado.

Resumo:  O presente artigo tem por objetivo analisar a proposta apre-


sentada pela OCDE em seu Projeto BEPS, particularmente no que tange à
erosão da base tributária através da dedução de juros e outras compensações
financeiras, prevista no plano de ação número 4, incluindo uma perspectiva
brasileira. Para tanto, serão abordadas as principais preocupações envolvendo
o tema, as alternativas atualmente existentes para coibir a erosão da base e
transferência de lucros envolvendo juros, o conceito de juros proposto pela
OCDE e as melhores práticas sugeridas para limitar os planejamentos tributá-
rios abusivos com a dedução de juros.

79
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Palavras-Chave: BEPS, Plano de Ação 4, Juros, Subcapitalização, Trans-


ferência de lucros.
Abstract: This article aims to analyze the proposal presented by the OECD
regarding the BEPS Project, manly concerning base erosion involving interest
deductions and other financial payments, set forth in action plan 4, including a
Brazilian perspective. To reach this, it will be discussed the main concerns regar-
ding the matter, the existing approaches to tackle base erosion and profit shifting
involving interest, the concept of interest proposed by the OECD and best practice
measures to limit abusive tax planning involving interest deductions.
Keywords: BEPS, Action Plan 4, Interest, Thin Capitalization, Profit shifting.

Introdução
Estimulada por grave crise econômica, a opinião pública passou a pro-
testar ativamente contra planejamentos tributários internacionais de grandes
grupos multinacionais, os quais exploravam brechas e assimetrias existentes
em legislações de diferentes países para reduzir, expressivamente, a carga tri-
butária ou diferir o pagamento do imposto sobre a renda.
Estavam frente a frente os princípios da moralidade e capacidade con-
tributiva, consubstanciados na obrigação de pagar uma parcela justa de im-
posto, e os princípios da legalidade, segurança jurídica e livre exercício das
atividades econômicas, eis que se tratavam de planejamentos realizados em
conformidade com a lei.
Nesse cenário, os líderes das 19 maiores economias do mundo mais a
União Europeia, na reunião do G20 no México em 2012, solicitaram à Or-
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ("OCDE") que
preparasse estudo com vistas ao combate à erosão da base tributária e a trans-
ferência de lucros para países com baixa ou nenhuma tributação, e sem ativi-
dade econômica substancial. Nascia ali o projeto BEPS (abreviatura do inglês
de base erosion and profit shifting).
A OCDE então apresentou relatório contendo um plano para o combate à
erosão da base e transferência de lucros, no qual identificou quinze planos de
ação necessários para enfrentar a questão; estabeleceu prazos; e identificou re-
cursos e metodologia necessários e adequados para a implementação das ações.

80
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Referidos planos de ação foram estruturados com base nos seguintes


princípios: (i) revisão e introdução de coerência nas leis internas que afetem
operações internacionais; (ii) prevalência da substância sobre a forma, a fim de
garantir a tributação onde ocorra a atividade econômica e/ou criação do ativo; e
(iii) aumento de transparência e segurança jurídica para os negócios e governos.
O plano de ação 4, tema do presente artigo, tem por objetivo “desenvolver
recomendações relativas às melhores práticas para elaboração de normas que
visam à prevenção da erosão da base tributária através do uso de despesas de
juros, como por exemplo o recurso a empréstimos de sociedades relacionadas ou
terceiras, com o objetivo de obter deduções excessivas de juros ou para financiar
a produção de um rendimento isento ou diferido, e outras compensações finan-
ceiras que são economicamente equivalentes ao pagamento de juros.”18
Isso porque, o pagamento de juros, mormente entre partes relacionadas,
é provavelmente o método mais simples para transferir lucros entre diferentes
jurisdições no planejamento tributário internacional. De fato, a fluidez e fun-
gibilidade do dinheiro torna bastante fácil o ajuste da proporção de dívida e
capital dentro de uma entidade controlada a fim de se alcançar um tratamento
tributário mais benéfico.
Em linhas gerais, os países tratam dívida e capital de forma distinta para
fins de tributação. Enquanto os juros geralmente são considerados despesas
dedutíveis para quem paga e tributados regularmente nas mãos de quem rece-
be, os dividendos ou outros retornos decorrentes do financiamento com capi-
tal não são dedutíveis e tendem a gozar de tratamento tributário mais benéfico
quando recebidos.
Num cenário puramente doméstico essas distinções podem não produ-
zir efeitos tributários relevantes, mas quando diante de um contexto interna-
cional a diferença de tratamentos incentiva a preferência pela utilização de
dívida em detrimento de capital, através da implementação de planejamentos
tributários que reduzem ou eliminam a tributação sobre os juros na jurisdição
onde ocorrem os pagamentos.
No cenário internacional, as preocupações constatadas pela OCDE acer-
ca da dedutibilidade excessiva de juros envolvem, tanto investimentos in-
bound, quanto outbound, realizados pelos grandes grupos multinacionais.

18 Tradução livre

81
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Por exemplo, entidades controladoras podem se beneficiar com a deduti-


bilidade dos juros pagos e, ao mesmo tempo, com o respectivo empréstimo in-
vestir capital em entidade estrangeira, cujo retorno estará sujeito a tratamento
tributário preferencial.19
Ainda, subsidiárias podem ser financiadas primordialmente com dívida,
sobretudo intragrupo, suportando de maneira desproporcional maior parcela
da despesa líquida de juros com terceiros, e incorrendo em deduções excessi-
vas de modo a transferir lucros para jurisdições mais benéficas.
Em síntese, as principais práticas realizadas pelos grupos multinacionais
envolvendo o plano de ação 4 envolvem a alocação de maiores quantidades
de dívidas com terceiros em países de elevada carga tributária; a utilização
de empréstimos intragrupo para gerar juros dedutíveis superiores aos efetiva-
mente pagos pelo grupo a terceiros; e utilização de empréstimos intragrupo
ou com terceiros para gerar renda não tributável.
Não por coincidência, a OCDE constatou em seus estudos que os grupos
multinacionais se preocupam em não ter despesas de juros com terceiros mui-
to elevada, ou seja, não serem excessivamente endividadas, mas ainda assim
frequentemente existem dentro do grupo entidades altamente endividadas,
desproporcionalmente à dívida total do grupo com terceiros, sobretudo cons-
tituídas em países com elevada carga tributária e nem sempre pagos para paí-
ses com atividade econômica substancial do grupo.
Alguns países já combatem a questão unilateralmente, com certo êxito
inclusive, mas há um sentimento comum de que dado à fungibilidade e mo-
bilidade do dinheiro, somado à flexibilidade dos instrumentos financeiros, os
grupos multinacionais escapam das regras locais atingindo o resultado alme-
jado através de novas ferramentas.
Além disso, países com regras muito rígidas costumam afastar investimen-
tos estrangeiros, bem como dificultar suas empresas de competir globalmente.
Logo, uma abordagem consistente, aplicada por todos os países, utilizan-
do as melhores práticas internacionais, é necessária para o êxito do plano de
ação, tanto para o Fisco quanto para o contribuinte. Trata-se do denomina-
do common approach para combater o BEPS envolvendo juros e pagamentos
economicamente equivalentes. Assim, com regras claras e globalmente uni-

19 Tais como participation exemption, parent-subsidiary directive¸diferimentos ou alíquotas reduzidas.

82
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

formes e previsíveis, é possível que os grupo multinacionais estruturem suas


operações com maior segurança jurídica, simplificando regras de compliance
e reduzindo custos de ambas as partes.
Nesse contexto, o objetivo do plano de ação é incentivar as entidades a
reestruturarem seus níveis de endividamento a patamares semelhantes ao do
grupo multinacional. Dada a relevância do tema, o plano de ação 4 está in-
trinsecamente ligado aos planos de ação sobre instrumentos híbridos, normas
CFC, abusos de tratados e preços de transferência.

Preocupações e Objetivos do Plano de Ação


Por óbvio, o objetivo principal do plano de ação 4 é combater a erosão da
base tributária e transferência de lucros através da dedutibilidade excessiva de
juros ou outras compensações financeiras equivalentes a juros.
Mas não é só. O plano de ação busca também neutralizar vantagens pra-
ticadas pelos grupos multinacionais não disponíveis para grupos nacionais.
Isso porque, como já destacado, a utilização de falhas e assimetrias existentes
entre diferentes legislações, quando combinadas, podem gerar consideráveis
economias tributárias aos grupos multinacionais, não existentes ou pouco re-
levantes num cenário puramente doméstico.
O mesmo ocorre em relação à concorrência entre países. Regras demasia-
damente restritivas aumentam o custo do financiamento com capital e podem
reduzir a capacidade de uma entidade obter financiamentos ou até resultar na
transferência de investimentos para países com legislações mais flexíveis.
A aplicação de regras uniformes em nível global concomitantemente por
todos os países deve eliminar referidos problemas, mas se aplicadas unila-
teralmente ou parcialmente, como alguns países se manifestaram acerca de
determinados planos de ação, podem trazer consequências danosas e aumen-
tar oportunidades para planejamentos abusivos, reduzindo a renda tributável.
O importante é que as regras para combater a erosão da base mediante
o endividamento excessivo das entidades não tragam vantagens, tampouco
desvantagens, para os países e grupos multinacionais.
Nesse ponto, é importante garantir a não ocorrência da famigerada du-
pla tributação, que a OCDE tanto se empenha em combater, mas pode ocorrer

83
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

caso não seja permitida a dedução dos juros pagos por uma entidade e os
mesmos sejam incluídos na base de cálculo do imposto sobre a renda devido
pela entidade que os recebe.
Ademais, é preocupação do plano de ação que as regras sejam objetivas,
de fácil entendimento e aplicação, a fim de que seja possível reduzir custos
com compliance e fiscalização, mas não tão simples a ponto de permitir abusos
ou até mesmo a não aplicação.
A aplicação de regras claras dá certeza dos resultados, sendo possível aos
grupos multinacionais se estruturarem e implementarem projetos de longa
duração, sem que sejam surpreendidos com mudanças de entendimentos da
administração pública. Esta segurança jurídica é benéfica, inclusive para ga-
rantir que entidades em condições idênticas sejam tratadas de forma igual.
Por fim, o plano de ação leva em consideração as liberdades e diretivas
da União Europeia, na medida em que uma regra que viole regra do bloco
europeu ficaria de imediato prejudicada pela impossibilidade de aplicação dos
países dele integrantes.

O conceito de juros e pagamentos


economicamente equivalentes
Os juros podem ser entendidos como o custo de pegar dinheiro empres-
tado. Como já abordado, geralmente são despesas dedutíveis nos diversos pa-
íses, embora cada país tenha suas regras locais para definir quais despesas são
tratadas como juros e, portanto, dedutíveis para fins de imposto sobre a renda.
Sucede que essa definição simplória de juros deixa de lado três importan-
tes situações, quais sejam:
(i) deixa de abordar uma variedade de técnicas de erosão da base tri-
butária e transferência de lucros que os países enfrentam em relação a
dedutibilidade de juros e pagamentos semelhantes;
(ii) diminui a igualdade entre grupos em mesma situação econômica
ao aplicar diferentes tratamentos em função das formas de financia-
mento de cada um; e

84
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(iii) as regras locais para coibir a dedutibilidade excessiva de juros são


facilmente evitadas pelos grupos multinacionais, que reestruturam
seus empréstimos através de outras formas de financiamento capazes
de gerar o mesmo resultado.

O relatório da OCDE reconhece que diferenças sempre existirão entre os


países, mas para que o plano de ação seja bem-sucedido as melhores práticas
devem adotar definições bastante amplas de modo a incentivar uma aborda-
gem coerente e previsível.
Nesse sentido, as boas práticas exigem que se considerem os juros so-
bre qualquer forma de dívida; os pagamentos economicamente equivalentes
a juros e as despesas relacionadas à obtenção do empréstimo, tais como, por
exemplo, instrumentos híbridos, juros pagos por instrumentos derivativos,
empréstimos remunerados com base em participações nos lucros, valores re-
classificados como juros mediante aplicação das regras de preços de transfe-
rência, e, no caso do Brasil, entendemos que os juros sobre capital próprio.

Destinatários das Regras


As melhores práticas recomendadas pelo plano de ação são no sentido de
aplicar as regras a todas as entidades e estruturas, dentro de um mesmo grupo
ou com partes relacionadas fora do grupo, sejam ou não multinacionais, que
possam ser utilizadas para erodir a base de cálculo e transferir lucros median-
te dedutibilidade excessiva de juros.
De acordo com o relatório do plano de ação, empresas são consideradas
como do mesmo grupo quando (i) uma tem controle direito ou indireto sobre ou-
tra, ou (ii) ambas estão sobre controle direto ou indireto de uma terceira empresa.
Com efeito, empresas multinacionais representam maiores riscos de erodir a
base tributária e transferir lucros, mas os países podem aplicar as regras também
às empresas de um grupo puramente nacional, se entenderem necessário, para
evitar determinadas situações concretas ou atingirem objetivos de política fiscal.
O mesmo se aplica às entidades independentes e pequenas empresas. Isso
porque, o fato de serem independentes ou de pequeno porte não significa, por
si só, que as mesmas não representem riscos de BEPS, já que pagam poucos
juros ou não são artificialmente endividadas.

85
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A utilização de um limite máximo para o endividamento, a partir do


qual a aplicação das regras é necessária, seria a solução adequada. Entidades
com baixo índice de endividamento e que, portanto, representam menos risco
de erodir a base e transferir lucros podem ser excluídas da regra geral, caso
um país assim desejar.

Aplicação do modelo de “melhor prática”


(best practice approach)
Aplicação do modelo de “melhor prática” (best practice approach) tem por
objetivo estabelecer uma relação entre as despesas de juros (e/ou instrumentos
financeiros equivalentes a juros) às atividades econômicas de uma entidade le-
gal, preferencialmente à atividade econômica tributária (lucro tributário).
Neste caso, o plano de ação recomenda que tal mensuração seja feita a
partir do EBITDA (lucro antes dos juros, tributos, depreciação e amortização)
sendo possível também a utilização do EBIT (lucro antes dos juros e tributos)
como parâmetro para mensuração da atividade econômica.
Cabe destacar que, embora seja o EBITDA um indicador econômico, o
plano de ação da OCDE reconhece que pode haver instrumentos financeiros,
lucros ou despesas que não são, respectivamente, tributáveis e dedutíveis nem
no país de origem, nem no de destino, levando, desta forma, a uma erosão da
base tributável. Por tal razão é que o plano de ação do BEPS propõe que seja
utilizado o “EBITDA tributário” para determinar o limite de juros a ser dedu-
zido em uma entidade.
Objetivamente, não existe um EBITDA que se assemelhe ao lucro tri-
butário, mas o objetivo perseguido no plano de ação 4 é que a dedução dos
juros esteja relacionada à atividade econômica geradora de riqueza de uma
entidade, riqueza esta advinda de rendas ativas e passivas e que não por outra
razão que a ação 4 guarda relação direta com as ações 2 e 3, na medida em que
tais ações determinam como que os instrumentos híbridos, bem como o lucro
gerado em controladas e coligadas no exterior, devem ser tratados para fins de
mensuração da atividade econômica da empresa controladora.

86
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em que pese esta não seja a recomendação final da OCDE, é reconhecido


que a mensuração da atividade econômica também possa ser feita utilizando
o Ativo de determinada entidade ou grupo de entidades. Ocorre que tal práti-
ca atrai maior complexidade tomando por base os elementos de comparação,
uma vez que as regras contábeis e tributárias para determinação e mensura-
ção de ativos podem variar em cada jurisdição, o que tornaria extremamente
complexo a comparação do grau de endividamento de uma entidade ou grupo
de entidades com outra entidade local.
Ademais, a utilização do Ativo como instrumento da mensuração da
atividade econômica requer, necessariamente, uma auditoria independente,
assegurando e atestando as regras utilizadas para determinação do Ativo,
bem como poderia exigir que autoridades locais requeressem informações de
autoridades fiscais estrangeiras para a averiguação do limite de dedutibilidade
de juros. Isso tornaria o processo de análise mais complexo e demorado, sem
contar a potencial dependência da celebração de acordos de cooperação em
matéria tributária.
Assim como outros planos, a ação 4 reconhece a existência de um custo
de compliance relacionado à aplicação das recomendações trazidas no relató-
rio final. Neste contexto, ao sugerir a melhor prática, o relatório final reco-
menda a utilização do “Fix Ratio rule” como a regra geral a ser aplicada pelos
países signatários da OCDE para determinação do limite da despesa de juros
na apuração do imposto sobre a renda e na base de cálculo da contribuição
social sobre o lucro líquido.
O “Fix Ratio rule” ou em tradução livre “percentual fixo” consiste na
aplicação de um determinado percentual, a ser estabelecido pelos países que
adotarem as práticas sugeridas pelo relatório da OCDE, tendo como parâme-
tro o corredor entre 10% a 30% do EBITDA (tributário).
Tais percentuais estão baseados em estudo desenvolvido pela PwC, com
base em dados da Standard & Poors, no qual restou constatado que é dentro
dessa margem percentual que se verifica a maior parcela de juros considerada
como indedutivel. Acima do percentual de 30% do EBITDA, a parcela de juros
considerada como indedutível ia se tornando imaterial na medida que este
percentual ia aumentando.

87
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O Fix Ratio rule foi adotado pela OCDE como regra geral, uma vez que
sua aplicação, aparentemente, é mais simples do que a regra de “Group ratio”,
a ser explicada adiante. Por se tratar de aplicação direta de um percentual so-
bre o EBITDA (tributário) é que a OCDE entende ser este método aquele que
atrairá menor complexidade reduzindo, portanto, o compliance, que no caso
do Brasil é um dos maiores do mundo.
Questão que surge relacionada à utilização da regra de percentual fixo
é a volatilidade econômica a ela relacionada. É de se imaginar que os resul-
tados de determinada companhia variem ao longo dos anos, podendo estes
serem positivos (lucros) ou negativos (prejuízos). Neste caso, na medida em
que uma empresa apure prejuízos seria impossível, inicialmente, a dedução
de juros para fins de imposto sobre a renda. Reconhecendo esta dificuldade é
que o plano de ação da OCDE permite que se aplique a regra de utilização de
compensação de prejuízos fiscais tanto futuros (carry-foward) como passado
(carry-back), esta não aplicável no caso do Brasil.
Como forma de mitigar eventual exposição relacionada à dedutibilidade
de juros com base na regra do percentual fixo, o plano de ação da OCDE traz
alternativas que podem aumentar o limite de dedutibilidade dos juros de acor-
do com o grau de dívida que um determinado grupo de companhias adotar.
Esta regra complementar é chamada de “Group Ratio rule”. A base para
a aplicação dessa regra é a comparação entre o total de endividamento líquido
com terceiros do grupo versus o endividamento da entidade legal domiciliada
naquele país. Portanto, uma vez estabelecida à relação percentual entre a dívi-
da líquida com terceiros do grupo e a comparando com a dívida local, tem-se
o limite de dedutibilidade para a companhia local.
Ainda é possível que determinados países adotem regras específicas para
endereçar a questão da dedutibilidade dos juros. Tais regras, chamadas de
“Target rules”, têm como objetivo atender as necessidades locais dos países,
podendo ser encaradas, inclusive, como regras parafiscais que irão variar de
acordo com o cenário macroeconômico existente em um determinado país
em um momento específico.
Desta sorte, regras como subcapitalização e/ou regras estabelecendo li-
mites de juros para fins de preço de transferência podem determinar o limite
de juros a serem deduzidos em determinado país influenciando diretamente o
nível de investimento estrangeiro num dado momento do tempo.

88
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Naturalmente, as sugestões trazidas no relatório da OCDE não se aplica-


riam a todas as entidades, mas somente àquelas cujos graus de endividamento
possam efetivamente representar risco, seja para erodir a base tributável, seja
para mover o lucro tributável para países com uma tributação reduzida.
Desta forma, empresas de pequeno porte, e até de grande porte, que não
possuam alto grau de endividamento, ou que, mesmo alavancadas, o façam
perante terceiros, não estariam enquadradas, incialmente, no escopo da ação
4, cujo objetivo é alcançar grandes grupos multinacionais que notadamente
celebram contratos de empréstimos ou se utilizam de outras formas de finan-
ciamento se valendo de estruturas internacionais de capital complexas como
forma de financiamento próprio.
Como forma de demonstrar, na prática, como se aplicariam os conceitos
acima, reproduzimos abaixo um esquema trazido no relatório da OCDE para
aplicação da melhor prática relacionado à dedutibilidade de juros:
Um aspecto que merece destaque na proposta da OCDE é a seriedade com
que o relatório trata a segurança jurídica aplicável aos contratos já existentes,
mas que estariam sujeitos às regras trazidas na ação 4. Neste contexto, sugere o
relatório final que as regras que eventualmente os países venham a adotar sejam
aplicadas de forma prospectiva, sem prejudicar as regras já estabelecidas nos
contratos firmados anteriormente a publicação do relatório final do BEPS.

Alternativas à aplicação do modelo de “melhor prática”


(best practice approach)
A despeito do mencionado anteriormente, julgamos oportuno destacar
que um mesmo coeficiente de endividamento para entidades de todos os se-
tores da economia finda por não ser flexível. Além disso, eventualmente des-
considera que o mesmo coeficiente pode ser muito baixo para determinados
segmentos e demasiadamente altos para outros. Adicionalmente, estudos de-
monstram que os limites atualmente aplicados são muito elevados para serem
mecanismos efetivos de controle à erosão da base e transferência de lucros.
A adoção de um critério arm’s lenght nos moldes das regras de preços de
transferência foi bastante defendida nos comentários recebidos pela OCDE
acerca da minuta do plano de ação. De acordo com referido critério, deve ser

89
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

comparar o endividamento, termos e condições da entidade com o endivida-


mento que seria possível caso feito por partes não relacionadas. Qualquer en-
dividamento que em desconformidade com o que seria possível em condições
normais de mercado seria desconsiderado.
De fato, os países que aplicam o arm’s length não o consideram mui-
to efetivo, pois aplicado apenas aos empréstimos intragrupo e para adequa-
do funcionamento seriam necessários muitos suplementos, acarretando em
maior complexidade e custos.
Alguns países aplicam o imposto de renda na fonte quando do pagamen-
to dos juros. Com efeito, a tributação na fonte funciona primordialmente para
alocar competência tributária à jurisdição da fonte, mas de fato tem capaci-
dade para reduzir planejamentos tributários visando erodir a base tributária
e transferir lucros.
A grande vantagem é ser simples e mecânico. Ocorre que para lograr êxi-
to seriam necessárias alíquotas iguais aplicadas por todos os países para evitar
novas oportunidades de planejamentos abusivos. Tendo em vista as diretivas
europeias e tratados para evitar a dupla tributação já existentes a adoção do
imposto de renda pelo plano de ação 4 fica prejudicada.
Por fim, alguns países adotam regras que vedam a dedução de porcen-
tagem fixa de todos os juros pagos. Sucede que regras neste sentido não se
prestam a coibir planejamentos tributários abusivos, mas sim para incentivar
o financiamento com capital em detrimento de dívida.

A Atualização do Plano de Ação 4 da OCDE


No final de 2016 a OCDE divulgou versão atualizada do plano de ação 4,
sem qualquer modificação nas conclusões do relatório anterior. A atualização
se limitou a fornecer detalhes técnicos adicionais para ajudar os países na im-
plementação da group ratio rule em linha com as regras uniformas em escala
global, i.e., o common approach, cujo foco foi:
I. como calcular o endividamento líquido do grupo com terceiros;
II. como calcular o EBITDA do grupo; e
III. endereçar como entidades com EBITDA negativo impactam a opera-
cionalização da regra.

90
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O relatório atualizado analisa se o endividamento do grupo deve ser cal-


culado levando-se em conta (i) o montante dos juros em contas consolidadas;
(ii) o montante dos juros em contas consolidadas ajustadas para identificar
quais valores devem ser incluídos, baseado na definição de juros apresentada
no plano de ação; ou (iii) uma análise individualizada dos valores a serem
considerados para fins tributários.
A conclusão é que o item (i) é demasiadamente simplista e, portanto, não
recomendado, ao passo que os itens (ii) e (iii) devem levar ao mesmo resulta-
do, devendo ser os escolhidos pelos países.
A atualização reitera a importância da abordagem uniforme pelos países
de forma a proporcionar segurança jurídica e redução de custos de complian-
ce para os grupos, ao mesmo tempo garantindo certa flexibilidade aos países
para fazerem ajustes levando em consideração as particularidades de suas res-
pectivas legislação e política fiscal.
Nesse sentido, a depender do caso, o relatório sugere que pode ser apropria-
do, por exemplo, eliminar do cálculo as flutuações do valor de mercado de deri-
vativos e itens que não sejam dedutíveis nos termos das legislações domésticas.
A OCDE não esclareceu como os países resolverão a questão, porém res-
salta que os mesmos poderão tomar diferentes posições, de sorte que nos mui-
to otimista a pretensão da OCDE de abordagem internacionalmente uniforme
quanto ao group ratio.
O relatório atualizado também tratou dos setores bancários e securitá-
rios, que em 2015 haviam sido deixados para depois em razão da abordagem
uniforme recomendada aos demais setores não ser adequada aos riscos en-
frentados por bancos e seguradoras.
Nesse sentido, foram examinados os requisitos regulatórios e comer-
ciais que restringem a capacidade dos grupos de utilizarem juros para fins de
BEPS, bem como os limites a tais restrições. Em linhas gerais, diversos fatores
reduzem os riscos de erosão da base e transferência de lucros por grupos ban-
cários e securitários, não obstante existirem diferenças de tratamento entre
os setores e países, permanecendo, portanto, risco residual para fins de BEPS.
O relatório atualizado entende que cada país deve identificar os riscos
que enfrenta, distinguindo entre os apresentados por grupos bancários e se-
curitários. Ao fazer isso, quando não há risco material identificado, os países

91
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

podem isentar o respectivo grupo da fixed ratio rule ou group ratio rule sendo
desnecessário criar regras adicionais.
Já quando há risco de BEPS, os países devem implementar regras apro-
priadas para enfrentar a questão, levando em consideração o sistema tributário
e regulatório doméstico em vigor, além das particularidades de cada setor, de
modo a assegurar que grupos bancários e securitários não sejam prejudicados
por cumprirem os requisitos regulatórios quanto à sua estrutura de capital.
Por derradeiro, a OCDE atualmente está trabalhando na elaboração de
nota prática para auxiliar os países em conto lidar com a transferência de lu-
cros nos setores de mineração através de deduções excessivas de juros.

Práticas Domésticas
No Brasil, o corolário da aplicação da Ação 4 é a utilização das regras de
subcapitalização, bem como os impactos tributários mais severos aplicados
aos chamados paraísos fiscais.
Em suma, a utilização dos limites para dedutibilidade das despesas de
juros, decorrente de endividamento com partes relacionadas estrangeiras, fi-
cam proporcionalmente limitadas ao capital social mantido direta ou indi-
retamente em favor da empresa brasileira. Este foi o critério adotado pelas
regras de subcapitalização nacionais.
Mais precisamente, os artigos 24 e 25 da Lei nº 12.249/10 determinam
quais seriam os limites aplicáveis: até duas vezes o montante investido dire-
tamente, sem ultrapassar o valor de duas vezes o patrimônio líquido (equity).
Já em relação às regras para paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados
limitam a dedutibilidade dos juros ao endividamento que não ultrapasse o
percentual de 30% do patrimônio líquido da devedora.
Ou seja, as regras de thin capitalization locais restringem o total do en-
dividamento da empresa brasileiras. Por outro lado, as regras de preços de
transferência restringem os percentuais de juros aplicados para empréstimos
internacionais com partes relacionadas ou garantidos por partes relacionadas,
como previsto na lei nº 9.430/96.
Além das regras específicas para endividamentos internacionais e com
partes relacionadas, as regras de dedutibilidade geral ainda continuam sendo

92
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aplicáveis para qualquer despesa de juros, nos termos do artigo 311 do Decre-
to nº 9.580/18 (“Regulamento do Imposto de Renda” – “RIR”).
Isso quer dizer que, independentemente das normas utilizadas em tran-
sações internacionais e/ou com partes relacionadas, caso as sociedades brasi-
leiras não consigam demonstrar a necessidade, usualidade e comprovação das
despesas incorridas a título de juros, tais despesas serão consideradas indedu-
tíveis, para fins de tributação sobre a renda.
Neste contexto é inevitável alguns questionamentos: o Fisco pode ava-
liar a capacidade de julgamento da administração da sociedade em captar
empréstimo ou capital? As despesas com juros podem ser classificadas como
necessária com base na destinação? Há necessidade de vínculo objetivo do
dinheiro com sua alocação?
Ao se elaborar este tipo de questionamento, também deve ser indagado
se há espaço para julgamento do agente fiscal. A destinação efetiva dos valores
possui relevância ou o impacto no fluxo de caixa que deve ser considerado
como o objetivo final da contratação do empréstimo.
Certamente, o pior cenário é o que deixa as pessoas jurídicas brasileiras
no cenário de insegurança. Análises que envolvam razoabilidade são deter-
minantes para a aplicação das normas fiscais.
Somada à esta regra geral do artigo 311 do RIR, ainda há a regras específicas
para sociedades nacionais que possuem investimentos em subsidiárias estrangei-
ras. Nos termos do §3° do artigo 1º, da lei nº 9.532/97, não são dedutíveis na deter-
minação do lucro real e da base de cálculo da CSLL os juros, relativos a emprésti-
mos, pagos ou creditados a empresa controlada ou coligada, independentemente
do local em que estejam situadas, incidentes sobre valor equivalente aos lucros não
disponibilizados por empresas controladas, domiciliadas no exterior.
No que diz respeito à jurisprudência brasileira, merece ser mencionado o
Caso Cogate-Kolynos (Processo n. 16327.001870/2001-42), caso no qual o em-
préstimo em que a controladora dispunha de recursos para integralizar o ca-
pital e preferiu servir-se da modalidade de dívida, ao dispor de fluxo de caixa
em favor da investida brasileiras. Foi neste caso que a análise da necessidade
da despesa com juros foi implementada pelas cortes fiscais administrativas.
Sem dúvidas, todas essas regras funcionam como um desestímulo ao uso de
capital de terceiros. Em uma economia com juros praticados nas casas dos dois

93
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dígitos, a obtenção de empréstimos externos para viabilização de projetos em ter-


ras brasileiras ainda enfrenta forte resistência por parte das regras fiscais locais.
Neste contexto, ainda cabe a análise quanto a não adoção do princípio
do arm’s length à dedutibilidade das despesas de juros no Brasil. Com o des-
casamento das taxas de juros nacionais e internacionais, o caminho economi-
camente mais viável é procurar a dívida externa, porém as regras fiscais difi-
cultam a implementação de um mercado em condições iguais de competição
ente instituições financeiras nacionais e internacionais.
Se por um lado a lógica econômica – recorrentemente utilizada para su-
portar decisões administrativas – das operações de empréstimos indicam que
a captação de recursos de terceiros deve almejar o valor mínimo de juros a
pagar, o certo seria conceber a utilização de taxa de juros internacionais li-
mitadas aos mesmos percentuais praticados no mercado nacional. Qualquer
posicionamento diferente deste indica o beneficiamento de contratos locais.
Vale ser ressaltado que as operações de repasse para instituições finan-
ceiras não estão abrangidas pelas regras de subcapitalização e ainda são ins-
trumento relevante e estratégico para instituições financeiras. Neste contexto
e em consonância com o disposto na Ação 4, vale mencionar que há impactos
diferenciados no pagamento de juros às instituições financeiras localizadas
em paraísos fiscais, mas que não foram objeto de análise da ação 4, hipótese
em que será analisada isoladamente.
Além de todas as regras e controles das despesas de juros mencionadas,
ainda há a regra prevista no artigo Art. 26 da lei nº 12.249/10, aplicáveis aos
chamados paraísos fiscais. Tal regra é aplicada a países considerados com tri-
butação favorecida ou regime fiscal privilegiado.
Neste caso, há necessidade de implementação e mapeamento de fluxos fi-
nanceiros que não são requeridos em outras operações, como a identificação do
efetivo beneficiário dos recursos remetidos e a demonstração de sua capacida-
de operacional. Adicionalmente, qualquer pagamento e recebimento de recursos
deve ser acompanhado da prova da aquisição/venda de bens ou utilização do ser-
viço. Sendo que todas estas operações estão sujeito ao percentual de IRRF de 25%.

Ultrapassadas as análises voltadas para paraísos fiscais e regimes de sub-


capitalização, também merecem destaque as regras de preços de transferência

94
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aplicáveis aos juros. De acordo com o artigo 22 da Lei n° 9.430/96, combinado


com as Leis n° 12.715/12 e n° 12.766/12, ficou estabelecido um spread, acresci-
do da taxa libor ou taxa de títulos soberanos, como o limite de dedutibilidade
dos juros praticados em operações intragrupo.
Porém, em dissonância com os conceitos trazidos pelos planos de ação
do BEPS, a análise das autoridades brasileiras é unilateral e não se preocupa
com a transferência de lucros ou com a outra ponta da relação, nem com a
eventual “dupla não tributação” dos juros.
Vale destacar que, para fins de dedutibilidade dos tributos incidentes so-
bre a renda, são consideradas partes relacionadas as pessoas condôminas em
qualquer bem, o que parece um exagero da norma brasileira
Adicionalmente, a Lei n° 12.973/14, em seu artigo 86, trata da possibili-
dade de imputação aos valores de preços de transferência aos tributos sobre a
renda devidos sobre lucros auferidos no exterior. Nitidamente uma evolução
da legislação nacional, que conta com alguns requisitos como (a) a necessida-
de de relacionamento entre controlada lucrativa e o valor de preços de trans-
ferência pago; (b) requisito da proporcionalidade na participação da pessoa
jurídica investida; e (c) a limitação ao lucro auferido pela subsidiária e aos
tributos devido em razão do ajuste de preços de transferência.
O uso de regras múltiplas para análise de dedutibilidade gera discussões
sobre a múltipla incidência de regras domésticas, com aplicação simultânea de
regras de preços de transferência e regras de subcapitalização. Neste cenário
há duas opções nítidas: (a) a aplicação de todas as regras são simultaneamente
ou (b) aplicação primária das regras de preços de transferência e residualmen-
te as normas de subcapitalização.
Mais que isso, os termos da lei n° 12.973/14 parecem privilegiar a forma
sobre substância econômica/contábil. Por exemplo, ao se verificar que a nova
redação do artigo 10º da Lei nº 9.249/95 em seus parágrafos 2º e 3º, bem como
a do artigo 38-B do Decreto-Lei nº 1.598/77, fica claro que a intenção do le-
gislador é determinar que as dívidas são dedutíveis, enquanto o patrimônio
líquido (equity) é não dedutível, independentemente da sua real classificação,
destinação ou vontade das partes.
Em última análise, as regras brasileiras parecem mais severas que as su-
geridas pelo BEPS. Embora até o presente momento a legislação brasileira não

95
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tenha sido alterada em função do Plano de Ação 4, esperamos que as normas


nacionais acabem adaptadas aos verdadeiros objetivos das regulações interna-
cionais e haja razoabilidade nas adaptação e flexibilização das regras brasileiras.

Conclusão
Ante o exposto, conclui-se que o plano de ação da OCDE acerca da erosão
da base tributável e da transferência de lucros através da dedutibilidade exces-
siva de juros desperta críticas sobre o quão gravosas são as regras brasileiras.
Nesse sentido, espera-se que haja uma racionalização das regras domésti-
cas vis-à-vis a tendência global. No entanto, dado o atual momento econômico
em que se encontra o Brasil, ainda não descartamos a possibilidade de que as
autoridades fiscais brasileiras se valham da ação 4 para aumentar a arrecadação
federal, a partir da edição de novas normas ou alteração das já então existentes,
no que diz respeito à dedutibilidade de juros para fins de imposto sobre a renda.
A ação 4, em toda a sua simplicidade de entendimento, reveste-se de ime-
diata aplicação não só no Brasil, mas em outros países, e não por outra razão
que diversos países vem se manifestando acerca da sua imediata aplicabilida-
de, pois, conforme mencionado anteriormente, as regras contidas nesta ação
podem atrair ou afastar investimentos estrangeiros para os países.
Nesse sentindo, diversos membros da OCDE adotaram regras de limita-
ção de juros ou estão em processo de alinhar sua legislação interna com as re-
comendações da ação 4. Desde o início de 2019, todos os Estados Membros da
União Europeia, em linha com o pacote antielisão local20, passaram a aplicar
o “EBITDA tributário” para determinar o limite de juros a serem deduzidos e
tendo geralmente como parâmetro a porcentagem de 30%.
No entanto, convém destacar que até o momento da elaboração da pre-
sente conclusão não foi implementada na legislação brasileira nenhuma mu-
dança decorrente do plano de ação 4.

20 Ver “O Pacote Antielisão Fiscal da União Européia”, de Nathalia de Andrade Medeiros Tavares. In
Temas de tributação internacional: base Erosion and Profit Shifting: conceitos e estudo de casos /
coordenação [de] Marcus Lívio Gomes, Edgar Santos Gomes, Francisco Lisboa Moreira. – Rio de
Janeiro: Gramma, 2018.

96
4. O Projeto BEPS da OCDE e o Plano de
Ação 3: Fortalecimento das Regras de CFC
– suas atualizações no cenário global

Luís Cesar Souza de Queiroz


Procurador Regional da República, Mestre e Doutor em Direi-
to Tributário, Professor Associado de Direito Financeiro e Tribu-
tário da UERJ (Graduação e Mestrado/Doutorado) e Coordenador
da Linha de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ.

Ana Paula Saunders


Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC/RJ). Advanced LL.M. em Direito Tributário Internacional
pela Universidade de Leiden, Holanda. Gerente de Planejamento
Fiscal-Brasil na Vale S.A..

1. Introdução
O Plano de Ação BEPS (base erosion and profit shifiting) criado pela
OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) foi
amplamente discutido nos 3 (três) primeiros volumes dessa coleção. Seus ob-
jetivos, os inúmeros debates e a consolidação das medidas foram tópicos es-
miuçados naqueles livros e, portanto, nesse momento, não há necessidade em
descrever novamente os pontos que já foram anteriormente abordados.
Especificamente sobre o fortalecimento das regras de CFC, como a legis-
lação referente às empresas estrangeiras controladas (controlled foreign corpora-
tion) foi ganhando a atenção dos países nos últimos anos, em especial por es-
tar diretamente ligada aos planejamentos tributários considerados “agressivos”
pela comunidade internacional, reservou-se a ele o específico Plano de Ação
3. O documento final publicado pela OCDE foi intitulado como “Designing
Effective Controlled Foreign Company Rules – Final Report” e destacou os ele-

97
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mentos constitutivos necessários para que as regras de CFC fossem efetivadas,


ressaltando, para tanto, que as mesmas não poderiam ser consideradas como
“minimum stardards”. Ao contrário, foi exaltado que tais recomendações foram
delineadas de forma a assegurar que as jurisdições que decidissem pela sua im-
plementação possuíssem regras que efetivamente prevenissem como um todo a
transferência dos lucros das empresas para suas subsidiárias no exterior.
O Final Report trouxe ainda 6 (seis) “blocos de construção” que seriam
necessários para compor uma efetiva regra de CFC, quais sejam, (i) o conceito
de CFC; (ii) as suas isenções e os seus limites; (iii) a sua definição, (iv) a sua
apuração e (v) a imputação das suas rendas; e (vi) a prevenção e a eliminação
da dupla tributação. Todos esses itens foram discutidos no primeiro artigo que
escrevemos no volume I dessa coleção e caberá agora demonstrar como as juris-
dições vêm atualizando as suas legislações na tentativa de aplicar em sua tota-
lidade o referido Plano de Ação 3. Assim, a seguir, serão expostos alguns casos
internacionais e algumas relevantes modificações legislativas feitas pelos países.

2. A Reforma Tributária no Japão


O Japão iniciou a sua revisão legislativa em 201721 e, após inúmeras dis-
cussões, suas atuais regras de CFC estão extremamente próximas às recomen-
dações propostas pela OCDE. Com a reforma tributária, o conceito de “em-
presa estrangeira controlada” passou a ser determinado a partir das atividades
econômicas exercidas por ela, não sendo mais essencial a fixação de uma alí-
quota específica a que esteja sujeita.
Pelas normas anteriores, no caso de uma subsidiária estrangeira estar su-
jeita a uma alíquota superior a 20%, a sua renda não seria tributada no Japão,
mesmo no caso de não possuir substância econômica22. Ou seja, uma tribu-
tação acima de 20% no país de residência da subsidiária afastava a incidência
das regras de CFC, ainda que tal empresa não possuísse uma estrutura de fato.

21 ht t p s : //ji m i n .jp - e a s t-2 . s t or a ge . api . n i fc loud .c om /p d f /ne w s /p ol ic y/133 810 _1.p d f ? _


ga=2.96438428.186223500.1557932184-1275048125.1557932184. Acesso em 15.05.2019.
22 Por outro lado, mesmo no caso de possuir substância econômica, no caso de alíquota efetiva abaixo
de 20%, haverá a imediata tributação da renda pelo Japão.

98
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A questão sobre a falta de substância das subsidiárias localizadas no ex-


terior foi, inclusive, o principal motivo da revisão legislativa ocorrida no país.
Com efeito, as principais ideias atuais são (i) no sentido do alargamento do
conceito de renda passiva, atingindo montantes que anteriormente não eram
assim classificados, (ii) de que a renda passiva auferida por subsidiária estran-
geira que não possua “economic substance” será computada automaticamente
na sua controladora japonesa e (iii) ainda que a subsidiária estrangeira esteja
sujeita à alíquota efetiva inferior a 20%, desde que haja substância, a totalidade
dos seus lucros não serão adicionados aos da sua controladora, mas, tão so-
mente a sua renda passiva.
Ademais, com as novas normas, o lucro de algumas entidades como as
“Paper Companies” e as “Cash Boxes” ou que forem residentes em uma jurisdi-
ção incluída na “black-list”23 estarão sujeitas à tributação pelo Japão, com ex-
ceção de estarem localizadas em uma jurisdição cuja alíquota efetiva seja maior
do que 30%. Evita-se, assim, novamente a criação de empresas de papel cujo
principal objetivo é a redução artificial da carga tributária da sua controladora.
Com a utilização do conceito do “entity approach”24, torna-se mais fácil
para as autoridades fiscais japonesas adicionarem, ou não, os lucros auferidos
por subsidiárias localizadas no exterior nas bases de cálculo das suas controla-
doras no Japão. Além disso, o entity approach também se torna um facilitador
na verificação dos requisitos estipulados pelo “Teste de Atividade Econômica”
(ou Economic Activity Test em substituição ao Active Business Exemption).
Por esse teste, há 4 (quatro) principais análises a serem feitas: (i) o Busi-
ness Purpose; (ii) o Substance/Administration and Control Test; (iii) o Country
of Location; e (iv) o Unrelated Party. Com efeito, no caso de ser verificado que
se trata de uma subsidiária sem substância, por exemplo, a tributação pelo
Japão será possível.
Nessa seara, vale citar um importante precedente quanto à aplicabilida-
de das regras de CFC: o caso “DENSO”25. A Denso Corporation é uma fabri-

23 https://www.oecd.org/countries/monaco/list-of-unco-operative-tax-havens.htm. Acesso em 15.05.2019.


24 Com o entity approach, as características de uma específica entidade são levadas em consideração,
como, por exemplo, a alíquota efetiva a que está submetida, as rendas ativa e passiva que possui,
dentre outras relevantes.
25 https://tpcases.com/japan-vs-denso-singapore-november-2017-supreme-court-of-japan/. Acesso
em 17.05.2019.

99
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

cante mundial de componentes automotivos e fornecedora de tecnologia com


sede na cidade de Kariya, no Japão, e que possui uma de suas subsidiárias, a
Denso International Asia PTE. LTD. (DIA), em Singapura26. Como a alíquota
corporativa neste país é de apenas 17%, a princípio, as regras de CFC seriam
aplicadas e, com isso, ocorreria a tributação dos lucros auferidos por ela no
Japão como se tivessem sido gerados pela controladora japonesa.
Todavia, ao analisar o caso, a Suprema Corte destacou que o total de
rendimentos auferidos pela DIA, bem como a sua estrutura e a quantidade
de empregados que ela possui afastariam a possibilidade de tributação pelo
Japão. Como restou evidenciado que a subsidiária de fato possuía substância
econômica e que havia um propósito negocial para condução das suas ativida-
des em um país com baixa tributação, as regras de CFC não foram aplicadas.
As novas regras de CFC trazem um importante elemento para a possi-
bilidade de tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas japo-
nesas, qual seja, a necessidade de substância econômica da estrutura. Apesar
de não definir especificamente o seu conceito, é certo que os contribuintes,
ao se estabelecerem overseas, não criarão mais estruturas sem um propósito
negocial27 para ali se situarem.
Essa questão, apesar de não ser nova, é muito importante para ambos os
lados da relação. Especificamente quanto aos contribuintes, há a possibilidade
de se instalarem em países com baixa tributação, sem que isso seja sinônimo
de planejamento tributário agressivo. Para o Fisco, o requisito “substância”
trará mais segurança de que as subsidiárias de controladas japonesas situadas
no exterior não estão promovendo o BEPS.

26 https://www.denso.com/global/en/about-us/download/files/DENSO_brochure_en.pdf. Acesso em
17.05.2019.
27 Não se defende aqui que substância econômica e propósito negocial são sinônimos, mas é certo
que possuem conceitos parecidos, sendo certo que ambos estão ligados à relação de adequação da
estrutura das empresas às funções que efetivamente constituem os seus objetos sociais.

100
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3. A Reforma Tributária na Finlândia


Em agosto/2018, o Ministro das Finanças publicou um draft bill28 para even-
tuais comentários acerca das emendas à legislação CFC existente na Finlândia29.
Tal proposta teve como objetivo não apenas estar em linha com o Projeto BEPS,
mas, em especial com a European Union Anti-Tax Avoidance Directive (ATAD).
A ATAD foi um conjunto de propostas apresentado pela Comissão Euro-
peia (CE) em janeiro/2016 e compôs o European Anti Tax Avoidance Package
(EATAP). O EATAP foi a tentativa da CE em criar um sistema tributário mais
justo, mais simples e mais eficiente na União Europeia (UE) e conteve inú-
meras medidas para o combate do planejamento tributário agressivo e para o
aumento da transparência fiscal30 entre os países-membros da UE. O objetivo
da CE com o EATAP era se aproximar das propostas trazidas pelo Projeto
BEPS, evitando, assim, a evasão fiscal e proporcionando aos países europeus
uma arrecadação cada vez maior31.
Após a sua publicação oficial, em julho/201632, a Diretiva EU 2016/1164
tornou-se oficial entre as jurisdições da UE. Essa Diretiva, no entanto, passou
por duas revisões, sendo ambas referentes aos descasamentos híbridos (em
uma tradução literal da expressão hybrid mismatches)33 e consolidou 5 (cinco)
provisões que devem ser observadas pelos países-membros. Especificamente

28 Draft Bill pode ser definido como um projeto de lei emitido para consulta antes de ser formalmente
apresentado ao Parlamento, o que permite que as mudanças propostas sejam feitas antes da
introdução formal do projeto de lei.
29 https://www.eduskunta.fi/FI/vaski/KasittelytiedotValtiopaivaasia/Sivut/HE_218+2018.aspx.
Acesso em 17.05.2019.
30 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?qid=1454056413880&uri=COM:2016:23:FIN.
Acesso em 18.05.2019.
31 “The Anti- Tax Avoidance Directive3 lays down rules against tax avoidance practices that directly
affect the functioning of the internal market. The Anti-Tax Avoidance Directive responds to
the BEPS project as well as to demands from the European Parliament, several Member States,
businesses and civil society, and certain international partners for a stronger and more coherent EU
approach against corporate tax abuse. The schemes targeted by the Anti-Tax Avoidance Directive
involve situations where taxpayers act against the actual purpose of the law, taking advantage of
disparities between national tax systems, in order to reduce their tax bill.” in https://ec.europa.eu/
taxation_customs/sites/taxation/files/swd_2016_345_en.pdf.
32 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=uriserv:OJ.L _.2016.193.01.0001.01.
ENG&toc=OJ:L:2016:193:TOC. Acesso em 18.05.2019.
33 https://ec.europa.eu/taxation_customs/sites/taxation/files/com_2016_687_en.pdf e Acesso em 18.05.2019.

101
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

para o presente estudo, apenas as recomendações no que tange às regras de


CFC tornam-se relevantes34.

34 Article 7. Controlled foreign company rule


1. The Member State of a taxpayer shall treat an entity, or a permanent establishment of which the
profits are not subject to tax or are exempt from tax in that Member State, as a controlled foreign
company where the following conditions are met: (a) in the case of an entity, the taxpayer by itself,
or together with its associated enterprises holds a direct or indirect participation of more than 50
percent of the voting rights, or owns directly or indirectly more than 50 percent of capital or is
entitled to receive more than 50 percent of the profits of that entity; and (b) the actual corporate tax
paid on its profits by the entity or permanent establishment is lower than the difference between the
corporate tax that would have been charged on the entity or permanent establishment under the
applicable corporate tax system in the Member State of the taxpayer and the actual corporate tax
paid on its profits by the entity or permanent establishment. For the purposes of point (b) of the first
subparagraph, the permanent establishment of a controlled foreign company that is not subject to
tax or is exempt from tax in the jurisdiction of the controlled foreign company shall not be taken
into account. Furthermore the corporate tax that would have been charged in the Member State of
the taxpayer means as computed according to the rules of the Member State of the taxpayer.
2. Where an entity or permanent establishment is treated as a controlled foreign company under
paragraph 1, the Member State of the taxpayer shall include in the tax base: (a) the non-distributed
income of the entity or the income of the permanent establishment which is derived from the
following categories: (i) interest or any other income generated by financial assets; (ii) royalties or any
other income generated from intellectual property; (iii) dividends and income from the disposal of
shares; (iv) income from financial leasing; (v) income from insurance, banking and other financial
activities; vi) income from invoicing companies that earn sales and services income from goods and
services purchased from and sold to associated enterprises, and add no or little economic value; This
point shall not apply where the controlled foreign company carries on a substantive economic activity
supported by staff, equipment, assets and premises, as evidenced by relevant facts and circumstances.
Where the controlled foreign company is resident or situated in a third country that is not party to the
EEA Agreement, Member States may decide to refrain from applying the preceding subparagraph. or
(b) the non-distributed income of the entity or permanent establishment arising from non-genuine
arrangements which have been put in place for the essential purpose of obtaining a tax advantage.
For the purposes of this point, an arrangement or a series thereof shall be regarded as non-genuine
to the extent that the entity or permanent establishment would not own the assets or would not have
undertaken the risks which generate all, or part of, its income if it were not controlled by a company
where the significant people functions, which are relevant to those assets and risks, are carried out and
are instrumental in generating the controlled company’s income.
3. Where, under the rules of a Member State, the tax base of a taxpayer is calculated according to
point (a) of paragraph 2, the Member State may opt not to treat an entity or permanent establishment
as a controlled foreign company under paragraph 1 if one third or less of the income accruing to
the entity or permanent establishment falls within the categories under point (a) of paragraph 2.
Where, under the rules of a Member State, the tax base of a taxpayer is calculated according to
point (a) of paragraph 2, the Member State may opt not to treat financial undertakings as controlled
foreign companies if one third or less of the entity’s income from the categories under point (a) of
paragraph 2 comes from transactions with the taxpayer or its associated enterprises.
4. Member States may exclude from the scope of point (b) of paragraph 2 an entity or permanent
establishment: (a) with accounting profits of no more than EUR 750 000, and non-trading income of

102
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Com efeito, após a entrada em vigor da Diretiva EU 2016/1164 e corrobo-


rando as intenções do Plano de Ação 3, as normas referentes às subsidiárias es-
trangeiras de controladoras finlandesas foram revistas. Atualmente, como regra
geral, uma empresa será considerada como uma controlled foreign corporation
se for controlada por uma entidade residente na Finlândia e se estiver submetida
à alíquota de até 12% no exterior (3/5 da alíquota efetiva finlandesa).
O conceito de controle finlandês também foi alterado, de modo que o
limite de 50% (direta ou indiretamente) fica agora reduzido a 25% e a previ-
são de isenção a entidades sediadas em países não destacados na blacklist foi
devidamente removida da legislação doméstica, o que reforçou a necessidade
da existência de substância econômica para afastar a tributação finlandesa dos
lucros auferidos por suas subsidiárias no exterior.

no more than EUR 75 000; or (b) of which the accounting profits amount to no more than 10 percent
of its operating costs for the tax period. For the purpose of point (b) of the first subparagraph, the
operating costs may not include the cost of goods sold outside the country where the entity is resident,
or the permanent establishment is situated, for tax purposes and payments to associated enterprises.
Article. 8. Computation of controlled foreign company income
1. Where point (a) of Article 7(2) applies, the income to be included in the tax base of the taxpayer
shall be calculated in accordance with the rules of the corporate tax law of the Member State where
the taxpayer is resident for tax purposes or situated. Losses of the entity or permanent establishment
shall not be included in the tax base but may be carried forward, according to national law, and
taken into account in subsequent tax periods.
2. Where point (b) of Article 7(2) applies, the income to be included in the tax base of the taxpayer
shall be limited to amounts generated through assets and risks which are linked to significant people
functions carried out by the controlling company. The attribution of controlled foreign company
income shall be calculated in accordance with the arm’s length principle.
3. The income to be included in the tax base shall be calculated in proportion to the taxpayer’s
participation in the entity as defined in point (a) of Article 7(1).
4. The income shall be included in the tax period of the taxpayer in which the tax year of the entity ends.
5. Where the entity distributes profits to the taxpayer, and those distributed profits are included
in the taxable income of the taxpayer, the amounts of income previously included in the tax base
pursuant to Article 7 shall be deducted from the tax base when calculating the amount of tax due on
the distributed profits, in order to ensure there is no double taxation.
6. Where the taxpayer disposes of its participation in the entity or of the business carried out by
the permanent establishment, and any part of the proceeds from the disposal previously has been
included in the tax base pursuant to Article 7, that amount shall be deducted from the tax base when
calculating the amount of tax due on those proceeds, in order to ensure there is no double taxation.
7. The Member State of the taxpayer shall allow a deduction of the tax paid by the entity or permanent
establishment from the tax liability of the taxpayer in its state of tax residence or location. The
deduction shall be calculated in accordance with national law

103
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No caso de haver um propósito negocial para o estabelecimento de uma


subsidiária no exterior, quando se tratar de país pertencente à European Eco-
nomic Area (EEA), não serão aplicadas as regras de CFC. Caso a residência
seja estabelecida em uma jurisdição que não pertença à EEA, a substância
também será requisito essencial para o afastamento da tributação finlandesa,
bem como a existência de troca de informações entre os Estados.
A intensificação e a atual observância do requisito “substância” a fim de
se afastar a legislação CFC poderia gerar um resultado diferente no caso ana-
lisado pela Suprema Corte em novembro/201235 (KHO:2011:42). A discussão,
resumidamente, envolve uma holding estabelecida em Singapura controlada
por uma empresa localizada na Holanda que, por sua vez, era controlada por
uma empresa localizada na Finlândia. À época, o controle indireto acarretava
na aplicação das regras finlandesas de CFC, mas o tratado entre as jurisdições
não permitia a tributação pela Finlândia.
Ainda que Singapura não estivesse na black list no ano da discussão
(2009) e sendo certo que essa foi a razão de não haver a aplicação das normas
CFC, hoje o resultado poderia ser diferente no caso de não haver um propó-
sito negocial para o estabelecimento de uma holding em Singapura, o que,
imediatamente, permitiria a alocação dos lucros auferidos no exterior em sua
controladora finlandesa.

4. A Reforma Tributária na Inglaterra


Ainda que a Inglaterra esteja passando por negociações para efetivar sua
saída da UE, sua participação no bloco e a observância às disposições legis-
lativas ainda devem ocorrer. Portanto, até a sua saída definitiva, se esta de
fato ocorrer, o governo inglês continuará a aplicar as regras convalidadas em
comum com os demais países-membros.
Nesse sentido e seguindo o estabelecido na ATAD no que tange, em espe-
cial, o requisito da “substância” às subsidiárias estabelecidas no exterior, a legis-
lação de CFC na Inglaterra também sofreu por um processo de revisão. Soma-se
a isso o fato de a EU, em abril/2019, ter afirmado que diversas multinacionais

35 http://www.mondaq.com/x/135676/Income+Tax/Finnish+Supreme+Administrative+Court+Case
+Concerning+CFC+Legislation. Acesso em 19.05.2010.

104
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

deverão recolher aos cofres públicos os valores que deixaram de ser pagos em
razão de antiga isenção concedida na legislação doméstica de CFC36, uma vez
que tal benefício rompeu o equilíbrio fiscal entre os países-membros da UE.
Antes da revisão legislativa, existia a previsão da Group Finance Com-
pany Exemption (GFE), no qual as receitas de juros auferidas pelas subsidi-
árias offshore seriam isentas. Justamente em face dessa não tributação, a EU
considerou a GFE como uma ajuda estatal ilegal37, uma vez que não havia jus-
tificativa para esse tratamento privilegiado. Para escaparem do recolhimento
tributário, as multinacionais deverão demonstrar agora que há, com efeito,
um propósito legítimo para se estabelecerem no exterior.
Especificamente sobre a necessidade de reforço da sua legislação CFC, 2
(duas) específicas alterações foram efetivadas a partir de janeiro/2019. A primei-
ra, ligada ao conceito de controle, determina que uma empresa sediada no ex-
terior será considerada uma CFC no caso de uma empresa inglesa deter, direta
ou indiretamente (juntamente com suas associated enterprises), mais de 50% de
participação. A novidade é justamente a inserção das associated enterprises a per-
mitir o somatório para se atingir a proporção de 50% de participação38. A segunda
refere-se ao fortalecimento do conceito de “Significant People Functions” (SPFs)
que alterou o tratamento dado aos lucros financeiros não comerciais, eliminando,
consequentemente, a isenção que foi concedida pela legislação anterior.
Não se sabe ao certo até quando essa nova legislação produzirá efeitos na
Inglaterra. É ainda muito cedo para afirmar que, em eventual saída da UE, os dis-
positivos serão revogados ou substituídos por normas mais brandas. A tendência
é que, independentemente da situação em que se encontrar, os países continuem
fortalecendo as suas regras de CFC na tentativa de contenção do BEPS.

36 http://europa.eu/rapid/press-release_IP-19-1948_en.htm. Acesso em 19.05.2010.


37 “O State Aid ou ajuda estatal pode ser definido como um auxílio conferido por um país-membro
da EU a uma empresa específica. As medidas gerais, amplas e abertas a todos os contribuintes não
são definidas como State Aid e, dessa maneira, não são consideradas um problema que deva ser
combatido na Europa”. SAUNDERS, Ana Paula. O Plano de Ação 5 do Projeto BEPS e as Ajudas
Estatais concedidas na Europa. In GOMES, Edgar Santos; MOREIRA, Francisco Lisboa; GOMES,
Marcus Lívio. Temas de Tributação Internacional: Base Erosion and Profit Shifting. P. 147.
38 Essa previsão está em consonância com o art. 7.1.a do ATAD.

105
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

5. A Reforma Tributária na Áustria


A reforma tributária na Áustria pode ser considerada como uma das mais
importantes ocorridas na Europa. O país, antes conhecido pela ausência das
normas CFC, instituiu, pela primeira vez esses dispositivos de modo a se apro-
ximar das recomendações da OCDE, bem como estar em linha com a ATAD.
Em abril/2018, foi publicado um draft do Projeto de Emenda Tributária,
o denominado Jahressteuergesetz39 que trouxe inúmeras alterações nos dispo-
sitivos austríacos especialmente nas regras das controladas no exterior e nas
normas referentes ao International Participation Exemption.
A implementação do draft ocorreu em janeiro/2019 e, com isso, os ren-
dimentos passivos auferidos pelas subsidiárias e pelos estabelecimentos per-
manentes localizados em jurisdições com baixa tributação (12,5% ou 50% da
alíquota austríaca) deverão ser incluídos na base tributável da sua controlado-
ra. Com isso, na Áustria, os lucros auferidos no exterior estarão sujeitos ao im-
posto corporativo à alíquota de 25% com abatimento do imposto estrangeiro
já devidamente recolhido pela subsidiária.
Com a introdução das regras CFC, o governo austríaco implementará
os já citados artigos 7 e 8 da ATAD em sua legislação nacional. O foco das
novas regras, como visto, será a inédita tributação da renda passiva de subsi-
diárias estrangeiras e estabelecimentos permanentes situadas em jurisdições
com baixa tributação pelo governo austríaco. Essa inovação, por certo, está
em consonância com o Projeto BEPS, mas, seu resultado somente poderá ser
verificado a partir de 2020.

6. A Reforma Tributária na China


Apesar de não ser membro da OCDE, a China, além de observar (ou se
inspirar) em muitos dos dispositivos elencados na Convenção Modelo, participa
recorrentemente dos diversos encontros promovidos pela Organização e já re-

39 https://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/2018_Gesetzgebung_Jahressteuergesetz/$FILE/
EY_Uebersicht_JStG_2018.pdf. Acesso em 19.05.2019.

106
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

conheceu a urgência de se discutir o BEPS visando ao combate da evasão fiscal


e à promoção da transparência fiscal e da troca automática de informações40.
Com a influência do Projeto BEPS, o país começou a rediscutir a matéria
e a necessidade de tais como uma revisão fiscal ganhou destaque. Em particu-
lar, foram identificadas 2 (duas) principais práticas e estruturas mais comuns
que levaram cada vez mais a erosão da base tributária na China, quais sejam,
(i) os métodos de preços de transferência adotados pelas multinacionais e (ii)
a existência de inúmeras subsidiárias sem substâncias econômicas estabeleci-
das nas jurisdições de baixa tributação e nos paraísos fiscais e que acabaram
servindo como ponte para a transferência de lucros41.
Nessa seara, a Administração Tributária Chinesa (China’s State Admi-
nistration of Taxation – SAT) iniciou as medidas para se aproximar das ações
da OCDE e, em outubro/2015, publicou, em seu site oficial, as suas recomen-
dações iniciais42. Além disso, o governo chinês criou o Chinese G20 Leading
Group, composto por estudiosos tributaristas, cujo principal objetivo era ana-
lisar a legislação doméstica para adequá-la ao Projeto BEPS43. 
Especificamente sobre as regras CFC, cumpre destacar que elas já existem
desde 2008 no país e, com elas, se tornou possível a tributação, pelo governo
chinês, das subsidiárias estrangeiras situadas em jurisdições com baixa tributa-
ção, assim definidas como aquelas que possuem alíquota efetiva até 12,5%. Para
o fortalecimento dessa legislação, o governo editou a Special Tax Adjustment
Implementation Measures, que, apesar de ter como foco principal a as regras de
preço de transferência, dedicou um capítulo exclusivo para as normas de CFC.
O draft definiu os conceitos de “controle” e “attributable income” e trou-
xe as condições em que o lucro auferido no exterior deve ser consolidado na
base de cálculo da sua controladora chinesa. O termo refere-se a um controle
substantivo em termos de ações, capital, negócios como compra e venda, den-
tre outros. Além disso, elencou quais as rendas que serão alocadas diretamen-
te à controladora, independentemente da sua efetiva distribuição.

40 http://www.g20.utoronto.ca/2013/2013-0906-declaration.html. Acesso em 19.05.2019.


41 https://www.un.org/esa/ffd/wp-content/uploads/2014/10/ta-BEPS-%20CommentsChina.pdf.
Acesso em 23.05.2019.
42 http://www.chinatax.gov.cn/n810219/n810724/c1836574/content.html. Acesso em 23.05.2019.
43 http://www.chinatax.gov.cn/n810219/n810724/c1836574/content.html. Acesso em 23.05.2019.

107
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vale destacar que, em julho/2017, as autoridades fiscais obtiveram uma


importante vitória sobre o tema. Com a aplicação das regras de CFC, foi pos-
sível a atribuição, na controladora chinesa, dos lucros auferidos por sua subsi-
diária sediada em Hong Kong, país com baixa tributação, o que gerou um adi-
cional pagamento de imposto no valor de, aproximadamente, US$ 1 milhão.
Além de ser considerada como uma low-tax jurisdiction, foi comprovado que
a subsidiária não tinha razão negocial para não distribuir os seus lucros para
a sua controladora na China, tendo em vista que, no período autuado (2014 e
2015), não houve nenhum reinvestimento financeiro na sua própria estrutura.
Nada obstante a atenção da China para as medidas propostas pela OCDE,
não há, ainda, uma definição clara sobre os conceitos de “propósito negocial”
e de “interesses financeiros”. Outrossim, a regras de CFC são aplicáveis gene-
ricamente, sem a verificação das substâncias da subsidiárias offshores, o que,
apesar de conter a erosão da base tributária, pode impedir a internacionaliza-
ção das próprias empresas chinesas.

7. A legislação CFC no Brasil


Muito se discutiu sobre a necessidade de observância do Plano de Ação nº 3
no Brasil, uma vez que a nossa legislação sobre a tributação dos lucros auferidos
por controladas e coligadas no exterior já é extremamente rígida. Não se trará no
presente artigo, a evolução das normas de CFC no Brasil, mas, vale destacar que
o país, até 1995, adotava o critério territorial para tributação da renda, tributando
somente as rendas auferidas dentro de seus limites territoriais.
Com a expansão das empresas e com os efeitos da globalização, o Brasil
deixou de aplicar o princípio da territorialidade e passou a aplicar o critério da
universalidade, admitindo que os rendimentos auferidos no exterior pelos seus
próprios contribuintes também pudessem ser tributados44. Em 2001, foi promul-
gada a Medida Provisória (MP) nº 2.158, presumindo o auferimento de renda,
no Brasil, no momento em que as empresas controladas e coligadas levantassem/
apurassem seus balanços no exterior. Dispôs ainda que os lucros apurados até 31

44 Nesse patamar, o Brasil editou a Lei 9.249/1995, que regularizou a tributação da renda dos lucros
auferidos no exterior por empresa nacional, estabelecendo o critério da tributação das bases
universais em abandono ao critério da territorialidade.

108
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de dezembro de 2001 seriam considerados disponibilizados em 31 de dezembro


de 2002, independentemente de serem efetivamente distribuídos ou não45.
Desde a publicação dessa MP, gerou-se uma discussão sobre a constitucio-
nalidade do seu artigo 74, uma vez que a nova legislação permitiu a tributação
pelo Imposto de Renda (IR) e pela Contribuição Social sobe o Lucro (CSL) sem
que ocorra a real distribuição dos lucros obtidos de empresas coligadas e contro-
ladas localizadas no exterior para a empresa controladora situada no Brasil. Tal
dispositivo aponta para a irrelevância da prática do ato de disponibilização da
renda, dispondo que os lucros auferidos pelas empresas controladas e coligadas
no exterior serão tributados pelo IRPJ e pela CSL na data do balanço da apuração.
Em razão dessa suposta (ou evidente) impossibilidade, foi ajuizada a
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588. A importância da ação
foi tanta que seu julgamento demorou 10 (dez) anos para se encerrar. Os valo-
res vultuosos envolvidos e as peculiaridades do caso fizeram com que, mesmo
após o julgamento, inúmeras questões ainda permanecem em aberto.
Independentemente do resultado, que aqui não será debatido, apesar de
a Suprema Corte não ter analisado diversos pontos importantes quando do
julgamento do caso, para a presente discussão, vale destacar apenas dois pon-
tos. O primeiro é referente ao resultado prático: a norma não foi expurgada do
ordenamento jurídico, de modo que restou ser possível a tributação dos lucros
auferidos no exterior da seguinte forma46:

45 Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art.
25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos
por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou
coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.
Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de
2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta
data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.
46 Quadro exposto na Solução de Consulta Interna COSIT n°. 18, de 8 de agosto de 2013.

109
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Pessoa Jurídica País Art. 74 da MP 2.158 Eficácia erga omnes


Sem tributação favorecida Inconstitucional Sim
Coligadas
Com tributação favorecida Constitucional Não
Sem tributação favorecida Constitucional Não
Controladas
Com tributação favorecida Constitucional Sim

O segundo é que, nada obstante essa possibilidade ter sido ratificada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) defi-
niu, em 24.04.2014, no julgamento do Recurso Especial nº 1.325.709, que os
lucros auferidos pelas empresas controladas devem ser tributados no país de
domicílio da controlada, considerando ser inaplicável a tributação antecipada,
prevista no artigo 74.
Como delimitado pelo Ministro-Relator Napoleão Nunes Maio Filho, a
decisão proferida no julgamento englobou “a situação de sociedades controla-
das, legalmente conceituadas como aquela na qual a controladora, diretamente
ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegu-
rem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e poder de
eleger a maioria dos administradores (art. 243, § 2º da Lei 6.404/76), diferente-
mente da situação julgada e definida pelo STF.
A decisão do STJ exaltou a prevalência dos Tratados Internacionais, res-
peitando o disposto no artigo 98 do CTN47, nos seguintes moldes:
RECURSO ESPECIAL TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. MAN-
DADO DE SEGURANÇA DENEGADO NA ORIGEM. APELAÇÃO.
EFEITO APENAS DEVOLUTIVO. PRECEDENTE. NULIDADE DOS
ACÓRDÃOS RECORRIDOS POR IRREGULARIDADE NA CON-
VOCAÇÃO DE JUIZ FEDERAL. NÃO PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULAS 282 E 356/STF. IRPJ E CSLL. LUCROS OBTIDOS POR
EMPRESAS CONTROLADAS NACIONAIS SEDIADAS EM PAÍSES
COM TRIBUTAÇÃO REGULADA. PREVALÊNCIA DOS TRATA-
DOS SOBRE BITRIBUTAÇÃO ASSINADOS PELO BRASIL COM
A BÉLGICA (DECRETO 72.542/73), A DINAMARCA (DECRE-
TO 75.106/74) E O PRINCIPADO DE LUXEMBURGO (DECRETO
85.051/80). EMPRESA CONTROLADA SEDIADA NAS BERMUDAS.

47 Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária


interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.

110
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ART. 74, CAPUT DA MP 2.157-35/2001. DISPONIBILIZAÇÃO DOS


LUCROS PARA A EMPRESA CONTROLADORA NA DATA DO
BALANÇO NO QUAL TIVEREM SIDO APURADOS, EXCLUÍDO O
RESULTADO DA CONTRAPARTIDA DO AJUSTE DO VALOR DO
INVESTIMENTO PELO MÉTODO DA EQUIVALÊNCIA PATRI-
MONIAL. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE
PROVIDO, PARA CONCEDER A SEGURANÇA, EM PARTE.
1. Afasta-se a alegação de nulidade dos acórdãos regionais ora recorri-
dos, por suposta irregularidade na convocação de Juiz Federal que fun-
cionou naqueles julgamentos, ou na composição da Turma Julgadora;
inocorrência de ofensa ao Juiz Natural, além de ausência de prequestio-
namento. Súmulas 282 e 356/STF. Precedentes desta Corte.
2. Salvo em casos excepcionais de flagrante ilegalidade ou abusividade,
ou de dano irreparável ou de difícil reparação, o Recurso de Apelação
contra sentença denegatória de Mandado de Segurança possui apenas
o efeito devolutivo. Precedente: AgRg no AREsp. 113.207/SP, Rel. Min.
CASTRO MEIRA, DJe 03/08/2012.
3. A interpretação das normas de Direito Tributário não se orienta e
nem se condiciona pela expressão econômica dos fatos, por mais avul-
tada que seja, do valor atribuído à demanda, ou por outro elemento
extrajurídico; a especificidade exegética do Direito Tributário não de-
riva apenas das peculiaridades evidentes da matéria jurídica por ele re-
gulada, mas sobretudo da singularidade dos seus princípios, sem cuja
perfeita absorção e efetivação, o afazer judicial se confundiria com as
atividades administrativas fiscais.
4. O poder estatal de arrecadar tributos tem por fonte exclusiva o siste-
ma tributário, que abarca não apenas a norma regulatória editada pelo
órgão competente, mas também todos os demais elementos normati-
vos do ordenamento, inclusive os ideológicos, os sociais, os históricos
e os operacionais; ainda que uma norma seja editada, a sua efetividade
dependerá de harmonizar-se com as demais concepções do sistema: a
compatibilidade com a hierarquia internormativa, os princípios jurí-
dicos gerais e constitucionais, as ilustrações doutrinárias e as lições da
jurisprudência dos Tribunais, dentre outras.
5. A jurisprudência desta Corte Superior orienta que as disposições dos
Tratados Internacionais Tributários prevalecem sobre as normas de
Direito Interno, em razão da sua especificidade. Inteligência do art. 98
do CTN. Precedente: (RESP 1.161.467-RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA,
DJe 01.06.2012).

111
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

6. O art. VII do Modelo de Acordo Tributário sobre a Renda e o Ca-


pital da OCDE utilizado pela maioria dos Países ocidentais, inclusive
pelo Brasil, conforme Tratados Internacionais Tributários celebrados
com a Bélgica (Decreto 72.542/73), a Dinamarca (Decreto 75.106/74) e
o Principado de Luxemburgo (Decreto 85.051/80), disciplina que os lu-
cros de uma empresa de um Estado contratante só são tributáveis nesse
mesmo Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro
Estado Contratante, por meio de um estabelecimento permanente ali
situado (dependência, sucursal ou filial); ademais, impõe a Convenção
de Viena que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito
interno para justificar o inadimplemento de um tratado (art. 27), em
reverência ao princípio basilar da boa-fé.
7. No caso de empresa controlada, dotada de personalidade jurídica
própria e distinta da controladora, nos termos dos Tratados Interna-
cionais, os lucros por ela auferidos são lucros próprios e assim tribu-
tados somente no País do seu domicílio; a sistemática adotada pela
legislação fiscal nacional de adicioná-los ao lucro da empresa controla-
dora brasileira termina por ferir os Pactos Internacionais Tributários
e infringir o princípio da boa-fé na relações exteriores, a que o Direito
Internacional não confere abono.
8. Tendo em vista que o STF considerou constitucional o caput do art.
74 da MP 2.158-35/2001, adere-se a esse entendimento, para conside-
rar que os lucros auferidos pela controlada sediada nas Bermudas, País
com o qual o Brasil não possui acordo internacional nos moldes da
OCDE, devem ser considerados disponibilizados para a controladora
na data do balanço no qual tiverem sido apurados.
9. O art. 7o, § 1o. da IN/SRF 213/02 extrapolou os limites impostos pela
própria Lei Federal (art. 25 da Lei 9.249/95 e 74 da MP 2.158-35/01)
a qual objetivou regular; com efeito, analisando-se a legislação com-
plementar ao art. 74 da MP 2.158-35/01, constata-se que o regime fis-
cal vigorante é o do art. 23 do DL 1.598/77, que em nada foi alterado
quanto à não inclusão, na determinação do lucro real, dos métodos
resultantes de avaliação dos investimentos no Exterior, pelo método da
equivalência patrimonial, isto é, das contrapartidas de ajuste do valor
do investimento em sociedades estrangeiras controladas.
10. Ante o exposto, conheço do recurso e dou-lhe parcial provimento,
concedendo em parte a ordem de segurança postulada, para afirmar que
os lucros auferidos nos Países em que instaladas as empresas controladas
sediadas na Bélgica, Dinamarca e Luxemburgo, sejam tributados ape-
nas nos seus territórios, em respeito ao art. 98 do CTN e aos Tratados
Internacionais em causa; os lucros apurados por Brasamerican Limited,

112
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

domiciliada nas Bermudas, estão sujeitos ao art. 74, caput da MP 2.158-


35/2001, deles não fazendo parte o resultado da contrapartida do ajuste
do valor do investimento pelo método da equivalência patrimonial.

A decisão merece alguns retoques e alterações, mas, de qualquer modo,


constitui um marco na jurisprudência do direito tributário internacional ao
afirmar pela supremacia dos tratados sobre as normas internas.
O que se pode observar é que mesmo o STJ repreendendo de forma vee-
mente a pretensão do fisco de ignorar os compromissos internacionais assu-
midos, esse entendimento ainda não foi pacificado48. Isso pode ser verificado
pelos inúmeros Autos de Infração lavrados pela Receita Federal (RFB) no sen-
tido da cobrança do IRPJ e da CSL sobre os lucros auferidos no exterior por
controladas e coligadas de empresas brasileiras.
Além disso, vale destacar que o novo modelo de tributação trazido em
2014 pela  Lei nº 12.973 não inovou nesse ponto. Apesar das inúmeras mo-
dificações49, a sistemática de tributação automática dos lucros auferidos no
exterior restou mantida.
Não se pretende no presente artigo discorrer sobre as alterações trazidas
pela referida lei, uma vez que nosso artigo inicial já as analisou. A crítica que
aqui se faz é que novamente os precedentes dos Tribunais Superiores brasi-
leiros não foram observados pelos legisladores e o desrespeito aos tratados
firmados novamente ocorreu. Isso, por óbvio, não cessará os litígios judiciais,
que tendem a aumentar face às inconstitucionalidades e ilegalidades reiteradas
cometidas pela nova lei. Nessa linha de raciocínio, vale citar o trecho abaixo:
Mantida a previsão de tributação automática dos lucros apurados pelas
controladas, continuam válidas muitas das críticas apresentadas ao regra-
mento anteriormente estabelecido, críticas essas que se mostraram capa-
zes de dividir as opiniões dos ministros do STF, como adrede exposto.
Ocorre que, além dessas velhas críticas, ao pretender a tributação dire-
ta de lucros apurados por empresas indiretamente controladas no exte-
rior, ou seja, de entidades com as quais a controladora brasileira sequer
mantém vínculo societário direto, alei nº. 12.973/14 foi além de tudo
que já se tinha visto no ordenamento pátrio.

48 Esse tema está para ser definido pelo STF no julgamento do RE 460320.
49 Por exemplo, a tributação direta dos resultados auferidos pelas controladoras indiretas.

113
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Isso porque essa nova modalidade de tributação, capaz de atingir direta-


mente o lucro de controladas indiretas, pode levar ao absurdo de ser devi-
do imposto de renda no Brasil sem que qualquer acréscimo patrimonial,
disponível ou não, tenha sido verificado pela empresa brasileira.
(...) a nosso ver, uma mensagem principal merece destaque: a tributação
da renda das pessoas jurídicas em bases universais, notadamente no que
se refere à tributação dos lucros de controladas no exterior, ainda será alvo
de muito debate acadêmico, judicial e, acima de tudo, será fonte de muita
incerteza para o empresariado brasileiro. A insegurança se perpetua.50

Em julgamento ocorrido recentemente (17/01/2019), o CARF manteve a


autuação fiscal lavrada em face da Petrobrás sobre os lucros auferidos por suas
controladas e/ou coligadas no exterior, cujo valor envolvido nessa disputa é de
R$ 1,7 bilhão51.
A decisão administrativa foi proferida no sentido de não se aplicar o tra-
tado internacional assinado entre o Brasil e a Holanda para evitar a bitributa-
ção, por considerar que o art. 74 da MP 2.158-35/2001 se sobrepõe à conven-
ção, mesmo que acabe acarretando em uma dupla tributação.
Como visto em tópico anterior, o STF ao julgar a ADI não chegou a en-
frentar essa questão, fazendo com o tema ainda permaneça em discussão nos
dias atuais, gerando conflitos e insegurança jurídica para ambas as partes. O
entendimento inaugurado pelo STJ no REsp 1.325.709/RJ não foi observado
pelos julgadores administrativos, que poderia (e deveria) servir como prece-
dente para esse julgamento, violando frontalmente os tratados contra a bitri-
butação firmados pelo Brasil.
Em sentido contrário, vale citar também a decisão do CARF proferida no
caso da Companhia de Bebidas das Américas (AMBEV)52 em 27/11/2018. Em
resumo, a RFB fiscalizou diversas controladas e coligadas da Ambev no exte-
rior53 e autuou a empresa, visando à cobrança do IRPJ e da CSL pelos ganhos

50 Hugo Marcondes Rosestolato. Lei nº. 12.973/14: a Nova Sistemática de Tributação dos Lucros de
Sociedades Estrangeiras Controladas por Empresas Domiciliadas no Brasil em Estudos de Tributação
Internacional. Volume 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
51 Nesse sentido verificar o Processo nº 16682.721067/2014-01
52 Processo Administrativo nº 16643.720059/2013-15.
53 As autoridades fiscais  destacaram a necessidade de se computar na apuração do lucro real da  Ambev,
os lucros auferidos nas seguintes empresas controladas  no  exterior:  Labatt  Holding  ApS  (Dinamarca);

114
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

auferidos em diferentes países (Dinamarca, Ilhas Cayman, Argentina, Uru-


guai e Luxemburgo), com os quais há, inclusive, tratado. O valor da autuação
é de aproximadamente R$ 1,5 bilhão.
Diferentemente da decisão da Petrobrás, em sua extensa decisão54, o
CARF assim resumidamente decidiu:
a) por maioria de votos, em dar provimento ao recurso voluntário para
afastar a tributação dos lucros auferidos pelas empresas controladas
com domicílio na Dinamarca (Labatt Holding - subitem 2.1.1 do TVF),
vencido o conselheiro Rogério Aparecido Gil (relator);
b) por maioria de votos, em negar provimento ao recurso quanto a tri-
butação dos lucros auferidos pelas empresas controladas na Argentina
(Maltaria Pampa; Lambic AS; Hohneck Sociedade Anônima - subitens
2.1.3, 2.1.6 e 2.1.7 do TVF), vencidos os conselheiros Marcos Antonio
Nepomuceno Feitosa, Gustavo Guimarães da Fonseca e Flávio Macha-
do Vilhena Dias;
c) por maioria de votos, em dar provimento ao recurso para afastar a
tributação dos lucros auferidos na controlada Dahlem S/A (item 2.1.8
do TVF), vencidos os conselheiros Carlos Cesar Candal Moreira Filho,
Paulo Henrique Silva Figueiredo e Rogério Aparecido Gil (relator);
d) por maioria de votos, em dar provimento parcial ao recurso quanto a
tributação dos lucros auferidos pela empresa controlada Quinsa Luxem-
burgo (subitem 2.1.9 do TVF), para admitir a compensação do imposto
comprovadamente pago no exterior, limitada aos tributos devidos no
Brasil, vencidos os conselheiros Marcos Antonio Nepomuceno Feitosa,
Gustavo Guimarães da Fonseca e Flávio Machado Vilhena Dias, que da-
vam provimento integral pela aplicação do tratado e o conselheiro Rogé-
rio Aparecido Gil (relator), que negava provimento integral; e
e) por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso quanto à
compensação de prejuízos e quanto à incidência de juros sobre a multa.

O que se pode notar é que esse tema vem sendo discutido tanto no CARF,
como no âmbito judicial, sem que tenha uma previsão de consolidação do po-
sicionamento sobre a questão, ainda mais depois que o STF, ao analisar o caso
em 3 (três) oportunidades, quedou-se omisso em diversas questões.

Maltaria  Pampa  (Argentina); AmBev  Internacional  (Ilhas  Cayman); Lambic  AS  (Argentina);
Hohneck Sociedad Anonima (Argentina); Dahlen S.A. (Uruguai); e Quilmes Industrial SA Quinsa (Luxemburgo).
54 file:///C:/Users/01474947/Downloads/Decisao_16643720059201315.PDF. Acesso em 20/02/2019.

115
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O que provavelmente deverá ocorrer é que as inúmeras discussões chega-


rão ao Judiciário, e novamente o STF deverá se manifestar sobre a matéria. Resta
torcer para que seja de forma definitiva e nos moldes preconizados pela OCDE.

Conclusão
Tentou-se demonstrar no presente artigo a importância das regras de
CFC na contenção dos planejamentos tributários considerados “agressivos”
pela comunidade internacional, bem como na minimização (ou até mesmo a
eliminação) dos efeitos do BEPS. Pela sua importância, há um específico plano
de ação visando ao seu fortalecimento cujas recomendações foram delineadas
de forma a assegurar que os Estados implementassem suas normas de modo
a prevenir como um todo a transferência dos lucros das empresas para suas
subsidiárias no exterior.
Inúmeras mudanças já foram efetivadas por diversos países e alguns rele-
vantes exemplos foram aqui elencados. Tais alterações estão em linha com a ex-
pectativa da OCDE no sentido de que as jurisdições devem seguir maciçamente
as recomendações da Organização para que o Projeto BEPS seja bem-sucedido.
Com efeito, focar na necessidade de as estruturas internacionais possuí-
rem substância e um propósito negocial para se estabelecerem overseas é mais
importante do que editar normas genéricas e que visam a tributar a renda
auferida no exterior como um todo, como é o caso da legislação brasileira. A
criação de normas nesse sentido tem apenas o condão de aumentar o conten-
cioso tributário, tendo em vista a sua evidente inconstitucionalidade.
Se as normas brasileiras de CFC se ativessem ao fato de que a internacio-
nalização das empresas é fundamental para o desenvolvimento do país como
um todo talvez entenderiam que a tributação geral não trará uma maior arre-
cadação, mas, apenas, maiores litígios. Assim, é fundamental que a próxima
alteração legislativa esteja focada nos conceitos de “substância” e “propósito
negocial”, pois, apenas assim, se aproximaria do modelo proposto pela OCDE.

116
5. Dedutibilidade de Juros e Outros
Pagamentos Financeiros - A Ação 4 do BEPS
sob a Ótica dos Países em Desenvolvimento

Paulo Penteado de Faria e Silva Neto


Master of Laws (LL.M.) pela Harvard Law School. Mestre em
Filosofia pela Universidade de Brasília. Bacharel em Direito pela
Universidade de São Paulo e em Administração de Empresas pela
Fundação Getulio Vargas. Professor convidado em cursos de gra-
duação e pós-graduação. Advogado em São Paulo e New York.

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar criticamente a Ação 4 do pro-


jeto BEPS (base erosion and profit shifting), que é voltada a combater a uti-
lização de juros ou outros pagamentos financeiros equivalentes (isto é, que
tenham efeito econômico similar), dedutíveis, para obter vantagens fiscais. A
OCDE enxerga riscos de erosão de base tributável e transferência de lucros,
causados pela alocação de altos níveis de dívida em países de alta tributa-
ção, pela proliferação de empréstimos intragrupo para criar despesas de juros
excessivamente elevadas e pelo uso de dívidas para obter receitas isentas ou
diferidas. Nossa abordagem consiste em (i) analisar os desafios de implemen-
tação desta Ação, à luz de sua adoção coordenada com outras Ações do BEPS
e outras técnicas e mecanismos (indedutibilidade e retenção); (ii) revisar a lite-
ratura crítica pertinente à Ação 4; e (iii) contribuir para o debate, procurando
compreender e expor elementos importantes que conformam a perspectiva
dos países em desenvolvimento em relação à Ação 4 do BEPS.
Palavras-chave: Erosão da base tributável e transferência de lucros
(BEPS). OCDE. Dedutibilidade de Juros e Outros Pagamentos Financeiros.
Direito tributário internacional.
Abstract: The goal of this paper is to render a critical analysis of BEPS (base
erosion and profit shifting) project Action 4, which is aimed at curbing the use of
deductible interest payments (or other financial payments economically equiva-
lent to interest) to obtain tax advantages. The OECD sees risks of tax base erosion

117
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

and profit shifting, caused by the allocation of high levels of debt in high-tax juris-
dictions, by the proliferation of intra-group loans which create excessive interest
expenses, and by the use of debt to accrue exempt or deferred income. Our ap-
proach consists in (i) analyzing the challenges that surround the implementation
of Action 4, in light of its coordinated adoption with other BEPS Actions and
other techniques and mechanisms (denial of deductibility and withholding); (ii)
conducting a critical literature review related to Action 4; and (iii) contributing
to the debate, by understanding and describing important elements that shape
developing countries’ perspective with regard to BEPS Action 4.
Keywords: Base erosion and profit shifting (BEPS). OECD. Interest De-
ductions and Other Financial Payments. International tax law.

Introdução
Os objetivos deste artigo são (i) analisar os desafios na implementação
da Ação 4, à luz de sua adoção coordenada com outras Ações do BEPS, com
outras técnicas de limitação de dedutibilidade e com o instituto da retenção
na fonte; (2) revisar a literatura produzida sobre a Ação 4, particularmente de
posicionamentos críticos a ela; e (3) apresentar contribuições do autor para o
debate. Como pano de fundo, será adotada a perspectiva dos países em desen-
volvimento em relação à Ação 4 do BEPS.
O problema que a Ação 4 do BEPS (base erosion and profit shifting) obje-
tiva enfrentar é a utilização de juros ou pagamentos equivalentes, dedutíveis,
para obter vantagens fiscais. Essa prática envolve o ajuste dos níveis de dívida
entre entidades de um grupo, geralmente pela multiplicação do endividamen-
to das entidades individuais por meio do financiamento intragrupo, ou ainda
pelo emprego de instrumentos financeiros que possuem, formalmente, natu-
reza diversa dos juros, mas efeito econômico similar.
A OCDE lembra que a alta volatilidade dos recursos financeiros e a fa-
cilidade de migrar dívidas e pagamentos correspondentes, alocando-os de
forma a minimizar impactos fiscais, é uma das estratégias mais simples de
planejamento tributário internacional (OCDE, 2015, p. 15). Grande parte des-
sas oportunidades decorre do tratamento diferente conferido à dívida (debt) e
capital próprio (equity) na maioria dos países: os pagamentos dos rendimentos

118
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

relativos à dívida – tais como juros – são dedutíveis para o devedor e tribu-
táveis para o credor. Em contraste, os pagamentos oriundos de participações
societárias – como dividendos – não são dedutíveis, e em geral recebem deso-
neração tributária (tax relief) nas mãos de quem os percebe.
Esse tratamento diferenciado resulta numa distorção55 fiscal em favor do
financiamento por meio de dívida (tax-induced bias (...) towards debt finan-
cing) (OCDE, 2015, p. 15), especialmente no contexto transnacional. Isso afeta
tanto decisões de investimento e financiamento para o exterior (outbound)
quanto a atração desses fluxos para o país (inbound). Por decorrerem de um
tratamento tributário, essas distorções gerariam um desequilíbrio em favor
dos grupos que operam internacionalmente (multinacionais ou “MNE”) em
detrimento daqueles que operam apenas localmente, ferindo a neutralidade
fiscal. Por isso, o financiamento por meio de dívida seria mais intenso entre as
MNE, e a subcapitalização tenderia afetar mais fortemente países em desen-
volvimento (OCDE, 2015, p. 17).
Tudo isso acaba por gerar riscos de erosão de base tributável e migração
de lucros, os quais emergem de três cenários: (i) grupos alocando altos níveis de
dívidas com terceiros em países de alta tributação; (ii) grupos valendo-se de em-
préstimos intragrupo para criar despesas de juros maiores do que as reais (com
terceiros); e (iii) grupos empregando dívidas com terceiros ou intragrupo para

55 Essa distorção, aliás, é bastante profunda e abrangente. Ela induz a alavancagem exagerada e exacerba
riscos de insolvência, prejudica a captação de recursos por pequenos negócios e empresas inovadoras
e gera distorções na escolha de fontes de financiamento. Discorrendo sobre um cenário anterior às
reduções de carga tributária do governo Trump, Robert Pozen argumenta: “Therefore, Congress should
finance a substantial lowering of the U.S. corporate tax rate largely by reducing the tremendous bias in
the current tax code for debt and against equity. Most importantly, companies may deduct interest paid
on all their debt, but may not deduct any dividends paid on their shares. As a result, the effective tax
rate on corporate debt is negative 6.4%, as compared to positive 35% for corporate equity, according
to the Congressional Budget Office. This tax bias for debt has major negative implications for the US
economy. To begin with, this bias strongly encourages financial institutions and other firms to maximize
their leverage — their debt relative to their equity. High leverage increases the risk of bankruptcy and
magnifies any financial crisis because a business under pressure has little equity cushion to absorb losses.
The tax bias against equity makes it much more expensive for small businesses and knowledge-based
companies to raise capital. Because they do not have the hard assets sought by banks to collateralize
loans, such companies are forced to sell large chunks of their equity. More generally, the tax bias against
equity and for debt leads to substantial distortions in how projects are financed. Optimally, a company
would choose the most suitable form of financing for each project based on its economic features, not
tax benefits. But the huge difference in effective tax rates pushes companies to finance projects with debt
rather than equity whenever feasible.” (POZEN, 2015).

119
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

custear a geração de receitas beneficiadas por isenção ou diferimento, ou para


investir em ativos que originam esse tipo de renda (OCDE, 2015, p. 11).
Essas, em suma, as justificativas oficiais da OCDE para tentar combater
riscos causados por estratégias de BEPS. Tais estratégias podem assumir di-
versas formas, mas tendem a dissociar a tributação do local onde a atividade
se desenvolve ou o valor é criado, que é precisamente o que o projeto BEPS
busca combater. O vínculo entre esses conceitos reflete-se no objetivo de que
os grupos adotem “estruturas de financiamento nas quais: (i) a despesa líquida
de juros de uma entidade esteja vinculada à despesa líquida de juros do grupo;
e (ii) a distribuição da despesa líquida de juros esteja vinculada a atividades de
geração de receita.” (OCDE, 2015, p. 18, tradução livre).
Ademais, a coordenação entre os países torna-se altamente relevante,
pois ações unilaterais de limitação genérica de juros não seriam efetivas e po-
deriam afetar a capacidade desses países de atrair investimentos. A adoção
dessa abordagem consistente e coordenada poderia, nessa visão da OCDE,
remover distorções e riscos de dupla tributação, reduzindo a ameaça de BEPS
e melhorando a equidade entre grupos empresariais (OCDE, 2015, p. 18).
A Ação 4 centra-se em três técnicas: (i) regras que limitem o nível de ju-
ros ou dívida de uma entidade à uma proporção fixa (tais como dívida/capital,
juros/receitas ou juros/ativos totais); (ii) regras que limitem o nível de juros ou
dívida de uma entidade aos níveis verificados no grupo como um todo; e (iii)
normas antielisivas direcionadas (targeted rules), que neguem a dedução de
juros a transações específicas (OCDE, 2015, p. 19 e ss.).

1. Implementação das Melhores Práticas


e Coordenação com Outras Ações
No que tange à implementação da Ação 4, a OCDE propõe que todas as
medidas sugeridas, após implementadas, sejam reavaliadas até o fim de 2020,
com compartilhamento dos resultados, experiências e dados (especialmente dos
níveis de despesas líquidas de juros e EBITDA) para análise da efetividade dos
resultados alcançados. A OCDE (2015, pp. 79-81) reconhece que a imposição de
regras de limitação de dedutibilidade de juros inflige um custo relevante para
algumas entidades, por isso admite que alguns países levem algum tempo para

120
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

implementá-las, ou que adotem regras de transição. Estas regras dariam tempo


razoável para as entidades reestruturarem seu perfil de financiamento corpora-
tivo, de modo a adequá-lo às novas regras propostas na Ação 4. A OCDE nota
que as regras podem ser aplicadas em qualquer sistema tributário, sejam eles:
I. sistemas de tributação de entidades (separate entity), que respeitem a au-
tonomia de cada entidade empresarial. Neste caso, há três possibilidades
de aplicação da regra de proporção fixa e da regra de grupo: (a) aplicá-las
separadamente à cada entidade com base no EBITDA próprio; (b) tratar
todas as entidades de um mesmo grupo como se fossem uma única enti-
dade; ou (c) tratar todas as entidades de um grupo para fins de demons-
trações financeiras como se fossem uma única entidade; ou
II. sistemas de tributação pelo lucro consolidado do grupo (group taxa-
tion) podem optar (a) por tratar o grupo consolidado para fins fiscais
como uma única entidade, no caso de entidades consolidadas para fins
de tributação, mas não de demonstrações financeiras. Essa seria a ou-
tra opção, ou seja (b) tratar todas as entidades de um mesmo grupo
como uma única entidade, para fins de demonstrações financeiras.

O tema da dedutibilidade de juros também tem pontos de interação com


outras ações do projeto BEPS. Faremos a seguir uma breve menção a cada um
desses pontos de contato.

1.1. Interação com a Ação 2 (híbridos)


No tópico da Ação 2, que combate os arranjos híbridos, a OCDE afirma
que o uso de instrumentos híbridos (tratados como capital ou dívida em di-
ferentes jurisdições) ou entidades híbridas (tratadas como fiscalmente trans-
parentes ou opacas em diferentes jurisdições) pode gerar duas deduções para
um mesmo pagamento, ou a dedução de um pagamento sem tributação por
quem o aufere. FERRARI (2019, p. 125) bem observa que a utilização de ins-
trumentos financeiros híbridos constitui “uma das estratégias tributárias que
mais favorece a erosão da base fiscal e a transferência de lucros entre jurisdi-
ções. Especialmente entre pessoas jurídicas relacionadas, do mesmo grupo de
controle, ou partes em acordos estruturados (elaborados em torno de elementos

121
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

híbridos), as possibilidades são inúmeras, complexas e exponenciais.” Esses ins-


trumentos, segundo a autora, gozam de “tratamentos tributário divergentes e
que levam, em geral, à dupla dedução das despesas, ao reconhecimento despro-
porcional de créditos, ou à dedução de despesas sem a correspondente tributa-
ção de receitas” (id., ibid.), geralmente “por serem tratados por uma jurisdição
como título de dívida e por outra como título de capital. Assim, enquanto, em
uma, seus pagamentos são indedutíveis (quando incorridos) e não tributáveis
(quando auferidos), na outra, são dedutíveis (quando incorridos) e tributáveis
(quando auferidos).” (p. 126). É o caso, por exemplo, de um título que tenha
características de dívida na jurisdição da entidade devedora/investida (geran-
do juros dedutíveis) e de capital na jurisdição da credora/investidora (que re-
ceberia dividendos não tributáveis por conta de uma participation exemption,
por exemplo). Há autores, como DE BOER & MARRES (2015, pp. 40-41) que
defendem que em lugar de adotar formas específicas de combate aos BEPS
perpetrado por meio de instrumentos e entidades híbridas, seria mais simples
adotar regras de limitação à dedução de juros. Conforme a OCDE (2015, p. 81),
a Ação 4 interage com a Ação 2 na medida em que a adoção daquelas reduz o
risco representado pelos arranjos híbridos, já que o total de juros dedutíveis
fica limitado. Porém, esse risco não é de todo eliminado, porque dentro dos
limites das regras de proporção fixa e de grupo haveria espaço – na ausência
da Ação 2 – para usar híbridos com o fito de alterar os níveis de despesa de
juros, afetando assim o enquadramento e cálculo das regras da Ação 4. Nesse
sentido, a OCDE entende que as iniciativas se reforçam mutuamente.

1.2. Interação com a Ação 3 (CFC)


No que tange à Ação 3, voltada ao fortalecimento das regras de controlled
foreign companies (CFC), é de se destacar que a questão da taxa de juros nos
pagamentos envolvendo CFC deve ser solucionada, particularmente quando
estiverem em cena países de tributação favorecida (OCDE, 2015, p. 18). Como
afirmam BJERKESTEUN & WILLE (2015, p. 116), o pagamento de juros in-
tragrupo merece especial atenção. Em geral, ele é considerado um rendimento
contaminado (“tainted income”), renda passiva sujeita a tributação corrente
no país de residência da controladora. Porém, alguns países excluem os juros
intragrupo dessa definição, desde que sejam empregados para financiar as ati-

122
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

vidades operacionais do grupo da MNE ao redor do mundo. Neste caso, a re-


ceita de juros intragrupo seria renda ativa (“active business income”), contanto
que financie atividades empresariais geradoras desse mesmo tipo de renda.
Na visão da OCDE (2015, pp. 81-82), a Ação 4 ajuda a combater a utilização
de endividamento excessivo voltado à geração de renda isenta de tributação. As
regras CFC são úteis na aplicação conjunta com a Ação 4 porque podem evitar
que uma entidade faça pagamentos de juros dedutíveis conforme as regras da
Ação 4, mas que sejam recebidos por uma CFC sujeita a nenhuma ou baixa
tributação. Assim, os rendimentos da CFC seriam incluídos na tributação da
empresa-mãe, e também em seu EBITDA para fins de cálculo das regras de pro-
porção fixa e de grupo. A Ação 4, por sua vez, reduz a pressão sobre as regras de
CFC, porque incentiva o alinhamento e distribuição mais uniforme das despe-
sas de juros, em conformidade com a atividade econômica e a geração de valor.
Para uma análise atual e percuciente sobre a Ação 3 do BEPS, e sua interação
com a deletéria legislação brasileira sobre tributação em bases universais das
controladas e coligadas no exterior, v. FERRARI (2019, pp. 133 e ss.).

1.3. Interação com outras normas de limitação de


dedutibilidade de juros
A Ação 4 pode ser aplicada em conjunto com outras técnicas e regras de
limitação de juros, tais como regras arm’s length (p. ex. preços de transferência
em matéria de juros56), regras de subcapitalização57 ou a pura e simples inde-

56 SCHOUERI (2013, p. 338) ensina que “a OCDE reafirma o princípio geral de que empréstimos efetuados
entre partes relacionadas devem ser remunerados por taxas que teriam sido cobradas em circunstâncias
similares, em uma transação entre partes independentes (arm’s length), considerando, outrossim,
situações especiais que devem ser reconhecidas (...) No que tange à taxa de juros arm’s length, a aplicação
do princípio exigiria que, em cada caso, a taxa fosse determinada de acordo com as condições vigentes
no mercado financeiro para empréstimos semelhantes, tendo em vista os valores e seus vencimentos; a
espécie de empréstimo (crédito comercial, capital de giro, crédito hipotecário, etc.); as moedas envolvidas;
os riscos cambiais do mutuante e o do mutuário; o título de crédito envolvido e a situação creditícia do
mutuário”. Sobre a interface entre a Ação 4 e (i) regras de preços de transferência no contexto das
próprias Ações do BEPS e (ii) as diretrizes da OCDE a respeito, ver item 1.5 a seguir.
57 Como notam AVI-YONAH & XU (2018), ao comentar a experiência chinesa relativa à Ação 4, “As
far as the BEPS Action 4 is concerned, Article 46 of the CITL of 2007 offers the thin capitalization
rule based on a fixed debt/equity ratio, by clarifying that the interest disbursement for any debt
investments and equity investments, which an enterprise accepts from its affiliates, in excess of the

123
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dutibilidade de uma porcentagem da totalidade das despesas de juros – esta


técnica nos parece demasiado simplória, por desconsiderar as características
subjetivas e a capacidade contributiva dos agentes econômicos. A OCDE suge-
re que, caso existam tais regras gerais, elas devem ser aplicadas antes da Ação
4, mas ressalta que os países têm liberdade quanto à ordem de precedência.
HEY (2014, p. 334) aponta que a adoção de normas antiabuso (p. ex. sub-
capitalização) intencionalmente frouxas poderia ser encarada como competição
fiscal danosa, foco da Ação 5 do BEPS (harmful tax competition), opinião refe-
rendada por MILLÁN & ROCH (2015, p. 59). Não concordamos, na medida em
que a adoção ou não de normas antiabuso deve ser definida de acordo com a
política fiscal de cada país, por ter relação com a proteção ou não de sua própria
base tributável (a qual corre o risco de ser erodida por endividamento excessi-
vo). Se isso ocorre porque um país opta, legitimamente, por não implementar
normas de subcapitalização ou adotar normas fracas como parte de sua política
fiscal, o efeito colateral – atração de estruturas de financiamento que se valham
dessa característica – não pode ser tachado de competição fiscal danosa.

1.4. Interação com outras normas de retenção de


tributos na fonte (withholding taxes)
A técnica de retenção na fonte é geralmente promovida pelos países da
fonte do pagamento, para expandir sua jurisdição sobre a divisão das grandezas
tributáveis e abocanhar uma parcela maior de sua alocação. Um efeito da reten-
ção é a redução da atratividade do BEPS via pagamentos de juros, já que estes
sofrerão retenção na fonte. A retenção na fonte não impede a adoção da Ação
4. Ainda que uma porção dos juros tenha sua dedutibilidade negada, isso não
impede a retenção na fonte sobre os valores pagos, que continuam a ter natureza
de juros (alguns países podem recaracterizá-los como dividendos, mas esta não
é a melhor prática, para a OCDE). A aplicação da Ação 4 tampouco impede a
concessão de créditos tributários pelo país da residência do receptor dos juros.

prescribed criterion shall not be deducted in the calculation of the taxable amount of income. As the
thin capitalization is closely connected with the interest deduction, Article 46 could be considered
a general article on limiting base erosion involving interest deductions”.

124
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

HEY (2014, p. 343) argumenta que um método eficiente para alcançar


um resultado equivalente ao da não dedutibilidade seria uma retenção na fon-
te à mesma alíquota da tributação das pessoas jurídicas (corporate income tax)
no país da fonte, que seria integralmente creditável (mas não restituível) no
país da residência. Haveria compatibilidade com os princípios da capacidade
contributiva e da neutralidade entre dívida e capital, assegurando-se ao país
da fonte o direito a tributar primeiro, deixando a tributação residual com o
país da residência. Porém, há inegáveis dificuldades práticas em se realizar
uma retenção à alíquota tão elevada na fonte, aliadas a possíveis obstáculos
na obtenção do crédito. Embora em teoria seja uma alternativa interessante,
não nos parece exequível sem uma mudança profunda na postura dos países.

1.5. Interação com Ações 8-10: Preços de Transferência


A questão dos preços de transferência nas transações financeiras entre
partes relacionadas é objeto de um trabalho ainda em curso da OCDE, cuja
previsão original de conclusão era 2017. Contudo, em suas Diretrizes sobre
Preços de Transferência publicadas em 201758, novamente a entidade poster-
gou para o futuro a elaboração desse trabalho, bem como de outros temas
igualmente complexos. Tanto assim que nas diretrizes de 2017 não consta re-
ferência expressa à Ação 4, embora outras ações (por exemplo, as Ações 8-10,
13 e 14) sejam mencionadas, a última delas com maior ênfase.
Nesse meio tempo, a OCDE recomenda adotar tanto a Ação 4 quanto as
Ações 8 a 10, que propõem que: (i) sinergias intragrupo sejam consideradas
na avaliação de pagamentos financeiros intragrupo; e (ii) pagamentos de juros
dessa espécie, mas sem substância, se limitem à taxa de retorno livre de risco
do financiamento (OCDE, 2015, pp. 12 e 18). Eis o teor com que o relatório
revisado detalha tal direcionamento: “the amount of intragroup interest and
payments economically equivalent to interest is also affected by transfer pri-
cing rules. Revisions to Chapter I of the Transfer Pricing Guidelines under
Actions 8-10 of the BEPS Action Plan (OECD, 2013), contained in the OECD

58 “Future work will address the application of the transactional profit split method, the transfer
pricing aspects of financial transactions, and intra-group services.” OCDE. OECD Transfer Pricing
Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2017 (2017).

125
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Report Aligning Transfer Pricing Outcomes with Value Creation (OECD, 2015),
limit the amount of interest payable to group companies lacking appropriate
substance to no more than a risk-free return on the funding provided and
require group synergies to be taken into account when evaluating intragroup
financial payments.” (OCDE, 2017, p. 15).

1.6. O Relatório Atualizado em 2016


A atualização do Relatório da Ação 4 em 2016, publicado no ano seguin-
te (OCDE, 2017) não alterou a Parte I (equivalente ao texto final de 2015). Ao
contrário, se dedicou à inclusão de duas novas partes autônomas: a Parte II, com
propostas práticas de desenho e operação das regras de grupo, e a Parte III, es-
pecífica sobre o combate ao BEPS nos setores bancário e de seguros, que contém
peculiaridades marcantes. Sem entrar em um nível de detalhe que foge ao escopo
desta obra, basta dizer que eles dependem de receitas financeiras, particularmen-
te de juros (no caso dos bancos) para assegurar sua lucratividade; sujeitam-se a
regulação estrita no que se refere aos índices de capital (o que por si já previne
a assunção de índices elevados de endividamento), bem como são provedores-
-chave de financiamento por meio de dívida. Por isso, o combate ao BEPS nestes
setores deve, argumenta a OCDE (2017, p. 171-209), ocorrer mas com limites, de
modo que se leve em conta o perfil de receitas e despesas financeiras desse tipo de
atividade, as normas regulatórias de capital mínimo e de organização dos grupos
empresariais aplicáveis aos setores (notando que, eventualmente, os grupos po-
dem incluir outras empresas não-bancárias ou não-securitárias).
Além da regra de proporção fixa (que restringe a dedutibilidade de juros
e pagamentos equivalentes a juros a uma porcentagem fixa do EBITDA da en-
tidade), existe a previsão de uma regra de proporção de grupo. Esta família de
regras serviria para uma entidade pertencente a um grupo altamente alavan-
cado conseguir deduzir despesas líquidas de juros acima do limite imposto
pela regra fixa, baseada nos indicadores financeiros globais do grupo (OCDE,
2017, p. 119). De modo geral, a proporção da regra de grupo (group ratio rule)
usa, como numerador, as despesas líquidas de juros pagos a terceiros pelo gru-
po; e, como denominador, o EBITDA do grupo empresarial. A Parte II do
Relatório detalha a operação da regra de grupo, trazendo as seguintes reco-
mendações OCDE, 2017, pp. 123-143):

126
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(1) Cálculo das despesas líquidas de juros com dívidas contraídas com ter-
ceiros: esse valor deveria incluir todas as receitas e despesas financeiras com
juros pagos relativamente a créditos ou dívidas com terceiros. Para definir
esse montante, pode-se (i) extrai-lo das demonstrações financeiras consoli-
dadas sem ajuste, o que seria simples mas poderia gerar distorções entre (a)
os conceitos de juros e pagamentos equivalentes adotados pelo BEPS no Ca-
pítulo 2 da Ação 4, versus aqueles dos padrões da contabilidade; bem assim
(b) os níveis de informação publicados pelos grupos, dentro da margem de
discricionariedade das políticas contábeis adotadas; (ii) partir dos juros líqui-
dos constantes das demonstrações financeiras mas ajustá-los para incluir ou
excluir elementos de acordo com a definição de juros do BEPS; ou ainda (iii)
adotar a identificação direta de todos os elementos de juros com base no BEPS,
tendo a OCDE manifestado preferência pelas abordagens (ii) e (iii), quando
possível (OCDE, 2017, p. 126). Além disso, decisões relativas às políticas fiscais
locais de cada país podem levar a diferentes ajustes59 no cálculo de juros pagos
a terceiros, sem que isso contrarie a Ação 4 do BEPS. A OCDE destaca, porém,
que “a country should balance its domestic policy goals against the benefits of
a consistent approach to limiting net interest deductions across different coun-
tries.” (OCDE, 2017, p. 127).
(2) Cálculo do EBITDA do grupo: a utilização de EBITDA procura identi-
ficar “profit before tax after making adjustments to remove interest income and
expense, depreciation and amortisation.” (OCDE, 2017, p. 131). Porém, esse
conceito requer ajustes, no que se refere a: (i) receitas e despesas de juros: esses
itens devem ser removidos para se determinar o EBITDA do grupo, “in order
to ensure that a group’s earnings are measured without taking into account how
the group is funded. In other words, two comparable groups should have the

59 Dentre eles, a entidade menciona: (i) reconhecer questões práticas que podem impedir um grupo de
alinhar a despesa líquida de juros com o EBITDA, o que poderia ser resolvido com uma concessão
adicional (uplift) de até 10% ao nível de endividamento; (ii) evitar que a capacidade de pagamento de
juros dedutíveis (interest capacity) seja indevidamente majorada por pagamentos não-dedutíveis, o
que poderia ocorrer já que os cálculos do BEPS se baseiam em dados das demonstrações financeiras,
e não em valores de demonstrações fiscais (tax figures); (iii) combater o aumento indevido da
capacidade de pagamento de juros do grupo, causada por pagamentos a terceiros que são partes
relacionadas, mas não integrantes do grupo; (iv) promover ajustes relativos às despesas líquidas
de juros de JVs e afiliadas cujo EBTIDA integre as demonstrações consolidadas ou seja alcançado
por equivalência patrimonial (equity accounting principles); e (v) simplificar o cálculo da despesa
líquida de juros a terceiros, especialmente em face de elementos avaliados a valor justo, o que
poderia reduzir o custo de compliance fiscal das empresas. (OCDE, 2017, pp. 127-130).

127
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

same EBITDA irrespective of whether they are funded using equity, debt or a
combination of the two.” (id., ibid.).
Por isso, a OCDE sugere lidar tanto com as despesas de juros que são
capitalizadas (i.e. agregadas ao ativo e depois depreciadas ou amortizadas ao
longo de sua vida útil, ao invés de incorridas como despesas no exercício cor-
rente), bem como com ajustes específicos relativos à política fiscal do país em
questão; (ii) itens a serem incluídos no conceito de depreciação e amortização,
que semelhantemente aos juros devem ser excluídos do cômputo do EBITDA,
por retratarem a mera alocação do custo dos ativos não-circulantes do grupo
ao longo das respectivas vidas úteis; (iii) inclusão de dividendos e resultados
na participação em JVs e entidades afiliadas sujeitas a equivalência patrimo-
nial; (iii) inclusão de ganhos e perdas decorrentes de avaliação a valor justo
(fair value); (iv) tratamento de itens não-recorrentes, tais como ajustes de im-
pairment, write-offs e outros.
(3) Lidando com o impacto de entidades com EBITDA negativo na ope-
ração da regra de grupo: o relatório divide as situações em dois tipos, distin-
guindo (i) o tratamento de entidades quando o grupo tem um EBITDA posi-
tivo, que pode ser estruturado com (a) a exclusão da entidade com EBITDA
negativo do cálculo do EBITDA grupal; (b) a limitação da dedutibilidade dos
juros das entidades com EBITDA positivo, baseada numa porcentagem maior
que a da regra fixa; (c) a restrição à manutenção, em exercícios posteriores, da
capacidade não utilizada de pagamentos dedutíveis de juros (carry forward of
unused interest capacity); ou (ii) o tratamento de entidades quando o grupo
tem um EBITDA zero ou negativo, já que mesmo um grupo nessa situação
pode ter entidades individuais com EBITDA positivo. Um desafio é enfrentar
situações-limite e mudanças abruptas de tratamento (cliff-edge effect), pois um
grupo com um EBITDA positivo, mas muito baixo, poderia ter um tratamen-
to diferente de outro grupo similar, mas com EBITDA nulo ou ligeiramente
negativo. Embora a regra fixa sempre esteja disponível para uso em qualquer
caso, o problema da regra de grupo em cenários de EBITDA grupal negativo
pode ser enfrentado por meio da exclusão da entidade com EBITDA negativo
do cálculo do EBITDA do grupo, ou ainda pela concessão de uma exceção,
que permita às entidades com EBITDA positivo deduzir despesas de juros aci-
ma do que seria permitido pela regra fixa, sujeitas a determinadas restrições.

128
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2. Análise crítica da Ação 4 do BEPS


Muitos dos textos críticos à Ação 4 mais emblemáticos são pretéritos à
publicação final de 2015 (OCDE, 2015, in totum), cobrindo apenas a minuta
para discussão de 2014 (OCDE, 2014, in totum) e produções acadêmicas an-
teriores. Assim, essas críticas inciais devem ser tomadas cum grano salis, pois
seus formuladores ainda não tinham acesso ao texto final. Tampouco havia,
por óbvio, a minuta atualizada em 2016 e publicada no ano seguinte (OCDE,
2017, in totum). Também merece menção a posterior publicação de um estudo
específico sobre a limitação da dedução excessiva de juros no setor de minera-
ção, que impacta especialmente países em desenvolvimento60.
No entender de BRAUNER (2014, pp. 88-91), a Ação 4 é uma das mais
promissoras de todo o BEPS. Ela só objetiva desenvolver melhores práticas,
pois a dedutibilidade de juros (assim como a definição das bases de cálculo)
é matéria de legislação doméstica e os tratados geralmente evitam regulá-la.
Porém, em geral as regras de dedução seguem uma lógica uniforme: um prin-
cípio que correlaciona a despesa dedutível com a receita à qual ela se vincula
(matching principle) e uma regra de rastreio (tracing norm). Já as regras de
indedutibilidade são mais específicas de cada jurisdição, envolvendo normas
antiabuso domésticas.
O professor expõe que, apesar do tradicional respeito à esfera de cada ju-
risdição, as MNE têm explorado a dedução de juros como estratégia de planeja-
mento tributário, via financiamento de partes relacionadas, uso de derivativos e
outras estruturas sofisticadas. Os objetivos são: (i) importar deduções e reduzir
a alta carga tributária doméstica do contribuinte; (ii) aumentar a proporção de
renda originada no exterior (foreign source income). Essa perda de base tributável,
prossegue, vem sendo tolerada, desde que as transações com juros sejam arm’s
length e não haja alavancagem excessiva (thin capitalization ou subcapitalização).

60 OCDE & IGF (2018). O trabalho traz uma série de estratégias tributárias empresariais, ilustradas
por estudos de casos, que levariam à erosão da base tributável de países em desenvolvimento ricos
em recursos minerais: “there are very real issues with the use of interest deductions to shift profits
away from capacity constrained developing countries.” Essas estratégias incluem debt push-down,
juros condicionados à existência de lucro tributável no país do investimento (com diferimento
na sua ausência), mark-up de taxas de juros no repasse do empréstimo externo, utilização de
instrumentos híbridos (notamos, aqui, a interação com a Ação 2), aquisição de ativos operacionais
de partes relacionadas com taxas de juros ocultas/embutidas. Acrescentamos que essas estratégias
também são adotadas em diversas outras indústrias, não apenas no setor minerário.

129
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O autor nota que as regras atualmente existentes não seriam suficientes para
resolver, de forma efetiva ou adequada, a questão (alegadamente problemática) da
migração das receitas de juros. BRAUNER (2014, p. 90) ressalta a força simbólica
que um exemplo bem-sucedido de solução coordenada, convergente e efetiva no
âmbito do BEPS poderia trazer, no sentido de aplacar a noção de que os países
jamais abandonarão uma postura de máxima competição na seara fiscal. Em nos-
sa visão, o argumento de BRAUNER é um tanto otimista e deixa de considerar
elementos de Realpolitik que podem afetar os incentivos e a propensão dos países
– ou de parte deles – à adoção da Ação 4. Pode-se exemplificar com um caso de
teoria dos jogos, em que a desobediência das regras (não adoção da Ação 4 ou des-
vio, caso adotada) seja mais vantajosa que sua observância estrita. Neste exemplo,
a matriz resultante fará com que a resposta esperada seja defection, e os países
tendam a desobedecer e afastar-se da Ação 4.
BURNETT (2014, pp. 326-333) aponta que empréstimos podem ser uti-
lizados com a finalidade de promover tanto a erosão da base tributária (no
país da mutuária) quanto a migração ou desvio de lucros (sob a perspectiva da
mutuante), o que é muito fácil de lograr em se tratando de dívida intragrupo.
Ademais, para obter esse efeito BEPS, é suficiente que a mutuária esteja num
país com carga tributária mais elevada que o da mutuante. A autora lembra
que a OCDE rejeitou uma abordagem arm’s length na limitação à dedutibili-
dade de juros. Ela compara os méritos de uma regra fixa com os de uma regra
de grupo, e aponta que esta tem a vantagem de personalizar a limitação da
dedutibilidade a cada MNE, evitando o problema da regra fixa de subestimar
ou superestimar as despesas de juros dedutíveis. A regra de proporção fixa,
com seu “tamanho único”, não atende a todas as (e nem mesmo a maioria
das) situações, afetando tanto grupos grandes quanto pequenos e não apenas
MNE, mas grupos domésticos, com os matizes marcadamente diversos que
habitam suas diferenças setoriais.
A regra de proporção fixa permitiria a muitas MNE continuar deduzindo
altas quantias a título de juros, ao passo que as que caíssem na regra seriam
severamente penalizadas. Nestes casos, potencializa-se o risco de dupla tributa-
ção, pois a jurisdição da mutuante pode tributar os juros recebidos, ainda que
indedutíveis no país da remessa – a falta de interação entre os países nessa seara
catalisa o problema. Notamos que a OCDE parece não fornecer uma solução
satisfatória para esse problema, pois somente prevê a concessão de crédito pelo

130
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

país receptor dos juros no caso de retenção na fonte, mas nenhum tipo de cré-
dito ou não incidência em função da parcela considerada indedutível no país
do remetente. Isso demonstra a preocupação da Ação 4 em fechar portas para o
BEPS, mas pouca consideração em relação ao risco de aumento de carga tributá-
ria para os contribuintes. No mesmo sentido, deve-se mencionar o trabalho de
HEY (2014, p. 344, tradução livre), que defende expressamente haver uma pré-
-condição para as limitações à dedutibilidade das despesas de juros: “qualquer
limitação à dedução da despesa de juros no nível da mutuária no país da fonte
deve corresponder a uma isenção equivalente no nível da mutuante no país de
residência, de maneira a evitar a dupla tributação.”.
A regra de proporção de grupo, sustenta BURNETT (2014, p. 328), já
adotada na Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Finlândia, também aporta
flexibilidade ao modelo, permitindo acompanhar movimentos de subida ou
queda de juros. Para combate do BEPS utilizando uma regra de proporção de
grupo, reputa importante haver coordenação entre os países, para uma abor-
dagem consistente e convergente das regras, e afirma vivermos um tempo de
cooperação nunca antes vista entre os países, o que nos parece demasiada-
mente otimista e até certo ponto ingênuo, pois até aqui as Ações do BEPS
ainda estão em um estágio incipiente de implementação, sendo sua efetiva e
generalizada adoção a medida de seu “sucesso”, ao menos imediato. A autora
defende uma proporção baseada em lucros (EBITDA), e não em ativos, que
são mais difíceis de avaliar e não refletem tão bem a realidade econômica. Os
juros têm a vantagem de integrar o próprio cômputo do lucro, vinculando-se
à geração de lucros e atividade econômica.
BURNETT destaca ainda problemas relativos a juros e preços de trans-
ferência. Existiria apenas uma pequena quantidade de empréstimos não ga-
rantidos arm’s length por subsidiárias de MNE. A grande maioria utilizaria
garantias da empresa-mãe ou outras do grupo, ou mesmo tomaria recursos
captados de forma centralizada pela matriz (ou uma subsidiária de captação
de financiamento). Por isso, é difícil estimar a nota de crédito e a taxa de ju-
ros que se exigiria de uma subsidiária isolada de seu grupo e, ainda que fos-
se possível determiná-la, seria um processo custoso, com diversos laudos e
avaliações divergentes, já que a presunção relativa e a “contestabilidade” dos
valores-parâmetro gerariam insegurança jurídica.

131
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ademais, a autora sustenta que a regra de proporção de grupo seria mais


precisa que uma abordagem puramente arm’s length (BURNETT, 2014, pp. 327 e
332). Isso porque, na abordagem arm’s length, haveria uma tendência a superes-
timar a quantidade de juros do benchmark (em geral, a capacidade de emprés-
timo que um grupo financeiramente saudável poderia tomar é maior do que a
que efetivamente toma). E a regra de grupo tornaria praticamente dispensável a
utilização do preço de transferência, pois com ela “os juros dedutíveis totais da
MNE não superariam os juros pagos a terceiros, se existentes, e seriam deduzidos
na jurisdição em que os lucros são auferidos.” (BURNETT, 2014, p. 333). Além
disso, empréstimos intragrupo teriam uma natureza muito próxima à de capi-
tal, podendo-se considerá-los um substituto praticamente perfeito para o capital
(equity), em relação ao qual não seria possível calcular um preço-parâmetro. Em
sua conclusão, afirma que uma regra de grupo seria mais adequada que uma
regra de proporção fixa arbitrária, mas que poderia ser combinada com um safe
harbour de fixo 10%, que abarcaria 58% das MNE e ainda permitiria às 42%
restantes usar a regra de grupo, se desejarem. Como visto, a OCDE na redação
final da Ação 4 foi ainda mais flexível, adotando uma abordagem que permite
combinar uma regra fixa de 10% a 30%, além da regra de grupo.
Deve-se reconhecer, porém, que a despeito de sua defesa enfática da re-
gra de proporção de grupo, BURNETT admite a regra combinada, que seria
“uma regra de proporção fixa combinada com um carve-out para uma regra
de grupo [em que] todas as MNE desejando deduzir mais que o permitido pela
regra de proporção fixa poderiam fazê-lo, desde que demonstrassem que a sua
proporção, na jurisdição em questão, não excede a proporção de seu grupo”
(BURNETT, 2014, p. 331), que é a solução que prevaleceu no Relatório Final.
Mas é mais questionável se, e em que medida, a Ação 4 atendeu sua adver-
tência segundo a qual “se uma regra de proporção de grupo for recomendada,
o valor da regra de proporção fixa deve obter um equilíbrio razoável entre o
combate ao BEPS e a acomodação de atividades negociais legítimas”. Nos pa-
rece que o combate ao BEPS e a finalidade arrecadatória tiveram muito mais
destaque do que qualquer consideração ou preocupação com a legitimidade
dos negócios conduzidos.
HEY (2014, pp. 332-345) aponta que a utilização de empréstimos intra-
grupo como estratégia de otimização fiscal internacional não é fenômeno re-
cente, tendo seu combate se iniciado nos anos 1980, com regras de subcapita-

132
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

lização e outras normas antiabuso. Porém, a falta de convergência entre essas


regras gerou distorções, cuja correção por meio de ações coordenadas poderia
ser benéfica para todos os países engajados, diminuindo a dupla não tributa-
ção e a dupla tributação. A autora alega que faltam estudos empíricos sobre
o impacto das medidas de limitação de juros na atração e manutenção de in-
vestimentos e recursos estrangeiros. Ela identifica a origem do problema nas
diferenças: (i) de tratamento entre dívida e capital, em face da dedutibilidade
dos juros e da indedutibilidade dos dividendos; e (ii) entre a carga tributária
entre os países. A diferença de tratamento fiscal entre dívida e capital ocorre
mesmo em cenários intragrupo, no qual parecem ser (na linha de BURNETT)
substitutos perfeitos, do ponto de vista econômico, de risco e de assimetria
informacional. Já o financiamento por terceiros é menos similar ao capital,
e também menos móvel, pois captar débito por meio de uma subsidiária por
meio de push down de dívida, por exemplo, é muitas vezes impraticável sem
uma garantia da empresa-mãe. Mas ainda assim, nos países mais desenvolvi-
dos, surgiram diversas técnicas de combate ao planejamento tributário com
uso de dívida, mesmo que contraída com terceiros: elas abrangem (i) controle
de dívidas com partes relacionadas, incluindo operações back-to-back e pa-
gamentos para não residentes; (ii) restrições gerais à dedutibilidade de juros,
pagos a partes relacionadas ou a terceiros independentes; (iii) não dedutibili-
dade de juros relacionados à geração de dividendos isentos vindos do exterior;
e (iv) retenção de impostos na fonte sobre juros, muito utilizada por países
menos desenvolvidos e que se aplica a quaisquer não residentes, relacionados
ou não, notando que a retenção só seria efetiva se feita à mesma alíquota da
tributação das pessoas jurídicas no país.
Prossegue a autora discutindo a equidade entre nações e qual país teria
direito de tributar os juros, e qual teria o dever de conceder a correspondente
dedução. A obtenção da justa fatia de tributação por parte de cada país não
deveria depender da respectiva carga tributária, e o princípio de que os lucros
oriundos de atividades empresariais se tributam na fonte, e os juros no país de
residência, deveria ser mantido.
Porém, na ausência de coordenação o único resultado, verificado até
aqui, é um smorgasbord de ações unilaterais desconexas e arrecadatórias. O
princípio norteador da coordenação da Ação 4 deveria ser a neutralidade e
o respeito à capacidade contributiva, bem como à tributação do rendimento

133
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

líquido. Também não se pode esquecer a praticabilidade e simplicidade. To-


dos esses preceitos, se observados, devem conduzir à situação em que a renda
não seja deduzida em duplicidade, mas que tampouco haja dedução num país
sem tributação no outro. Isso reflete o single tax principle, que a autora parece
endossar. Em nossa visão, o single tax não é um princípio per se aceitável, pois
o não exercício da tributação por uma das jurisdições (ou mesmo a dedutibi-
lidade de uma despesa que não seja tributável em outro país) são matérias de
política fiscal interna. Claro que pode haver ações voluntárias preordenadas a
esse ideal, mas o single tax não é nem deve ser um princípio universalmente
aceito no campo fiscal. Ainda, ele tem sido invocado muito mais para garantir
algum nível de tributação do que para combater a dupla tributação, o que evi-
dencia sua utilização distorcida, numa via de mão única.
Na seara da política fiscal, HEY (2014, p. 341) aponta que existem algumas
opções que podem ser adotadas: (i) eliminar a diferença de tratamento fiscal
entre dívida e capital, ou combater apenas o planejamento tributário abusivo;
(ii) adotar soluções coordenadas internacionalmente, ou soluções nacionais;
(iii) tratar investimentos estrangeiros no país, ou nacionais no exterior, com
a mesma regra, ou com regras diferentes; (iv) tratar situações puramente do-
mésticas de modo igual ou diferente de situações transacionais – na União
Europeia, o tratamento igual é obrigatório; e (v) basear o sistema em regras
(mais rígidas porém seguras) ou princípios (tais como o arm’s length, mais
flexíveis porém incertos). Algumas das reformas propostas, como a de elimi-
nar totalmente a diferença entre capital e dívida, ou a de um sistema global de
alocação de juros que desconsiderasse os arranjos contratuais intragrupo (na
linha do até agora malfadado CCCTB61 europeu) são pouco realistas, na visão
da autora. Por isso, outras soluções, voltadas à limitação da dedutibilidade dos
juros, são mais críveis, e incluem: (i) indedutibilidade de toda despesa de juros,
com base na tributação abrangente da renda empresarial (CBIT), o que ofende
a capacidade contributiva e a tributação da renda líquida62; (ii) limitação no
pagamento de juros a partes relacionadas, por meio da indedutibilidade ou
reclassificação deste endividamento (ou apenas do endividamento excessivo e/
ou inaceitável) como capital; (iii) barreiras mais genéricas à dedutibilidade de

61 Common Consolidated Corporate Tax Base.


62 Comprehensive Business Income Tax.

134
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

juros, abrangendo pagamentos para partes relacionadas e para terceiros (com


regras direcionadas a situações específicas – as chamadas targeted rules – tais
como a produção de renda isenta ou diferida no exterior), mas que carregam o
risco de maior complexidade, necessidade de exceções e de ir além do neces-
sário para combater o planejamento tributário abusivo63, o que causaria uma
limitação exagerada à dedutibilidade dos juros.
HEY (2014, p. 344) conclui ser a favor, em teoria, de um sistema de alo-
cação global de juros, mas admite que ele é muito ambicioso, e por isso três
regras menos ambiciosas, mas implementadas mediante coordenação, pode-
riam resultar mais factíveis: (i) uma regra contra subcapitalização de investi-
mentos estrangeiros no país, que reclassificaria juros pagos sob determinadas
condições (acima de determinado nível aceitável – safe harbour – de dívida
intragrupo) como dividendos; (ii) uma regra limitando, cuidadosamente, o
incentivo ao uso de endividamento excessivo para financiar investimentos na-
cionais no exterior, por meio da vinculação do emprego de recursos empres-
tados à produção de dividendos isentos; e (iii) uma regra de retenção na fonte
para juros pagos a paraísos fiscais. Acreditamos que a utilização simultânea
de instrumentos variados, como os discutidos acima, possa ter um resultado
prático muito semelhante ao da Ação 4 (ou pelo menos que resolvam a grande
maioria das situações problemáticas), sem as desvantagens desta.
MILLÁN & ROCH indagam o que seriam juros “excessivos”, ressaltan-
do a importância do correto ponto de referência para essa análise, tanto para
investimentos inbound quanto outbound. Ao fazê-lo, lembram que as dife-
renças na dedutibilidade dos juros que desembocam na dupla não tributação
decorrem não de planejamento fiscal indevido, mas de outras razões64, como
medidas de política fiscal, descompassos entre regras de tributação domésti-
cas e internacionais e ainda de competição fiscal danosa. Os autores apontam
três fundamentos justificatórios para a limitação dos juros:

63 Nesse sentido, apesar de não enfatizada nos relatórios oficiais da Ação 4, pode-se identificar
uma interação adicional relevante entre esta e a Ação 12, voltada à divulgação de planejamentos
tributários agressivos. Para uma análise aprofundada da Ação 12 e sua aplicação ao contexto
brasileiro, v. OLIVEIRA (2018).
64 No mesmo sentido, observa PALMER (2015, p. 636): “The debt ratio of a particular company is a
product of its investor base and its risk and market profile. The paper should not equate the presence of
high debt to equity ratio as being in place for purely aggressive tax planning as it is clear that there are
multiple reasons for a high debt equity ratio which include commercial, economic, and legal reasons.”

135
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

neutralidade entre dívida e capital, obtida pela negativa da dedutibilida-


de dos juros por métodos diretos (negar ou restringir a dedutibilidade, de for-
ma geral ou específica em dadas situações, ainda que representem uma des-
pesa normal da empresa) ou indiretos (reclassificação como dividendos), que
se subdividem em diversas propostas de enfrentamento da questão, a maioria
ainda no plano teórico;
legislação antiabuso, que objetiva combater as distorções existentes em
favor do endividamento e a dupla não tributação. A maioria das provisões
de subcapitalização e reclassificação de juros como dividendo apresentaram
fracasso relativo. Na reclassificação, existem dificuldades e complexidades in-
trínsecas ao modelo, pois considerar endividamento excessivo como “capital
disfarçado” não é tão simples, exigindo muitas vezes decisões judiciais; e
higidez das finanças públicas e justiça da tributação, por meio do com-
bate ao BEPS.
Os professores abordam a questão das despesas de financiamento rela-
cionadas à produção de receitas isentas, verificáveis num contexto nacional
(despesas dedutíveis voltadas à geração de renda isenta no próprio país) ou
multinacional (por exemplo, pagamento dedutível no país da mutuária, mas
não tributável no país de residência da mutuante). Muitas vezes essas situa-
ções decorrem do descompasso entre as legislações dos países, de política fis-
cal deliberada ou de sua classificação em um tratado internacional (“DTC”),
tal como nos casos sobre Juros sobre Capital Próprio (“JCP”) decididos na
Espanha e na Alemanha, os quais a final reconheceram a natureza de dividen-
dos aos JCP, dada pela legislação brasileira, não obstante sejam dedutíveis pela
fonte pagadora (e, assim, economicamente mais similares a juros). A interação
com a Ação 2 sobre híbridos novamente vem à tona.
Após analisar diversos exemplos concretos de limitação do montante de
juros dedutíveis, seja pelo método direto ou indireto, em especial nos EUA e
na Europa, os autores asseveram, de forma categórica, que “a negativa de de-
dução é uma consequência severa para o contribuinte, legitimada pela necessi-
dade de prevenir e corrigir um esquema tributário abusivo, mas sua consequên-
cia indireta, no caso em que os rendimentos financeiros obtidos pela mutuante
são tributados, será a dupla tributação econômica dos juros. (...) Esse pode ser
um problema central decorrente das provisões que negam ou restringem a de-

136
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dutibilidade dos juros, as quais, normalmente, não contêm nenhuma referência


a ajustes bilaterais.” (MILLÁN & ROCH, 2015, p. 67, tradução livre).
Apesar de reconhecerem que muitas vezes essa renda não será tributada
no país da residência, eles observam, sagazmente, que essa consideração “não
evita o problema, se a norma atual se aplicar independentemente de os juros
obtidos pela mutuante serem tributados ou não. Ademais, no caso de um mu-
tuante não residente, deve ser levado em conta que essa renda pode também ser
tributada no país da fonte, levando à dupla tributação jurídica” (MILLÁN &
ROCH, 2015, p. 67, tradução livre), algo preocupante na ausência de uma DTC
ou medidas unilaterais que contornem esse efeito.
Em vista disso, recorrem a análise dos princípios jurídicos que devem
nortear a questão da limitação da dedutibilidade de juros, a saber: (i) seguran-
ça jurídica e seus corolários da irretroatividade e não frustração das expec-
tativas legítimas (este último no caso da União Europeia); (ii) neutralidade;
(iii) prevenção ao risco de dupla tributação; (iv) capacidade contributiva; (v)
equidade na tributação; (vi) prevenção de fraude, abuso, transações artificiais
e sem substância; (vii) não discriminação e respeito aos demais preceitos da
União Europeia, no caso dos países do bloco; (viii) proporcionalidade e ade-
quada alocação do ônus da prova, especialmente nas situações em que o con-
tribuinte deseja infirmar uma presunção legal através da demonstração de que
possui razões econômicas/negociais legítimas para a transação; (ix) não con-
tradição da administração fiscal, que uma vez tenha admitido e concordado
com uma transação, não pode depois considerá-la abusiva e negar a dedução.
Para concluir, tratam – a nosso ver, de maneira procedente – de questões
relativas a DTC, abordando o relacionamento das regras antiabuso domésticas
e sua compatibilidade com DTC, concordando com a saving clause proposta
pela Ação 6 do BEPS como uma boa solução. Acreditam na compatibilidade
das legislações domésticas de subcapitalização com a Convenção Modelo da
OCDE, pois um empréstimo artificial entre partes relacionadas não teria as
mesmas condições daquele celebrado entre partes independentes. Também as
provisões de limitação de juros e ajustes bilaterais deveriam ser aplicadas for-
tes no princípio arm’s length, e eventual quantia não dedutível deveria poder
ser transportada para períodos subsequentes. Por fim, no combate à dupla tri-
butação via DTC, apontam um risco que chamam de “dupla tributação eco-
nômica em dobro”: (i) dedução negada na fonte e renda da mutuante tributada

137
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

na residência; e (ii) dedução negada na fonte e renda da mutuante tributada na


fonte. Como as DTC só lidam com dupla tributação jurídica, a solução requer
negociações bilaterais, embora ajustes pudessem ser mais efetivos. Por fim,
a questão da não discriminação deve ser respeitada, não se podendo negar a
dedutibilidade apenas quando o receptor dos juros for um não residente.
TRAVERSA (2013, pp. 607-619) lembra que a manipulação de endivida-
mento é uma das estratégias centrais do planejamento tributário internacional
abusivo, sendo objeto de debate entre governos e na academia há décadas. Tor-
nou-se clássico as MNE valerem-se de regras gerais ou regimes preferenciais re-
lativos a juros, para financiar as unidades domiciliadas em países de alta tribu-
tação com endividamento excessivo (alta alavancagem), e financiar as entidades
localizadas em países de baixa tributação com capital. A ideia é que a redução
dos lucros em países de alta tributação compense mais que proporcionalmente
o aumento da tributação nos países de baixa tributação, onde os juros são rece-
bidos. Por isso, aliás, é muito frequente o estabelecimento de unidades bancá-
rias ou financeiras internas das MNE em paraísos fiscais, utilizadas para captar
recursos e financiar a operação das demais unidades operacionais por meio de
empréstimos intragrupo e outros instrumentos financeiros. O autor retoma di-
versos estudos da OCDE da década de 1970 e seguintes, que consideraram a
questão do uso excessivo de endividamento. A caracterização de determinados
valores como dívida ou capital – e dos respectivos pagamentos como juros ou
dividendos – também é controversa, sendo um continuum que não admitiria
classificação bipolar, e por isso daria tantas “dores de cabeça” aos fiscos, lembra
ele. A diversidade dos instrumentos financeiros dificulta a classificação da ren-
da, e a pluralidade de veículos existentes torna complexo seu tratamento como
entidades opacas ou transparentes para fins fiscais. Por isso, a OCDE teria anda-
do bem na Ação 4 ao estender o plano para “outros pagamentos financeiros que
sejam economicamente equivalentes a juros”.
O professor expõe as medidas antiabuso existentes para limitar a dedutibi-
lidade de juros, classificadas em três tipos básicos: (i) regras que limitam a des-
pesa de juros dedutíveis sem reclassificá-los; (ii) reclassificação do pagamento
em outra categoria de renda, usualmente dividendos; ou (iii) reclassificação do
pagamento de acordo com sua substância econômica. Geralmente são reunidos
sob o rótulo comum de “subcapitalização”, embora tenham consequências dife-
rentes e se valham de variadas alternativas técnicas (ex. limite fixo, percentagem

138
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

fixa ou proporção variável em função do lucro ou ativos). Também é possível


haver regras direcionadas, que focalizem transações específicas. A parcela de-
dutível pode se basear em regras tradicionais de transfer pricing, de forma que
somente a parcela excessiva ao valor parâmetro apropriado seja considerada
indedutível. A própria utilização de proporções e percentuais frequentemente
resultam num safe harbour, abaixo do qual a entidade ou grupo fica a salvo de
qualquer questionamento da dedutibilidade dos juros pagos.
Após concluir pela compatibilidade com as DTC, desde que não firam o
princípio arm’s length, o autor lembra que diversos outros mecanismos tam-
bém podem ser utilizados, doméstica ou internacionalmente, para combater
juros excessivos. Ele menciona a doutrina do beneficiário real ou final (bene-
ficial ownership) como forma de negar eventuais isenções à retenção na fonte.
Também cita as cláusulas de limitação dos benefícios (limitations on bene-
fits ou “LOB”) e normas antielisivas gerais (general anti-avoidance rules ou
“GAAR”) ou específicas (specific anti-avoidance rules ou “SAAR”, tais como a
negativa de dedução no caso de não haver um mínimo de tributação no país
do receptor dos juros). Contudo, algumas medidas domésticas, como o méto-
do de earnings stripping, representam desvios muito grandes do padrão arm’s
length para serem recomendadas pela OCDE.
Na sequência, o autor discute a correção do debt bias no contexto de
reformas mais fundamentais da própria tributação empresarial, em escala do-
méstica e internacional. A sabida diferença de tratamento tributário dos re-
tornos sobre capital e dívida é resgatada, e se invocam estudos que evidenciam
a distorção em favor do financiamento via dívida. As diversas propostas para
tornar esse tratamento similar envolvem (i) permitir a dedução de dividendos,
ou de uma categoria de pagamentos equivalente (como os JCP no Brasil); (ii)
tratar tanto os juros quanto os dividendos como indedutíveis, a exemplo da
proposta CBIT; (iii) consolidação supranacional ou global de lucros e perdas,
com alocação arbitrária das despesas de juros (formulary apportionment) e
desconsideração das transações intragrupo. Porém, esse tipo de reforma mais
fundamental não é parte dos objetivos da OCDE ou da Ação 4, nem possível
com a atual falta de consenso sobre o tema. Por fim, o professor alerta que a
falta de coordenação e de provisões que conectem as disposições de diversos
instrumentos normativos regionais ou internacionais causa riscos tanto de
dupla tributação (econômica e/ou jurídica) quanto de dupla não tributação,

139
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

especialmente quando um dos países mostra lassidão na adoção de medidas


antiabuso. Os conflitos de classificação também são outro tema importante,
havendo propostas de se desconsiderar a qualificação do pagamento feita se-
gundo a legislação doméstica e negar o benefício da isenção caso o pagamento
tenha sido deduzido no país da fonte. Isso, a nosso ver, mostra que o princípio
da tributação única (single taxation) tem emergido de forma consistente, em-
bora velada, no contexto da OCDE.
A respeito da insuficiência das regras de grupo, merece menção uma
abordagem mais sofisticada (embora de complexa implementação) proposta
por DESAI & DHARMAPALA (2017), que sugerem uma limitação ao endi-
vidamento global – worldwide debt cap, ou WDC 65. A WDC seria baseada
em uma restrição mundial (teto fixo de dedutibilidade), desvinculada de con-
siderações sobre a localização dos ativos, atividades ou unidades de negócio
de cada multinacional. O WDC poderia, inclusive, ser adotado num contex-
to multilateral, sanando algumas falhas estruturais e mantendo/ampliando,
segundo os autores, outros benefícios, como a neutralidade na propriedade
do capital (capital ownership neutrality), a menor necessidade de coordenação
internacional em comparação com soluções formulares, o combate ao plane-
jamento abusivo baseado na localização das empresas do grupo, a desneces-
sidade de regras de subcapitalização e earnings stripping66 e o equacionamen-
to da preocupação de países ricos de que recursos financeiros a juros baixos
sejam tomados em suas jurisdições para financiar investimentos no exterior.
A solução proposta no modelo de WDC aceita o financiamento advindo de
múltiplas localidades (multi-dip financing structures), mas limita seus efeitos

65 “A crucial difference between the groupwide rules and the WDC approach in Section 4 is that the
former allocates interest deductions based on measures of economic activity rather than in a way
that is exogenous to firms’ behavior. This creates the potential for distortions in the location of
economic activity that do not exist under a WDC regime, as well as creating the potential for the
differential treatment of different MNC groups based on the location of their economic activity. The
OECD clearly acknowledges ‘minimizing distortions to the competitiveness of groups’ (OECD, 2014, p.
10) as being among its objectives, albeit subsidiary to the primary aim of reducing BEPS. Given that
one of the insights of our paper is that multiple-dip financing may in some circumstances promote
rather than undermine ownership neutrality, it is clear that there are some difficult tradeoffs to be
made in choosing among policies to combat BEPS in a principled manner.” (Op. cit., p. 28).
66 Voltadas a “limitar a dedução dos gastos de financiamento, uma vez que, pretende através da
contenção fiscal promover a desalavancagem financeira das empresas” (CAMPOS, 2017, p. 8).

140
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

fiscais ao estabelecer o teto global para limites de dedutibilidade com juros,


que seria aplicável a qualquer país.
Numa análise mais recente, um estudo do Fundo Monetário Internacio-
nal sintetiza alguns pontos de fragilidade e insuficiência das válvulas de esca-
pe previstas na Ação 4 do BEPS: “Interest deduction limitations can usefully
curb base erosion through debt shifting and are a standard recommendation in
IMF TA. By 2014, 28 developing countries had thin capitalization rules in place
(IMF 2016); since then, at least six more have adopted such rules. A common
approach is to use a debt/equity ratio to determine the proportion of interest
that will be denied for deduction. BEPS Action 4 endorses a new approach ba-
sed on an interest/earnings ratio. All thin cap rules, however, have an element
of arbitrariness, potentially deterring investment through their impact on non-
-abusive arrangements. The interest stripping rule, for instance, can unduly
pressure firms with temporarily low earnings (with adverse cyclical effects)
or with firm specific characteristics enabling them to bear more debt. Action
4 therefore allows complementary provisions, such as a group escape (which
undoes the deduction limitation if the company’s ratio remains below that of
consolidated group) and a carry forward provision for unused interest. These
complementary measures may, however, be hard for LICs [Low-Income Coun-
tries] to implement. More fundamentally, the problems of artificial debt shif-
ting and perhaps debt bias linger.” (International Monetary Fund, 2019, p. 60)
Para concluir, entendemos que, para que seja possível obter um nível de
compreensão mais aprofundado do projeto BEPS, é importante refletir deti-
damente sobre o mérito, as justificativas teóricas e as implicações práticas de
cada ação, para todos os atores (governos, organismos internacionais, contri-
buintes, grupos empresariais e indivíduos) envolvidos. Somente essa postura
permitirá que o intérprete, em lugar aceitar passivamente o quanto proposto
pela OCDE e seus defensores, lance um olhar independente e crítico sobre as
Ações propostas para o enfrentamento do BEPS. Assim, aplicando-se tal pers-
pectiva na análise da Ação 4, podem-se desenvolver as seguintes conclusões.
Partindo-se da adoção dos textos críticos como referencial teórico, é pos-
sível ir além e apontar algumas limitações e possíveis consequências da Ação
4, que devem ser muito bem sopesadas antes de qualquer adoção em concreto
por parte dos países, especialmente daqueles que não são oficialmente mem-
bros da OCDE nem parte de sua categoria de acesso.

141
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em primeiro lugar, existe uma alegada tentativa de “corrigir” algo que é


uma característica estrutural, e quiçá proposital, do modelo de financiamen-
to corporativo. Boa parte da teoria de Finanças Corporativas, tanto clássi-
ca quanto contemporânea, baseia-se na distinção fundamental entre capital
(equity) e dívida (debt). A principal vantagem de se obter financiamento em-
presarial por meio de instrumentos de dívida reside, exatamente, no benefício
tributário da dedutibilidade.
Tanto assim que, baseando-nos em BRIGHAM et al. (1999, pp. 374 e ss.),
a fórmula do WACC (weighted average cost of capital, ou custo médio ponde-
rado de capital) pode ser resumida como WAAC = We x Ke + Wd x Kd (1 – T),
onde “W” é o peso de cada componente da estrutura de capital, “K” é o res-
pectivo custo, “d” representa “debt” (dívida ou financiamento por terceiros),
“e” significa “equity” (capital próprio) e “T” reflete a carga tributária da pessoa
jurídica (como os juros são dedutíveis, o valor representa o benefício fiscal da
dedutibilidade da dívida, no caso do Brasil, 34%).
Fica claro que, ao se multiplicar a porção financiada por terceiros (dí-
vida) por (1 – Tributos), reduz-se o custo de financiamento empresarial, em
comparação com a utilização do capital próprio67. É isso que BRIGHAM et. al.
(1999, p. 579) enfatizam ao comentar o processo de tomada de decisões sobre a
estrutura de capital: “levantar recursos por meio de dívida tem algumas vanta-
gens. Primeiro, os juros são dedutíveis, o que reduz o custo efetivo da dívida. Em
segundo lugar, os credores ficam limitados a um retorno fixo de maneira que
os acionistas não têm que compartilhar os lucros caso os negócios da empresa
tenham um desempenho excepcional. Por fim, os credores não possuem direito
a voto, e assim os acionistas conseguem ter o controle da empresa com menos
recursos do que seria de outro modo necessário.”. Existem outras vantagens,
como a possibilidade de pagar juros mesmo na ausência de lucros (estes, es-
senciais para declarar e pagar dividendos); fazer investimentos/financiamen-
tos legítimos em certos setores regulados que vedam a participação de capital
(equity) estrangeiro, ou em países que possuem controle de capitais rigoroso; e
ter uma posição privilegiada em caso de recuperação judicial ou falência, em
comparação com o claim residual detido pelos sócios ou acionistas que apor-

67 Não analisaremos mais profundamente os JCP, que, como os juros, são dedutíveis para a pessoa jurídica
que os declara, mas, diferentemente dos dividendos no Brasil, são tributáveis para quem os percebe.

142
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

taram capital e têm a última prioridade no recebimento, cabendo-lhe somente


o que sobrar do acervo líquido da sociedade.
Evidente que empréstimos também geram riscos, relacionados à alavanca-
gem excessiva, aumento dos juros cobrados e insolvência/falência, mas é patente
o papel essencial do endividamento – e da dedutibilidade dos juros – como um
dos pilares básicos das finanças corporativas e da estrutura de capital das em-
presas. Dessa forma, somente situações extremas de abuso, fraude ou simulação
deveriam ser objeto de controle por parte de normas fiscais. Do contrário, a
superação do chamado debt bias se dará em total detrimento dos contribuin-
tes. É a famosa situação em que “o remédio mata o paciente”, porque a solução
implica retirar um benefício legítimo (deduzir uma despesa usual e normal de
juros) sem conceder nada em troca, apenas aumentando a arrecadação fiscal
dos governos. A negativa da dedutibilidade de juros, caso seja acompanhada da
tributação das receitas financeiras pelo mutuante, representará inclusive uma
ofensa ao propalado single tax, na medida em que a renda será tributada não
apenas uma vez, mas mais do que isso, causando dupla tributação (porque a
parcela não dedutível terá sido obviamente incluída na base de cálculo e tri-
butada na pessoa do mutuário, e depois novamente na do mutuante). Assim, a
pretexto de defender-se a base tributária dos governos, provoca-se o aumento da
carga tributária total sobre os contribuintes envolvidos.
Ao vedar-se a multiplicação do custo da dívida por (1 – Tributos), fatalmen-
te ocorrerá uma transferência de renda dos agentes econômicos privados para o
governo. Não custa salientar que “as finanças governamentais frequentemente têm
impactos significativos e complicados nas escolhas privadas feitas pelos cidadãos.
Tributos podem afetar a propensão dos indivíduos a produzir e investir [além de ní-
veis de consumo] (...) Dado que a principal função das finanças públicas é realocar
recursos, retirando-os dos particulares e direcionando-os para uso governamental,
o governo deve reduzir o consumo e o investimento privados para alcançar seu ob-
jetivo.” (HYMAN, 2014, p. 382). Ainda que apenas parte dessa dedutibilidade seja
negada, cada R$1,00 de dedutibilidade negada terá um impacto tributário de 34%,
ou R$0,34, para as empresas tributadas na sistemática do Lucro Real. Por isso,
é preciso pensar em termos de eficiência econômica alocativa e distributiva. A
produtividade dos recursos, em nossa visão, é muito maior nas mãos da iniciativa
privada. Não faz sentido transferi-los para ser mal geridos, desperdiçados, desvia-
dos, malversados e/ou subutilizados pelo governo.

143
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

À teoria das falhas de mercado (market failure), que justificaria maior in-
tervencionismo e peso do Estado na economia, se contrapõe, de forma muito
acentuada no Brasil e nos países em desenvolvimento de forma geral, a teoria
das falhas de governo (government failure). Esta perspectiva advoga que agentes
governamentais estão propensos a diversos tipos de ineficiência, captura regu-
latória, assimetrias de informação, comportamentos oportunistas, corrupção,
desperdício, retrabalho, agendas conflitantes, compromissos eleitoreiros e ou-
tras práticas danosas que acabam por fazer com que recursos públicos sejam ad-
ministrados de forma muito menos competente do que recursos privados. Con-
fira-se a seguinte passagem: “o ponto é que não há teoria de governo (...) capaz de
descrever um mecanismo compatível com incentivos, para ação governamental,
que gere um Ótimo de Pareto sob equilíbrio. Agentes públicos, quer sejam eleitos
ou nomeados, não são guiados por uma ‘mão invisível’ organizacional a servir o
interesse público, em vez de servir a incentivos de reeleição e interesses privados
organizados. É importante notar que esta conclusão não depende de nenhuma
presunção de que os governantes sejam preguiçosos ou gananciosos.” (KEECH et
al., 2012, p. 14, tradução livre). Assim, dividido entre interesses próprios e elei-
toreiros, pressões de lobistas ou corruptores, e entraves burocráticos, o dinheiro
nas mãos do governo tende a ser maltratado e vilipendiado, podendo-se falar de
retornos negativos, ineficiências brutais, deseconomias de escala (quando deve-
ria ser o contrário, dado o tamanho e o inexplorado poder de barganha estatais)
e diversos outros problemas que assolam a gestão pública.
Ademais, no caso brasileiro deve-se apontar a falta de definição legal de
EBITDA, o que poderia dificultar a adoção de qualquer medida deste tipo no
país. É certo que existe a Instrução CVM nº 527, de 04 de outubro de 2012, que
rege a divulgação voluntária pelas companhias abertas do LAJIDA (EBITDA)68
e LAJIR (EBIT)69. Eles devem ser baseados em números apresentados nas de-
monstrações contábeis de propósito geral previstas no Pronunciamento Técni-
co CPC 26 (Apresentação das Demonstrações Contábeis), e também se admite

68 Resultado líquido do período, acrescido dos tributos sobre o lucro, das despesas financeiras líquidas
das receitas financeiras e das depreciações, amortizações e exaustões (art. 3º, I, da Instrução CVM
nº 527/2012).
69 Definição igual à anterior, mas sem o acréscimo da parte relativa às depreciações, amortizações e
exaustões (art. 3º, II, da Instrução CVM nº 527/2012).

144
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a utilização de EBITDA e EBIT ajustados, dentre outros, “por outros itens que
contribuam para a informação sobre o potencial de geração bruta de caixa.”70.
Além de se aplicar, apenas de modo voluntário, somente a companhias
abertas, a norma também permite a divulgação de EBITDA e EBIT ajustados,
que podem refletir de forma mais precisa os resultados da empresa e seu po-
tencial aproximado de geração de caixa. Para que fosse passível de utilização
em uma eventual norma contra a dedutibilidade de juros em situações abusi-
vas, deveria haver uma uniformização do conceito de EBITDA para todos os
tipos de entidades, com imposição obrigatória, bem como ser afastada a possi-
bilidade de cálculo de EBITDA ou EBIT ajustados, ao menos para fins fiscais.
Em conclusão, ao denegar às empresas a devida dedução dos juros pagos
que, por sinal, são uma despesa legítima, os governos protegem sua base tribu-
tável mas sufocam a economia, tornando seus próprios contribuintes menos
competitivos, reduzindo o nível de atividade econômica, dos investimentos,
da geração de empregos etc. Uma regra que deveria coibir somente abusivida-
de e artificialismo, dependendo do nível dos índices adotados em uma regra
de proporção fixa, de grupo e regras direcionadas, bem como da infinidade
de subopções de política fiscal, acaba servindo de pretexto para aumento da
arrecadação. Se a questão fosse somente de neutralidade, bastaria tornar os
dividendos dedutíveis, que o efeito em termos de preferência por vias de fi-
nanciamento seria equalizado, sem gerar uma nefasta transferência de renda
dos particulares para o Estado. O objetivo abertamente arrecadatório deveria
ser assumido de forma mais transparente pela OCDE.
O Brasil já possui norma de subcapitalização com contornos bastante
objetivos, baseada na relação entre dívida e patrimônio líquido, voltada à li-
mitação do endividamento excessivo (Lei nº 12.249/2010, arts. 24 e 25). Tam-
bém possui regras de preços de transferência que se aplicam ao pagamento ou
creditamento de juros a pessoas vinculadas (Lei nº 9.430/1996, art. 22). Nos
parece assim desnecessário adotar a Ação 4 no Brasil, mas, caso fosse adota-
da, iria muito além do que existe hoje em termos legislativos. Seria preciso
equacionar essa ação com a legislação interna existente, que já limita o volume
de endividamento (subcapitalização) e as taxas de juros efetivamente pagas

70 Arts. 4º e 5º da Instrução CVM nº 527/2012. Mencione-se ainda EBIT e EBITDA normalizados, que
excluem itens não recorrentes.

145
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(preços de transferência). A adoção de uma regra de proporção fixa, sem uma


regra de proporção de grupo, causaria séria ofensa aos princípios da isonomia,
da capacidade contributiva e ao próprio conceito de renda, impondo-se uma
presunção absoluta e irrefutável, ainda que o contribuinte tivesse plenas con-
dições de demonstrar que sua taxa de juros real é maior do que a prevista na
regra de proporção fixa. Some-se a isso a regra “CFC” brasileira, uma das mais
rigorosas e abrangentes/inclusivas do mundo, e tem-se mais um argumento
no sentido da inadequação de se adotar a Ação 4 no país. Por outro lado, ado-
tar um padrão internacionalmente dominante – caso se confirme a adoção da
Ação 4 em massa pelos demais países – pode representar coordenação, har-
monização e consistência, facilitando fluxos de investimentos e empréstimos.
Mas esse lado positivo pode não compensar os inúmeros pontos negativos.
Não se pode perder de vista, ademais, o perene interesse do Brasil em asse-
gurar sua entrada na OCDE na condição de membro pleno. Embora o país seja
um participante desde princípios dos anos 90, nos últimos anos essa pretensão se
intensificou71, tendo o atual governo brasileiro logrado obter apoio dos Estados
Unidos à entrada brasileira da OCDE, o que é um ativo geopolítico inestimável.72
Por fim, o eventual sucesso do BEPS pode representar ganhos ou perdas
significativos para diferentes grupos de países e contribuintes. Não é possível
afirmar de antemão quem ganha e quem perde com o projeto, mas na medida
em que ele foi concebido e elaborado por países desenvolvidos, é questionável
a efetiva participação ou grau de consciência dos países em desenvolvimento
na elaboração dessas políticas. Apesar de o G-20 ter dado seu aval ao plano,

71 A propria OCDE reconhece que “o Brasil é um Parceiro-Chave da OCDE, com quem a OCDE
mantém uma cooperação desde início dos anos 1990. O Conselho Ministerial da OECD adotou em
16 de maio de 2007 uma resolução fortalecendo a cooperação com o Brasil, assim como com a China,
Índia, Indonésia e África do Sul, (...), definindo estes países como ‘Parceiros-Chaves’ da OCDE. Como
um Parceiro-Chave, o Brasil tem a possibilidade de participar dos diferentes órgãos da OCDE, aderir
aos instrumentos legais da OCDE, se integrar aos informes estatísticos e revisões por pares de setores
específicos da OCDE, e tem sido convidado a participar de todas as reuniões Ministeriais da OCDE
desde 1999. O Brasil contribui para o trabalho dos Comitês da OCDE e participa em pé de igualdade
com os países membros da OCDE em diversos órgãos e projetos importantes da Organização. Lançado
em Novembro de 2015, o Programa de Trabalho Brasil-OCDE busca apoiar a agenda de reformas do
Brasil e fortalecer suas políticas públicas.” (OCDE, 2018).
72 “President Trump welcomed Brazil’s ongoing efforts regarding economic reforms, best practices, and
a regulatory framework in line with the standards of the Organization for Economic Cooperation
and Development (OECD). President Trump noted his support for Brazil initiating the accession
procedure to become a full member of the OECD.” (United States, 2019).

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

esse grupo não é representativo do restante das nações mais pobres, embora
conte com países em desenvolvimento entre seus integrantes. Afinal, somente
quatro dos membros do G-20 exibiram renda per capita abaixo de US$10.000
por ano em 2014: Índia e China (que têm populações enormes), Indonésia e
África do Sul. Atualmente, mais três países tiveram suas rendas per capita
reduzidas abaixo desse patamar: Turquia, México e Brasil. Apesar de algumas
alterações pontuais serem previsíveis, como a China passando a níveis cada
vez mais altos de PIB per capita e a Argentina sofrendo uma redução nos pró-
ximos anos, o fato é que todos os integrantes do G-20 são comparativamente
bastante ricos, representando, em conjunto, mais de 80% do PIB mundial73.
Da perspectiva de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, ape-
sar de a dicotomia entre países exportadores e importadores de capital ter se
enfraquecido, em razão da sofisticação e diversificação das pautas de investi-
mento e comerciais entre os países, é inegável que ainda existem importadores
e importadores líquidos de capital. Isso se pode verificar também na área de
juros e pagamentos similares. Na medida em que MNE optam por financiar
suas subsidiárias por meio de dívida, e que os países menos desenvolvidos
possuem menos recursos e fontes de financiamento, é natural que tenham
uma maior necessidade de recursos financeiros. Ademais, enfrentam taxas
de juros mais altas, em razão do maior risco, o que acaba por potencializar
a questão da erosão de base por meio de deduções, e incentivar a criação de
mecanismos de limitação na dedutibilidade dos juros ou tomada de emprés-
timos. Embora mais sujeitos à migração de dívidas, não parecem ter sido de-
vidamente incluídos nas discussões da Ação 4 ou contemplados, de maneira
apropriada, em suas necessidades específicas e reais interesses.

73 “As the ‘premier forum for international economic cooperation’ (…), representing more than 80%
of the global GDP, the G20 has made continuous efforts toward achieving robust global economic
growth” (G20, 2019).

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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151
6. A Ação 2 do Projeto BEPS da OCDE
e seus Possíveis Efeitos no Brasil

Diogo Ferraz Lemos Tavares


Doutor em Direito Financeiro e Tributário
pela Universitat de Barcelona
Mestre em Direito Público pela UERJ
Pós-graduado em Direito Tributário pela FGV-Rio
Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo

Durval Portela
Mestre em Direito Econômico pela Universidade
Federal da Bahia – UFBA
Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP
Advogado em São Paulo

Elidie Palma Bifano


Mestra e Doutora em Direito Tributário pela PUCSP
Especialista em Direito Tributário pela USP e pela PUCSP
Professora do Mestrado Profissional da Escola de Direito de SP- FGV
Professora em cursos de especialização do IBET, IBDT, CEU e
COGEAE-PUCSP. Advogada em São Paulo

Luis Gustavo Carmona Sanches


Mestre (LLM) em Direito Tributário Internacional
pela Universidade de Leiden
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP
Professor em cursos de especialização do IBDT e ITC Leiden.
Consultor Tributário em São Paulo.

153
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Rafael Capanema Petrocchi


Especialista em Direito Internacional e em Propriedade
Intelectual pela Birkbeck, University of London
Pós-Graduado em Direito Tributário pela
Fundação Getúlio Vargas (FGV)
Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC
(Belo Horizonte/MG)
Advogado no Rio de Janeiro

Atualizado por Doris Canen - LLM em Direito Tributário Internacional


pela King’s College London (Bolsista Chevening). Pós- Graduada em Direito
Tributário pela FGV-Rio. Mestre e Bacharel em Direito pela UCAM. Advoga-
da. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito e Novas Tecnologias da FGV-SP.

Sumário
1. Introdução; 2. A Ação 2 do BEPS: Neutralizando os Efeitos das Assi-
metrias Legais em Negócios Híbridos; 3. A Ação 2 do BEPS: Neutralizando os
Efeitos das Assimetrias Legais em Filiais; 4. Os Negócios Híbridos na Legislação
Tributária Brasileira; 5. Exemplos de Implementação da Ação 2 6. Conclusões

1. Introdução
Em seus mais de 50 anos de existência74 a OCDE desenvolveu uma histó-
ria de trabalho focado na harmonização de políticas econômicas dos diferen-
tes Estados com o objetivo de desenvolver a economia global. A harmonização
de certas leis tributárias, ainda que reconhecendo a autonomia de cada Esta-
do, também sempre fez parte deste árduo trabalho. De fato, quando de sua
criação, a OCDE deu continuidade aos estudos iniciados anteriormente pelo
“Fiscal Committee” criado em 1956 pela então existente OECE – Organiza-
ção Europeia para Cooperação Econômica, o que resultou na publicação, em

74 A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) foi oficialmente criada em 30


de setembro de 1961, quando entrou em vigor a Convenção assinada entre os Estados Unidos da América,
Canadá e os países da então existente OECE – Organização Europeia para Cooperação Econômica.

154
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1963, da primeira versão do Modelo de Convenção sobre Dupla Tributação da


Renda e do Capital75. Em suas recomendações acerca da adoção do Modelo,
o Comitê Fiscal da OCDE já recomendava a seus Estados Membros cuidado
com o combate à evasão fiscal. 
Se por um lado a adoção do novo Modelo de convenção bilateral da
OCDE por alguns países76 gerou, a partir de então, maior segurança jurídica e
econômica para os operadores residentes em países membros da OCDE àque-
la época, os governos dos países que haviam adotado o Modelo também co-
meçaram a se preocupar com um problema decorrente da uniformização de
regras tributárias pelas convenções: o abuso na aplicação destes instrumentos
internacionais e o dano que este causava ao erário público. O trabalho mais
aprofundado desta problemática resultou na publicação, em 1987, de diferen-
tes estudos tratando do assunto e, mais adiante, em 1992 os Comentários à
Convenção Modelo foram alterados para sugerir aos Estados que adotassem
o Modelo com o título “Convenção sobre Dupla Tributação da Renda e do
Capital, e para Evitar a Evasão Fiscal”, caso assim julgassem conveniente. A
existência do objetivo (secundário) de se evitar a evasão fiscal é também re-
conhecida pela doutrina brasileira. Luís Eduardo Schoueri, neste sentido, des-
taca que as Convenções “são instrumentos de que se valem os Estados para,
através de concessões mútuas, diminuir ou impedir a ocorrência da bitribu-
tação internacional em matéria de imposto sobre a renda, além de meio para
o combate à evasão fiscal”77. O caráter secundário deste objetivo também fica
evidente nas palavras de Sérgio André Rocha, ao reafirmar o quão intuitivo é
o fato de o objetivo principal das Convenções ser o de evitar a dupla tributação
da renda, sem com isso prejudicar outras finalidades78.
Pode-se entender, portanto, que tal objetivo seja justificável uma vez que,
como bem destaca David R. Davies, se de um lado negócios internacionais
estão expostos ao risco da dupla (ou múltipla) tributação, de outro, tais ativi-

75 CARROLL, Peter; e KELLOW, Aynsley. The OECD: A Study of Organization Adaptation: Edward
Elgar Publishing, janeiro de 2011, p. 103.
76 Em substituição a, ou em complementação a convenções já assinadas com base no modelo preparado
pela Liga das Nações em 1921.
77 SCHOUERI, Luis Eduardo. Preços de Transferência no Direito Tributário Brasileiro. 2. Ed. São
Paulo: Dialética, 2006, p. 260. Grifos nossos.
78 ROCHA, Sergio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013. P. 59.

155
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dades podem também ensejar oportunidades de elisão ou evasão fiscal79. Indo


além, entendemos ser compreensível que a OCDE sempre tenha tido entre
suas preocupações não só a harmonização de regras tributárias internacionais
com o escopo de incentivar o desenvolvimento econômico através do combate
à dupla tributação, mas também a luta contra a evasão fiscal, considerando e
reconhecendo o impacto negativo que a evasão fiscal possui no desenvolvi-
mento econômico dos Estados, na adequada gestão das finanças estatais e na
concorrencia empresarial global.  
Conhecedores do papel fundamental que o Comitê Fiscal da OCDE
desempenha nesta luta, e do histórico acima descrito, os líderes dos países
membros do G20 encomendaram ao Comitê um estudo focado na luta contra
a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros Tributáveis (na sigla
em inglês, BEPS – “Base Erosion and Profit Shifting”), destacando que a com-
petição injusta (com base em um potencial novo princípio ungido pelos países
desenvolvidos, o do “tax fairness”) prejudica diferentes pessoas de direito:
(a) Governos, uma vez que estes têm que conviver com menor arreca-
dação e maiores custos, dinamitando a integridade de seus sistemas
tributários e restando com menores recursos para investimentos pú-
blicos que poderiam levar a crescimento econômico (principalmente
de países em desenvolvimento);
(b) Contribuintes, uma vez que ao permitir que a renda gerada em uma
jurisdição seja afastada da tributação nesta jurisdição, outros contri-
buintes aí residentes acabaram por suportar uma carga ainda maior
(como forma de recompor a arrecadação do Estado); e
(c) Negócios: além de ter que lidar com o risco de dano reputacional
quando suas cargas tributárias restam artificialmente reduzidas a um
mínimo, multinacionais tendem a prejudicar negócios familiares locais
quando atuam de forma a erodir sua base tributária local e transferir
lucros tributáveis para jurisdições com tributação efetiva mais baixa80.

Em 2013 a OCDE, em conjunto com o G20, apresentou um grupo de 15


ações focadas em combater o BEPS, com o objetivo audacioso de complemen-

79 DAVIES, David R., Principles of International Juridical Double Taxation Relief. London: Sweet &
Maxwell, 1985, p. 6.
80 OECD, Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, OECD Publishing. 2013. P. 08. http://dx.doi.
org/10.1787/9789264202719-en

156
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tar estudos e apresentar recomendações práticas ao final de um período de 2


anos. Dentre tais ações, uma, a Ação 2, cujo relatório final foi apresentado em
outubro/201581, tem o específico escopo de propor medidas que possam elimi-
nar ou minimizar assimetrias no tratamento tributário conferido por duas ou
mais jurisdições a uma mesma operação, com o objetivo de evitar ou neutra-
lizar a redução da carga tributária agregada incidente sobre essas transações.
Em julho/2017, a OCDE emitiu um relatório complementar82, no contex-
to da Ação 2, propondo medidas para endereçar as assimetrias no tratamento
tributário entre matriz e sua filial (“branch”) situada em outra jurisdição.
Este artigo tem como objetivo avaliar se os resultados da Ação 2 do
BEPS tendem a, de fato, evitar a erosão da base e o deslocamento de lucros
tributáveis através da eliminação ou minimização das assimetrias no trata-
mento tributário conferido por duas ou mais jurisdições a uma mesma opera-
ção, reconhecendo a importância de assim fazê-lo, sem contudo olvidar que
o objetivo primordial da Convenção Modelo é o de evitar a dupla-tributação
da renda e os malefícios que esta traz. Neste exercício há de se considerar ain-
da que há já um arcabouço de normas e princípios ungidos pela OCDE com
uma série de medidas testadas e implementadas globalmente com o objetivo
de evitar tanto a dupla tributação quanto a evasão fiscal83. E mais, este artigo

81 OECD, Action 2 Final Report - Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arrangements, 2015
Final Report disponível em:
https://www.oecd.org/ctp/neutralising-the-effects-of-hybrid-mismatch-arrangements-action-2-
2015-final-report-9789264241138-en.htm
82 OECD, Action 2 - Neutralising the Effects of Branch Mismatch Arrangements, 2017 disponível
em https://www.oecd.org/tax/beps/neutralising-the-effects-of-branch-mismatch-arrangements-
action-2-9789264278790-en.htm
83 Há já uma série de medidas incorporadas à própria Convenção Modelo ou a seus comentários
com o objetivo específico de atacar assimetrias como as que são foco da Ação 2, dentre as quais
destacam-se (i) o conceito de beneficiário efetivo e a negação de alívio à dupla tributação a operações
artificiais que aloquem renda a uma pessoa que não seja seu efetivo beneficiário; (ii) a regra prevista
na última parte do parágrafo 3 do artigo 10 (dividendos) da Convenção Modelo; (iii) a regra prevista
no comentário 32.3 ao artigo 23 da Convenção Modelo que, com o objetivo de evitar tratamentos
tributários indesejáveis resultantes de conflitos de qualificação, determina que o país de residência
deva acompanhar, na qualificação de uma renda, aquela dada pelo país da fonte, sempre que esta
seja feita com base nas provisões da Convenção Modelo, de seu próprio ordenamento jurídico, e
respeitando os princípios da Convenção de Viena; e (iv) a incorporação do “Partnership Report”
aos Comentários da OCDE à Convenção Modelo, que modula a aplicação da regra incluída no
comentário 32.3 ao artigo 23, mencionado anteriormente.

157
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

busca avaliar se, ao tentar eliminar ou minimizar as assimetrias no tratamen-


to tributário conferido por duas ou mais jurisdições a uma mesma operaçãoa
OCDE não estaria fragilizando as regras já existentes e possibilitando a cria-
ção de dupla-tributação onde hoje ela não existiria.

2. A Ação 2 do BEPS: Neutralizando os Efeitos das


Assimetrias Legais em Negócios Híbridos
No âmbito de um projeto mais amplo que pretende evitar a erosão da base
tributária das jurisdições envolvidas em transações internacionais, a Ação 2
do BEPS tem o específico escopo de propor medidas que possam eliminar ou
minimizar assimetrias no tratamento tributário conferido por duas ou mais
jurisdições a uma mesma operação, com o objetivo de evitar ou neutralizar a
redução da carga tributária agregada incidente sobre essas transações.
Para a exata compreensão do objeto da Ação 2 e das medidas propos-
tas pela OCDE, exporemos, em primeiro lugar, os conceitos mais relevantes
para a identificação das operações endereçadas e das regras que visam neu-
tralizar as supracitadas assimetrias. Em seguida, apresentaremos as princi-
pais assimetrias tributárias abordadas pela Ação 2 e as sugestões da OCDE
para neutralizá-las no âmbito da legislação doméstica. Por fim, trataremos
das alterações sugeridas pela OCDE no modelo de convenção para evitar a
dupla tributação, a fim de adequá-lo à Ação 2, bem como a relação entre as
recomendações do BEPS 2 e outras regras típicas da tributação internacional,
incluindo outras Ações desenvolvidas no âmbito deste projeto.

2.1. Conceitos Relevantes


O Relatório da OCDE acerca da Ação 2 elenca uma série de definições que
são decisivas para a adequada compreensão do seu objeto e das regras propostas.
O primeiro desses conceitos, e certamente o mais relevante, é o de negócio
híbrido (hybrid mismatch arrangement). Segundo a OCDE, trata-se de operação
que está sujeita a tratamentos tributários diferentes nos países das respectivas
partes, por ser interpretada de maneira juridicamente distinta em cada país. Em
outras palavras, um negócio é híbrido, nos termos da Ação 2 do BEPS, quando

158
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

os países divergem sobre a sua natureza jurídica (e, consequentemente, sobre


a natureza do pagamento vinculado a esse negócio), levando a um tratamento
tributário também divergente em cada país. Este conceito maior é concretizado
em três elementos mais específicos, que analisaremos em seguida. Antes, no
entanto, devemos excluir três situações que não são alcançadas pela Ação 2,
embora, em tese, possam dar ensejo a uma assimetria tributária.
Primeiramente, o termo pagamento (payments) compreende qualquer
montante possível de ser pago, incluindo distribuições, crédito, débito, apro-
priação (accrual) etc., que represente a transferência de direitos econômicos.
Essa definição exclui os pagamentos que são considerados realizados apenas
para fins tributários, ou seja, despesas que não significam uma efetiva circu-
lação de riqueza (direitos econômicos), mas que são consideradas como ocor-
ridas na apuração fiscal dos contribuintes (por exemplo, gastos presumidos
com juros). A OCDE é expressa no sentido de que somente pagamentos que
correspondam a uma real transferência de direitos econômicos são colhidos
pela Ação 2. Por sua vez, pagamentos que somente existem para fins tributá-
rios não devem ser alcançados pelas medidas da Ação 2, pois carecem de um
real substrato econômico.
Em regra, essa exclusão faz com que o BEPS 2 não alcance despesas de
depreciação ou amortização, mas há uma exceção: nos casos de dupla dedução
(cujo conceito veremos adiante), uma das deduções pode corresponder a depre-
ciação ou amortização, que, nessa hipótese, se submeterá aos ditames da Ação 2.
Ainda no que se refere aos pagamentos, aqueles realizados por veículos
de investimento estão fora do escopo do BEPS 2, caso recebam um tratamento
fiscal diferenciado por questão de política fiscal, por exemplo, quando a não
tributação no nível do veículo tem o objetivo de concentrar a tributação nos
investidores; ou quando normas regulatórias impõem transferência dos rendi-
mentos financeiros dos veículos para os investidores em um período razoável.
A segunda exclusão se refere às diferenças que se limitam aos aspectos tem-
porais da tributação (timing differences), ou seja, ao momento no qual cada país
submete a operação à tributação (ou lhe dá efeitos tributários). Por exemplo, se o
país do pagador exige a apuração fiscal pelo regime de competência, enquanto o
país do recebedor submete aquela apuração ao regime de caixa, pode haver um
descompasso temporal entre a submissão da mesma operação à tributação em
cada um daqueles países. De acordo com a OCDE, essa diferença temporal está

159
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

fora do escopo do BEPS 2, desde que o recebedor do recurso inclua o valor em


questão na sua apuração fiscal em um período contábil que comece dentro de
12 meses a partir do final do período contábil em que foi realizada a operação.
A OCDE ainda admite que períodos mais extensos sejam tolerados, mas, nestes
casos, a Autoridade Fiscal deve ser convencida de que o pagamento será tributa-
do dentro de um período razoável, por exemplo, considerando a expectativa de
efetivo pagamento entre partes independentes.
A terceira exclusão atinge as diferenças no valor que cada Estado atribui
ao pagamento que é objeto da operação. Com efeito, é possível que a carga
tributária incidente sobre determinada transação seja assimétrica porque os
Estados valoram a operação de maneiras diferentes. Isso pode decorrer, por
exemplo, da aplicação de regras de preços de transferência por um dos Estados
envolvidos, ou da utilização de critérios diferentes para a conversão de moe-
das. Essas diferenças não dão ensejo às assimetrias tributárias que a Ação 2
visa neutralizar e, portanto, não se submetem aos seus ditames.
Voltando à conceituação de “negócio híbrido”, há três elementos necessá-
rios para a configuração desse tipo de transação: o tratamento tributário assi-
métrico (mismatch); o elemento híbrido (hybrid element) presente na operação;
e a redução da carga tributária agregada (aggregate tax burden) da transação.
A OCDE identifica basicamente dois possíveis tratamentos tributários
assimétricos.
O primeiro é a dedução/não inclusão (D/NI), presente em operações cujo
pagamento é dedutível (para o pagador) em um país e não é tributável (para o
recebedor) no outro. Registre-se que essa não inclusão está configurada em qual-
quer tipo de alívio fiscal, como isenção, crédito, alíquota inferior à “ordinária” etc.
Nesta última modalidade, é necessário considerar a natureza do rendimento, pois
o fato de um rendimento possuir uma alíquota diferente de outro não significa,
necessariamente, que ele esteja sujeito a uma alíquota menor que a ordinária (por
exemplo, o fato de a alíquota aplicável especificamente a rendimentos financeiros
ser menor do que a alíquota aplicável aos rendimentos do trabalho não configura
uma assimetria para os fins do BEPS 2).
O segundo tipo de tratamento tributário assimétrico é a dupla dedução (DD),
que corresponde a operações que dão ensejo a uma despesa que é dedutível em
mais de um país, seja pelo mesmo contribuinte ou por contribuintes diferentes.

160
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em relação ao elemento híbrido, trata-se do foco da divergência tributá-


ria, isto é, a característica da operação que leva os países a tratá-la de manei-
ra divergente, incorrendo em um dos tratamentos assimétricos mencionados
acima. A OCDE identifica duas grandes categorias de elementos híbridos,
uma das quais se desdobra em três subespécies.
A primeira categoria é a das entidades híbridas (hybrid entity), entidades que
são consideradas transparentes para fins fiscais por um país e opacas para fins
fiscais por outro país. O fato de um país considerar a entidade existente para fins
tributários, submetendo-lhe à tributação, e outro país considerar aquela mesma
entidade inexistente para fins tributários, deixando de submetê-la à tributação,
pode dar ensejo aos tratamentos tributários assimétricos a que nos referimos.
A segunda categoria diz respeito aos instrumentos híbridos (hybrid ins-
truments), que se dividem em: transferências híbridas (hybrid transfers); ins-
trumentos financeiros híbridos (hybrid financial instruments); e pagamentos
substitutos (substitute payments).
As transferências híbridas alcançam operações nas quais há algum tipo
de transferência de ativos, mas os Estados divergem sobre se essa transferência
efetivamente altera a propriedade sobre o ativo envolvido. Nesse sentido, por
exemplo, em uma operação que envolva um pacto de compra e venda com
obrigação de recompra de um determinado ativo, é possível que um Estado
enxergue duas operações de compra e venda desse ativo, enquanto o outro
Estado enxergue um financiamento garantido por esses ativos, que são trans-
feridos apenas transitoriamente ao credor (concedente do financiamento).
Já os instrumentos financeiros híbridos correspondem simplesmente a
instrumentos financeiros cujos pagamentos recebem tratamentos tributários
diferentes no país do pagador e do recebedor. Essa definição extremamente
abrangente é restringida pela exigência de que essa assimetria no tratamento
tributário decorra dos termos, das características do instrumento. Isso significa
que assimetrias resultantes apenas do status do contribuinte (por exemplo, uma
entidade que possui isenção subjetiva) ou do contexto em que o instrumento
é mantido (se diretamente ou por meio de entidades interpostas) fiquem fora
da Ação 2. Por outro lado, se a assimetria tributária tem origem em diferen-
ças contábeis relativas aos termos do instrumento ou em diferenças decorrentes
de relações especiais (de interdependência ou ligação) existentes entre as partes
(que podem influenciar a formação daqueles termos), ela se submete à Ação 2.

161
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A terceira espécie de instrumentos híbridos corresponde aos pagamen-


tos substitutos e corresponde a operações de transferência de um instrumento
financeiro nas quais o pagamento por essa transferência representa (total ou
parcialmente) o retorno decorrente do instrumento subjacente. Em outras pa-
lavras, em razão da transferência do instrumento financeiro, os rendimentos
atrelados a esse instrumento são substituídos pelo preço acordado pela trans-
ferência, o que pode gerar um tratamento tributário assimétrico, conforme
explicaremos oportunamente.
O último elemento necessário à caracterização de um negócio híbrido é
a redução da carga tributária agregada da operação. Para que uma operação
seja considerada um negócio híbrido e se submeta ao BEPS 2, ela deve resultar
na erosão da base tributável em uma ou mais jurisdições, sem necessidade de
identificação da jurisdição que efetivamente teve uma perda arrecadatória.
Isto é importante porque, por um lado, impede que tratamentos assimétri-
cos que não geram uma sub-tributação global da operação sejam ainda mais
onerados pela aplicação das regras da Ação 2. Por outro lado, ela flexibiliza
o escopo da Ação 2, pois torna desnecessária a exata identificação do país
que sofreu a erosão de base, ou do contribuinte que obteve a economia fiscal,
bastando a constatação de que o tratamento tributário assimétrico reduziu a
carga tributária considerada “normal” para aquela operação.
Outro conceito importante para a Ação 2 é o de receita duplamente tributa-
da (dual inclusion income). Trata-se de um conceito simples, referente a receitas
que são tributáveis em todas as jurisdições envolvidas em uma operação, mas
que é relevante porque a presença desse tipo de receita é uma causa de exclusão
de aplicação das regras da Ação 2, como veremos ao analisar os casos concretos.
Finalmente, a análise das situações que são objeto da Ação 2 e das regras
propostas pela OCDE revelará que a maioria das recomendações restringe sua
aplicação a operações estruturadas (structured arrangements) e a transações
entre partes relacionadas, o que torna imprescindível compreender o signifi-
cado dessas expressões para fins do BEPS 2.
Operações estruturadas são operações nas quais os efeitos dos tratamen-
tos tributários diferentes dados por cada país são incorporados ao respectivo
preço, ou nas quais os fatos e circunstâncias indicam que elas foram desenha-
das para se aproveitar dos tratamentos tributários diferentes dados por cada

162
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

país. Em definitivo, operações que são estruturadas deliberadamente para se


beneficiar das assimetrias tributárias.
A Ação 2 também cria uma conceituação específica para a identificação
de transações entre partes relacionadas. Para o BEPS 2, consideram-se relacio-
nadas as pessoas:
(a) que pertencem ao mesmo grupo de controle, o que é identificado
por meio dos seguintes elementos:
(a.1) tratamento contábil consolidado;
(a.2) uma pessoa possui efetivo controle sobre a outra;
(a.3) terceira pessoa possui efetivo controle sobre ambas;
(a.4) uma pessoa detém um investimento de pelo menos 50%
na outra;
(a.5) terceira pessoa detém um investimento de pelo menos 50%
em ambas;
(a.6) pessoas consideradas empresas associadas pelo artigo 9 do
Modelo de Convenção para Evitar a Dupla Tributação da OCDE;
(b) que detêm um investimento de pelo menos 25% na outra;
(c) nas quais uma terceira pessoa detém um investimento de pelo me-
nos 25% em ambas.

A situação de “deter investimento em outra pessoa” é materializada sem-


pre que a pessoa possui, através de um investimento direto ou indireto na ou-
tra, um percentual dos direitos de voto, do valor ou de qualquer participação
societária nesta outra pessoa.
Vale mencionar que uma pessoa que age em conjunto com outra em re-
lação à propriedade ou ao controle de direitos de voto ou de participações
societárias será tratada como possuidora ou controladora de todos os direitos
de voto ou da participação societária que pertencem a esta outra pessoa. Nesse
sentido, agem em conjunto:
(a) membros da mesma família;
(b) pessoa que atua regularmente segundo os desejos da outra pessoa em
relação à propriedade ou controle de determinados direitos e interesses;

163
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(c) pessoas que possuem acordo que tem um impacto material sobre o
valor ou controle de determinados direitos e interesses;
(d) as pessoas cuja propriedade ou controle de determinados direitos e
interesses são geridos por uma mesma pessoa ou grupo de pessoas (ex-
ceto quando se trate de um gestor de investimentos que possa demons-
trar que a sua atuação é independente em relação a cada fundo gerido).

Uma vez apresentadas as principais definições utilizadas pela OCDE nos


trabalhos relativos ao BEPS 2, passamos à exposição das situações endereça-
das por essa Ação e sobre as respectivas recomendações tendentes à neutrali-
zação da assimetria tributária surgida em cada uma delas.

2.2. Recomendações para a Legislação Doméstica


O primeiro bloco de recomendações da OCDE no âmbito da Ação 2
compreende medidas a serem implantadas domesticamente pelos Estados,
com o objetivo de evitar o surgimento ou neutralizar os efeitos das assimetrias
tributárias vinculadas a negócios híbridos. Este tópico se ocupará de resumir,
tanto quanto possível, os principais tipos de operação a que se referem essas
recomendações e as respectivas medidas propostas.

2.2.1. Casos de Dedução/Não Inclusão


A OCDE identifica que a D/NI pode surgir em diferentes situações, de-
pendendo de se tratar de instrumentos híbridos ou de entidades híbridas.

2.2.1.1. Instrumentos Híbridos


A) Transferências Híbridas e Instrumentos Financeiros Híbridos
Em relação às transferências híbridas e aos instrumentos financeiros hí-
bridos, a D/NI costuma surgir de maneira simples: a interpretação diferente
sobre uma mesma operação pode fazer com que o Estado do pagador a inter-
prete como uma operação de dívida (financiamento), na qual os juros pagos
são dedutíveis; enquanto o Estado do recebedor a interpreta como uma opera-
ção de capital, dando ensejo a dividendos isentos.

164
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A OCDE propõe, então, dois blocos de medidas para neutralizar esse


tratamento tributário assimétrico.
O primeiro bloco possui recomendações gerais, que, na realidade, teriam o
condão de evitar o surgimento da assimetria. Nesse sentido, propõe-se que (i) os
Estados somente isentem dividendos quando o seu pagamento for indedutível
para o pagador; e (ii) os créditos de tributos retidos pelo pagador sejam sempre
proporcionais à receita líquida tributável do recebedor, vinculada à operação
híbrida, de modo que isenções parciais para o recebedor acarretem o estorno
proporcional dos créditos correspondentes ao imposto retido pelo pagador.
O segundo bloco contém recomendações específicas que se prestam a
neutralizar (corrigir) a assimetria surgida em razão da ausência das regras ge-
rais acima. Neste ponto, as recomendações da OCDE adotam uma sistemática
que vai se repetir em quase todas as outras situações endereçadas pelo BEPS
2: uma regra primária a ser aplicada por um dos países e uma regra de defesa
(ou secundária) a ser aplicada pelo outro país caso a regra primária não seja
aplicada pelo primeiro país.
No caso dos instrumentos híbridos, a regra primária corresponde à ne-
gativa de dedução pelo país do pagador. Ou seja, surgido o D/NI, o país do
pagador deve negar a dedução do pagamento que não é incluído na tributação
do recebedor. Já a regra de defesa determina a tributação no país do recebedor,
com o afastamento do alívio fiscal que recairia sobre o recebimento do paga-
mento que é dedutível no país de fonte, desde que o país do pagador não apli-
que a regra primária. Essas regras somente são aplicáveis a operações (i) entre
partes relacionadas, ou que (ii) se configurem como operações estruturadas.
Um interessante ponto de atenção diz respeito às operações que leva-
riam a uma assimetria se realizadas entre residentes de um mesmo País. Ou
seja, se operações realizadas dentro de um dos países envolvidos geram um
D/NI, faria sentido neutralizar esse mesmo D/NI em operações internacio-
nais? Na nossa opinião, a resposta deve ser negativa, pois embora haja um
tratamento tributário “assimétrico”, também há uma consistência entre o tra-
tamento dado à operação interna e à operação internacional. Dessa forma,
alterar esse tratamento na operação internacional, além de conferir-lhe um
tratamento tributário talvez ilegitimamente diferenciado, significaria uma in-
gerência excessiva sobre a política fiscal do Estado em questão, política essa
absolutamente consistente na medida em que as próprias operações internas

165
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

são beneficiadas com o tratamento tributário “assimétrico”. Definitivamente,


não faz sentido combater a “erosão” da base tributável na operação interna-
cional quando a mesma “erosão” ocorre (por óbvia opção do país envolvido)
nas operações domésticas.
Para facilitar a visualização dos casos, vejam-se os gráficos abaixo:
Transferências Híbridas

166
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1 – A Co vende ações da sua subsidiária B Sub para B Co, recebendo um determinado


valor em contrapartida. O contrato estabelece um direito de recompra das ações de B Sub
por A Co após determinado período e por um preço pré-estabelecido.
2 – Enquanto as ações de B Sub estão com B Co (entre a venda e a recompra), B Co recebe
dividendos provenientes de B Sub.
3 – Após o prazo previsto no contrato, A Co recompra as ações de B Sub junto a B Co.
A operação acima pode ser vista de duas formas: como duas transações de compra e venda
simples; ou como um empréstimo concedido por B Co para A Co, garantido pelas ações de
B Sub e cujos “juros” compreendem os dividendos distribuídos por B Sub a B Co entre a
venda e a recompra.
Se o País A enxerga a operação de financiamento e o País B enxerga a operação de compra
e venda simples, surgirá um tratamento assimétrico: País A considera que A Co ainda
é dona das ações e permite que A Co deduza o custo líquido da operação, incluindo os
lucros distribuídos por B Sub para B Co; e País B considera que B Co é dona das ações e
concede isenção (ou dá crédito sobre impostos retidos) para os dividendos distribuídos por
B Sub e para a posterior revenda das ações para A Co, fazendo com que B Co não tribute
os lucros distribuídos por B Sub nem o ganho de capital.
Pelas regras específicas, primariamente o País A deveria negar a dedução dos “juros” pa-
gos por A Co a B Co. Caso o País A não aplicasse essa regra primária, então o País B deve-
ria tributar os “dividendos” recebidos por B Co.

167
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Instrumentos Financeiros Híbridos

1 – B Co emite um instrumento financeiro híbrido para A Co, recebendo determinado


valor em contrapartida
2 – B Co paga a remuneração relativa ao instrumento financeiro híbrido para A Co. Nes-
te momento, o País B enxerga a operação como um financiamento e permite que B Co
deduza os “juros” pagos a A Co. Enquanto isso, o País A interpreta a operação como um
investimento em capital e isenta os “dividendos” recebidos por A Co.
Pela regra geral proposta, o País A não deveria conceder a isenção nesse caso, pois os
“dividendos” recebidos por A Co foram dedutíveis em B Co.
Pelas regras específicas, primariamente o País B deveria negar a dedução dos “juros”
pagos por B Co a A Co. Caso o País B não aplique essa regra primária, então o País A
deveria tributar os “dividendos” recebidos por A Co.

168
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

B) Pagamentos Substitutos
Como dito anteriormente, os pagamentos substitutos estão presentes em
operações que versam sobre a transferência de um instrumento financeiro,
nas quais o pagamento pela transferência corresponde, total ou parcialmente,
ao retorno (rendimento) produzido pelo instrumento transferido. Nesses ca-
sos, a D/NI pode surgir em três situações, segundo a OCDE.
A primeira situação é aquela em que o vendedor obtém um resultado tribu-
tário melhor sobre o pagamento recebido pela transferência do instrumento do
que o que seria aplicado caso ele tivesse mantido o instrumento financeiro em seu
poder até o seu vencimento. Por exemplo, é possível que os rendimentos (finan-
ceiros) atrelados ao instrumento em questão sofram uma tributação maior do que
o preço (ganho de capital) auferido pela alienação do instrumento. Nesse caso,
pode surgir um descompasso entre o efeito tributário da dedução do pagamento
dos rendimentos pelo emissor do instrumento e o efeito tributário sobre o referido
preço recebido pelo adquirente original do mesmo instrumento (vendedor).
A segunda situação ocorre quando o comprador do instrumento finan-
ceiro pode deduzir o pagamento feito para a sua aquisição, mas o retorno atre-
lado ao instrumento adquirido goza de algum alívio fiscal. Nessa hipótese, a
substituição exclui a tributação do rendimento produzido pelo instrumento,
sem interferir na dedução da despesa para quem o emitiu.
Finalmente, na terceira situação, a transferência retira o instrumento
subjacente do âmbito de aplicação do BEPS 2. Em outras palavras, a operação
de transferência do instrumento faz com que uma situação de D/NI deixe
de existir formalmente, mas materialmente continue havendo uma redução
na carga tributária agregada da operação. Por ser a hipótese mais complexa,
apresentaremos um exemplo concreto em seguida.
As regras propostas pela OCDE para neutralizar a assimetria tributária
são as mesmas regras específicas aplicáveis às transferências híbridas e aos
instrumentos financeiros híbridos: uma regra primária pela qual o país do
pagador (emissor ou comprador do instrumento, conforme o caso) nega a
dedução do pagamento; uma regra de defesa pela qual o país do recebedor
(adquirente original ou comprador do instrumento) tributa o valor recebido,
afastando o alívio fiscal existente, sempre que o país do pagador não aplique a
regra primária. Essas regras somente são aplicáveis a operações (i) entre partes
relacionadas, ou que (ii) configurem operações estruturadas.

169
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vejamos, abaixo, um exemplo da situação em que a transferência retira o


instrumento subjacente do âmbito de aplicação do BEPS 2 e dá ensejo a uma
D/NI disfarçada:

170
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1 – C Co emite um instrumento financeiro para B Co, recebendo determinado valor em


contrapartida. Esse instrumento é um instrumento híbrido porque o País C enxerga a
operação como um financiamento e permite que C Co deduza os “juros” que serão pagos
a B Co. Enquanto isso, o País B interpreta a operação como um investimento em capital e
isenta os “dividendos” que serão recebidos por B Co. Esta operação dá ensejo a uma D/NI
e, portanto, estaria sujeita ao BEPS 2.
2 – No entanto, antes do seu vencimento, B Co aliena o instrumento financeiro para A Co,
recebendo um “preço” que é composto pelo valor de face do instrumento (20MM) e, adi-
cionalmente, por um “prêmio” que reflete parcialmente os juros “acruados” até o momento
da alienação (1,5MM de 2MM). Este preço é dedutível (ou compõe o custo de aquisição
do instrumento) para A Co e não é tributado em B Co, em virtude, por exemplo, de uma
isenção concedida pelo País B a ganhos de capital.
3 – A relação jurídica referente ao instrumento financeiro passa a ser entre A Co e C Co.
Neste momento, o instrumento deixa de ser híbrido, pois o País A tributará os juros rece-
bidos por A Co. Assim, no que se refere especificamente ao instrumento financeiro, não
há mais uma D/NI e a operação sai do escopo do BEPS 2. Não obstante, se a operação for
analisada como um todo, constata-se que, dos juros de 2MM, apenas 500 mil foram tribu-
tados (em A Co), na medida em que a transação entre A Co e B Co gerou uma dedução de
1,5MM para A Co, sem a correspondente tributação em B Co.
Pelas regras específicas propostas pela OCDE neste caso, primariamente o País A deveria
negar a dedução do prêmio pago por A Co a B Co. Caso o País A não aplicasse essa regra
primária, então o País B deveria tributar o “prêmio” recebido por B Co de A Co.

2.2.1.2. Entidades Híbridas


Situações de D/NI também podem surgir em operações que envolvem
entidades híbridas, ou seja, entidades que são tratadas como transparentes
para fins fiscais por um país e opacas para os mesmos fins por outro país.
Essas situações podem envolver tanto os pagamentos feitos por esse tipo de
entidade (disregarded hybrid payments) quanto os pagamentos por ela rece-
bidos (reverse hybrid), a depender de qual Estado a considera opaca e qual a
considera transparente.
Se a entidade híbrida é considerada opaca pelo país em que está esta-
belecida e transparente pelo país da controladora, os pagamentos feitos por
essa entidade para sua controladora são dedutíveis no país da entidade e não
são tributados no país da sua controladora. Por outro lado, na situação in-
versa, se a entidade híbrida é considerada transparente pelo país em que está
estabelecida e opaca pelo país da controladora (entidade híbrida reversa), os
pagamentos recebidos por essa entidade são dedutíveis pelo pagador, mas não

171
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

são tributados no país da entidade nem no país da controladora. Em ambas as


situações, como se vê, surge uma D/NI.
As regras propostas pela OCDE para neutralizar esse tratamento tribu-
tário assimétrico são diferentes em cada uma das situações acima. No caso
de pagamentos feitos por entidades híbridas para sua controladora, a regra
primária é a negativa da dedução pelo país da entidade, enquanto a regra de
defesa sugere que o país da controladora determine a tributação do valor re-
cebido da entidade, quando o país do pagador não aplique a regra primária.
Essas regras somente são aplicáveis a operações (i) entre pessoas que estão no
mesmo grupo de controle, ou que (ii) se configurem como operações estrutu-
radas, mas não devem ser aplicadas caso existam receitas duplamente tribu-
tadas, isto é, quando a entidade aufira receitas que são tributadas tanto no seu
país quanto no país da sua controladora.
Já no que se refere aos pagamentos recebidos por entidades híbridas re-
versas, a OCDE propõe um primeiro bloco de medidas gerais que, assim como
vimos nos instrumentos híbridos, podem evitar o surgimento da assimetria
tributária, afastando a necessidade da adoção de medidas de neutralização.
Nesse sentido, a OCDE propõe:
(a) o reforço das regras CFC: normas CFC podem impedir assimetria
se o país do investidor tributar o rendimento acumulado pela investida
(intermediária) em bases correntes, o que poderia ser feito (i) tratando
a intermediária como residente no país do investidor; (ii) tratando a in-
termediária como transparente; (iii) tributando o investidor por meio
da presunção de distribuição de lucros da investida; (iv) tributando a
alteração do valor de mercado da investida;
(b) a recaracterização de entidades transparentes: o país da investida
(intermediária) deve tratá-la como residente e opaca caso ela se carac-
terize como uma entidade híbrida reversa, especialmente quando se
constatar que uma parte dos seus lucros não são tributados nesse País
nem no País do controlador;
(c) o reforço na troca de informações entre os países: necessidade de
desenvolver uma declaração própria para entidades intermediárias, a
fim de facilitar a identificação de entidades híbridas reversas e a sua
recaracterização tributária.

172
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Caso seja necessária a adoção das regras específicas, a OCDE apenas


propõe a regra primária pela qual o país do pagador deve negar a dedução
do pagamento realizado por alguém para uma entidade híbrida reversa. Essa
regra se submete às mesmas limitações dos pagamentos feitos por entidades
híbridas em relação às operações afetadas.
Uma questão que chama a atenção neste ponto – e que, na verdade,
permeia toda a Ação 2 – diz respeito a saber como a jurisdição do pagador
verificará o tratamento dado pelo(s) outro(s) país(es) envolvido(s) à entidade
híbrida (para fins de fiscalização, por óbvio, dado que a ação primária parte
do contribuinte). A partir do momento em que a regra sugerida é a de que um
país que não é o da entidade híbrida negue a dedução especificamente nos
pagamentos feitos a entidades híbridas reversas, esse país terá de saber como
os outros países enxergam essa entidade, a fim de verificar se efetivamente se
trata de um ente híbrido ou não. A eficiência dessas medidas depende, fun-
damentalmente, de sofisticados mecanismos de troca de informações entre os
Estados, que ampliem a um patamar hoje inédito o volume e a qualidade das
informações compartilhadas entre as jurisdições. Não é por outro motivo que
a OCDE, especialmente no relatório final da Ação 2, faz praticamente uma
súplica pela interação e cooperação entre os Estados, pois é certo que a eficácia
das medidas propostas – e não só desta relativa às entidades híbridas reversas
– só será plena com essa estreita colaboração internacional.
Para facilitar a visualização das duas situações que acabamos de descre-
ver, vejamos os exemplos abaixo:

173
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Pagamento Feito por Entidade Híbrida

1 – Controladora A Co concede um empréstimo para a sua subsidiária B Co.


2 – B Co é uma entidade híbrida porque é considerada opaca pelo seu país (País B) e trans-
parente pelo país da controladora (País A). Em razão disso, os juros pagos por B Co para A
Co são dedutíveis em B Co e, ao mesmo tempo, não são tributados em A Co, em razão de o
País A não enxergar B Co. Surge, assim, a D/NI objeto da Ação 2.
As regras recomendadas pela OCDE são: regra primária pela qual o País B negaria a de-
dução dos juros pagos por B Co para A Co; regra de defesa pela qual o País A tributaria o
valor recebido por A Co de B Co, se o País B não aplicar a regra primária.
3 – Caso B Co aufira receitas próprias, as quais consequentemente seriam tributadas tanto
pelo País B (que enxerga B Co para fins fiscais) quanto no País A (que, por não enxergar B
Co, entenderia que tais receitas foram auferidas diretamente por A Co), exclui-se a aplica-
ção do BEPS 2.

174
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Pagamento Recebido por Entidade Híbrida

1 – B Co concede um empréstimo a C Co e recebe juros em contrapartida.


2 – Esses juros são dedutíveis em C Co. B Co é uma entidade híbrida reversa porque é
considerada transparente pelo seu país (País B) e opaca pelo país da controladora (País
A). Por isso, esses juros não são tributados em B Co (pois o País B não a enxerga para fins
fiscais) nem em A Co (pois o País A enxerga B Co como uma entidade separada, de modo
que aquela receita não foi auferida por um residente seu).
Além das regras gerais de reforço das regras CFC, a recaracterização de entidades trans-
parentes, o reforço na troca de informações entre os países, a regra específica sugerida pela
OCDE levaria a que o País C negasse a dedução do valor pago por C Co para B Co. Como
se vê, um país que não está envolvido na divergência tributária (opacidade ou transparên-
cia de B Co) teria que saber como outros dois países (Países A e B) tratam uma entidade
localizada em um deles (B Co), para então aplicar a regra proposta pelo BEPS 2.

2.2.2. Casos de Dupla Dedução


O outro tratamento tributário assimétrico que a Ação 2 visa neutralizar
é a dupla dedução, ou seja, operações que dão ensejo a despesas que são dedu-
zidas em mais de uma jurisdição, seja pelo mesmo contribuinte ou por contri-

175
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

buintes diferentes. Essa situação pode surgir basicamente em duas hipóteses:


transações envolvendo entidades híbridas e transações realizadas por pessoas
que são consideradas residentes fiscais em mais de um país (duplo residente).

2.2.2.1.Entidade Híbrida
Transações envolvendo entidades híbridas podem dar ensejo à dupla
dedução quando a entidade é considerada opaca pelo país em que está esta-
belecida e transparente pelo país da sua controladora. Nesses casos, os pa-
gamentos feitos por essa entidade a terceiros é dedutível no seu país (que a
submete à tributação normalmente) e no país da controladora (por enxergar o
pagamento como tendo sido realizado pela controladora, ante a transparência
fiscal da entidade híbrida controlada).
Para contornar essa dupla dedução, a OCDE segue a mesma sistemática
de regra primária e regra de defesa. Com efeito, a Ação 2 recomenda a adoção
de uma regra primária pela qual o país da controladora deve negar a dedução
da despesa; e uma regra de defesa pela qual o país da entidade híbrida deve
negar a dedução da mesma despesa, quando o país da controladora não apli-
car a regra primária. O racional adotado é razoável, pois primeiro se nega
a dedução da despesa a uma pessoa que não incorreu diretamente naquele
gasto (a controladora, já que o pagamento foi feito efetivamente pela entidade
híbrida controlada), em uma tentativa de preservar a apuração fiscal daquele
que efetivamente suportou aquele custo (a entidade híbrida controlada, que
realizou o pagamento em questão).
Vale ressaltar que, mais uma vez, essas regras não devem ser aplicadas
caso existam receitas relacionadas com estes pagamentos que sejam dupla-
mente tributadas, ou seja, receitas que, por serem auferidas diretamente pela
entidade híbrida, serão tributadas tanto no seu país (que a enxerga como opa-
ca) quanto no país da controladora (que, por considerar a entidade transpa-
rente, entenderá que aquela receita foi auferida diretamente pela controlado-
ra). Não há limitação de escopo em relação à regra primária, mas a regra de
defesa somente se aplica se a operação é realizada entre integrantes de um
mesmo grupo de controle, ou no caso de operações estruturadas.
O exemplo abaixo pode facilitar a visualização da situação que acabamos
de descrever:

176
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1 – B Co toma um empréstimo junto a um banco e paga os juros correspondentes.


2 – B Co é uma entidade híbrida porque é considerada opaca pelo seu país (País B) e trans-
parente pelo país da controladora (País A). Em razão disso, os juros pagos por B Co são
dedutíveis na sua apuração fiscal no País B e, ao mesmo tempo, também são dedutíveis na
apuração fiscal da sua controladora A Co no País A, uma vez que este país, por não enxer-
gar B Co, considera que a despesa foi incorrida diretamente por A Co. Surge, assim, a DD
objeto da Ação 2.
As regras recomendadas pela OCDE são: regra primária pela qual o País A negaria a de-
dução da despesa em A Co; regra de defesa pela qual o País B negaria a dedução dos juros
pagos por B Co, se o País A não aplicar a regra primária.
3 – Caso B Co aufira receitas próprias, as quais consequentemente seriam tributadas tanto
pelo País B (que enxerga B Co para fins fiscais) quanto no País A (que, por não enxergar B
Co, entenderia que tais receitas foram auferidas diretamente por A Co), exclui-se a aplica-
ção do BEPS 2.

177
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2.2.2.2. Pessoas com Dupla Residência (Dual-resident)


O segundo caso de dupla dedução abordado pela OCDE é significativa-
mente mais simples e corresponde à situação das pessoas que possuem resi-
dência fiscal em mais de um país (duplo residente) e que, portanto, se subme-
tem à apuração tributária em mais de uma jurisdição. Nessas hipóteses, por
obviedade, as despesas incorridas por essa pessoa poderão ser deduzidas nas
apurações fiscais que ela tiver de realizar nos diferentes países em que é resi-
dente para fins tributários.
A solução proposta pela OCDE é drástica: cada jurisdição em que a pa-
gadora é residente deve negar a dedução, sempre que o pagamento gerar dupla
dedução. Em outras palavras, em lugar de ser duplamente dedutível, as despesas
incorridas por duplos residentes passam a ser totalmente indedutíveis, ainda
que essa despesa seja necessária e legítima. Não há qualquer limitação de escopo
à aplicação dessa regra, ou seja, ela deve ser implementada independentemente
de as despesas em questão serem realizadas entre partes relacionadas ou em
operações estruturadas, alcançando, na prática, toda e qualquer despesa incor-
rida pelo duplo residente. A única limitação diz respeito à existência de receitas
duplamente tributadas, caso em que a aplicação da regra fica afastada.
Ao que parece, a OCDE estabeleceu uma presunção absoluta de que a
dupla residência fiscal é situação necessariamente vinculada a um planeja-
mento tributário abusivo, pois somente esse cenário justificaria a glosa geral
e indiscriminada da dedução de despesas efetivamente incorridas pelos con-
tribuintes que possuem dupla residência. Trata-se, a nosso sentir, de um dos
pontos mais criticáveis de toda a Ação 2, que, a pretexto de neutralizar redu-
ções supostamente indevidas da carga tributária, dará lugar inevitavelmente
à dupla tributação de pessoas com dupla residência fiscal. Este problema se
torna ainda pior dada a nova redação que a Ação 2 propõe seja dada ao artigo
4.3 da Convenção Modelo, conforme tratamos no item 2.3.1.1 a seguir.

178
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2.3.Impactos sobre o Modelo de Convenção da OCDE,


sobre Outras Regras de Tributação Internacional e
sobre Outras Ações do BEPS
As medidas recomendadas pela OCDE em relação à legislação doméstica
para neutralizar as assimetrias tributárias que são objeto do BEPS 2 possuem
pelo menos o potencial de interferir (ou sofrer a interferência) de outras nor-
mas tributárias vinculadas à fiscalidade internacional. Nesse sentido, a OCDE
aborda a possível relação entre essas medidas e (i) o modelo de convenção
para evitar a dupla tributação do próprio órgão, (ii) outras regras como as
legislações CFC e (iii) outras ações do próprio Projeto BEPS. Neste tópico,
buscaremos resumir essas relações e, conforme o caso, as propostas da OCDE
para conciliar todas essas normas.

2.3.1. Alterações no Modelo de Convenção da OCDE


A relação entre as recomendações do BEPS 2 no que concerne à legisla-
ção doméstica e o modelo de convenção da OCDE toca pelo menos 3 temas:
as pessoas que possuem dupla residência fiscal; as entidades transparentes; e
as regras das convenções que veiculam regras que proíbem a discriminação
entre contribuintes.

2.3.1.1. Duplos Residentes


A questão envolvendo os duplos residentes tem relevância para o modelo
de convenção em virtude das regras que definem a configuração dessa resi-
dência para os fins da convenção. Assim, as convenções podem ser utilizadas
para resolver as assimetrias fiscais vinculadas a duplos residentes, pois podem
solucionar essa duplicidade.
Não obstante, a OCDE propõe uma solução que nos parece absoluta-
mente ineficiente. Com efeito, o órgão sugere uma alteração no modelo de
convenção, para que a definição da única residência do contribuinte seja feita
caso a caso, por comum acordo entre os Estados. Elimina-se, assim, a regra
atual de desempate baseada no lugar de direção efetiva das entidades, pois isso
supostamente geraria um potencial de elisão fiscal em determinados países. E,

179
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

se não houver acordo, a pessoa não deve poder se beneficiar de qualquer alívio
fiscal promovido pelas Convenções. Vejamos a comparação entre a redação
atual e a redação proposta pela OCDE:
Redação Atual:
“1. For the purposes of this Convention, the term “resident of a Con-
tracting State” means any person who, under the laws of that State, is
liable to tax therein by reason of his domicile, residence, place of ma-
nagement or any other criterion of a similar nature, and also includes
that State and any political subdivision or local authority thereof. This
term, however, does not include any person who is liable to tax in that
State in respect only of income from sources in that State or capital
situated therein.
(…)
3. Where by reason of the provisions of paragraph 1 a person other
than an individual is a resident of both Contracting States, then it shall
be deemed to be a resident only of the State in which its place of effec-
tive management is situated.”

Redação Proposta:
“3. Where by reason of the provisions of paragraph 1 a person other
than an individual is a resident of both Contracting States, the compe-
tent authorities of the Contracting States shall endeavour to determine
by mutual agreement the Contracting State of which such person shall
be deemed to be a resident for the purposes of the Convention, having
regard to its place of effective management, the place where it is incor-
porated or otherwise constituted and any other relevant factors. In the
absence of such agreement, such person shall not be entitled to any
relief or exemption from tax provided by this Convention except to the
extent and in such manner as may be agreed upon by the competent
authorities of the Contracting States.

Como se percebe, em surgindo uma situação de dupla residência fiscal,


os países envolvidos deverão estabelecer um diálogo para definir em qual deles
aquela pessoa será efetivamente considerada residente, o que equivale a dizer
que os países deverão decidir qual deles abrirá mão, ainda que parcialmente,
da sua competência tributária sobre aquela pessoa. Caso não haja um comum
acordo entre os Estados, ambos preservarão integralmente a sua competência

180
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tributária sobre o duplo residente, que perderá o direito de se beneficiar de


qualquer previsão da Convenção.
Do ponto de vista jurídico, chama a atenção a total insegurança que essa
solução subjetiva e discricionária impõe ao contribuinte. Em resumo, o con-
tribuinte jamais terá algum grau de certeza sobre a solução a ser dada ao seu
caso concreto, posto que a resolução da questão é atribuída integralmente a
uma negociação subjetiva entre os Estados envolvidos, sem qualquer parâme-
tro objetivo que imponha a observância de algum critério controlável.
Além disso, em termos pragmáticos – e com todo o respeito possível –,
é difícil imaginar que haverá comum acordo em alguma dessas situações, na
medida em que isso depende de que um Estado abra mão da sua competência
tributária sem que haja qualquer regra peremptória que o obrigue a tanto.
Imaginar esse grau de altruísmo tributário nos Estados contemporâneos nos
parece uma total alienação da realidade.

2.3.1.2. Entidades Transparentes


A situação das entidades transparentes nas convenções para evitar a du-
pla tributação já havia sido abordada pela OCDE especificamente no caso das
partnerships e está tratada nos Comentários ao Modelo. Na Ação 2, a OCDE
propõe estender as orientações desenvolvidas para as partnerships a todas as
entidades transparentes, com a inclusão do art. 1(2):
“1. This Convention shall apply to persons who are residents of one or
both of the Contracting States.
2. For the purposes of this Convention, income derived by or throu-
gh an entity or arrangement that is treated as wholly or partly fiscally
transparent under the tax law of either Contracting State shall be con-
sidered to be income of a resident of a Contracting State but only to the
extent that the income is treated, for purposes of taxation by that State,
as the income of a resident of that State. [In no case shall the provisions
of this paragraph be construed so as to restrict in any way a Contrac-
ting State’s right to tax the residents of that State.]”

Em síntese, para os fins da Convenção, a receita da entidade transparente


somente deverá ser submetida aos ditames da Convenção se essa receita for
efetivamente atribuível a uma pessoa que, à luz da Convenção, é residente de

181
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

um Estado Contratante. Portanto, não basta que a entidade transparente seja


residente em um Estado Contratante; é necessário que a sua receita seja consi-
derada pertencente a um residente de um Estado Contratante para que ela se
submeta às previsões da Convenção.
A OCDE também propõe alterações nos comentários ao modelo de con-
venção. As mais relevantes são as seguintes:
(a) conceito de transparência: receita da entidade não é tributada no
nível da entidade, mas apenas no nível das pessoas que possuem parti-
cipação (interesse) naquela entidade. Pode ser total (alcançando todas
as receitas da entidade) ou parcial (alcançando apenas algumas receitas
específicas da entidade);
(b) objetivo: garantir que entidades transparentes não se beneficiem da
Convenção caso as suas receitas não sejam tratadas como receitas de
um residente por pelo menos um dos Estados Contratantes;
(c) amplitude: alcança qualquer tipo de receita auferida pela (ou por
meio da) entidade transparente, independente de (i) a quem a legisla-
ção doméstica de cada Estado Contratante atribui aquela receita e (ii)
se a entidade transparente possui ou não personalidade jurídica;
(d) irrelevância do local: não importa onde a entidade transparente
está estabelecida: regra é aplicável mesmo quando a entidade transpa-
rente é estabelecida em um terceiro Estado, desde que ela seja tratada
como transparente por pelo menos um dos Estados Contratantes e a
sua receita seja atribuída a um residente desse Estado;
(e) regra: somente aplicável para os propósitos da Convenção – não in-
terfere na legislação doméstica de cada Estado.

O exemplo abaixo pode facilitar a compreensão dessa ideia:

182
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Países A e B possuem Convenção


País C não possui Convenção com A nem com B
Partner B e Partner C possuem participação de 50%, cada, sobre B Co
País A considera B Co opaca:
País A tributa integralmente a remessa de juros de A Co para B Co
País B considera B Co transparente:
País B tributa metade dos juros diretamente no Partner B (residente no País B)
De acordo com a regra proposta, apenas metade dos juros (atribuível ao Partner B) será
considerado como receita de um residente do País B e se submeterá às regras da conven-
ção entre os Países A e B (possível não tributação no País A ou tributação menos gravosa)
A outra metade (atribuível ao Partner C) se submeterá à tributação normal do País A.

2.3.1.3. Regras de Não Discriminação


As recomendações do BEPS 2 a respeito da legislação doméstica pode
fazer surgir uma controvérsia sobre o conflito entre as regras específicas que
negam a dedução de despesas a contribuintes envolvidos em negócios híbri-
dos e o art. 24(4) da Convenção Modelo da OCDE, que proíbe que a dedução

183
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de pagamentos internacionais seja vedada, quando o mesmo pagamento do-


méstico é dedutível. Eis o teor do dispositivo:
“4. Except where the provisions of paragraph 1 of Article 9, paragraph
6 of Article 11, or paragraph 4 of Article 12 apply, interest, royalties
and other disbursements paid by an enterprise of a Contracting Sta-
te to a resident of the other Contracting State shall, for the purpose
of determining the taxable profits of such enterprise, be deductible
under the same conditions as if they had been paid to a resident of
the first-mentioned State. Similarly, any debts of an enterprise of a
Contracting State to a resident of the other Contracting State shall, for
the purpose of determining the taxable capital of such enterprise, be
deductible under the same conditions as if they had been contracted
to a resident of the first-mentioned State.” (grifamos)

Como se vê, tal dispositivo busca evitar o tratamento diferenciado entre


pagamentos de mesma natureza feitos domesticamente e internacionalmen-
te, afastando a possibilidade de que uma mesma despesa seja dedutível no
primeiro caso e indedutível no segundo. Logo, sempre que o País do pagador
permitir a dedução daquele pagamento quando feito a um residente, não po-
derá negá-la quando o mesmo tipo de pagamento for feito a um não residente.
Não obstante, assim como o Relatório Final da OCDE, entendemos que a
incompatibilidade entre as regras que negam a dedução no âmbito da Ação 2 e
o supracitado dispositivo é apenas aparente. Com efeito, o art. 24(4) menciona
expressamente que a dedução deve ser preservada “sob as mesmas condições”
existentes em pagamentos realizados entre partes residentes em um mesmo
país. Nesse sentido, tal dispositivo pode ser interpretado de maneira mais
abrangente: em vez de olhar apenas para a dedutibilidade do pagamento, ele
pode analisar também a tributação do recebimento, ou seja, considerar todas
as condições para aquela dedutibilidade em relação à operação como um todo.
De acordo com essa interpretação, um pagamento (dedutível) cujo rece-
bimento é tributado domesticamente não está na mesma situação de um paga-
mento (indedutível) cujo recebimento não é tributado internacionalmente em
razão de uma assimetria tributária entre os países envolvidos. Desse modo, só
haveria uma real incompatibilidade entre a negativa de dedução da Ação 2 e o
art. 24(4) quando os dois Países não tributassem o recebimento, mas o País do
pagador ainda permitisse a dedução da despesa.

184
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Não obstante, como afirmamos quando tratamos dos instrumentos hí-


bridos, cremos que essa situação específica (em que uma D/NI surge domés-
tica e internacionalmente) não dá ensejo à aplicação das regras do BEPS 2,
pois, apesar de haver um tratamento tributário assimétrico (a D/NI em si), há
uma simetria entre a tributação das operações domésticas e internacionais, de
modo que alterar essa situação equivaleria a uma ingerência excessiva sobre as
políticas fiscais aplicadas por cada país.

2.3.2. A Ação 2 e as Regras CFC


A OCDE reconhece que há uma evidente relação entre as regras do BEPS
2 e as regras CFC, pois os negócios híbridos podem envolver pagamentos que
são alcançados por este segundo tipo de regras, sobretudo em razão de a Ação
2 ter seu escopo limitado às operações entre partes relacionadas, justamente
as transações afetadas pela legislação CFC.
Com efeito, por mais que uma operação isoladamente considerada possa
estar submetida a um tratamento tributário assimétrico, é possível que o paga-
mento a ela vinculado seja capturado pelas regras CFC de um dos países envol-
vidos, fazendo desaparecer a redução da carga tributária agregada que a Ação
2 visa combater. Consequentemente, a aplicação das regras do BEPS 2 mesmo
nessa situação tem pelo menos o potencial de gerar uma dupla tributação.
Apesar de reconhecer o problema, a OCDE é extremamente comedida
ao propor soluções. Na verdade, a Ação 2 se limita a sugerir que os países ava-
liem a conveniência e viabilidade de se excluir a aplicação do BEPS 2, sempre
que a riqueza vinculada ao negócio híbrido em questão seja tributada pelas re-
gras CFC de um dos países. Para tanto, o órgão deixa claro que deveria caber
ao contribuinte o ônus de provar que o pagamento foi integralmente tributado
em virtude de uma regra CFC.
A contenção da OCDE é tão forte que a Ação 2 chega a recomendar que esse
mecanismo de compatibilização do BEPS 2 com a legislação CFC seja implantado
de maneira limitada, alcançando, por exemplo, apenas operações que superem
determinado montante. Em outras palavras, sugere-se que a dupla tributação re-
conhecidamente existente seja ignorada em operações de menor valor.
A superficialidade e a falta de firmeza com que o conflito BEPS 2 x CFC
é tratado parecem revelar uma certa negligência da OCDE quanto à possível

185
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

deturpação da aplicação da Ação 2, que, antes de evitar redução da carga tri-


butária agregada nos negócios híbridos, parece mais preocupada em garantir
alguma arrecadação adicional aos Estados. Indo direto ao ponto: a forma pela
qual a OCDE trata esse conflito poderia ser vista como sintomática de que,
entre a redução da carga agregada e a dupla tributação, a Ação 2 poderia aca-
bar prestigiando a segunda, pondo em dúvidas se o seu real objetivo seria o de
simplesmente neutralizar uma redução indevida da carga tributária.

2.3.3. A Relação entre a Ação 2 e a Ação 4 do BEPS


A OCDE também reconhece certa intersecção entre as Ações 2 e 4 do BEPS.
Como vimos, a Ação 2 afeta em grande medida negócios que são considerados
instrumentos de dívida por um dos países envolvidos, dando ensejo ao paga-
mento de juros cuja dedução é glosada pelo BEPS 2 sempre que der ensejo a uma
D/NI ou a uma DD. Por sua vez, a Ação 4 tem por escopo estabelecer limites à
dedução de pagamento de juros e outras compensações financeiras, deixando
claro que ambas as normas incidem sobre um mesmo objeto: a dedutibilidade
(em termos de possibilidade e de limitação) de certos tipos de pagamentos.
Diante desse cenário, vê-se que o BEPS 4 pode limitar o montante dedu-
tível no pagamento de juros e outras compensações financeiras. Ele interfere,
assim, no montante a ser deduzido em negócios híbridos, o que, por um lado,
pode mitigar o tratamento tributário assimétrico (a dedução pode ser menor
do que a receita não tributada no outro país, por exemplo), mas, por outro, não
anula integralmente a assimetria nessas operações, sempre que uma parte do
pagamento continuar dedutível e nenhuma parte for tributada pelo recebedor.
Para harmonizar as duas Ações, a OCDE sugere uma solução simples e, a
nosso ver, correta: as regras do BEPS 2 devem ser aplicadas antes de regras do
BEPS 4. A solução é adequada porque a Ação 2 define se uma despesa pode ou
não ser dedutível, enquanto a Ação 4 estabelece a parcela daquela despesa que
pode ser deduzida. Logo, parece lógico que primeiro se defina a possibilidade
da dedução (BEPS 2), para só então definir-se quanto poderá ser deduzido se
aquela dedução for admitida (BEPS 4).

186
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3. A Ação 2 do BEPS: Neutralizando os Efeitos das


Assimetrias em Negócios Com Filiais
Em 27 de julho de 2017, a OCDE divulgou o relatório “Neutralizing the
Effects of Branch Mismatch Arrangements - Action 2”. O relatório apresen-
ta recomendações para alterações na legislação interna dos países, a fim de
neutralizar os efeitos de assimetrias envolvendo o tratamento tributário en-
tre matriz e filial, quando ambas estão situadas em jurisdições distintas. As
recomendações são similares às apresentadas no relatório anterior da ação 2,
contudo, adequadas para transações envolvendo filiais.
De acordo com o relatório de 2017 da OCDE, as assimetrias fiscais na
relação entre matriz e filial decorrem das diferenças nas normas e conceitos
de atribuição de receita e despesa entre estas, bem como nos diferentes concei-
tos e regras de estabelecimento permanente para reconhecimento da presença
fiscal de filiais nas jurisdições.
Tais assimetrias, conclui o relatório, podem resultar na dedução de uma
despesa em uma jurisdição sem sua devida tributação em outra (D/NI), ou até
mesmo em uma dupla dedução (DD), permitindo ‘arbitragens’ para redução
da carga tributária consolidada dos grupos multinacionais. Desta forma, a
decisão do contribuinte de abrir uma filial em determinada jurisdição, ou até
mesmo em estabelecer a matriz desta filial em jurisdição específica, pode estar
baseada não em fatores comerciais, negociais ou até mesmo regulatórios, mas
sim em fatores e vantagens tributárias.
O relatório destaca que, a despeito de outras ações específicas do projeto
BEPS que visam reduzir assimetrias em áreas como preços de transferência e
estabelecimento permanente, as assimetrias negativas identificadas na relação
entre matriz e filial somente poderão ser eliminadas quando todas as jurisdições
aderirem a regras e padrões uniformes, tanto para a determinação de presença
tributável quanto para a atribuição de receitas e despesas entre matriz e filial.
O relatório identifica cinco tipos de assimetrias na relação com filiais:
a. Filiais não identificadas, quando a filial não constitui um estabele-
cimento permanente ou uma presença tributável na jurisdição onde
está estabelecida.;
b. Pagamento “redirecionado”, quando a presença tributária da filial é re-
conhecida na jurisdição, contudo o pagamento feito a ela é atribuído à

187
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

matriz, não sofrendo tributação na filial, enquanto que a jurisdição da


matriz também não tributa o pagamento, entendendo que é direito da
jurisdição da filial tributar;
c. Pagamentos presumidos, onde a filial considera ter realizado um paga-
mento, que de fato não ocorreu, gerando uma despesa em uma jurisdi-
ção sem uma recita correspondente em outra;
d. Pagamentos com dupla dedução (DD), quando um mesmo item de des-
pesa gera dedução tanto na jurisdição da matriz quanto da filial;
e. Assimetrias “importadas”, quando o beneficiário de um pagamento
dedutível, compensa a renda decorrente deste pagamento com uma de-
dução no contexto de uma assimetria normativa entre matriz e filial.

A seguir, apresentaremos os exemplos para as assimetrias acima indica-


das, bem como as recomendações do relatório para sua eliminação.
Insta destacar que a Recomendação 1 não tem como alvo estruturas es-
pecíficas, e apenas afirma que as jurisdições que isentam pagamentos de filiais
devem considerar limitar o escopo e aplicação desta isenção, para que o efeito
de pagamentos presumidos, desconsiderados, excluídos ou isentos de tributa-
ção na jurisdição da filial sejam levados em consideração na jurisdição da ma-
triz. Por este motivo, nos próximos parágrafos trataremos de forma especifica
apenas das demais recomendações.
Casos de Dedução/Não Inclusão D/NI – assimetrias “a” e “b”
As assimetrias descritas nos itens “a” e ”b” acima tratam do efeito de
dedução em uma determinada jurisdição, sem uma correspondente inclusão
(tributação) em outra, “D/NI” (Deduction/Non-Inclusion). Eis que a jurisdi-
ção de residência não tributa um rendimento por considerá-lo atribuível à
filial, mesmo este tendo sido resultado de um pagamento passível de dedução
na jurisdição de fonte. A filial, por sua vez, também não considera tal rendi-
mento sujeito a tributação em sua jurisdição, seja pelo fato de a filial não ter
uma presença tributável na jurisdição (filial não identificada), seja pelo fato de
tal rendimento ser atribuído à matriz (pagamento redirecionado).

188
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O relatório apresenta exemplos de ambas possibilidades conforme segue:


a) Filial não identificada:
O conceito de filial não identificada (disregarded branch structure) refle-
te os casos em que a existência de uma filial em dada jurisdição é reconhecida
pelas normas fiscais da jurisdição de sua matriz, contudo, não é reconhecida
pelas normas fiscais da jurisdição onde a filial está instalada, seja pelo perfil
ou relevância de suas atividades.
O exemplo presente do relatório de 2017 da ação 2 utiliza-se de uma
transação de empréstimo para demonstrar o efeito de D/NI em uma assime-
tria de estrutura de filial não identificada.

ACo realiza um empréstimo para a empresa do grupo CCo, estando as sociedades locali-
zadas em jurisdições distintas
O empréstimo é realizado através de uma filial de ACo residente em uma terceira jurisdi-
ção (B Filial).
A jurisdição de C Co permite a dedução fiscal de pagamentos feitos pela companhia em
relação ao empréstimo contraído
A jurisdição de ACo, por sua vez, não considera qualquer rendimento decorrente do em-
préstimo sujeito à tributação, pois atribui a transação de empréstimo à B Filial.
Caso a jurisdição onde B filial está localizada considere que a filial não tem presença su-
ficiente na jurisdição para estar sujeita à tributação, nenhuma tributação é imposta sobre
os rendimentos advindos da transação de empréstimo (NI), mesmo no caso de a transa-
ção ter resultado em deduções (D) na jurisdição de CCo.

189
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

b) Pagamento “redirecionado”
O conceito de pagamento redirecionado (diverted branch payment) por
sua vez, reflete os casos em que a existência de uma filial em dada jurisdição
é reconhecida tanto pelas normas fiscais da jurisdição de sua matriz, quanto
pelas normas fiscais da jurisdição onde a filial está instalada. Contudo, cada
jurisdição (da matriz e da filial) possui regras distintas de alocação de receita
e despesas entre si.

ACo realiza um empréstimo para a empresa do grupo CCo, estando as sociedades locali-
zadas em jurisdições distintas
O empréstimo é realizado através de uma filial de ACo residente em uma terceira jurisdi-
ção (B Filial).
A jurisdição de ACo reconhece a existência de B Filial, e atribui a ela os pagamentos rece-
bidos em decorrência da transação de empréstimo com CCo.
A jurisdição de B Filial por sua vez também reconhece a existência, e consequentemente
presença tributária, de B filial.
jurisdição de C Co permite a dedução fiscal de pagamentos feitos pela companhia em
relação ao empréstimo contraído
A jurisdição de ACo, por sua vez, não considera qualquer rendimento decorrente do em-
préstimo sujeito à tributação, pois atribui a transação de empréstimo à B Filial.
Porém, as regras de alocação de receitas e despesas da jurisdição de B Filial são distintas
das regras presentes da legislaçãoda jurisdição de ACo, sendo que e a jurisdição de B
Filial atribui os pagamentos recebidos em decorrência da transação de empréstimo com
CCo para ACo, não tributando assim os resultados da transação.

190
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em ambos os casos, o de filial não identificada e pagamento redirecionado,


o efeito para o grupo multinacional é o de uma dedução fiscal em determinada
jurisdição, sem uma correspondente tributação/inclusão em outra jurisdição.

3.2 Casos de Dedução/Não Inclusão relacionados com


Pagamentos Presumidos – assimetria “c”
Outra hipótese de assimetria decorrente das diferenças entre regras de
alocação de receita e despesa é evidenciada no exemplo de pagamentos pre-
sumidos, o qual explora a assimetria em transações entre a matriz e filial,
somando à problemática de divergência nas regras de alocação de receitas e
despesas a possibilidade de pagamentos presumidos.

191
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A companhia ACo presta serviços a uma empresa não relacionada (CCo) através de sua
filial situada na jurisdição B.
Os serviços prestados por B Filial se utilizam de intangíveis, os quais B Filial entende
serem de propriedade de A Co. Assim, B Filial efetua pagamentos presumidos para A Co
como remuneração pelo uso do intangível, os quais são considerados dedutíveis na juris-
dição B Filial.
A jurisdição de ACo por sua vez entende que os intangíveis pertencem à B Filial, e desta
forma não consideram nenhuma receita tributável em decorrência do pagamento presu-
mido realizado por B Filial.
Ademais, o valor referente aos serviços recebidos pela filial não são tributados na jurisdi-
ção A, tendo em vista que os resultados são atribuidos à filial e os lucros da filial isentos
ou excluídos de tributação na jurisdição de ACo.
Neste contexto se materializa a assimetria de D/NI em transação dentro do mesmo grupo
econômico decorrente das diferenças nas normas de alocações entre matriz e filial.

O exemplo ilustra pagamento presumido de royalty, porém a aplicação de


princípios contábeis distintos ou de atribuição de receita na jurisdição da filial
podem resultar em outras formas de pagamentos presumidos (como juros por
exemplo) cujas consequências fiscais são similares à demonstrada no exemplo.
A recomendação apresentada no relatório para mitigar o efeito de D/NI,
nestes casos, vai no sentido de negar a dedução de valores (no exemplo acima,
na jurisdição B) que não sofreram inclusão/tributação em outra jurisdição (A)
por serem por ela desconsiderados. Não obstante, não há nessa recomendação
qualquer regra secundária que determine que o pagamento seja incluído na
base tributável do beneficiário, uma vez que, de acordo com o relatório, a Re-
comendação 1 já endereçaria esta recomendação84.
O relatório destaca ainda que esta recomendação seria aplicável somente
nos casos de assimetrias de alocação onde pagamentos presumidos não são
considerados pela jurisdição beneficiária, não devendo ser aplicável para os
casos de receitas reconhecidas que seriam excluídas ou isentas de tributação.

84 OECD Neutralising the Effects of Branch Mismatch Arrangements, 2017, p.37

192
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3.3 Casos de Dupla Dedução – assimetria “d”


Conforme mencionado anteriormente, assimetria de dupla dedução
(DD) ocorre quando a mesma despesa é tratada como dedutível pelas leis de
mais de uma jurisdição, e seu efeito negativo decorre de uma não dupla inclu-
são de renda para contrapor a dupla dedução.
O relatório da OCDE retrata esta preocupação em um exemplo contem-
plando as assimetrias de alocações entre receita e despesa somadas as regras
fiscais de tributação em grupo.

A companhia ACo possui uma filial e uma subsidiária na jurisdição B, e a jurisdição B


permite tributação em grupo, consolidando os resultados das atividades da filial e subsi-
diária para fins fiscais.
A filial de ACo na jurisdição B contrai um empréstimo com instituição financeira, apro-
priando despesa de juros, enquanto a subsidiaria exerce atividades de prestação de serviços.
Tendo em vista a possibilidade de tributação em grupo na jurisdição B, os lucros da
prestação de serviços são reduzidos pela despesa de juros da dívida para fins de cálculo
do imposto sobre a renda nesta jurisdição. Por outro lado, como resultado dos critérios
de atribuição dos resultados entre matriz e filial, ACo entende que a despesa de juros da
dívida deve ser atribuida à matriz, sendo assim também dedutível para fins fiscais na
jurisdição de ACo.

A Recomendação nesses casos é no sentido de que a dedução não deve


ser permitida na jurisdição da matriz, e, caso isso ocorra, deverá ser proibida
na jurisdição da filial.

193
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3.4 Casos de Assimetrias “importadas” (“e”)


As assimetrias “importadas” refletem uma transaçãoou séries de transa-
ções desenhadas entre duas jurisdições, que se aproveitam de assimetrias (nos
exemplos avaliados no relatório entre matriz e filial), e que são posteriormente
importadas para uma terceira jurisdição através de uma operação tradicional
(sem o uso de assimetrias).
O relatório tem como exemplo a figura abaixo, semelhante à figura apre-
sentada no exemplo “c”, entretanto neste caso ACo e CCo são parte do mesmo
grupo, e assume-se que não há qualquer regra nas jurisdições A e B focada no
combate de eventual assimetria, como por exemplo na eventual assimetria de
pagamento presumido de royalties. Como consequência, o grupo econômico
acaba se beneficiando do resultado de D/NI: no exemplo citado o valor pago a
título de royalties presumidos é deduzido por B Filial, contudo não é tributado
por A Co; ademais C Co apropria uma dedução pela prestação de serviços.

Desta forma, a Recomendação neste caso determina que a jurisdição do


pagador/’importador” (jurisdição C no exemplo acima) não deve permitir
uma dedução do pagamento feito para B filial, tendo em vista que esta se be-
neficia de uma assimetria. Ou seja a jurisdição que importa uma assimetria,
direta ou indiretamente, mesmo que em decorrência de uma transação regu-
lar deve coibir tal situação vendando a dedução fiscal em sua jurisdição.

194
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4. Os Negócios Híbridos na Legislação Tributária Brasileira


O Plano BEPS da OCDE está alicerçado na colaboração e coordenação
entre os países ou jurisdições, pilares esses que se mostram bastante evidentes
no plano da Ação 2. Como forma de viabilizar uma adequada coordenação
entre os países, a Ação 2 propõe o alinhamento das legislações domésticas.
Para tanto, sugere a adoção, pelas legislações domésticas, dos conceitos e re-
gras tratados acima. O prefácio da Ação 2 deixa clara, logo de início, essa
preocupação em harmonizar, ou tornar coerentes, as legislações domésticas
das jurisdições envolvidas:
“Foreword
Following the release of the report Addressing Base Erosion and Pro-
fit Shifting in February 2013, OECD and G20 countries adopted a
15-point Action Plan to address BEPS in September 2013. The Action
Plan identified 15 actions along three key pillars: introducing coheren-
ce in the domestic rules that affect cross-border activities, reinforcing
substance requirements in the existing international standards, and
improving transparency as well as certainty.
(…)
Implementation therefore becomes key at this stage. The BEPS package
is designed to be implemented via changes in domestic law and practices,
and via treaty provisions, with negotiations for a multilateral instru-
ment under way and expected to be finalised in 2016.”

Insta destacar que o acordo multilateral mencionado acima (MLI), já teve


seu texto preparado85 e 68 jurisdições assinaram tal acordo em junho/2017
sendo que muitos outros tambem já o firmaram desde então, e seu proces-
so de ratificação vem sendo implementado de forma avancada. A parte II do
referido MLI tem opções de artigos para combater as entidades e transações
híbridas. Entretanto, o Brasil não assinou o referido acordo, e sinalizou sua in-
tenção de, como alternativa, atualizar e celebrar tratados de maneira bilateral,
considerando as recomendações e instruções do BEPS, sugeridas via o MLI86.

85 https://www.oecd.org/tax/treaties/multilateral-convention-to-implement-tax-treaty-related-
measures-to-prevent-BEPS.pdf
86 Neste sentido, vide o protocolo ao Tratado com a Argentina, e os Tratados firmados com Suiça e Cingapura.

195
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A Ação 2 trata suas recomendações como um “aperfeiçoamento” das le-


gislações domésticas, destinadas a introduzir regras de coordenação (linking
rules) que neutralizem as assimetrias de tratamento tributário conferido por
duas ou mais jurisdições a uma mesma operação ou mesmo conjunto de ope-
rações envolvendo negócios híbridos, sem interferir em quaisquer outras con-
sequências tributárias, comerciais e regulatórias, permitindo assim alcançar
os resultados tributários pretendidos no contexto do Plano BEPS.
Conforme detalhado nos tópicos anteriores, a Ação 2 apresenta as regras
gerais de ajustes que devem ser implementadas pelas legislações domésticas87 ,
bem como apresenta recomendações de normas específicas a serem introduzi-
das pelos países88 , as quais buscam ser eficientes para se alcançar os objetivos
delineados nas regras gerais.
As recomendações de ajuste das legislações domésticas apresentadas pela
Ação 2 refletem naturalmente o seu escopo, detalhado anteriormente, e po-
dem ser definidas como um conjunto de regras destinadas a corrigir assime-
trias no tratamento tributário aplicável a negócios híbridos (hybrid mismatch
arrangements) que ensejem dedução de despesa e não inclusão de rendimento

87 3. Action 2 calls for the development of “model treaty provisions and recommendations regarding
the design of domestic rules to neutralise the effects of hybrid instruments and entities.” The Action
Item states that this may include: (a) Changes to the OECD Model Tax Convention to ensure that
hybrid instruments and entities (as well as dual resident entities) are not used to obtain the benefits
of treaties unduly; (b) Domestic law provisions that prevent exemption or non-recognition for
payments that are deductible by the payer; (c) Domestic law provisions that deny a deduction for
a payment that is not includible in income by the recipient (and is not subject to taxation under
CFC or similar rules); (d) Domestic law provisions that deny a deduction for a payment that is
also deductible in another jurisdiction; and (e) Where necessary, guidance on co-ordination or tie-
breaker rules if more than one country seeks to apply such rules to a transaction or structure.
88 Part I recommendations
In terms of specific changes to domestic law, Chapters 2 and 5 of this report recommend
improvements to domestic law rules that:
(a) Deny a dividend exemption, or equivalent relief from economic double taxation, in respect of
deductible payments made under financial instruments.
(b) Introduce measures to prevent hybrid transfers being used to duplicate credits for taxes withheld
at source.
(c) Alter the effect of CFC and other offshore investment regimes to bring the income of hybrid
entities within the charge to taxation under the laws of the investor jurisdiction.
(d) Encourage countries to adopt appropriate information reporting and filing requirements in
respect of tax transparent entities established within their jurisdiction.
(e) Restrict the tax transparency of reverse hybrids that are members of a control group.

196
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

na base tributável (D/NI), quando, e somente quando, realizados entre par-


tes relacionadas ou no contexto de operações estruturadas, tendo como re-
gra primária a indedutibilidade de pagamentos não tributados na jurisdição
de destino (primary response), complementada por uma regra secundária de
defesa que tribute como rendimento ordinário os pagamentos dedutíveis nas
jurisdições de origem (defense rule).
A estrutura das regras recomendadas pela Ação 2 pode ser então dividi-
da, basicamente, nos seguintes elementos:
(a) conceito de negócio híbrido, o qual é divido em entidades híbridas
(transparentes) e em instrumentos híbridos, e estes, por sua vez, subdi-
vididos em transferências híbridas, instrumentos financeiros híbridos e
pagamentos substitutos;
(b) conceito de partes relacionadas e operações estruturadas; e
(c) situações de dedução e não inclusão (D/NI) e as regras de ajuste pri-
márias (indedutibilidade) e secundárias (tributação do rendimento).

Analisaremos, a seguir, cada um desses elementos em face da legislação


brasileira.
No que concerne às entidades híbridas, percebe-se que os exemplos
apresentados pela Ação 2 tomam por base, em regra, entidades fiscalmente
transparentes89, comuns no Direito dos países membros da OCDE, e.g. as par-
tnerships e as BV’s. Entretanto, o Direito brasileiro não se vale regularmente
dessas entidades transparentes. Poder-se-ia cogitar o enquadramento das co-
operativas e das Sociedades em Conta de Participação (SCP) no conceito de
entidades transparentes, em razão das especificidades da sua natureza jurí-
dica. Todavia, essas entidades possuem opacidade tributária90 no Brasil, ocu-
pando a posição de sujeitos passivos tributários.
Talvez a única “entidade” brasileira que possa, realmente, se enquadrar no
contexto das entidades transparentes seja a figura do consórcio, que não possui
personalidade jurídica e não é sujeito passivo direto de tributos. Assim, num

89 Para os menos afeitos à matéria, o conceito de transparência fiscal ou entidade transparente


adotado pela Ação 2 não diz respeito à prestação de informações negociais (information disclosure),
e sim às entidades “invisíveis” para fins de apuração de tributos. A transparência nas informações
(disclosure) é objeto da Ação 12 do Plano BEPS.
90 O termo opacidade tributária é utilizado pelo BEPS como oposto da transparência tributária.

197
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

primeiro momento, pode-se cogitar de uma situação em que o Brasil não tribu-
te os rendimentos de um consórcio por enxergá-lo transparente, e a jurisdição
de um dos consorciados também não tribute os rendimentos do consorciado
por enxergar o consórcio como uma entidade opaca. Nesse caso, teríamos uma
situação em que o pagamento seria dedutível no Brasil pela pessoa que pagou
ao consórcio e o rendimento não seria tributado nem no Brasil nem no exterior
como renda do consorciado/beneficiário, configurando uma situação de D/NI.91
Vale ressaltar que as recomendações da Ação 2 pertinentes às entidades
híbridas não afetam apenas os países que divergem sobre a natureza (opaca ou
transparente) da entidade. Com efeito, há diversas situações em que essas re-
comendações alcançam contribuintes localizados em terceiros países e que se
relacionam com entidades cuja natureza é foco de divergência entre dois outros
países, como é o caso das entidades híbridas reversas. Dessa maneira, embo-
ra possam ser raros os casos em que o Brasil considera determinada entidade
como transparente para fins fiscais, isso não afasta a possibilidade de que ne-
gócios celebrados por residentes no país sejam atingidos pelas recomendações
da Ação 2, especialmente quando esse contribuinte se relacionar com entidades
estrangeiras às quais outros dois países atribuem naturezas diferentes.
Por outro lado, quanto aos negócios híbridos, especificamente aos instru-
mentos financeiros híbridos, com efeito se percebe presentes no Brasil alguns
instrumentos que podem ser assim classificados, tais como os Juros sobre o
Capital Próprio (JCP) – tido como o exemplo clássico de instrumento híbrido
brasileiro – as debêntures conversíveis e as debêntures de participação, as dí-
vidas subordinadas, as ações com dividendos mínimos fixos, as ações resgatá-
veis e os bonds de longo prazo ou perpétuos. Nesse cenário, as recomendações
da Ação 2 se revelam pertinentes à realidade brasileira.
Corroborando essa pertinência, a legislação brasileira passou, recen-
temente, a cuidar do tratamento tributário aplicável a alguns instrumentos
financeiros híbridos, para os quais a regra contábil poderia levar a uma qua-
lificação diversa daquela extraída das normas tributárias. Nos referimos à Lei
nº 12.973/2014, que determinou a prevalência da forma jurídica sobre a forma

91 Destaca-se que, ainda que imposto de renda na fonte possa ser aplicável a distribuições realizadas
por um consórcio a seus membros, o imposto de renda nao é, conforme mencionamos mais adiante
neste artigo, solução aceita pela OCDE como adequada para solucionar casos de assimetria por
tratamentos assimétricos.

198
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

econômica/financeira para fins de definição das regras tributárias aplicáveis


aos instrumentos híbridos. De acordo com a referida lei, estão isentos de Im-
posto sobre a Renda os lucros ou dividendos (instrumento de capital - acepção
jurídica) decorrentes de todas as espécies de ações (art. 15, Lei 6.404/76), ainda
que classificadas em conta de passivo ou que a remuneração seja classificada
como despesa financeira na escrituração comercial (art. 9º, Lei nº 12.973/2014).
A referida lei também dispõe que são dedutíveis as remunerações e despesas
decorrentes de instrumentos de capital ou de dívida subordinada (acepção
jurídica), exceto na forma de ações, mesmo quando contabilizados no patri-
mônio líquido (art. 2º, ref. 38-B, Lei nº 12.973/2014).
Ainda no que toca aos negócios híbridos, as transferências híbridas e os
pagamentos substitutos decorrem de operações estruturadas, ainda que en-
volvam os conceitos tratados acima, de forma que eventual ajuste da legislação
doméstica seria para prever a desconsideração de formas e/ou estruturas jurí-
dicas, o que já nos parece factível no Brasil, não demandando maior esforço,
embora demande cautela.
Acerca da caracterização de partes relacionadas, conquanto a legislação bra-
sileira apresente já alguns conceitos, tal como pela legislação societária e no con-
texto das legislações de preço de transferência e de tributação de lucros no exterior,
entre outras92, é possível que, em sendo incorporadas as recomendações da Ação
2, sejam necessários alguns “aperfeiçoamentos” (termo usado pela Ação 2) para
assimilar a definição de “controle efetivo” e harmonizar as regras de consolidação
contábil intragrupo, por exemplo. Nesse aspecto, é provável que a incorporação
da Ação 2 demande alguns ajustes na legislação brasileira.
De todo modo, o ponto que merece destaque, a nosso ver, diz respeito às
regras primárias e secundárias de ajuste. Isso porque, independentemente da
eventual influência da Ação 2 sobre a legislação brasileira no que se refere à incor-
poração de conceitos ligados a negócios híbridos, partes relacionadas e operações
estruturadas, a legislação brasileira parece atender satisfatoriamente ou ao menos
suficientemente os objetivos da Ação 2 de combate a assimetrias tributárias.
Partamos das regras secundárias de defesa (defense rules) que recomen-
dam a inclusão, como rendimento ordinário do beneficiário, dos pagamentos

92 A Lei nº 13.043/2014 também trouxe uma definição de pessoa vinculada para fins dos contratos
internacionais de afretamento marítimo (art. 106, §7º).

199
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dedutíveis na jurisdição da fonte. O Brasil, como se sabe, adota o princípio da


universalidade da renda ou da tributação universal, tributando quase a totali-
dade das rendas auferidas por seus residentes advindas de fontes no exterior.
No caso de lucros apurados no exterior por meio de entidades controladas,
o Brasil adota regra de transparência extremamente abrangente, alcançando
automaticamente os resultados positivos apurados pelas controladas diretas
e indiretas. Pode-se dizer que o Brasil adota um regime CFC rigoroso como
regra geral para entidades controladas. No caso das coligadas, as regras atuais
vigentes no Brasil são um pouco mais brandas, aproximando-se dos moldes
das CFC adotadas pelos países desenvolvidos (ver Lei nº 12.973/2014), mas
sem com isso isentar de tributação no Brasil os lucros por elas auferidos.
Nesse cenário, depreende-se que o Brasil já adota a regra de defesa pro-
posta pela Ação 2 para qualquer rendimento recebido por um residente a par-
tir de outras jurisdições, independentemente de se estar diante de uma assi-
metria (mismatch) ou não. A Ação 2 recomenda ainda, ao tratar das situações
de reverse hybrid, o reforço das regras de CFC. Ocorre que, como salientado,
a regra geral de tributação de lucros no exterior adotada pelo Brasil já possui
o rigor próprio ou até mesmo superior às regras CFC normalmente adotadas
pelos países membros do G20. É dizer, o regime de tributação de lucros apura-
dos no exterior adotado pelo Brasil é de tal rigor que dispensaria ajustes para
implementação das defense rules ou de eventual reforço destas mesmas regras.
Assim sendo, as recomendações da Ação 2 pertinentes às regras de defesa po-
dem ser de pouca relevância no contexto da legislação brasileira.
Com relação à regra primária, o Brasil já prevê certas limitações à dedutibili-
dade de despesas quando incorridas entre partes relacionadas, independentemen-
te da presença de assimetria de tratamento tributário e da inclusão do pagamento
pelo beneficiário como rendimento ordinário. Essas regras já atenderiam, no que
forem aplicáveis, aos objetivos da Ação 2, ainda que possa haver uma ou outra
diferença entre as razões e objetivos das regras brasileiras e a Ação 2.
Ademais disso, o Brasil tributa na fonte praticamente todas as remessas
de numerário ao exterior, salvo as situações desoneradas por política fiscal, o
que reduz, significativamente, o risco de um rendimento não ser tributado em
nenhuma jurisdição, ou seja, de uma dupla não tributação.
Todavia, a Ação 2 confere pouca relevância e atenção à função do impos-
to retido na fonte (withholding tax). A esse respeito, sustenta a Ação 2 que a

200
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

regra primária de indedutibilidade deve ser aplicada mesmo nos casos em que
a jurisdição da fonte também imponha a retenção de tributo sobre a remessa.
Isso porque, segundo a Ação 2, tributos retidos na fonte por si sós não neutra-
lizam assimetrias (hybrid mismatch), uma vez que, usualmente, as retenções
são impostas apenas sobre instrumentos de capital (dividendos)93.
Parece-nos que os comentários da Ação 2 acerca do imposto retido na
fonte levam em conta a realidade da União Europeia, onde o imposto de fon-
te é pouco utilizado. O Brasil, como já dito, aplica o imposto de fonte sobre
praticamente todas as remessas ao exterior, e não apenas sobre rendimentos
decorrentes de instrumento de capital, o que já demonstra a fragilidade das
observações contidas na Ação 2 em relação a determinadas jurisdições, como
é o caso da brasileira. Esse nos parece ser um dos principais pontos da Ação
2 que merecem melhor reflexão por parte da OCDE, e que não fora tratado
tampouco no relatório adicional referente às matrizes e filiais.
Além das considerações acima, pertinentes às características e elementos
contidos nas recomendações da Ação 2, duas observações gerais acerca do
Plano BEPS também merecem lugar.
Uma das questões suscitadas acerca do BEPS, de um modo geral, tra-
ta da sua imperatividade ou obrigatoriedade para os países não membros da
OCDE. Pode-se entender que apenas os países membros da OCDE estão dire-
tamente vinculados ao Plano BEPS, haja vista ser uma iniciativa dessa organi-
zação. Por outro lado, pode-se também entender que os países do G20, dentre
os quais o Brasil, também estariam vinculados, uma vez que contribuíram
ativamente para a formulação do Plano BEPS. Não pretendemos aqui esgotar
o assunto, mas apenas consignar a questão para reflexões mais aprofundadas.
Obviamente que, em um cenário em que o Brasil passa a buscar, formalmente,
sua acessao a OCDE, a adoção das recomendações minimas pode vir como
exigência para que o processo se efetive.
A outra questão que tem causado apreensão entre os brasileiros diz respei-
to a como será o comportamento da Receita Federal do Brasil – RFB no contex-
to do BEPS, haja vista a atual postura da RFB para com os contribuintes. Isso

93 The primary rule denying the deduction may apply in cases in which the payer jurisdiction also
imposes a withholding tax on the payment as it is still important to neutralise the hybrid mismatch
in those cases. Withholding taxes alone do not neutralise the hybrid mismatch as withholding taxes,
where applicable, often are imposed with respect to equity instruments. (parágrafo 407 da Ação 2).

201
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

porque o Plano BEPS, de um modo geral, apresenta, ao que nos parece, uma
inclinação pró-fiscalização e pró-arrecadação, tanto em termos de mecanismos
de arrecadação quanto de controle das informações e operações dos contribuin-
tes. Assim, existe um receio por parte dos contribuintes e profissionais brasilei-
ros de que a RFB passe a utilizar o Plano BEPS como pretexto ou subterfúgio
para impor regras e ônus fiscais ainda mais rígidos e gravosos. Nesse aspecto,
tivemos como exemplo o caso da Medida Provisória nº 685/2015, cujo art. 7º
e seguintes tratavam da comunicação dos planejamentos tributários, tema da
Ação 12, como um exemplo de mal-uso do Plano BEPS pelo Brasil, felizmente
afastado pelo Congresso Nacional na sua conversão em lei94.
É dizer, na opinião de considerável parte dos contribuintes e profissio-
nais brasileiros, a administração tributária brasileira não adota postura se-
melhante à das administrações tributárias dos países membros da OCDE, o
que pode distorcer a aplicação do Plano BEPS no Brasil. Essa diferença de
postura pode ser em razão de estarem as administrações tributárias sujeitas
a realidades econômicas distintas ou em razão de um histórico menor grau
de relacionamento institucional com os contribuintes por parte da adminis-
tração tributária brasileira, inobstante o crescente progresso que vem sendo
percebido neste sentido nos últimos anos. Irrelevantes as razões, o fato é que
há considerável temor de que o Plano BEPS seja utilizado pela administração
tributária brasileira para “oprimir” os contribuintes brasileiros.

5. Exemplos de Implementação da Ação 2


Desde 2016, diversos países buscaram implementar, em suas legislações,
regras especificas para endereçar as questões levantadas em decorrência de
negócios híbridos.
Em 20 de junho de 2016, o Conselho Europeu implementou a Diretiva
UE 2016/1164 (Anti Tax Avoidance Directive ATAD) que estabelece regras
contra práticas de elisão fiscal que afetam diretamente o funcionamento do
mercado interno. A Diretiva ATAD I foi complementada pela Diretiva (UE)
2017/952 do Conselho, de 29 de maio de 2017, ATAD II. Inquestionavelmente,

94 Lei n. 13.202/15.

202
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ambas visam, na pratica, estabelecer padrões mínimos de adoção das reco-


mendações do BEPS pelos países membros da UE.
A intenção subjacente a essas regras é criar um nível mínimo de proteção
contra a elisão fiscal em toda a UE, assegurando simultaneamente um am-
biente mais justo e mais estável para as empresas.
A diretiva contém cinco medidas antiabuso juridicamente vinculativas, que
todos os Estados-Membros deveriam começar a aplicar a partir de 1 de janeiro
de 2019 (regra de limitação de dedutibilidade de juros, regra geral antiabuso e
regras CFC), 2020 (tributação de saída e assimetrias oriundas dos híbridos) e 2024
(data mais recente de implementação da regra de limitação de juros para Estados-
-Membros com regras de limitação de juros semelhantes existentes). As medidas
relevantes para este artigo são as referentes aos negócios híbridos.
Enquanto o ATAD I inclui regras sobre tratamentos entre híbridos nos
Estados-Membros da UE, o ATAD II acrescenta regras sobre tais assimetrias
em situações envolvendo “terceiros” países que se aplicam a todos os contri-
buintes sujeitos ao imposto sobre a renda em um ou mais Estados-Membros,
incluindo os estabelecimentos permanentes de entidades residentes para efei-
tos fiscais em terceiro país. As regras relativas às assimetrias híbridas inversas
também se aplicam a entidades tratadas como transparentes para efeitos fis-
cais por um Estado-Membro.
O ATAD II estende a definição de assimetria híbrida do ATAD I que
abrange situações de dedução dupla ou dedução sem inclusão resultante de en-
tidades híbridas ou instrumentos financeiros híbridos para incluir incompa-
tibilidades resultantes de acordos envolvendo estabelecimentos permanentes,
transferências híbridas, assimetrias importadas de filiais e entidades híbridas
inversas. ATAD II também inclui regras sobre descasamentos de residência
fiscal. Incompatibilidades que pertencem a entidades híbridas são abrangidas
apenas quando uma das empresas do mesmo grupo tenha um controle efetivo
sobre as outras. Dedução sem inclusão decorrente da situação fiscal (isenta) de
um beneficiário ou o fato de que um instrumento é mantido sujeito a os ter-
mos de um regime especial não deve ser tratada como uma assimetria híbrida.
A Holanda, exemplo de país membro da UE, incorporando as diretrizes
do ATAD, abriu, em 29 de outubro de 2018, uma consulta pública em 29 de
outubro de 2018 na internet sobre a implementação de propostas legislativas
no que diz respeito a disposições antiabuso associadas a assimetrias híbridas.

203
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A consulta diz respeito a uma minuta de projeto e uma extensa explanação


parlamentar, incluindo exemplos dos tipos de incompatibilidades que preci-
sam ser combatidas. Entidades, instrumentos (financeiros), estabelecimentos
permanentes ou o local de estabelecimento de uma entidade são, por vezes,
qualificados de forma diferente por diferentes países (da UE). Isso pode levar a
uma situação em que um pagamento, por exemplo, é deduzido em dois países,
ou é deduzido uma vez, mas não é tributado no outro, que é justamente o que
o ATAD II e o projeto de lei holandês visam evitar. Esta proposta aplica-se
tanto a situações entre os Estados-Membros da UE como a situações entre os
Estados-Membros da UE e os países terceiros. As regras de incompatibilidade
híbrida devem entrar em vigor a partir de 1 de janeiro de 2020 e de negócios
híbridos reversos a partir de 2022 nos Países Baixos, se aprovadas.
Já o Reino Unido, desde 2017, tem uma complexa legislação com foco
em pagamentos relacionados com instrumentos financeiros, transferências
híbridas, entidades híbridas, empresas com estabelecimentos permanentes e
com dupla residência. A legislação tem como alvo tipos específicos de incom-
patibilidade, estabelecendo as condições a serem atendidas em cada caso e
quais ajustes devem ser feitos para fins de tributação, objetivando neutralizar
a assimetria e, mesmo com o risco de saída compulsória da União Europeia,
está seguindo as orientações das Diretivas ATAD I e II95.
Sobre outros países fora da UE, vale destacar que em 201896 alguns alte-
raram suas legislações internas. A Austrália atualizou sua legislação de im-
posto sobre a renda (datada de 1997) tanto para instrumentos quanto para
transações híbridas, a fim de evitar que as entidades sujeitas ao imposto sobre
a renda australiano obtenham benefícios duplos de não tributação através da
exploração de diferenças entre o tratamento fiscal de entidades e instrumen-
tos em países diferentes. A legislação também nega benefícios a pagamentos
feitos por uma empresa australiana se toda ou parte destes der origem a uma
dedução de receita estrangeira. A Austrália também implementou as atuali-
zações da OCDE relativas às filiais. Assim, o país limitou a abrangência da

95 https://thesuite.pwc.com/insights/changes-to-rules-on-hybrid-and-other-mismatches-in-draft-
finance-bill-201819
96 Conforme estudos da PwC e da EY disponíveis em https://www.pwc.com/gx/en/services/tax/tax-
policy-administration/beps/hybrid-mismatch-arrangements.html e https://www.ey.com/gl/en/
services/tax/ey-oecd-base-erosion-and-profit-shifting-project-by-action-2

204
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

isenção para a receita das filiais estrangeiras evitando que uma dedução seja
concedida para pagamentos feitos por uma agência australiana de um banco
estrangeiro à sua matriz em determinadas circunstâncias, impedindo que cer-
tos pagamentos oriundos do exterior recebidos por uma entidade australiana
não sejam tributáveis se a sua totalidade ou parte der origem a uma dedução
do imposto sobre a renda no exterior.97
Igualmente, os EUA, recentemente, atraves da reforma implementada
via o Jobs Act and Tax Cut Act, tambem incorporou recomendacoes propos-
tas pela Acao 2 do BEPS. Neste sentido, destaca-se as recomendacoes focadas
a negativa de aplicacao de dispositivo que evita a tributacao de dividendos (di-
vidend received deduction, previso na Secao 245A) a rendimentos que tenham
sido objeto de deducao no seu pais de origem. Igualmente, regras foram im-
plementadas focadas na negativa de deducao de despesas de juros ou royalties
que sejam pagos a entidades ou transacoes hibridas98.

6. Conclusões
Como proposto na sua Introdução, este artigo busca elementos para con-
cluir se a aplicação dos relatórios da Ação 2, do BEPS, evitam, de fato, a erosão
da base tributária e o deslocamento de lucros suscetíveis de tributação nas
jurisdições envolvidas nas transações geradoras de riqueza tributável. Esse
objetivo, consoante a Ação 2, deverá ser atingido com a eliminação ou mini-
mização das assimetrias no tratamento tributário conferido por essas jurisdi-
ções à transação objeto de tributação. Não se descuida, porém, da finalidade
principal da Convenção Modelo que é a de evitar a dupla-tributação da renda
e os malefícios que esta traz, assim como da evasão fiscal. Dessa forma, é de
se registrar que o BEPS não abandona os instrumentos até hoje adotados com
a finalidade de afastar a subtração de riqueza à tributação, como é o caso das
regras voltadas à CFC, ao preço de transferência e outras, reforçando-as.

97 https://parlinfo.aph.gov.au/parlInfo/search/display/display.w3p;query=Id:%22legislation/
billhome/r6116%22
98 Neste sentido, vide comentarios mais detalhados em publicacao da EY em https://www.ey.com/
Publication/vwLUAssets/US_IRS_proposes_regulations_implementing_anti-hybrid_mismatch_
rules_and_expanding_scope_of_dual_consolidated_loss_regulations/$FILE/2019G_012722-
18Gbl_US%20-%20Regs%20proposed%20re%20anti-hybrid%20mismatch%20rules.pdf

205
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Outra constatação, ainda no exame da matéria em geral, é a mudança


de foco da OCDE no trato da renda gerada em operações envolvendo mais de
uma jurisdição e presente no espírito da Convenção Modelo e, hoje, no BEPS:
da preocupação voltada à proteção do capital investido, buscando evitar a du-
pla tributação da renda por ele gerada, na década de 1960, para uma preocu-
pação com a proteção da arrecadação dos países envolvidos, a partir de 2013.
Também relevante é o fato de que o BEPS foi produzido com forte influen-
cia dos paises membros União Europeia, verdadeira federação de países que se
orientam por preceitos jurídicos, especialmente tributários, comuns e que não
se coadunam com sistemas jurídicos à margem desse direito comunitário. É
certo que países alheios a esse sistema vêm adotando preceitos e modelos re-
comendados pela OCDE, ainda que não a integrem, como é o caso do Brasil99.
Essa constatação leva a uma indagação da mais alta importância jurídica: qual
é a legitimidade e força do BEPS diante do sistema jurídico dos países que não
integram a OCDE, como é o caso do Brasil? A resposta objetiva é que o BEPS,
ainda que o Brasil integre o G20, do qual participa desde o início de sua cons-
trução, não tem qualquer força normativa interna até o momento. Cinge-se ele,
no cenário brasileiro, a um conjunto de recomendações objetivando a adequada
distribuição de riqueza entre os vários Estados. Ora, que isso possa eventual-
mente vir a mudar, no caso do Brasil, em vista de seu processo de acessão a
OCDE comprovaria na pratica o ponto inicial: as recomendações não são mais
que isso (recomendações) para paises não membros da Organização.
Do ponto de vista prático, é sempre bom relembrar que as autoridades
fiscais brasileiras aceitam as determinações e interpretações da OCDE à sua
conveniência, sendo que os próprios tratados firmados consoante a Conven-
ção Modelo são, muitas vezes, descumpridos pelo Fisco. No caso do BEPS, é
relevante que se observe que a recomendação é de sua adoção, por completo,
das 15 ações, não cabendo aos países escolherem as ações que lhes convêm
(“cherry picking”), visto que elas não operam isoladas. Os contribuintes brasi-
leiros já viveram essa experiência, em relação à Medida Provisória nº 685/15
e a Ação 12 que recomenda a elaboração de declaração de planejamento de

99 O Brasil segue diversas recomendações e práticas da OCDE (citem-se troca de informações e


nomenclatura de serviços e em 2017 solicitou ingresso à OCDE tendo, recentemente publicado
o Decreto 9920/2019 a fim de instituir o Conselho para a Preparação e o Acompanhamento do
Processo de Acessão do país à OCDE.

206
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

negócios com fins tributários. Assim, no que se refere à Ação 2, é essencial


que não seja ela adotada, total ou parcialmente, ao sabor dos interesses de mo-
mento e que seja incluída, se for o caso e se compatibilidade houver com nosso
sistema jurídico, de forma a permitir a inserção do Brasil em um conjunto de
oportunidades e negócios internacionais voltados ao crescimento.
Com o propósito de eliminar ou minimizar assimetrias no tratamento
tributário conferido por duas ou mais jurisdições a uma mesma operação, a
Ação 2 do BEPS descreve medidas suscetíveis de neutralizar os efeitos dessas
ditas assimetrias legais em negócios denominados híbridos e, no relatório de
2017, sobre assimetrias resultantes de híbridos envolvendo matrizes e suas fi-
liais. Para tanto e em harmonia com o pretendido pelo conjunto do BEPS, a
Ação 2 também se propõe a evitar que ocorra em todos os países envolvidos
na transação a dedução do mesmo gasto, ou a dupla dedução (DD), assim
como a não incidência de tributos (NI) sobre pagamento que tiver sido dedu-
tível em alguma jurisdição. As recomendações de ações a serem implantadas
para evitar a DD ou a NI são de duas naturezas: (i) ação local, pelos Estados,
com o fito de neutralizar os efeitos das ditas assimetrias e (ii) ação geral, con-
sistente em uma regra primária a ser aplicada por um dos países e uma regra
de defesa, ou secundária, a ser aplicada pelo outro país caso a regra primária
não seja aplicada pelo primeiro país. Como instrumento de consecução dessas
regras à vista de uma DD ou de uma NI, o país pagador aplicaria uma não
dedução e/ou o país que recebe a renda, a tributaria.
A implementação da solução não é tão fácil quanto se apresenta, pois em
nossa visão, por trás do tema, há uma importante questão de política econô-
mica e fiscal, própria de cada país. De fato, as vantagens fiscais representadas
por deduções e não tributação somente surgem por conta de legislações in-
ternas que introduzem benefícios para atender interesses próprios, ainda que
possam eles ser conjugados com tratados para evitar a dupla tributação, po-
tencializando os efeitos de afastar a arrecadação. Nesse caso, se faz necessária
uma alteração legislativa, questão de soberania dos Estados, o que desde já
invalidaria esse tipo de recomendação.
Em busca da uniformidade conceitual, dado o fato de que as jurisdições
envolvidas têm sistemas jurídicos diversos, o Relatório da OCDE acerca da
Ação 2 apresenta uma relação de definições essenciais para bem entender o
seu objetivo. Dentre essas o conceito de negócio híbrido é fundamental, pois

207
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

pressupõe divergência quanto à natureza jurídica da transação e, por conse-


quência, quanto ao pagamento que dela decorre. Da mesma forma, o concei-
to de pagamento, por sua importância no contexto da ação, é amplamente
tratado. Assim, como premissa, somente se configura como negócio híbri-
do a transação que preencha as características descritas (tratamento tribu-
tário assimétrico/mismatch ou DD/NI entre os países envolvidos, elemento
híbrido/hybrid element ou presença de entidades ou instrumentos híbridos
na operação e redução da carga tributária agregada/aggregate tax burden da
transação). Ainda que o Relatório tenha se aplicado a definir “híbrido”, é certo
que muitas serão as dificuldades de enquadramento e, para se obter a melhor
interpretação com a finalidade de impedir a dedução ou gravar a renda, será
essencial a troca de informações entre os países.
Frise-se que esses conceitos originam-se de princípios jurídicos próprios
de países da União Europeia, os quais só operam, a nosso ver, no contexto da
Ação 2 e para tanto foram construídos, mas que podem não encontrar amparo
na legislação interna dos países envolvidos nas ditas transações. Assim, essa
lista de características dos negócios híbridos nos parece ser de uso, apenas e
exclusivamente, no âmbito de uma recomendação e só será norma impositiva
se a Ação 2 for convertida em norma local de aplicação. Além disso, a Ação 2
cuida de definir receitas duplamente tributadas, operações estruturadas/cons-
truídas com o propósito de obter vantagem fiscal que de outra forma não se
obteria, bem como partes relacionadas. Novamente, esse conteúdo descritivo
tem aplicação restrita à Ação 2 e pode colidir com a legislação local, razão pela
qual se há de delimitar sua aplicação.
O Relatório também sugere medidas de revisão nos tratados firmados
para evitar a dupla tributação, com o fito de compatibilizá-los com a visão
BEPS. Assim recomenda-se, de forma geral, que cláusulas de isenção sejam
substituídas por cláusulas de switch-over, permitindo o uso do método do cré-
dito quando o rendimento é deduzido no Estado da fonte. Essa recomendação
terá pouco efeito em países que tributam a renda na fonte e admitem o crédito
do imposto retido no país de pagamento.
O Brasil, como já se comentou, não é membro da OCDE, integra o G20, parti-
cipa do Fórum Global e, apesar disso, as ações do BEPS não desfrutam de força nor-
mativa no nosso sistema jurídico, seguindo como simples recomendações da OCDE
que a ninguém, localmente, obrigam. Tampouco se prestam a justificar reduções ou

208
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

acréscimos na base tributável local. E os princípios constitucionais sobre a matéria


devem ser rigidamente observados e prevalecem em qualquer circunstância.
Não há no sistema jurídico nacional uma conceituação de negócio jurí-
dico híbrido, sendo ele capturado mais por seus efeitos do que por uma de-
finição objetiva; apesar disso, a definição introduzida pelo BEPS pode não
se coadunar com o Direito Brasileiro, porque forjada sobre princípios a ele
alheios. Dessa forma, na eventual aplicação da Ação 2 no Brasil, abre-se mar-
gem a interpretações variadas, o que exigirá a elaboração de uma lista exausti-
va de hipóteses para que o contribuinte desfrute de um mínimo de segurança.
Destaque-se, ainda, que no Brasil a qualificação de um negócio como híbrido
está afetada por práticas e princípios contábeis, o que torna mais urgente a
preparação da listagem em referência.
No que se refere a regras de defesa, o Brasil tem por tradição tributar a
renda paga, na fonte, atribuindo crédito do imposto no exterior para rendas
auferidas em bases universais. Da mesma forma, a perseguição ao uso de ope-
rações estruturadas ou com partes relacionadas, como pretendido na Ação
2, é de pouca repercussão local visto que tais transações já estão no foco da
fiscalização há tempos, respondendo por grande construção jurisprudencial
dos tribunais administrativos sob a rubrica da desconsideração de atos, fatos
ou negócios jurídicos. Consequentemente, ainda que um negócio possa ser
qualificado como híbrido, pouca ou nenhuma repercussão terá no Brasil.
Os institutos da consolidação tributária de resultados, da tributação de
grupos e das entidades transparentes/opacas são estranhos ao Direito Brasi-
leiro e, por força disso, nenhuma repercussão automática aqui terão, à exce-
ção de que venham a ser regulados efetivamente no sistema jurídico. O que
ocorre, em algumas circunstâncias, é a tentativa do Fisco de dar transparên-
cia, fora da lei, a certos negócios, para atingir outras pessoas, como é o caso
da desqualificação de um fundo de investimento, por exemplo, com o fito de
atingir, diretamente, seus quotistas.
Em resumo e por fim, as alterações legislativas sugeridas pelos 2 relatórios da
Ação 2 do BEPS, como recomendações, não têm qualquer força legal automática
no Brasil. E, se convertidas em lei local, deverão, naturalmente, ser compatíveis
com os nossos princípios constitucionais, havendo elevado grau de receio se esta
compatibilidade, por exemplo, será alcançada no âmbito dos acordos para troca
de informações entre os países, tão necessários à eficácia dessas proposições.

209
Parte II – Substância e
Convenção Multilateral
7. From the Guiding Principle to the
Principal Purpose Test: the burden of
proof and legal consequences100

Marcus Livio Gomes


Tax Law Professor at the Rio de Janeiro State University,
Faculty of Law, Associated Research Fellow at the Institute of
Advanced Legal Studies (University of London) and Federal
Judge at the 2nd Federal Court.

This article contains an analysis of the transition from the guiding princi-
ple to the principal purpose test (PPT) included in the Multilateral Instrument
(MLI) designed by the Organization for Economic Cooperation and Develo-
pment (OECD) as part of the (Base Erosion and Profit Shifting) BEPS Action
6 Final Report, “Preventing the Granting of Treaty Benefits in Inappropriate
Circumstances”. The main goal is to check the feasibility of its application and
implementation under the burden of proof and its legal consequences.

Keywords
Multilateral Instrument. Multilateral Convention. MLI. GAAR. Prin-
cipal Purpose Test. PPT. Guiding Principle. Base Erosion and Profit Shif-
ting. BEPS. Action 6. Action 15. Double Tax Agreement. DTA. Covered Tax
Agreement. CTA. Treaty Abuse. Tax Avoidance. Tax Evasion. Aggressive Tax
Planning. Treaty Shopping. Rule Shopping. The burden of Proof. Legal Con-
sequences. Interpretation. Implementation. Application. CVLT. Subjective
Scope. Objective Scope.

100 This article was originally writed to be published by IBFD for the publication of the reports on the
13th GREIT Conference “Multilateralism and International Tax Law” organized by Instituto de
Direito Econômico Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito de Lisboa. The author is Tax Law
Professor at the Rio de Janeiro State University, Faculty of Law, Associated Research Fellow at the
Institute of Advanced Legal Studies (University of London) and Federal Judge at the 2nd Federal
Court. Email: marcusliviogomes@gmail.com.

213
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

7. From the Guiding Principle to the Principal Purpose


Test: the burden of proof and legal consequences

1. Introduction
The MLI is the result of Action 15 of the OECD/G20 BEPS project101 and
aims to implement the treaty-related BEPS measures in a swift, coordinated and
consistent manner in bilateral tax treaties of the participating jurisdictions. The
MLI entered into force on July 1, 2018, for Austria, the Isle of Man, Jersey, Po-
land and Slovenia, and also has entered into force as of 1 October 2018 in respect
of New Zealand, Serbia, Sweden and the United Kingdom. All this process is
supposed to be supported by the Inclusive Framework on BEPS.102
The object of this paper is to map the transition from the guiding princi-
ple to the principal purpose test to check the feasibility of its application and
implementation under the burden of proof and its legal consequences. Action
6 suggested the inclusion of Article 7.1, the Principal Purpose Test (PPT), in
tax treaties following the entry into force of the MLI: “Article 7 – Prevention
of Treaty Abuse. 1. Notwithstanding any provisions of a Covered Tax Agre-
ement, a benefit under the Covered Tax Agreement shall not be granted in
respect of an item of income or capital if it is reasonable to conclude, having
regard to all relevant facts and circumstances, that obtaining that benefit was
one of the principal purposes of any arrangement or transaction that resulted
directly or indirectly in that benefit, unless it is established that granting that
benefit in these circumstances would be in accordance with the object and

101 The final BEPS Action 15 report concluded that the development of a multilateral instrument was
both desirable and feasible. The MLI was negotiated by the non-permanent Ad Hoc Group, which
was not a formal OECD body, but convened under the auspices of the OECD and the G20 and was
served by the OECD secretariat. The Ad Hoc Group was established under a mandate drafted by the
OECD and supported by the G20.
102 OECD (2017), Inclusive Framework on BEPS, Progress Report July 2016–June 2017. Available at: http://
www.oecd.org/tax/beps/inclusive-framework-on-BEPS-progress-report-july-2016-june-2017.pdf
(accessed April 1, 2018).

214
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

purpose of the relevant provisions of the Covered Tax Agreement.”103 None-


theless, neither the burden of proof nor its legal consequences were regulated.
The subject matter is approached in section 2 by comments of the con-
tent of the Principal Purpose Test in the Multilateral Instrument (Action 15)
in the Base Erosion and Profit Shifting (BEPS) Project, section 3 highlights si-
milar features of General Anti-Avoidance Rules (GAARs), section 4 digresses
the Burden of Proof and section 5 deals with the Legal Consequences of the
PPT rule. Finally, closing remarks are delivered in section 6.
The following research question will be analyzed: How will be the effects
of the shifting from the guiding principle to the PPT concerning the burden
of proof and its legal consequences?

2. The Guiding Principle as Tax Treaty


Anti-Avoidance Rules in the Pre-MLI World
and the Principal Purpose Test in the MLI
The goal of this section is to address a brief overview of the guiding prin-
ciple because this rule will remain in place after the entry into force of the me-
asures introduced by the PPT rule. Accordingly, the issue of the delineation
of their respective scope will arise. Also, it is necessary since, according to the
OECD, the PPT rule would merely represent a codification of this principle.
Furthermore, as the guiding principle was not able to work as a general
anti-abuse provision in the OECD Model pre the OECD/G20 BEPS initiative,
the OECD proposal to implement the PPT104 has been strengthened by this
organisation under the new anti-abuse provision. In effect, the conditions for
its application are identical to those features that were designed for applying

103 OECD (2015), Preventing the Granting of Treaty Benefits in Inappropriate Circumstances.
104 When viewed from a policy perspective, it reflects a current legislative trend in international
taxation. In this sense, see Kavelaars, ‘EU and OECD: Fighting against Tax Avoidance’, 41 Intertax
10, p. 512 et seq. (2013), p. 507 et seq.; C. Palao Taboada, ‘OECD Base Erosion and Profit Shifting
Action 6: The General Anti-Abuse Rule’, 69 Bull. Intl. Taxn. 10, pp. 602-603 (2015); Erik Pinetz,
‘Final Report on Action 6 of the OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Initiative: Prevention
of Treaty Abuse’, Bull. Intl. Taxn. Jan/Feb. 2016, p. 115; Andréz Báez Moreno, ‘GAARs and Treaties:
From the Guiding Principle to the Principal Purpose Test. What Have We Gained from BEPS
Action 6?’ in Intertax, volume 45, issue 6 & 7, 2017, p. 435.

215
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

the Guiding Principle inserted in the 2003 Commentaries to the OECD Mo-
del 2003.105 In a nutshell, the OECD concerns the implementation of the PPT
as having little effect on existing tax treaties.106
Even before the Guiding Principle, the beneficial ownership requirement,
which was introduced in 1977 into the dividends,107 interest108 and royalties109
articles, was seen by many states as the initial response to treaty abuse. As hi-
ghlighted by Robert Danon110 “It is contro­versial, of course, whether beneficial
ownership was initially intro­duced in the OECD Model for this purpose and,
respec­tively, whether this requirement is a genuine SAAR or merely a condi-
tion of application of these distributive rules.” This author spells out that the
tax treaty prac­tice of several countries, particularly those jurisdictions which
construe beneficial ownership in a broad economic fashion, relies on benefi-
cial ownership to tackle treaty shopping situations.
However, a broad economic interpretation of beneficial ownership does
not necessarily equate the tax policy of BEPS Action 6, particularly when such
policy is not combined with a principal purpose test as the minimum standard.
In the end, the author111 states that the predominant view is that beneficial ow-

105 Ibid. n. 73.


106 Erik Pinetz, ‘Final Report on Action 6 of the OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Initiative:
Prevention of Treaty Abuse’, Bull. Intl. Taxn., Jan/Feb. 2016, p. 115, states that, “‘Paragraph 7 mirrors
the guidance in paragraphs 9.5, 22, 22.1 and 22.2 of the Commentary on Article 1. According to
that guidance, the benefits of a tax convention should not be available where one of the principal
purposes of certain transactions or arrangements is to secure a benefit under a tax treaty and
obtaining that benefit in these circumstances would be contrary to the object and purpose of the
relevant provisions of the tax convention. Paragraph 7 incorporates the principles underlying these
paragraphs into the Convention itself in order to allow States to address cases of improper use of the
Convention even if their domestic law does not allow them to do so in accordance with paragraphs
22 and 22.1 of the Commentary on Article 1; it also confirms the application of these principles for
States whose domestic law already allows them to address such cases’.’”
107 OECD Income and Capital Model Convention art. 10(2) (11 Apr. 1977), Models IBFD [hereinafter:
OECD Model (1977)].
108 Id., at art. 11(2).
109 Id., at art. 12(1).
110 Robert Danon. Treaty Abuse in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and Impact of the
Principal Purpose Test for MNE Groups. Bulletin for International Taxation January 2018. Section 2.2.
111 Robert Danon. Treaty Abuse in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and Impact of
the Principal Purpose Test for MNE Groups. Bulletin for International Taxation January 2018.
Section 2.2 reiterates: “The outcome of BEPS Action 6 confirms that, in line with the 2014 OECD

216
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nership should have an autonomous112, narrowly and an international fiscal me-


aning as noted, in particular, in the famous Indofood case113. Nonetheless, the
content of this meaning remains, however, heavily debated and controversial,114
with some juris­dictions adopting a rather formal and legal interpreta­tion and
others favouring by con­trast a broader substance-over-form approach.115
All these issues led to the evolution of tax treaty policy to focus on gene-
ral anti-avoidance rules (GAARs), culminating with the insertion of a guiding
principle in the 2003 OECD Commentaries in order to tackle treaty abuse. Ai-
ming this goal, the 2003 OECD Commentary, in paragraph 9.5, provides for
a ‘guiding principle’116 which can be used to determine if abuse exists or does
not exist. Accordingly, abuse arises when: (1) a main purpose for entering into
a transaction or arrangement was to secure a more favorable tax position (sub-
jective element); and (2) obtaining that more favourable tax position would
be contrary to the object and purpose of the relevant tax treaty provisions
(objective element). The guiding principle incorporates a subjective (“a main
purpose”) and objective (“more favourable tax position”) requirements.

Commentaries, beneficial owner­ship must be construed narrowly. That is, the term only excludes
from the scope of treaty benefits persons acting as agents, nominees or, more broadly, those that are
con­strained by a contractual or legal obligation to pass on the payment received to another person.
By contrast, beneficial ownership does not deal with conduit situa­t ions involving merely a factual
or functional connec­t ion between the income received and the item paid out. The current tax treaty
practice of several jurisdictions, however, departs from this formal interpretation and con­strues
beneficial ownership to include those conduit sit­uations involving a mere economic and functional
con­nection between the streams of income. Yet, the need to include an intentional element or
purpose test in the anal­ysis then becomes controversial as this subjective compo­nent is at odds
with the literal meaning of beneficial own­ership. The second problem is that, even if it is construed
broadly, beneficial ownership is not capable of dealing with cases in which a potential abuse stems
from the mere assignment of rights to a resident.”
112 This is the case where the context of art. 3(2) of the OECD Model requires a different interpretation.
113 Indofood International Finance Ltd v. JP Morgan Chase Bank, London branch, 2006, EWCA Civ 158.
114 See a recent general scholarly contribution on the topic in A. Meindl-Ringler, Beneficial Ownership
in International Tax Law (Wolters Kluwer 2016).
115 See recent reviews of national case law in A. Meindl-Ringler, Beneficial Ownership in International
Tax Law (Wolters Kluwer 2016); E. Kemmeren, Preface to Articles 10 to 12, in Ekkehart Reimer &
Alexander Rust, Klaus Vogel on Double Taxation Conventions N 51 et seq. (4th ed., Kluwer Law
International 2015).
116 2003 OECD Comm. Art. 1, para. 9.5; 2015 OECD, Final Report on Treaty Abuse, para. 59
(Commentary in para. 14); 2017 OECD Comm, Art. 1, para. 61.

217
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

The nature and function of the guiding principle under the 2003 OECD
Commentaries is really controversial. There are two main possibilities, first be
considered as a treaty GAAR and second, by contrast, be considered as a general
standard which states are required to comply with when denying treaty benefits
on the basis of a domestic or a treaty GAAR, the latest may flow from the struc-
ture of the 2003 OECD Commentaries to Article 1 of the OECD Model.
Subsequently, the 2014 OECD Commentaries117 provide that: “It is im-
portant to note, however, that it should not be lightly assumed that a taxpayer
is entering into the type of abusive transactions referred to above. A guiding
principle is that the benefits of a double taxation convention should not be
available where a main purpose for entering into certain transactions or ar-
rangements was to secure a more favourable tax position and obtaining that
more favourable treatment in these circumstances would be contrary to the
object and purpose of the relevant provisions.”118 The same spelling was main-
tained in the 2017 OECD Commentaries.119
It should be noted that, in practice, general anti-abuse provisions are not
a common feature of tax treaties.120 The guiding principle was not able to work
as a general anti-abuse provision in the OECD Model pre the OECD/G20
BEPS initiative. The main issue was the remarkably diverse positions adopted
by states regarding the need and convenience for a general anti-abuse provi-
sion included in tax treaties besides the uncertainty surrounding the inter-
relationship between domestic anti-avoidance provisions and anti-avoidance
tax treaties provisions, resulting in an uncoordinated approach on the part
of states. The guidance in the Commentary on Article 1 of the OECD Model
through the guiding principle was an unsuccessful attempt to overcome all
these issues especially inasmuch as the non-binding nature of the Commen-

117 2014 OECD Model Tax Convention on Income and on Capital: Commentary.
118 OECD Model: Commentary on Article 1 para. 9.5 (2014).
119 Commentary; 2017 OECD Model Tax Convention on Income and on Capital: Commentary.
120 S. van Weeghel, General Report, in Tax treaties and tax avoidance: application of anti-avoidance
provisions sec. 3.3. (IFA Cahiers vol. 95A, 2010), Online Books IBFD, highlighted that States are
generally reluctant to insert general anti-abuse provisions into their tax treaties because this
inclusion could be construed as invalidating non-treaty-based approaches to withdrawing treaty
benefits in other tax treaties that lack such explicit provisions.

218
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

taries on the OECD Model and all controversies related to this issue in the
international tax literature.
The OECD proposal to implement the PPT has been strengthened by
this organization under the new anti-abuse provision; in effect, the condi-
tions for its application are identical to those features that were designed for
applying the Guiding Principle inserted in the 2003 Commentaries to the
OECD Model 2003.121 In a nutshell, the OECD concerns the implementation
of the PPT as having little effect on existing tax treaties, understanding that
the implementation of the PPT will not have a high impact, nor will it bring
on significant changes, within the current network of existing treaties.
Whereas the Guiding Principle poses the concept of abusive transactions
upon the circumstances that the benefits of a tax treaty have been made avai-
lable through a transaction in which the “main purpose” is to secure a more
favourable tax position to the taxpayer and obtaining that position would be
contrary to the object and purpose of the relevant provisions,122 the applica-
tion of the PPT relies on the circumstances that obtaining a treaty benefit was
“one of the main purposes” of the transaction that resulted directly or indi-
rectly in that benefit, aside from it’s being established that granting the benefit
in these circumstances would be in accordance with the object and purpose
of the relevant provisions of the Convention.
In this sense, the PPT rule as provided under articles 7(1) of the MLI and
29(9) of the 2017 OECD Model would not merely codify the guiding principle
embodied in paragraph 9.5 of the 2003 Commentary to Article 1123 as already
presented. Furthermore, there are main differences, as the burden of proof124,
scope and its legal consequences. Unlike the guiding principle, the PPT rule

121 Ibid. n. 73.


122 Commentaries to the OECD Model Tax Convention (Art. 1, para. 9.5).
123 OECD Model: Commentary on Article 1 para. 117 (2017). Action 6 Final Report, at 55, OECD
Model: Commentary on Article 29 para. 169 (2017).
124 Regarding burden of proof see M. Lang, BEPS, ‘Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in the Tax
Treaties’, 74, Tax Notes Intl. 7, p. 658 (2014); L. De Broe & J. Luts, ‘BEPS Action 6: Tax Treaty Abuse’,
43 Intertax 137 (2015) on 216; Andréz Báez Moreno, ‘GAARs and Treaties: From the Guiding
Principle to the Principal Purpose Test. What Have We Gained from BEPS Action 6?’ in Intertax,
volume 45, issue 6 & 7, 2017, p. 435; V. Chand, The Interaction of Domestic Anti-Avoidance Rules
with Tax Treaties: with special references to the BEPS project, Schulthess, Tax Policy series, 2018,
pp. 186/202; Danon (2018) section 2.

219
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

applies “notwithstanding the other provisions of this Convention” and comes


into play “unless it is established that grant­ing that benefit in these circums-
tances would be in accor­dance with the object and purpose of the relevant
pro­visions of the Covered Tax Agreement”.
As a result, the guiding principle can be regarded as a treaty GAAR125,
which is supported by the report on BEPS Action 6126 and the 2017 draft OECD
commentary.127 As a consequence, if the relevant tax treaty does not incorpo-
rate the PPT, the guiding principle could be still applied to deny treaty benefits
under the commentaries of the model convention, but only for tax treaties
that have been concluded after January 2003, as it was introduced only in that
year128. Nonetheless, conversely to the OECD’s point of view, one may propose
that the PPT weakens the anti-abuse standard previously defined under the
Guiding Principle.129 Otherwise, in the Guiding Principle, it looks like exist
a balance between discretion and certainty as a consequence of the introduc-
tion of this provision so the burden of proof is not transferred or anticipated
to taxpayers as it will be in the PPT. Therefore, the discretionary power of tax
administration may be limited to provide a reasonable offset between protec-
ting the tax base and safeguarding taxpayers’ rights.
The 2017 updated OECD Commentaries130 now go further equating the gui-
ding principle to the PPT rule in the sense that where the applicable tax treaty
does not contain such a rule, benefits could be directly denied on the basis of the
guiding principle.131 Nonetheless, the introduction of the PPT rule in the text of

125 V. Chand, The Interaction of Domestic Anti-Avoidance Rules with Tax Treaties: with special
references to the BEPS project, Schulthess, Tax Policy series, 2018, pp. 186/202.
126 2015 OECD, Final Report on Treaty Abuse, para. 59 (Commentary in para. 14).
127 2017 OECD Comm (Draft), Art. 1, para. 61; 2017 OECD Comm (Draft), Art. 29, para. 169.
128 In the same sense V. Chand, The Interaction of Domestic Anti-Avoidance Rules with Tax Treaties:
with special references to the BEPS project, Schulthess, Tax Policy series, 2018, pp. 186/202.
129 M. Lang, BEPS, ‘Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in the Tax Treaties’, 74, Tax Notes Intl. 7, p.
659 (2014); L. De Broe & J. Luts, ‘BEPS Action 6: Tax Treaty Abuse’, 43 Intertax 137 (2015) on p. 132;
Andréz Báez Moreno, ‘GAARs and Treaties: From the Guiding Principle to the Principal Purpose
Test. What Have We Gained from BEPS Action 6?’ in Intertax, volume 45, issue 6 & 7, 2017, p. 435; V.
Chand, The Interaction of Domestic Anti-Avoidance Rules with Tax Treaties: with special references
to the BEPS project, Schulthess, Tax Policy series, 2018, pp. 186/202; Danon (2018) section 2.
130 Action 6 Final Report, at 55, OECD Model: Commentary on Article 29 para. 169 (2017).
131 OECD Model: Commentary on Article 1 para. 61 (2017).

220
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

the 2017 OECD Model and in some tax treaties further to the BEPS outcome, the
issue of the status and function of the guiding principle will be less important.

3. Similar Features of General


Anti-Avoidance Rules (GAARs)
This section highlights similar and inherent features of General Anti-
-Avoidance Rules (GAARs) so as to point out the main elements, primary and
secondary, that usually make up the framework of modern counteracting provi-
sions.132 The basic design characteristics or elements that are generally regarded as
necessary for a representative of what may be considered as an effective statutory
GAAR usually share common features such as “scheme, arrangement or transac-
tion,” “tax benefit, gain or advantage,” and the “purpose, motive or intent”133
There is an attempt, when drafting modern GAARs, to eliminate and/or
reduce the discretionary powers of tax authorities by replacing subjective cri-
teria with more objective tests,134 including secondary tests to characterize a

132 Regarding the EU approach, see Paolo Piantavigna, “The Role of the Subjective Element in Tax Abuse
and Aggressive Tax Planning,” World Tax Journal 10 (2018) (accessed March 15, 2018). This author
comments that, “The PPT rule also seems consistent with the language of the ATAD, stating that ‘a
Member State shall ignore an arrangement or a series of arrangements which, having been put into place
for the main purpose or one of the main purposes of obtaining a tax advantage that defeats the object or
purpose of the applicable tax law, are not genuine having regard to all relevant facts and circumstances’
(emphasis added),[119] and is also consistent with the GAAR inserted into the EU Parent-Subsidiary
Directive (PSD) of 23 July 1990, which was recast in 2011 and revised in July 2014 and January 2015.[…]
An anti-avoidance provision is also contained in the original text of the EU Merger Directive,[123][…]
In the EU Interest and Royalties Directive, the use of the word ‘motive’ is interesting:[…]”
133 See this taxonomy in Marcus Livio Gomes, “Implementation in Practice of the Principal
Purpose Test in the Multilateral Convention,” Intertax 46, nº 1 (2018): 45-57; Marcus L. Gomes,
“International Taxation and the Challenges for Multilateralism in the Context of the OECD
Multilateral Instrument,” Bulletin for International Taxation 72, no. 2 (2018); Cahiers de droit fiscal
international, Studies on International Fiscal Law by the International Fiscal Association, Volume
103a, Anti-avoidance measures of general nature and scope - GAAR and other rules General,
Reporters Paulo Rosenblatt (Brazil) and Manuel E. Tron (Mexico)(2018), p. 11. Others authors have
used similar features: Krever (2016) and Nabil Orow, General Anti-avoidance Rules: A Comparative
International Analysis (Bristol: Jordan, 2000), xxix-xxxix. Nabil Orow, “Structured Finance and the
Operation of General Anti Avoidance Rules,” British Tax Review (2004): 410-435.
134 Dominic de Cogan, “Tax, Discretion and the Rule of Law,” in The Delicate Balance: Tax, Discretion
and the Rule of Law, eds. Chris Evans, Judith Freedman and Richard Krever (Amsterdam:
International Bureau of Fiscal Documentation, 2011), 9-10.

221
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

scheme, arrangement or transaction as tax avoidance135, inasmuch as they are


not essential and have a circumstantial or ancillary nature, albeit important,
for the operation of anti-avoidance rules and doctrines. These secondary tests
can derive from civil law concepts, such as “fraud of law, abuse of law136 and
abuse of rights,” or from common law concepts, such as “substance over form,
step transaction and business purpose” and can produce different results and
comparable or incomparable conclusions.137 It should be noted that many of
such tests were initially developed by judicial doctrines138 and later changed
to a statutory provision or otherwise disapproved by the judiciary in a reading
down or bottom-up judicial doctrine or overruled by the legislature.
In this research, secondary elements may be grouped in three main non-
-exhaustive categories for comparative purposes: (1) the first grounded on the
“rationale, reasonableness or appropriateness” for justifying the rational use of
indefinite concepts; (2) the second related to tests intended to explain a tran-
saction or an arrangement by associating form and motive, such as “business
purpose, non-tax purpose and bona fide purpose”; and, finally, (3) the third tests
based on the result of the transaction or arrangement in relation to the apparent
policy of the legislation, such as “parliamentary intention (purposive interpreta-
tion)” or, for instance, “abuse of law and fraud of law” in civil law jurisdictions.
It is important to highlight that there is no a hierarchy between primary
and secondary elements. There are two main features to highlight and diffe-
rentiate these two categories, first, primary elements are the most common
features of the GAARS, and second, secondary elements are used in the new
GAARS, as the PPT, as second specialized level of control of the tax avoi-

135 Philip Gillett, “The Consultative Document on a General Anti-avoidance Rule for Direct Taxes: A
View from Business,” British Tax Review 1 (1999): 1-5.
136 Frederik Zimmer, “IFA General Report: Form and Substance in Tax Law,” in Cahiers de Droit Fiscal
International 87A (International Fiscal Association) (2002): 42. David Nelken, “Using the Concept
of Legal Cultures,” Australian Journal of Legal Philosophy 29 (2004): 1-3. Available at: http://www.
austlii.edu.au/au/journals/AUJlLegPhil/2004/11.pdf (accessed April 3, 2018). Livingston (2005),
121-122. Garbarino (2010), 765-790.
137 Malcolm Gammie, “The Judicial Approach to Avoidance: Some Reflections on BMBF and SPI,” in
Comparative Perspectives on Revenue Law: Essays in Honour of John Tiley, eds. John Avery Jones, Peter
Harris and David Oliver (Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2008), 25-39.
138 Jinyan Li, “Economic Substance”: Drawing the Line Between Legitimate Tax Minimization and
Abusive Tax Avoidance (2006) 54 Can. Tax. J. 1, 32-33. Brian Arnold, “Too Long, Slow, Steady
Demise of the General Anti-avoidance Rule,” Canadian Tax Law 52, no. 2 (2004): 504.

222
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dance, shifting more power to tax authorities to investigate the result of the
scheme, arrangement or transaction. Considering that the primary elements
are not enough to provide a clear distinction between legitimate tax avoidan-
ce and aggressive tax planning, other secondary or ancillary elements such
as artificiality, contrivance, form and substance, economic substance, misuse
and abuse of right will all have to come into play. They are not essential and
have a circumstantial or ancillary nature, albeit important, for the operation
of anti-avoidance rules and doctrines.
This said the validity of these related concepts will be analyzed, seeking
to find workable standards for the burden of proof and the legal consequence
of its application.

4. Burden of Proof
This section focuses on procedural issues regarding the burden of proof
because commentators have controverted concerning which was established
by the PPT.139 One may say that the burden of proof of the PPT is unbalanced
and unreasonable140 in comparison to the guiding principle.141 Even though
the tax authorities will be required to undertake an objective analysis of the

139 See for whom the PPT has shift the burden of proof in favour tax authorities: E. Pinetz, Final Report
on Action 6 of the OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Initiative: Prevention of Treaty Abuse, 70
Bulletin for International Taxation 1/2, pp. 115–120 (2016); O. Koriak, The Principal Purpose Test
under BEPS Action 6: Is the OECD Proposal Compliant with EU Law?, 56 European Taxation 12, p.
557, (2016); Ch. Bergedahl, Anti-Abuse Measures in Tax Treaties Following the OECD Multilateral
Instrument – Part 1, 72 Bulletin for International Taxation 2, Published online: 9 January 2018,
section 3.2.1.3; R. Danon,  Treaty Abuse in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and
Impact of the Principal Purpose Test for MNE Groups, 72 Bulletin for International Taxation 1,
2018, Published online: 28 December 2017, section. 4.1. See for whom the PPT has not changed the
standard of reasonability and the burden of proof falls only at the beginning with the tax authorities:
Blazej Kuzniacki. Untangling the PPT’s burden of proof. http://kluwertaxblog.com/2018/01/22/
untangling-ppts-burden-proof/ accessed 01/03/2018; C. Palao Taboada, OECD Base Erosion and
Profit Shifting Action 6: The General Anti-Abuse Rule, 69 Bulletin for International Taxation 10,
p. 604–605 (2015); D. Weber, The Reasonableness Test of the Principal Purpose Test Rule in OECD
BEPS Action 6 (Tax Treaty Abuse) versus the EU Principle of Legal Certainty and the EU Abuse of
Law Case Law, 10 Erasmus Law Review 48, p. 51 (2017).
140 Chand The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis, 2018, p.
18. De Broe & Luts, BEPS, at 132; De Broe, EU Law, at 216; Lang, PPT rule, at 660.
141 Chand The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis, 2018, p.
18. De Broe & Luts, BEPS, at 132.

223
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

facts of the transaction, they only have to ‘reasonably’ conclude that the sub-
jective element is satisfied.142 This threshold seems to be low in comparison
to the burden assumed by the taxpayer wherein it is required to ‘establish’
convincingly that granting the benefit is in accordance with the object and
purpose of the relevant provisions of the tax treaty (objective element).143
Lang144 has claimed that tax authority must just furnish proof that one of
the main objectives of the taxpayer was to obtain the benefit, but alternative-
ly, “the taxpayer has no chance of fending off the accusation of abuse if it is up to
him to furnish evidence that benefiting from one or several treaty provisions was
not one of his primary motives”. De Broe and Luts145 follow the same path to say
that “Under the previous ‘guiding principle’, it was common ground that the
tax authorities of the State desiring to refuse treaty benefits carry the burden
of proving that both the subjective and objective element of abuse are fulfilled.
[(…)] Under the proposed PPT, the tax authorities are still obliged to ‘prove’ the
presence of the subjective element, but only this. [(…)] Rather, it suffices that
‘it is reasonable to conclude’ that such motives were present.” Chand146 is more
emphatic to say: “There is no doubt that the burden of proof of the PPT is unba-
lanced and unreasonable147 in comparison to the guiding principle.148

142 Chand The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis, 2018, p.
18. De Broe & Luts, BEPS, at 132; Lang, PPT rule, at 659.
143 2015 OECD, Final Report on Treaty Abuse, para. 26 (Commentary in para. 2); 2017 OECD Comm
(Draft), Art. 29, para. 170.
144 See M. Lang, BEPS Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in Tax Treaties, Tax Notes International,
May 19, pp. 658–659 (2014).
145 See De Broe & Luts (2015), pp. 132.
146 Vikram Chand. The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis.
Intertax 2018 vol. 46. Issue 1. Section 2.
147 De Broe & Luts (2015), BEPS, at 132; De Broe, EU Law, at 216; Lang, PPT rule, at 660; Vikram
Chand. The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis. Intertax
2018 vol. 46. Issue 1. Section 2.
148 Regarding the guiding principle, in the author’s point of view tax authorities assume the burden of proof.
In this sense, they have to prove that the transaction undertaken by the taxpayer satisfies the subjective
and objective elements. De Broe & Luts (2015), at 132; Vikram Chand. The Principal Purpose Test in the
Multilateral Convention: An in-depth Analysis. Intertax 2018 vol. 46. Issue 1. Section 2.

224
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Blazej Kuzniacki149 highlighted issues to be considered in this analy-


sis, i.e., the critics did not conceptualise “burden of proof” under the PPT,
nor acknowledge different approaches to procedural aspects of the burden of
proof in tax cases in various countries. Moreover, in this author’s point of
view, neither distinguish between the nature of the first nor the second ele-
ment of the PPT as subjective and objective approaches. Broadly speaking, the
literature on the burden of proof in tax law generally states that a burden is a
question of law while a proof relates to facts.150
The issue is whether the PPT will effectively shift the burden of proof from
tax authorities to taxpayers or will be relied on the same weight under the Gui-
ding Principle.151 One may say that questions of proof are related to the relevant
facts and circumstances upon which the consideration of one of the principal
purposes of the taxpayer’s arrangement or transaction shall be based (the first
element of the PPT). Therefore, the burden of proof is split between the tax au-
thorities and the taxpayers, the former must make the first move by gathering
and demonstrating evidence that one of the principal purposes of the taxpayer’s
arrangement or transaction was to obtain a treaty benefit; the later must then
counter this by gathering and demonstrating evidence to show the opposite sta-
te of affairs (e.g. the existence of commercial core activity). Therefore, if there is
no proof that one of the principal purposes was to obtain treaty benefits, tax-
payers will not need to defend themselves, and the PPT will not apply.152
Concerning questions of burden (i.e. questions of law), Blazej Kuzniacki
states that “they appear to be pertinent to the consideration of the compatibility
of the taxpayer’s arrangement or transaction with the purpose of relevant treaty
provisions (the second part of the PPT, which includes the negative condition
of the PPT).” For this author, this functions as a protective rule in the sense
that when it is reasonably concluded that one of the principal purposes of the

149 Blazej Kuzniacki. Untangling the PPT’s burden of proof. accessed http://kluwertaxblog.
com/2018/01/22/untangling-ppts-burden-proof/ accessed 01/03/2018.
150 See G. Marino, The Burden of Proof in Cross Border Situations in The Burden of Proof in Tax Law,
G. Meussen (ed.), IBFD (2013). section 4.1.
151 Para. 61 of the Commentary on Art. 1 of the 2017 OECD Model Convention, before para. 9.5 of the
Commentary on Art. 1 of the OECD Model Conventions as released in 2014, 2010, and 2003.
152 B. Kuź niacki, The Principal Purpose Test (PPT) in BEPS Action 6 and the MLI: Exploring Challenges
Arising from Its Legal Implementation and Practical Application, 10 World Tax J. (2018), World Tax
Journal IBFD (accessed 12 March 2018), p. 9.

225
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

taxpayer’s scheme, arrangement or transaction was to obtain a gain, benefit or


advantage, the taxpayer has the burden of argument (which is a question of law)
that obtaining this benefit was in accordance with the object and purpose of the
relevant treaty provisions, the objective or secondary element of the PPT.
The claims in favour the bias of the burden of proof of the PPT to tax autho-
rities rely on the hypothesis that would be easier to prove that “if it is reasonable
to conclude, having regard to all relevant facts and circumstances, that obtaining
that benefit was one of the principal purposes of any arrangement or transaction
that resulted directly or indirectly in that benefit” than “unless it is established
that granting that benefit in these circumstances would be in accordance with the
object and purpose of the relevant provisions of this Convention”.
In the author’s point of view, even considering “all relevant facts and circu-
mstances” based on the primary element or subjective test “that obtaining that
benefit was one of the principal purposes of any arrangement or transaction
that resulted directly or indirectly in that benefit” and under the distinguishing
requirements or secondary elements (objective tests), specifically the “rationale”
of the scheme, transaction or arrangement, test grounded on the “reasonable-
ness” and the “purpose of the legislation”, test grounded on the “parliamenta-
ry intention”, “underlined policy of a provision” or “purposive interpretation”,
the burden of proof may effectively be shifted onto taxpayers under the distin-
guishing requirements or secondary elements of GAARs which could undo the
balance between tax authorities and taxpayers in favour of the former.
Conversely, in the guiding principle, the threshold is not so narrow re-
quiring the tax authorities to prove whether the transaction or arrangement
aims to obtain treaty benefits and determine that this is contrary to the pur-
pose of the relevant treaty provision. As a result, tax authorities of the State
desiring to refuse treaty benefits carry the burden of proving that both the
subjective and objective element of abuse are fulfilled.153 Only if both require-
ments are met, they may proceed to deny a benefit under the tax treaty provi-
sion, while a taxpayer may try to stop this denial by proving otherwise.

153 See L. De Broe, International Tax Planning and Prevention of Abuse, Amsterdam, IBFD, 2008, 394.
This author highlighted: “The ECJ also consistently requires that the tax authorities carry the burden
of proving the alleged abuse (and a fortiori the two elements thereof”; B.J. Arnold, ‘Tax Treaties and
Tax Avoidance: The 2003 Revisions to the Commentary to the OECD Model’, BIT 2004, 247.

226
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Under the PPT, in contrast, it is enough to tax authorities just prove that
tax benefit exists and the subjective element or that one of the principal pur-
poses of the transaction or arrangement of the taxpayer was to obtain treaty
benefits to proceed to deny this advantage. The way to deny treaty benefits
appears to be shorter and easier under the PPT in comparison to the gui-
ding principle since a lower threshold was set in the sense that it is just requi-
red to establish beyond reasonable doubt (reasonable to conclude)154. On the
other hand, taxpayers will have to establish the benefit in these circumstances
would be in accordance with the object and purpose of the relevant provisions
of the particular treaty.155
The issue is if this framework does change the finding that both elements of
the PPT matter equally to denials of treaty benefits. It means that the burden of
proof will have to be shared between tax authorities at the beginning regarding
the subjective element and then to taxpayers in the second moment regarding
the objective element by gathering and demonstrating evidence to the existence
of core commercial activity driven preponderantly by non-tax purposes.
Nonetheless, it is unlikely that the tax authorities will not try to deny
treaty benefits by taking into account the second element of the PPT at the
concluding stage of their first element consideration, even though the wording
of the PPT does not require them to do so, which would also be supported

154 De Broe & Luts (2015), BEPS, at 132; M. Lang, BEPS Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in Tax Treaties,
Tax Notes International, May 19, pp. 658–659 (2014), at 659; Vikram Chand. The Principal Purpose Test in
the Multilateral Convention: An in-depth Analysis. Intertax 2018 vol. 46. Issue 1. Section 2.
155 Vikram Chand. The Principal Purpose Test in the Multilateral Convention: An in-depth Analysis.
Intertax 2018 vol. 46. Issue 1. Section 2 recommends to see the approach of the Canadian Supreme
Court to interpret the Canadian GAAR in Canada Trust Co Mortgage Co v. Canada, 2005 SCC
54, 19 Oct. 2005, para. 30 to propose: “If the case goes for litigation before the Courts, as a starting
point the tax authorities will have to prove that a tax benefit exists and a principal purpose of
the transaction/ arrangement was to obtain that benefit. The taxpayer should then be given an
opportunity to refute or challenge the tax authorities claims by disputing the existence of a benefit
or showing that the transaction was driven by non-tax purposes. When the Court reasonably
concludes that the benefit is available and the subjective element is satisfied, the taxpayer should
be given the opportunity to demonstrate that he acts in accordance with the objective element (see
section 3.5). The tax authorities should then be given an opportunity to refute or challenge the
taxpayer’s claims. In the end, based on an objective analysis of the facts, the Court will have to
decide whether or not the transaction/arrangement satisfied the PPT. If the existence of ‘abuse’, ‘tax
avoidance’ or ‘artificial nature of the arrangement’ is not clear to the Court, then the benefit of the
doubt, in the author’s opinion, shall go to the taxpayer”.

227
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

by article 31(1) of the VCLT (1969).156 In this sense, one may say that only the
second part of the PPT will actually matter otherwise would not gain much
legal and pragmatic importance.157
Even if we consider that there will be a kind of unbalance, modern GAARs
seems to allow the burden to be switched, at least in the first moment, from tax
authorities to taxpayers.158 Otherwise, the subjective criterion would run the risk
of not gaining any significance in itself. The issue is devolving the first element on
the tax authorities and the second on the taxpayers does not change the finding
that both elements of the PPT matter equally to denials of treaty benefits?
Danon159 pointed out that “the examples provided in the 2017 updated
OECD Com­mentaries give nuance to the literal wording of the PPT rule and
suggest that (i) “one of the principal purposes” is less far-reaching, and (ii) the
rule is substance oriented. Therefore, treaty benefits are generally not denied
where genuine business activities are taking place. This conclu­sion is suppor-
ted by several passages of the 2017 updated OECD Commentaries.” In this
sense, it is fair to say that there is a divergence between the wording of the PPT
rule and the examples illustrating its application in the OECD Commentaries.
Even though the literal wording of the PPT suggests that the rule could be
given a broad meaning and could possibly impact transactions or arrangements
pursuing a core commercial activity, the 2017 updated OECD Commentaries
to the PPT rule clarify that the PPT rule is, in essence, a business reality test fo-
cusing on substance and “inextricably linked to a core commercial activity”.160
In the author’s point of view, the PPT was deliberated drafted with a nar-
row threshold in order to proposedly change the burden of proof, at least in the

156 B. Kuźniacki, The Principal Purpose Test (PPT) in BEPS Action 6 and the MLI: Exploring Challenges
Arising from Its Legal Implementation and Practical Application, 10 World Tax J. (2018), World Tax
Journal IBFD (accessed 12 March 2018), p. 10.
157 M. Lang, BEPS Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in Tax Treaties, Tax Notes International,
pp. 655-664 (2014)), who was followed by L. De Broe & J. Luts, BEPS Action 6: Tax Treaty Abuse, 43
Intertax 2, p. 131/134 (2015).
158 See K-D. Drüen & D. Drissen, Burden of Proof and Anti-Abuse Provisions in The Burden of Proof
in Tax Law, G. Meussen (ed.), IBFD (2013), section 2.1.1; See Leidhammer, section 1.1.
159 R. Danon, Treaty Abuse in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and Impact of the
Principal Purpose Test for MNE Groups, 72 Bulletin for International Taxation 1, 2018, Published
online: 28 December 2017, section 4.1.
160 Action 6 Final Report, at p. 58, OECD Model: Commentary on Article 29 para. 181 (2017).

228
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

beginning, as it was established in the guiding principle. Nonetheless, it is ques-


tionable whether the “reasonability” standard implies a lesser burden of proof
on the part of the tax authorities. Doubts in this regard should, nevertheless,
be dispelled, as the burden of proof in the PPT must undoubtedly ultimately
be balanced on the tax authorities161 and taxpayers equally, but it will never be
the same as the guiding principle approach. As a consequence, de lege ferenda
approaches in order to approximate the way the PPT functions like a guiding
principle, for instance reading the word “unless” as it was “and”, cannot be ap-
plied. This is because this reading would not only switch the entire burden of
proof initially to the tax authorities but also explicitly require them to take into
account the purpose of relevant treaty provisions from the very beginning.
It has to be seen whether scholars have exacerbated the criticism concer-
ning the burden of proof under the PPT. As highlighted by Palao Taboada, it
rather seems the overall disapprobation of the scholars towards a tax treaty
GAAR construed as the PPT.162

5. The legal consequences of the PPT rule


The denial of the tax benefits or tax advantages derived from the abused
provisions is the most common consequence of GAARs. Nonetheless, once
this consequence has been established, arises the question to adequate the tax
treatment of the scheme, arrangement or transaction designed to obtain the
refused gain, benefit or advantage, for instance, a 15% residual tax treaty rate
instead of a 0% residual rate in a rule shopping163 situation may automatically
be claimed. It is because the PPT provision simply states that tax treaty bene-
fits “shall not be granted”, suggesting prima facie that a return to the “status

161 Conversely, Carlos Palao Taboada (2015), section 2.2. Remarks that the burden of proof ultimately
fall on the tax authorities: “Doubts in this regard should, nevertheless, be dispelled, as the burden of
proof must undoubtedly ultimately fall on the tax authorities.”
162 Cf. comments of Taboada on Lang’s criticism regarding the PPT in Taboada, supra n.4, pp. 606–608 (2015).
163 L. De Broe, Tax Treaty and EU Law aspects of the LOB and PPT provision proposed by BEPS action
6, in Institute of Tax Law 203-204 (Kluwer/Schulthess 2017), p. 217; Lang, at 659.

229
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

quo” is not possible164, which seems to be confirmed by the MLI since this ins-
trument includes an optional clause as a discretionary relief in the art. 7.4.165
Regarding domestic approach, comparative law demonstrates that also the
intended that tax benefits will not be granted, the question of the consequences
of GAAR are either ignored or dealt with by granting the tax authorities ample
discretional powers to determine such consequences. Generally speaking, these
questions are dealt with, more or less precisely, in GAARs whose consequence is
identified with the reconstruction of an appropriate and not abusive fictive fact
pattern, being classified as GAARs with unlimited/expanded effects.166
The Canadian GAAR167 provides that the tax consequences of denying a
benefit that would result, but for the rule, directly or indirectly, from an avoi-
dance transaction should be determined according to what is reasonable in the
circumstances. This law grants the tax authorities ample power to allow or di-
sallow deductions or exemptions, to allocate these to any person, to recharac-
terize payments or amounts, or to ignore the tax effects that would otherwise
result from the application of other provisions of the Canadian Income Tax Act.

164 R. Danon, Treaty Abuse in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and Impact of the
Principal Purpose Test for MNE Groups, 72 Bulletin for International Taxation 1, 2018, Published
online: 28 December 2017, p. 50.
165 http://www.oecd.org/tax/treaties/multilateral-convention-to-implement-tax-treaty-related-
measures-to-prevent-BEPS.pdf Article 7. 4. Where a benefit under a Covered Tax Agreement is
denied to a person under provisions of the Covered Tax Agreement (as it may be modified by this
Convention) that deny all or part of the benefits that would otherwise be provided under the Covered
Tax Agreement where the principal purpose or one of the principal purposes of any arrangement
or transaction, or of any person concerned with an arrangement or transaction, was to obtain those
benefits, the competent authority of the Contracting Jurisdiction that would otherwise have granted
this benefit shall nevertheless treat that person as being entitled to this benefit, or to different benefits
with respect to a specific item of income or capital, if such competent authority, upon request from
that person and after consideration of the relevant facts and circumstances, determines that such
benefits would have been granted to that person in the absence of the transaction or arrangement.
The competent authority of the Contracting Jurisdiction to which a request has been made under
this paragraph by a resident of the other Contracting Jurisdiction shall consult with the competent
authority of that other Contracting Jurisdiction before rejecting the request.
166 Andres Moreno, section 4.2.
167 Canadian General Anti-Avoidance Rule, Section 245 of the Income Tax Act (IC88-2 October 21, 1988)
Subsection 245(2) states that where a transaction is an avoidance transaction, the tax consequences to
a person shall be determined as is reasonable in the circumstances in order to deny a tax benefit that
would result from that transaction or from a series of transactions that includes that transaction.

230
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

In the UK GAAR Section 209 (“Counteracting the tax advantages”) of


the UK Finance Act (2013) establishes, inter alia, that: [t]he adjustments re-
quired to be made to counteract the tax advantages are such as are just and
reasonable, [that] [t]he adjustments may be made in respect of the tax in ques-
tion or any other tax to which the general anti-abuse rule applies [and that
these include] those that impose or increase a liability to tax in any case where
(ignoring this Part) there would be no liability or a smaller liability, and tax is
to be charged in accordance to such adjustment. Section 210 of the UK Finan-
ce Act (2013) also envisages “consequential relieving adjustments... as are just
and reasonable”, which may be made in respect of any period and which may
affect any person, whether or not a party to the tax arrangements, but cannot
increase a person’s liability to tax. As we can see, both provisions are based on
the reasonableness test, shifting power to tax authorities.
Regarding EU Law perspective, a similar question comes into play con-
cerning the GAAR clauses of the Parent-Subsidiary and ATAD Directives.168
These clauses do not expressly deal with the consequences stemming from
the existence of an abuse. For this reason, it has been correctly argued that a
return to the status quo would be the most desirable interpretation in light of
the case law of the ECJ.

168 Art. 1 PSD Directive 2015 amending art. 1 (2); similarly, art. 6 ATAD 2016. R. Danon, Treaty Abuse
in the Post-BEPS World: Analysis of the Policy Shift and Impact of the Principal Purpose Test for
MNE Groups, 72 Bulletin for International Taxation 1, 2018, Published online: 28 December 2017, p.
52, argues that: “For example, in the Halifax case, the ECJ held that “[i]t must also be borne in mind
that a finding of abusive practice must not lead to a penalty, for which a clear and unambiguous
legal basis would be necessary”223 and “it follows that transactions involved in an abusive practice
must be redefined so as to re-establish the situation that would have prevailed in the absence of
the transactions constituting that abusive practice”.224 This reasoning was again reaffirmed in the
Cussens case recently decided by the ECJ.225 The interpretation advocated by this study, therefore,
is the most compatible with EU law.”

231
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

In the PPT this silence was criticized169 inasmuch as neither this pro-
vision itself nor the Explanatory Statement170 and neither Commentary171 on
the Model Convention offers any guideline whether treaty benefits that would
otherwise have been granted in the absence of the questionable transaction or
arrangement172 may automatically be claimed. The PPT just stated that, when
it applies, treaty benefits “shall not be granted”173 suggesting that another fa-
vourable position would not have been granted, being able to be classified
as a GAAR with limited effects. This simple setting hides considerable legal
problems which are familiar to all GAARs.174
As observed by De Broe & Lutz175 many issues will arise: “Will a taxpayer
be denied only some or all treaty benefits? When the treaty abuse relates to the
characterisation of the taxable object (e.g., conversion of a dividend to a capital
gain), will the taxpayer still be able to enjoy treaty benefits related to the cha-
racterisation deemed ‘non-abusive’ (dividend)? When the treaty abuse concerns
the interposition of a person (treaty shopping), will the ultimate taxpayer still
be protected under the treaty of his Residence State with the source State, if any?
Moreover, how does the application of the PPT by the source State affect the
treaty obligations of the Residence State to give relief for double taxation under

169 Danon 4.7; Lang, at 661; De Broe & Luts, 2015 at 133–134; Another issue is highlighted by
Palao Taboada, section 2.4: “One relevant question that is not addressed by the PTT rule or its
commentary is the effect in the residence state of the application of the PTT rule by the source
state. If, for example, on the basis of the PPT rule, the source state recharacterizes a payment as
interest instead of dividends, thereby increasing its withholding tax powers, should the residence
state credit the higher amount withheld? The residence state should do so if it considers that the
PPT rule was correctly applied by the source state. But what if the residence state disagrees with
the application of the PTT rule? In this case, the dispute, which refers to the interpretation of the
PPT rule, could only be resolved through a mutual agreement procedure (MAP). This is similar to
a discrepancy concerning the corresponding adjustment of profits of associated enterprises ((Art.
9(2) OECD Model (2014) and para. 11 OECD Model: Commentary on Article 9 (2014)) or to a
conflict of qualification ((Para. 32.5 OECD Model: Commentary on Articles 23A and 23B (2014)).
170 http://www.oecd.org/tax/treaties/explanatory-statement-multilateral-convention-to-implement-
tax-treaty-related-measures-to-prevent-BEPS.pdf accessed 10 Octuber 2018.
171 Commentaries OECD Tax Model.
172 See De Broe, at p. 217; Lang, at 659. For example, a 15% residual tax treaty rate instead of a 0%
residual rate in a rule shopping situation.
173 Action 6 Final Report, at p. 58, OECD Model: Commentary on Article 29 para. 181 (2017).
174 The fact that this problem is general to all GAARs has been recognized by Lang, at 663.
175 De Broe & Lutz. 2015 section 2.2.3

232
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Article 23 OECD MC?”.176 Andres Moreno177 observes similar issues: “Should


the abusive fact pattern construed by the taxpayer, be replaced by a different
(not abusive) fictive fact pattern? Also, if this is the case, according to what pa-
rameters should that new fact pattern be elaborated? What if the obtained result
could be achieved by means of different (not abusive) fact patterns?”
Authors diverge concerning the best way to deal with this issue. Palao Ta-
boada emphasises that: “The application of a GAAR, whether internal or inter-
national, demands the reconfiguration of the tax treatment of the arrangement
on the basis of the situation that corresponds to its economic substance” or put
another way, according to an appropriate, not abusive, fictive fact pattern.”
Andres Moreno disagree with this proposal since “implies the interpre-
tation of a GAAR with limited effects (as the PPT) according to the parame-
ters of a GAAR with unlimited/expanded effects” to propose that “there is no
such thing as a ‘natural’ configuration of GAARs, particularly as regards its
legal consequences” even it is true that domestic GAARs worldwide follow
prevalently an unlimited/expanded effects approach.178 In the end, Andres
Moreno highlights that the PPT is deliberated designed to be a GAAR with
limited effects because of the possibility of the inclusion of the “discretionary
relief clause” in the art. 7.4 as an option to the parties of the MLI, making the
PPT, in this case, closer to those of a GAAR with unlimited effects.
Problems may arise considering that the corrective interpretation tries to
be built upon the general object and purpose of tax treaties, the secondary ele-
ment of GAARs regarding the taxonomy used in this paper in section 3. GAARs
with limited effects works with the removal of treaty benefits in the source State,
might leading to double taxation and therefore being contrary to the objective
of tax treaties to prevent double taxation.179 In the end, a GAAR with limited

176 See also M. Lang, ‘BEPS Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in Tax Treaties’, TNI 2014, 661–663.
177 Andres Moreno, section 4.2.
178 Andres Moreno, section 4.2, states that “This issue was not clear in older comparative studies
on domestic GAARS: F. Zimmer, General Report, in IFA Cahiers 2002 – Volume 87 A. Form
and Substance in Tax Law 50– 54 (IFA 2002). In the conference General Anti-Avoidance Rules
(GAARs) – A Key Element of Tax Systems in the Post-BEPS Tax World? celebrated in Rust (Austria)
in 2014 most of the national reporters described their respective domestic GAARs as unlimited or
expanded in their legal effects.”
179 As highlighted by Andres Moreno: “This might be the case if the treaty is not applied by the source
State, refusing therefore, not only the application of the distributive rule pretended by the taxpayer,

233
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

effects might generate additional tax burdens for those taxpayers involved in
abusive schemes180 what Lang calls as “penalising effects” of the PPT.181
Danon remarks that under the mechanism of the “discretionary relief
clause” the question of whether alternative treaty benefits should be gran-
ted is left to the discretion of the competent authority to which the request is
made182, which would be supported by 2017 updated OECD Commentaries183
It suggests a reconstruction based on “economic substance” as proposed in

but also any other distributive rule that could be applicable. In order for this double taxation to
be generated, it is also necessary that the Residence State refuses to credit or exempt the tax paid
in the Source State. It is likely that the Residence State would refuse to apply Article 23 by either
maintaining that the PPT was not properly applied by the Source State or defending that the PPT
might also be applicable by the Residence State.”
180 Andres Moreno exemplifies: “A GAAR with limited effects might generate additional tax burdens
for those taxpayers involved in abusive schemes. The non-correction of double taxation, as
explained above, puts these taxpayers at a disadvantage in relation to those other taxpayers that
did not arrange their transactions in an abusive manner. This may be better understood with a
simple example, already mentioned in this article: A, resident in State A, owns shares of Company
B, resident in State B. A can sell the shares free of capital gains tax and it sells the shares to C,
resident in the State B, some days before the distribution of dividends. Just after the distribution
of dividends, A buys the shares back for a price set in advance which considers the value of the
dividend distributed. If the Tax Authorities of State B react to these arrangements applying the PPT,
the benefits of the treaty (exemption for capital gains according to Article 13(5) of the OECD Model)
would be denied. According to the limited effects of the PPT, the benefits of the treaty (withholding
tax limits according to Article 10 (2) of the OECD Model) will not be applied and the dividends will
be taxed according to the domestic withholding tax rates for dividends in B; additionally, it would
be rather unlikely that State A corrects double taxation applying Article 23 of the treaty. However, if
A had been paid the dividends directly by B, Article 10(2) of the treaty between A and B would have
been applicable and A would have eliminated double taxation applying Article 23.
181 M. Lang, BEPS Action 6: Introducing an Antiabuse Rule in Tax Treaties, 655 Tax Notes Int’l 658–
661 (2014), at 662.
182 Danon section 4.7.2; Action 6 Final Report, at 19, 64-65; OECD Model: Commentary on Article 29
para. 185 (2017).
183 Action 6 Final Report, at 19, 64-65; OECD Model Commentary on Article 29 para. 185 (2017): “The
provision does require, however, that the competent authority must consider the relevant facts and
circumstances before reaching a decision and must consult the competent authority of the other
Contracting State before rejecting a request to grant benefits if that request was made by a resident
of that other State. The first requirement seeks to ensure that the competent authority will consider
each request on its own merits whilst the requirement that the competent authority of the other
Contracting State be consulted if the request is made by a resident of that other State should ensure
that Contracting States treat similar cases in a consistent manner and can justify their decision
on the basis of the facts and circumstances of the particular case. This consultation process does
not, however, require that the competent authority to which the request was presented obtain the
agreement of the competent authority that is consulted.

234
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

the European Commission’s Recommendation, and not in the form in which


it was construed for avoidance purposes.184
One may say that it may be inferred that where such an optional mecha-
nism is not included into the applicable tax treaty, the state of source is not allo-
wed to grant treaty benefits on the basis of a recharacterized fact pattern as this
would be against the literal wording of the PPT rule (“shall not be granted”).185

184 Danon exemplifies: “The application of this rule is illustrated through a classical rule shopping
situation. An individual who is a resident of state R and who owns shares in a company resident in
state S assigns the right to receive dividends declared by that company to another company resident
in state R which owns more than 10% of the capital of the paying company for the principal purpose
of obtaining the reduced rate of source taxation provided for in article 10(2)(a). In such a case,
if it is determined that the benefit of article 10(2)(a) should be denied pursuant to the PPT rule,
this discretionary relief mechanism would then allow the competent authority of state S to grant
the benefit of the reduced rate of 15% provided under article 10(2)(b) if that competent authority
determined that such benefit would have been granted in the absence of the assignment to another
company of the right to receive dividends.217 From a policy perspective, this conclusion is obviously
correct. However, this interpretation does not flow clearly from the text of article 7(4) of the MLI.
The wording of this provision indeed suggests that the person to whom alternative treaty benefits
may be granted (“treat that person…would have been granted to that person”) should be the same
as the one to whom the treaty benefits claimed are denied pursuant to the PPT rule (“denied to a
person”). However, as shown by the foregoing example, and where a recharacterization takes place,
alternative treaty benefits are often granted by reference to another taxpayer (i.e. typically to the
initial owner of the shares in an abusive restructuring). For these reasons, as will be suggested, a
rule not referring to a specific taxpayer would have been preferable.”
185 Moreno, at 440 et seq. Danon refuses this point of view to say: “…this position may not be supported
for several reasons. First of all, the expression “shall not be granted” must be read in relation to
the “principal purposes of any arrangement or transaction that resulted directly or indirectly in
that benefit”. Where, however, treaty benefits are granted on the basis of a recharacterized fact
pattern (for example, a 15% residual tax treaty rate instead of a 0% residual rate in a rule shopping
situation),219 these benefits are no longer linked to an abusive arrangement. Therefore, the PPT
rule may not restrict these latter benefits.…the object and purpose of the PPT does not contradicts
this interpretation. Second, the systematic argument contending that, if a discretionary relief
mechanism is not included into the tax treaty, it may then be inferred that the PPT rule prevents
the state of source from granting treaty benefits on the basis of a recharacterized fact pattern is, in
the author’s opinion, not a valid one. Indeed, a systematic argument may only be put forward where
one provision that is actually included into the tax treaty is used to elucidate the scope of another
provision. Accordingly, where the discretionary relief mechanism does not form part of the relevant
tax treaty, the scope of the PPT rule should solely be determined on the basis of its literal wording,
object and purpose and relationship with other provisions of this treaty. Last but not least, as the
BEPS outcome expressly provides for the possibility of granting treaty benefits on the basis of the
facts as they would be in the absence of an abuse, it must be considered that states wishing to do
so - either on the basis of their practice or an express discretionary relief mechanism – still meet the
minimum standard provided by BEPS Action 6.

235
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

In the author’s opinion, the application of the PPT will demand the recon-
figuration of the tax treatment of the scheme, transaction or arrangement on the
basis of a recharacterized fact pattern of the situation as it could rely on genuine
business activity. The author claims that when applying the PPT provision and
denying treaty benefits, a juris­diction may still grant treaty benefits, even if such
jurisdiction has reserved the right not to include the discretionary relief mecha-
nism provided under article 7(4) of the MLI in its CTAs. One main reason sup-
ports this claim; the discretionary relief mechanism provided under article 7(4)
on the MLI is not mandatory but optional so a fortiori States will be able to grant
treaty benefits when opting out this provision.186 The case is more complicated in
situations involving three or more states187 , but it out of the scope of this research.
Indeed, the silence regarding the legal consequences of the PPT will
open large discretionary powers to tax administration, difficulties to courts to
confine its discretion and increase the burden of proof against taxpayers. The
very prevision would be able to provide a balance between protecting the tax
base and safeguarding taxpayers right.

186 Danon aggregate much more arguments in this way: “First of all, the expression “shall not be granted”
must be read in relation to the “principal purposes of any arrangement or transaction that resulted
directly or indirectly in that benefit”. Where, however, treaty benefits are granted on the basis of a
recharacterized fact pattern (for example, a 15% residual tax treaty rate instead of a 0% residual rate in
a rule shopping situation), these benefits are no longer linked to an abusive arrangement. Therefore,
the PPT rule may not restrict these latter benefits. In the author’s view, the object and purpose of the
PPT does not contradict this interpretation. Second, the systematic argument contending that, if a
discretionary relief mechanism is not included into the tax treaty, it may then be inferred that the
PPT rule prevents the state of source from granting treaty benefits on the basis of a recharacterized
fact pattern is, in the author’s opinion, not a valid one. Indeed, a systematic argument may only be put
forward where one provision that is actually included into the tax treaty is used to elucidate the scope
of another provision. Accordingly, where the discretionary relief mechanism does not form part of
the relevant tax treaty, the scope of the PPT rule should solely be determined on the basis of its literal
wording, object and purpose and relationship with other provisions of this treaty. Last but not least,
as the BEPS outcome expressly provides for the possibility of granting treaty benefits on the basis of
the facts as they would be in the absence of an abuse, it must be considered that states wishing to do
so - either on the basis of their practice or an express discretionary relief mechanism – still meet the
minimum standard provided by BEPS Action 6.”
187 Lang, who postulates the following dilemma: “either the PTT rule is an order to abolish specific
treaty benefits in one state, and then it leads to double taxation and has penalizing effects, or it
creates a fiction that goes beyond the arrangement considered appropriate. If the latter alternative
is chosen, the question next arises as to “how far this fiction reaches and when it will be replaced
again by the real facts”. Lang (2014) adds that “[r]eestablishing the actual facts of taxation will lead
to seemingly arbitrary and thus unsatisfactory consequences”.

236
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Conclusions
The PPT reflects modern GAARs implying a certain degree of indetermi-
nacy and the transfer of discretionary powers over to the tax authorities, giving
the flexibility to react to new tax planning and abusive structures as the concept
of tax avoidance cannot be totally formalised or objectified. Therefore, such ine-
vitable indeterminacy is not a conclusive argument against the adoption of the
PPT as a GAAR in tax treaties. Furthermore, the main feature of the PPT, like
other modern GAARs, relies on these indefinite and open concepts to target
the broadest possible range of treaty avoidance and abusive practices, playing a
supplementary role to specific anti-treaty abuse provisions.
A balanced approach may be reached through the doctrine of “core com-
mercial activity” or “bona fide purpose,” to be constructed by national courts.
In the end, States may not give the PPT rule an interpretation that exceeds, in
essence, business reality or bona fide tests focused on substance. In this sense,
the PPT may apply to both abusive restructurings and conduit situations not
“inextricably linked to a core commercial activity.”
The PPT was deliberated drafted with a narrow threshold in order to
proposedly change the burden of proof, at least in the beginning, as it was
established in the guiding principle. The burden of proof in the PPT must un-
doubtedly ultimately be balanced on the tax authorities and taxpayers equally
but it will never be the same as the guiding principle approach.
The application of the PPT will demand the reconfiguration of the tax tre-
atment of the scheme, transaction or arrangement on the basis of a recharacte-
rized fact pattern of the situation as it could rely on genuine business activity.
Indeed, the silence regarding the legal consequences of the PPT will open con-
siderable discretionary powers to tax administration, difficulties to courts to
confine its discretion and increase the burden of proof against taxpayers.

237
8. Intangíveis na Esfera do Transfer
Pricing Âmbito do BEPS e Direito
Brasileiro: uma nova Era

Márcio Oliveira
Sócio Líder do Centro de Energia da EY Brasil, com especializa-
ção em Preços de Transferência; Mestre em Ciências Contábeis pelo
FUCAPE. MBA em Gestão Negócios em Petróleo e Gás pela FGV; e
Economista pela UFRJ. Professor do IBMEC-RJ, PUC-RJ e FUCAPE.

Doris Canen
LLM em Direito Tributário Internacional pela King’s College
London (Bolsista Chevening). Pós Graduada em Direito Tributário pela
FGV-Rio. Mestre e Bacharel em Direito pela UCAM. Advogada. Mem-
bro do Grupo de Pesquisa de Direito e Novas Tecnologias da FGV-SP.

Resumo: o presente artigo aponta questões envolvendo intangíveis e preços


de transferência, expostas na ação 8 do relatório final do projeto de BEPS (Base
Erosion e Profit Shifting) da OCDE. Adicionalmente, o artigo apresenta o trata-
mento dado pelo Brasil a ativos intangíveis na esfera dos preços de transferência.
Palavras-chave: intangíveis - preços de transferência - OCDE - BEPS.
Abstract: this article points out issues involving transfer pricing and in-
tangibles presented in the OECD BEPS final report on action 8. The article
also explains how Brazil deals with intangibles in the transfer pricing sphere.
Keywords: intangibles – transfer pricing – OECD – BEPS

1 – Introdução
Ao longo das últimas três décadas as relações econômicas baseadas em
transações envolvendo ativos tangíveis vem cedendo espaço para um modelo
econômico baseado na criação de valor através da inovação tecnológica e da

239
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

criação de branding. Essa inovação passa, necessariamente, pela criação de


ativos intangíveis cuja identificação, qualificação e mensuração estão além do
campo de ação das normas tributárias vigentes em nível global. Não por aca-
so, os ativos intangíveis estão qualificados como um dos tópicos mais debati-
dos nos fóruns de discussão tributária internacional.
A importância dos ativos intangíveis, no contexto da tributação interna-
cional, ganha mais relevância quando nos deparamos com um ambiente em-
presarial cada vez mais líquido, para tomar emprestado um conceito criado por
Bauman (2007, p.7). Nesse ambiente, as transações ocorrem sem que os meios
de troca pertençam ao mundo físico, existindo, tão somente, em um ambiente
contratual e digital. A digitalização dos meios de pagamento, o desenho e a ne-
gociação de produtos e serviços que não existem fisicamente, representam um
desafio de controle para as autoridades fazendárias. Barreiras físicas, controles
aduaneiros e auditorias fiscais fundamentadas unicamente em uma análise bi-
nária da transação (relação entre comprador e vendedor) se mostram inócuas
nesse novo ambiente, exigindo das autoridades fazendárias a reinvenção dos
seus modelos de fiscalização. Todavia, a implementação de qualquer modelo
de fiscalização que tenha a pretensão de ser minimamente eficiente nesse novo
ambiente demanda a colaboração multilateral entre países, pois, em um mundo
empresarial líquido, os critérios de tributação também devem seguir a mesma
lógica das transações: precisam ser flexíveis, providos de uma visão holística e
auto adaptáveis, sob pena de não lograrem êxito.
Os flancos abertos ao planejamento tributário agressivo acontecem pela
incapacidade da superestrutura acompanhar a velocidade da infraestrutura,
valendo-se da terminologia marxista. Vivemos em um ambiente no qual a
infraestrutura – que compreende as forças e as relações de produção – avan-
çaram rapidamente em um período de tempo curto. Esse movimento foi as-
similado tardiamente pela superestrutura – o Estado, as instituições políticas
e suas respectivas estruturas de poder – criando uma janela de oportunidade
para que planejamentos tributários agressivos fossem postos em curso por
grandes multinacionais, entidades dotadas de capital e criatividade; e sensí-
veis o suficiente para perceber rapidamente as oportunidades desse novo am-
biente. Não causa surpresa, portanto, que os cases relevantes associados ao
planejamento tributário agressivo envolvam, principalmente, grandes corpo-

240
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

rações da nova economia digital. Entidades que nasceram, cresceram e atuam


intensamente de acordo com os parâmetros da nova economia global.
Nesse ambiente líquido e repleto de incertezas, em 2013 iniciou-se, no
âmbito da OCDE, o projeto de Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), com
15 ações que visam coibir a erosão da base tributária mediante a transferência
de lucros entre países.
Diante desse cenário, o debate sobre as formas de identificação, tributa-
ção e controles da geração de renda e circulação de ativos intangíveis ganhou
relevo, vez que tais ativos estão intimamente associados à nova economia e
possuem características próprias que não aderem ao modelo de tributação em
vigor. Por conta disso, a OCDE dedicou parte do projeto BEPS à discussão do
tema, através das Ações 8, 9 e 10. Assim, o presente artigo tem por objetivo
fazer uma introdução ao tema, abordando alguns dos principais pontos ata-
cados pela OCDE na Ação 8 do BEPS e atualizações posteriores, com foco na
parte referente a intangíveis sem qualquer pretensão de esgotá-lo.

2 – Conceito de Intangíveis
O IAS188 38 define ativo intangível como “ativo não monetário identifi-
cável, sem substância física.” Essa mesma definição foi incorporada pelo Pro-
nunciamento CPC189 04, o qual estabelece três condições para o reconheci-
mento contábil de um ativo dessa natureza:
• Identificabilidade: essa característica é importante para diferenciá-lo
do ágio derivado da expectativa de rentabilidade futura (goodwill). O
ágio derivado da expectativa de rentabilidade futura (goodwill), reco-
nhecido em uma combinação de negócios, é um ativo que representa
benefícios econômicos futuros gerados por outros ativos adquiridos
em uma combinação de negócios, que não são identificados individu-
almente e reconhecidos separadamente. Tais benefícios econômicos
futuros podem advir da sinergia entre os ativos identificáveis adquiri-
dos ou de ativos que, individualmente, não se qualificam para reconhe-
cimento em separado nas demonstrações contábeis.

188 International Accounting Standards.


189 Comitê de Pronunciamentos Contábeis.

241
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

• Um ativo satisfaz o critério de identificação, em termos de definição de


um ativo intangível, quando:

(a) for separável, ou seja, puder ser separado da entidade e vendido,


transferido, licenciado, alugado ou trocado, individualmente ou junto
com um contrato, ativo ou passivo relacionado, independente da inten-
ção de uso pela entidade; ou
(b) resultar de direitos contratuais ou outros direitos legais, indepen-
dentemente de tais direitos serem transferíveis ou separáveis da entida-
de ou de outros direitos e obrigações.
• Controle: a entidade controla um ativo quando detém o poder de ob-
ter benefícios econômicos futuros gerados pelo recurso subjacente
e de restringir o acesso de terceiros a esses benefícios. Normalmen-
te, a capacidade da entidade de controlar os benefícios econômicos
futuros de ativo intangível advém de direitos que possam ser pleite-
ados em tribunal. A ausência de direitos dificulta a comprovação do
controle. No entanto, a imposição de um direito não é uma condição
imprescindível para o controle, visto que a entidade pode controlar
benefícios econômicos futuros de outra forma.

O conhecimento de mercado e o conhecimento técnico podem gerar


benefícios econômicos futuros. A entidade controla esses benefícios se,
por exemplo, o conhecimento for protegido por direitos, tais como di-
reitos autorais, uma limitação de um acordo comercial (se permitida)
ou o dever dos empregados de manterem a confidencialidade.
A entidade pode dispor de uma equipe de pessoal especializado e ser capaz
de identificar habilidades adicionais que gerarão benefícios econômicos
futuros a partir do treinamento. A entidade pode também esperar que
esse pessoal continue a disponibilizar as suas habilidades. Entretanto, o
controle da entidade sobre os eventuais benefícios econômicos futuros
gerados pelo pessoal especializado e pelo treinamento é insuficiente para
que esses itens se enquadrem na definição de ativo intangível. Por razão
semelhante, raramente um talento gerencial ou técnico específico atende
à definição de ativo intangível, a não ser que esteja protegido por direi-
to sobre a sua utilização e obtenção dos benefícios econômicos futuros,
além de se enquadrar nos outros aspectos da definição.
A entidade pode ter uma carteira de clientes ou participação de merca-
do e esperar que, em virtude dos seus esforços para criar relacionamen-
tos e fidelizar clientes, estes continuarão a negociar com a entidade. No
entanto, a ausência de direitos de proteção ou de outro tipo de controle
sobre as relações com os clientes ou a sua fidelidade faz com que a en-
tidade normalmente não tenha controle suficiente sobre os benefícios

242
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

econômicos previstos, gerados do relacionamento com os clientes e de


sua fidelidade, para considerar que tais itens (por exemplo, carteira
de clientes, participação de mercado, relacionamento e fidelidade dos
clientes) se enquadrem na definição de ativo intangível. Entretanto,
na ausência de direitos de proteção do relacionamento com clientes,
a capacidade de realizar operações com esses clientes ou similares por
meio de relações não contratuais (que não sejam as advindas de uma
combinação de negócios) fornece evidências de que a entidade é, mes-
mo assim, capaz de controlar os eventuais benefícios econômicos fu-
turos gerados pelas relações com clientes. Uma vez que tais operações
também fornecem evidências que esse relacionamento com clientes é
separável, ele pode ser definido como ativo intangível.
• Benefício econômico futuro: Os benefícios econômicos futuros gera-
dos por ativo intangível podem incluir a receita da venda de produtos
ou serviços, redução de custos ou outros benefícios resultantes do uso
do ativo pela entidade. Por exemplo, o uso da propriedade intelectual
em um processo de produção pode reduzir os custos de produção futu-
ros em vez de aumentar as receitas futuras.

Entretanto, o conceito de ativos intangíveis, aplicável à contabilidade,


não alcança diversas categorias de intangíveis, cuja valoração se mostra es-
sencial para a avaliação de um preço de justo no âmbito do Princípio Arm’s
Length – espinha dorsal em preços de transferência, nos termos da OCDE.
Essa dicotomia, entre os critérios adotados pela contabilidade e os ter-
mos da OCDE, decorre da existência de ativos que, pela sua natureza, não de-
vem ser registrados contabilmente, haja visa a existência de incertezas, princi-
palmente, quanto ao seu controle e expectativa futura de benefícios. Porém, a
impossibilidade de contabilização não significa que o uso desses intangíveis, e
os direitos correlatos a eles, não gerem riqueza passíveis de tributação.
A Ação 8 do BEPS tem o mérito de conceituar os intangíveis passíveis de
submissão ao teste de Preços de Transferência, alinhando as recomendações
da OCDE aos desafios de uma economia líquida; cobrindo as lacunas existen-
tes no “Transfer Pricing Guidelines” de 2010, também da mesma organização.
O relatório BEPS (OCDE, 2015 A, p. 67) inovou ao definir intangíveis como:
“(...) algo que não é um ativo físico ou financeiro, que é capaz de ser
possuído ou controlado para uso em atividades comerciais e cujo uso

243
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ou transferência seria compensado se fosse usado em uma transação


entre partes independentes em circunstâncias comparáveis”.190

Exemplos de intangíveis que se enquadram nessa definição, de acordo


com o relatório (OCDE, 2015 A, p. 70-77) são: capital das relações empresa-
riais (comunidade de inovação, ecossistema e parcerias para logística); valor
da reputação da empresa e funcionários chave (excluindo sinergias de grupo
e características específicas de mercados locais, que devem ser tratados como
fatores de comparação); propriedade intelectual não registrada como know-
-how & segredos do negócio; intangíveis para marketing; lista de clientes e
network para distribuição; tecnologia passada aos compradores; lista de for-
necedores e procedimentos de contratação bem como propriedade intelectual
registrada como patentes, desenhos industriais, licenças e direitos, marcas,
nomes e nomes de domínio e outros direitos contratuais.
Assim, percebe-se que a definição de propriedade intelectual de intangí-
veis do relatório é mais ampla do que as definições jurídicas ou contábeis, o
que é ratificado no próprio relatório, em seu parágrafo 6.7 (OCDE, 2015 A, p.
67), onde são apresentados exemplos, conforme transcrição a seguir:
6.7 – Intangíveis cujo reconhecimento é importante para fins de preços de trans-
ferência nem sempre são reconhecidos como intangíveis para fins contábeis. Por exem-
plo, custos associados com o desenvolvimento interno de intangíveis, através de gastos
com pesquisa, desenvolvimento e propaganda, às vezes são lançados como despesa ao
invés de serem capitalizados e, consequentemente, nem sempre constam no balanço
da empresa. Não obstante, tais intangíveis podem ser utilizados para gerar valor eco-
nômico significativo e, assim, surge a necessidade de serem considerados para fins de
preços de transferência. Ademais, a valorização que pode surgir da natureza comple-
mentar de diversos intangíveis quando explorados em conjunto nem sempre é refletido
no balanço. Desta forma, se um item deve ser considerado como intangível para fins
de preços de transferência, de acordo com o artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE
pode se basear na sua caracterização contábil mas não deve contar apenas com essa
caracterização. Acrescenta-se que um item considerado como intangível para fins de
preços de transferência não determina nem segue sua classificação para fins tributários
como, por exemplo, um custo ou um ativo amortizável.191

190 tradução livre - “something which is not a physical or financial asset, which is capable of being owned
or controlled for use in commercial activities, and whose use or transfer would be compensated had it
occurred in a transaction between independent parties in comparable circumstances”
191 tradução livre: “6.7 - Intangibles that are important to consider for transfer pricing purposes are
not always recognised as intangible assets for accounting purposes. For example, costs associated

244
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Outra inovação conceitual importante da Ação 8, em relação ao Transfer


Pricing Guidelines de 2010 foi a ampliação da definição de intangíveis de ma-
rketing (OCDE, 2015 A, p. 69):
“Um intangível (de acordo com o significado do parágrafo 6.6) que é rela-
cionado às atividades de marketing, auxilia na exploração comercial de um
produto ou serviço e/ou tem um valor promocional importante para o pro-
duto em questão. Dependendo do contexto, intangíveis de marketing podem
incluir, por exemplo, marcas, nomes, listas de clientes, relacionamentos com
clientes e dados de mercado e de clientes que são utilizados ou auxiliam no
marketing e na venda de produtos ou serviços para clientes. 192”

Vale frisar que o relatório (OCDE, 2015 A, p. 72) deixa claro que a in-
tenção das definições apresentadas é sua aplicação tão somente para fins de
preços de transferência e que tais definições não devem afetar outras áreas
do direito tributário, tais como definições de royalties, questões relativas a
amortização, dentre outras.

with developing intangibles internally through expenditures such as research and development
and advertising are sometimes expensed rather than capitalized for accounting purposes and the
intangibles resulting from such expenditures therefore are not always reflected on the balance sheet.
Such intangibles may nevertheless be used to generate significant economic value and may need to
be considered for transfer pricing purposes. Furthermore, the enhancement to value that may arise
from the complementary nature of a collection of intangibles when exploited together is not always
reflected on the balance sheet. Accordingly, whether an item should be considered to be an intangible
for transfer pricing purposes under Article 9 of the OECD Model Tax Convention can be informed
by its characterization for accounting purposes, but will not be determined by such characterization
only. Furthermore, the determination that an item should be regarded as an intangible for transfer
pricing purposes does not determine or follow from its characterization for general tax purposes, as,
for example, an expense or an amortizable asset.”
192 tradução livre: “An intangible (within the meaning of paragraph 6.6) that relates to marketing activities,
aids in the commercial exploitation of a product or service, and/or has an important promotional
value for the product concerned. Depending on the context, marketing intangibles may include, for
example, trademarks, trade names, customer lists, customer relationships, and proprietary market
and customer data that is used or aids in marketing and selling goods or services to customers.”

245
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3. Análise de Preços de Transferência para Ativos Intangíveis


A avaliação de Preços de Transferência para Intangíveis no, âmbito do
Projeto BEPS da OCDE (OCDE, 2015 A), considera as seguintes etapas:
I. Identificação do proprietário legal do intangível: realizada mediante
análise contratual.
II. Identificação das partes que contribuíram com valor à composição
do intangível: efetuada através de análise contratual e estudo do fluxo
completo da transação.
III. Análise funcional: visa identificar e compreender as atividades eco-
nomicamente significantes, as responsabilidades suportadas por cada
um dos entes envolvidos na transação, os ativos envolvidos, bem como
os riscos assumidos pelas partes envolvidas.
IV. Aplicação das funções DEMPE: embora as relações contratuais
continuem sendo um bom ponto de partida para uma avaliação de
preços de transferência (primeiro passo), elas precisam estar alinhadas
com os fatos associados às transações. Além disso, os lucros gerados
dentro da estrutura precisam ser distribuídos entre as entidades parti-
cipantes na proporção das suas contribuições para a criação de valor.

Nesse contexto, uma avaliação à luz das funções DEMPE - “Develop-


ment, Enhancement, Maintenance, Protection and Exploitation” é funda-
mental e tem como foco identificar, dentro da estrutura, qual a contribuição
dada por cada entidade no que tange ao:
• desenvolvimento de um intangível (Development);
• melhoria/ aumento no valor de um intangível (Enhancement);
• manutenção do intangível (ex: controle de qualidade) (Maintenance);
• proteção do intangível contra violações (Protection); e exploração do
intangível (Exploitation).

I. Definição do método passível de aplicação, visando determinar um


preço Arm’s Length para cada um dos entes que contribuíram com
valor para a constituição do intangível.
II. Em circunstâncias excepcionais recaracterizar a transação para atingir
as condições Arm’s Length.

246
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Cabe destacar que a aplicação dos métodos transacionais às operações


com ativos intangíveis encontra diversas limitações práticas, uma vez que tais
ativos dificilmente possuem comparáveis (impossibilitando a aplicação do
CUP), são objeto de revenda (inibindo a utilização do Resale Price Method)
ou possuem custos de produção registrados contabilmente (o que permitiria
o uso do Cost Plus Method). Diante desse cenário, a própria OCDE (OCDE
2015 A, pp. 63 e 80), que tende a privilegiar o uso os métodos transacionais
e recomenda a utilização do Profit Split Method e de métodos de valorização
(valuation methods) para a determinação dos preços parâmetros nas transa-
ções em que há criação de valor, como podemos verificar a seguir:
“As administrações tributárias receberam novas ferramentas para lidar
com o problema das informações assimétricas a fim de ajudar na de-
terminação da precificação apropriada para intangíveis e técnicas de
avaliação são reconhecidas como ferramentas úteis na precificação de
transações envolvendo intangíveis.193”
“6.57 Como talvez seja difícil achar transações comparáveis envolvendo a
terceirização de funções importantes, talvez seja necessário utilizar méto-
dos de preços de transferência não baseados diretamente em comparáveis,
incluindo os métodos “profit split” e técnicas de avaliação já mencionadas
para remunerar a performance dessas funções importantes. 194”.

Adicionalmente, devemos lembrar que ativos intangíveis podem ser


transferidos facilmente de uma jurisdição para outra. Essa característica os
coloca, com frequência, como foco de planejamentos tributários internacio-
nais. Em geral, tais planejamentos têm como ponto de partida a criação de
uma estrutura com características específicas, especialmente quando os in-
tangíveis são de propriedade intelectual, como patentes, marcas e direitos de
uso. Abaixo temos alguns dos traços dessas estruturas:

193 tradução livre: “Tax administrations are given new tools to tackle the problem of information
asymmetry to assist in determining the appropriate pricing arrangements for intangibles, and
valuation techniques are recognised as useful tools when pricing transactions involving intangibles.
194 tradução livre: “6.57 Because it may be difficult to find comparable transactions involving the
outsourcing of such important functions, it may be necessary to utilize transfer pricing methods not
directly based on comparables, including transactional profit split methods and ex ante valuation
techniques, to appropriately reward the performance of those important functions”.

247
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a. Centralização da propriedade legal dos ativos intangíveis em uma úni-


ca entidade legal – IP owner.
b. Uma IP owner com atividade funcional limitada, mesmo que tange ao
controle, desenvolvimento e gestão de riscos do ativo intangível.
c. Terceirização das atividades relacionadas com o controle e execução do de-
senvolvimento, aprimoramento, manutenção e proteção ativo intangível.
d. Terceirização da atividade de exploração comercial, por exemplo, pela
manutenção de um distribuidor local nas jurisdições com impostos
mais elevados.

Essas estruturas buscam estabelecer a IP owner em uma jurisdição que


apresente:
a. baixas alíquotas efetivas de imposto sobre a renda;
b. dedução fiscal diferenciada para amortização de ativos intangíveis
adquiridos;
c. alíquotas reduzidas empresas detentoras de ativos intangíveis; e/ou
d. alíquota nula ou reduzida de imposto de renda na fonte sobre o royalties.

Estruturas envolvendo IP owner representam um bom exemplo do tipo


de construção que o Projeto BEPS da OCDE (OCDE, 2015 A) pretende miti-
gar. Entretanto, essa postura não está livre de críticas. Schwarz (2015) critica
a limitação dos retornos ao proprietário jurídico sob o fundamento de que
isso nega a essência do direito à propriedade que é usar, fruir, administrar e
receber os valores relativos à propriedade. O autor aduz, ainda, que os exem-
plos contidos no relatório mencionam tão somente uma espécie de nua-pro-
priedade sem qualquer dos direitos de propriedade do intangível, ignorando
o vínculo entre a empresa e o intangível. Segundo o autor, isso pode resultar
em atribuir o valor relativo ao “retorno” dos intangíveis a um prestador de
serviços e não ao seu dono. Ele afirma que não foi solucionado o conflito da
classificação das transações em intangíveis ou serviços.
Ademais, em junho de 2018, a OCDE divulgou orientações finais para as ad-
ministrações tributárias sobre o tratamento de intangíveis de difícil mensuração

248
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(Hard to Value Intangibles - HTVI).195196197 A intenção é estabelecer um entendi-


mento comum e entre as administrações tributárias sobre como aplicar ajustes
resultantes das diferentes definições e tratamentos dos HTVI, e se destina a me-
lhorar a consistência e reduzir o risco de dupla tributação econômica.
Em síntese, o relatório autoriza às administrações tributárias o uso provas
posteriores acerca dos resultados financeiros de uma transação envolvendo HTVI
(ou seja, informações coletadas em retrospecto sobre quão valioso um intangível
se tornou) como evidência presumida sobre a adequação da transação anterior
como arranjos de preços. Os resultados posteriores fornecem informações sobre a
determinação da avaliação no momento da transação, mas uma avaliação revisa-
da em potencial não deve se basear na receita real ou no fluxo de caixa sem levar
em conta também as possibilidades ajustadas pelo risco de tal receita real ou fluxo
de caixa materializando, no momento da transferência do HTVI.
Sobre as questões temporais, as administrações tributárias são incenti-
vadas a aplicar práticas de auditoria para identificar e atuar sobre as transa-
ções de HTVI o mais cedo possível. No entanto, inerente a essa abordagem,
reconhece-se que os resultados posteriores relevantes para a precificação da
transferência da HTVI podem não estar disponíveis logo após a transação.
Também é reconhecido que o tempo decorrido entre a transação e o mo-
mento em que os resultados ficam disponíveis para as administrações fiscais
nem sempre correspondem aos ciclos de auditoria ou períodos administrati-
vos e estatutários, em particular para intangíveis que por anos após a transa-
ção não podem ser explorados comercialmente.

195 Definidos como “intangibles or rights in intangibles for which, at the time of their transfer in a
transaction between associated enterprises, no sufficiently reliable comparables exist, and there
is a lack of reliable projections of future cash flows or income expected to be derived from the
transferred intangible, or the assumptions used in valuing the intangible are highly uncertain.”
Transfer Pricing Guidelines, parágrafo 6.189
196 OECD: Guidance for Tax Administrations on the Application of the Approach to Hard-to-Value
Intangibles - BEPS Action 8, Disponível em: https://www.oecd.org/tax/beps/guidance-for-tax-
administrations-on-the-application-of-the-approach-to-hard-to-value-intangibles-beps-action-8.
htm, consulta em 26/05/2019
197 EY, Global Tax Alert, 27 June 2018: OECD releases guidance for tax administrations on application
of approach to hard-to-value intangibles, Disponível em: https://www.ey.com/gl/en/services/
tax/international-tax/alert--oecd-releases-guidance-for-tax-administrations-on-application-of-
approach-to-hard-to-value-intangibles, consulta em 26/05/2019.

249
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O relatório reitera que ajustes pelas administrações fiscais podem incluir


um ajustes à estrutura de preços adotada pelo contribuinte, mas devem refletir o
que teria sido feito por empresas independentes em circunstâncias comparáveis
para levar em conta a incerteza de avaliação na fixação dos preços na transação.
Ademais, a aplicação da abordagem HTVI não deve ser usada para atra-
sar ou ignorar os procedimentos normais de fisalização. Algumas administra-
ções fiscais podem encontrar dificuldades na implementação da abordagem de
HTVI devido, por exemplo, a ciclos de fiscalização curtos ou a prazos de pres-
crição. Essas administrações fiscais podem considerar mudanças direcionadas
a procedimentos ou legislação para combater essas dificuldades de aplicação,
como a introdução de uma exigência para que os contribuintes notifiquem ime-
diatamente a administração tributária quando um intangível enquadrado na
definição da HTVI tenha sido transferido ou uma alteração da norma relativa a
prescrição.Há orientação, também, para uso do “Mutual Agreement Procedure
– MAP” (Procedimento Amigável198), não objeto deste artigo.

4. As questões envolvendo o valor do Mercado


Consumidor e Desafios para Preços de Transferência
Muito tem sido discutido acerca da importância do mercado consumidor
para fins tributários. Isso porque, os países da OCDE, os conhecidos “residen-
ce countries”, antes exportadores, agora se veem também como consumido-
res. Como apontado pelo Professor Sergio André Rocha199, “a digitalização da
economia trouxe os países desenvolvidos para o debate, criando um ambiente
de “Guerra Fiscal Internacional”.

198 No Brasil o Procedimento Amigável está regulado pela Instrução Normativa 1.846 de 28 de
Novembro de 2018 e pela Portaria COSIT  12,  de  14 de dezembro de 2018. Todos os tratados
brasileiros têm previsão de tal procedimento (embora não conste cláusula de arbitragem)
199 Conforme palestra no evento “Impactos da Nova Diretiva da União Europeia: tendências da
tributação da economia digital” do grupo de estudos de Tributação e Novas Tecnologias da FGV,
disponível em: https://direitosp.fgv.br/nucleo-de-pesquisas/nucleo-de-direito-tribut%C3%A1rio-
do-mestrado-profissional, apresentação: https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/
arquivos/estabelecimento_permanente_e_tratados.pdf, acesso em 28/05/2019

250
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No mesmo sentido, Pascal Saint-Amans afirmou no Congresso da IFA


ocorrido em 2017 no Rio de Janeiro200 que esses países estão novas situações,
agora precisando garantir suas receitas tributárias.
Assim, muito se vê acerca de tentativas de instituir tributos sobre servi-
ços digitais tanto no âmbito da União Europeia201 como também de seus paí-
ses membros sendo que algumas propostas focam justamente na quantidade
de usuários e mercado consumidor.
Não obstante, do ponto de vista dos preços de transferência, podemos
considerar que tais dados são difíceis de mensurar.
Seriam então hard to value intangibles? Ou essa questão é ainda mais
difícil e polêmica? A já transcrita definição de HTVI (vide rodapé na página
anterior), afirma que os mesmos são “intangíveis ou direitos sobre intangíveis
para os quais, no momento de sua transferência em uma transação entre em-
presas associadas, não existem comparáveis suficientemente
​​ confiáveis, e há
uma falta de projeções confiáveis de​​ fluxos de caixa futuros ou renda que se
espera derivar do intangível transferido, ou as premissas usadas na avaliação
do intangível são altamente incertas.”
Entretanto, entendemos que diferentemente de listas de clientes, “likes”,
“clicks” e “seguidores” possam ser considerados intangíveis de uma empresa
(eis que não se enquadram em qualquer das hipóteses de avaliação de intan-
gíveis mencionadas na seção anterior e não são propriedade de um grupo em-
presarial e sim consequência de seus produtos e serviços).
Ocorre que tais pontos são determinantes para a avaliação da mesma e
seus produtos no mercado atual. Muitas vezes, empresas podem ser avaliadas
pelos números de “likes” e seguidores em suas redes sociais, aumentando seu
valor de mercado.
Não obstante, o mercado consumidor dificilmente entrará na definição
de intangíveis eis que, como mencionado, não é criado ou pertencente à em-
presa. Além disso, usuários são difíceis de identificar, diferentemente de da-
dos e listas de clientes.

200 Conforme palestra em sessão plenária da IFA ocorrida em agosto de 2017 no Rio de Janeiro
201 European Union, Fair Taxation of the Digital Economy, disponível em: https://ec.europa.eu/
taxation_customs/business/company-tax/fair-taxation-digital-economy_en, acesso em 28/05/2019

251
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Acrescenta-se que o mercado consumidor também não é controlável por parte


da empresa (conforme mandam as normas contábeis), embora pode ser identificá-
vel (por exemplo uma região) e apresentar benefícios econômicos futuros.
Assim, esse tema, ainda não abordado do ponto de vista dos preços de
transferência merece atenção por ser crucial a valoração dos intangíveis de
uma empresa, principalmente sua marca e suas tecnologias.

5. Conexões da Ação 8 com a Ação 13


De acordo com as disposições da Ação 13 do BEPS (Guidance on Trans-
fer Pricing Documentation and Country-by-Country Reporting), as opera-
ções envolvendo intangíveis deverão ser documentadas através do Master
File, sendo solicitadas as seguintes informações (OCDE, 2015 B, p. 28):
• Uma descrição geral da estratégia de desenvolvimento, propriedade e ex-
ploração de intangíveis, incluindo a localização das instalações de pesqui-
sa e desenvolvimento e dos seus respectivos centros de gerenciamento;
• Uma lista dos intangíveis do grupo, que são importantes para fins de
preços de transferência e detalhes sobre quais entidades do grupo são
suas proprietárias legais;
• Uma descrição geral da política de preços de transferência do grupo; e
• Detalhes sobre qualquer transferência de intangíveis realizada.

Além disso, o Country-by-Contry Report (CbCR) solicita informações


que serão úteis para avaliar a existência de um intangível em uma localida-
de em qualquer jurisdição na qual uma entidade atue. Para citar apenas um
exemplo, o CbCR solicita informações sobre receita, lucros e número de fun-
cionários com 100% do tempo alocado em cada entidade do grupo no exterior.
Somente através desses três dados é possível apurar evidências da existência
de um intangível em uma entidade que aufira receita e lucros desproporcio-
nais ao número de funcionários em período integral.
No Brasil, as informações relativas ao CbCR (Declaração país-a-país)
devem ser apresentadas no Bloco W da Escrituração Contábil Fiscal(ECF).202
O Brasil, inclusive, foi um dos primeiros países a instituir tal obrigação (já

202 A Declaração País a País está regulada na Instrução Normativa 1.681 de 28 de dezembro de 2016.

252
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

referente ao ano fiscal iniciado a partir de janeiro de 2016) e, em Novembro de


2018, a Receita Federal iniciou o compartilhamento das informações constan-
tes da aludida declaração203.

6. Aplicação das regras brasileiras de preços de


transferência a intangíveis
Diferentemente da legislação da OCDE, a legislação brasileira apresenta
uma lista de métodos de preços de transferência taxativa e não alinhada com
os padrões internacionais. Portanto, métodos similares ao Profit Split Method
(PSM), ou mesmo ao Transactional Net Margin Method (TNMM), não são
encontrados em nosso ordenamento, o qual privilegiou os métodos transacio-
nais. Assim, o contribuinte dispõe de instrumentos de aplicações limitadas ou
simplesmente incapazes de avaliar transações complexas envolvendo intangí-
veis, como apontado por Xavier (2010, p. 308):
Na verdade, os métodos de preços de transferência tipificados pela le-
gislação brasileira, muito embora não tenham restringido a sua aplica-
ção a bens, direitos ou serviços amplamente comercializáveis, foram
claramente concebidos para tais situações, tendo sempre como base
preços no mercado de varejo, no mercado atacadista, preços no merca-
do brasileiro ou de outros países, preços de revenda e as afirmações nas
quais baseia a definição do preço parâmetro são aquelas disponíveis
em publicações ou relatórios oficiais do governo, pesquisas efetuadas
por empresa ou instituição de notório conhecimento técnico ou publi-
cações técnicas. Tais métodos são estruturalmente inadequados para
operações com vens que não são amplamente comercializáveis e que
enfrentam obstáculos insuperáveis na sua aplicação. É precisamente
esse o caso dos bens intangíveis (...)

De fato, os métodos transacionais adotados em nossa norma demandam


elementos que não se alinham com a natureza de um ativo intangível.
Método dos Preços Independentes Comparados (PIC): sua aplicação re-
quer a existência de comparáveis idênticos ou similares. Ainda que o exista

203 Receita Federal inicia intercâmbio da Declaração País-a-País (DPP), disponível em: http://
receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2018/novembro/receita-federal-inicia-intercambio-da-
declaracao-pais-a-pais-dpp, consulta em 27/05/2019

253
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a possibilidade de da realização de ajuste de similaridade sem as amarras do


conceito previsto no art. 42 da IN RFB 1.312/12, o qual só faz remissão a bens,
sua aplicação a intangíveis é complexa em virtude da sua singularidade e da
necessidade de condições contratuais e de negócio que se coadunem.
Por seu turno, a aplicação do método do Custo de Produção mais Lucro
(CPL) esbarra em duas barreiras:
a. Geralmente as multinacionais que atuam no Brasil são resistentes em
abrir suas estruturas de custos a terceiros.
b. Sob uma perspectiva contábil, a maior parte dos gastos incorridos para
a composição de um direito é usualmente registrada no resultado,
inexistindo, portanto, uma base de amortização que possa ser tratada
como custo – elemento essencial à aplicação do método. Como exem-
plo, podemos citar os gastos com marketing. Eles contribuem para o
aumento do valor do intangível (branding) ao longo do tempo, mas são
lançados como despesa no resultado.
c. Podemos ter a negociação de ativos que não possuem custo registrado
em virtude de aspectos temporais. Exemplo: podemos ter a cessão do
direito de imagem de uma obra cinematográfica, cujos custos incor-
ridos para a sua produção já tenham sido totalmente amortizados na
proporção da receita auferida com a sua exibição. Nesse caso, qualquer
receita adicional auferida pela produtora no exterior será tratada como
marginal e descolada de qualquer elemento de custo (custo igual a
zero), inviabilizando a aplicação do método.

Finalmente, o uso do método PRL também encontra limitações, na me-


dida em que somente podem ser submetidos a esse sistema os direitos que são
utilizados como insumo no processo produtivo local. Desta feita, uma das
condições para aplicação do método é que o gasto incorrido com a parte rela-
cionada na importação seja tratado, sob uma perspectiva contábil, como custo
de produção do bem, serviço ou direito que será revendido a terceiros. Caso
o valor incorrido pela aquisição do intangível seja registrado como despesa, a
aplicação do método é vedada.
Do lado da exportação a situação é mais limitada. Os métodos dos Pre-
ços Venda da Exportação (PVEx)204 e do Custo de Aquisição ou Produção
mais Lucro (CAP) possuem as mesmas limitações dos métodos PIC e CPL

204 No caso do PVEx somente é possível o uso de comparáveis decorrentes de exportações provenientes
do Brasil, ainda que realizadas por terceiros.

254
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aplicáveis às importações; enquanto os métodos dos Preços de Venda no Ata-


cado e no Varejo (PVA e PVV, respectivamente) não são aplicáveis à direitos
por ausência de previsão legal.
Em virtude das limitações apresentadas, acreditamos que a norma brasi-
leira de Preços de Transferência terá que passar por uma atualização, de modo
a acolher as transações intercompany envolvendo intangíveis, uma vez que o
modelo atual é incapaz de gerar preços parâmetros que permitam avaliar com
precisão tais transações.

7. Conclusões
Embora do Projeto BEPS deva ser comemorado como uma importante con-
tribuição para a discussão de Preços de Transferência envolvendo ativos intangí-
veis, ainda restam desafios importantes, dentre os quais destacamos alguns:
• Dificuldade na obtenção de comparáveis
• Dificuldade em isolar o impacto de um intangível específico na renda
do grupo;
• Mensuração do peso de cada uma das funções DEMPE, quando essas
forem desempenhadas concomitantemente por diversas empresas do
grupo com alto grau de integração entre elas;
• Descasamentos entre os momento das contribuições dadas para a
constituição de um intangível e o momentos dos retornos financeiros
decorrentes dessas mesmas contribuições;
• Como quantificar a transferência/compra de intangíveis que ainda es-
tão em fase de desenvolvimento.

Esses pontos, e muitos outros, somente serão solucionados à medida que as


discussões contribuírem para o amadurecimento das recomendações da OCDE
(OCDE, 2015). Somente o tempo será capaz de solucionar alguns impasses.
Sob a perspectiva nacional, embora o Brasil tenha participado ativamen-
te das discussões do BEPS no âmbito da OCDE e apontado preços de transfe-
rência como uma das ações chave dentre seus interesses (EY, 2015), também
deixou explícito que não pretende alterar o modelo de margens fixas atual-
mente em vigor, conforme evidenciado nas notas das ações 8 a 10 (OCDE,

255
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2015 A, p. 185).205 Essa postura deixa as empresas que atuam no Brasil em


desvantagem, pois a compreensão dos aspectos de preços de transferência li-
gados aos intangíveis é essencial, eis que pode ajudar a análise do efetivo valor
contribuído por cada empresa às criações tecnológicas e científicas e garantir
uma precificação justa de tais criações no mercado dentro dos novos padrões
internacionais, permitindo a definição de critérios justos de tributação.
Entretanto, deve-se ressaltar que a resistência do Brasil em adotar as
diretrizes da OCDE para intangíveis não é gratuita. Ela tem como pano de
fundo o peso dado pela OCDE à jurisdição no qual o valor da transação é ge-
rado, com especial relevância para os ativos intangíveis. Dessa forma, países
criadores de intangíveis (geralmente os mais desenvolvidos economicamente)
se apropriam da maior parte do lucro gerado na transação, em detrimento
dos países onde a renda foi gerada pela força dos seus mercados consumidores
(países em desenvolvimento, geralmente). Não por acaso, o relatório de preços
de transferência da ONU reconhece o mercado consumidor como elemento
essencial na avaliação da distribuição do lucro tributável em uma transação.
Resta evidente que a nova orientação da OCDE (OCDE, 2015A) é focar
em “substância” na condução da análise de Preços de Transferência, sendo
certo que as empresas deverão ser remuneradas pelo valor de suas contribui-
ções e dos riscos assumidos e não com base em contratos intragrupo ou outras
formas de alocação de valores dentro do grupo empresarial.
Novas questões como o tratamento do mercado consumidor par afins de
preços de transferência também se apresentam.
Os desafios já elencados serão enfrentados no dia a dia dos contribuintes
e nos resta aguardar para verificar como eles serão enfrentados na prática.

205 “Brazil provides for an approach in its domestic legislation that makes use of fixed margins derived
from industry practices and considers this in line with arm´s length principle. Brazil will continue
to apply this approach and will use the guidance in this report in this context. When Brazil´s Tax
treaties contain Article 9, paragraph 1 of the OECD and UN Model Tax Conventions and a case of
double taxation arises that is captured by this Treaty provision, Brazil will provide access to MAP
in line with the minimum standard of Action 14.”

256
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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se, 2010

258
9. Beps: para quem?Avaliando o Projeto da
OCDE a partir do Princípio Arm’s Length

Beps: for whom? Evaluating the OECD’s


Project from the Arm’s Length Standard

Raphael Assef Lavez


Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário
pela Universidade de São Paulo;
Especialista em Direito Tributário Internacional pelo IBDT;
Advogado em São Paulo.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo a avaliação dos resultados


apresentados pela OCDE em seu Projeto Beps, particularmente quanto à pre-
tendida “globalidade” das medidas propostas. Isso se dará a partir da aná-
lise de sua consistência, no sentido de adequação aos fundamentos em que
se pretendem basear, e da conveniência de sua adoção por países em desen-
volvimento, em geral mais afastados dos fóruns da OCDE. Para tanto, serão
avaliadas as Ações 08, 09 e 10, relacionadas aos preços de transferência, pois
apontam a um novo parâmetro, entendido como da criação de valor, cujo ali-
nhamento ao arm’s length é, neste estudo, colocado em análise. Nesse sentido,
serão enfatizados três aspectos do relatório final dessas ações (os resultados de
sinergia, a requalificação de arranjos contratuais e as propostas relacionadas
aos intangíveis) cujo afastamento do arm’s length se coloca como hipótese a
ser verificada. Em conclusão, será demonstrada a medida em que o parâmetro
da criação de valor, aplicado aos três aspectos supramencionados, revelam-se
dissonantes ao conceito de arm’s length correntemente empregado pela dou-
trina especializada e pela própria OCDE.
Palavras-Chave: Preços de transferência, BEPS, Arm’s length, Intangíveis.
Abstract: This article aims to evaluate the outcomes presented by the
OECD regarding its Beps Project, manly as for the success of the intended glo-

259
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

bal approach of the proposed measures. For this reason, it will be analyzed both
their coherence, it means, their alignment to the fundaments they are allegedly
to be based on, and the convenience of their adoption by developing countries,
usually out of the OECD forums. To reach this, it will be discussed the Actions
09, 08 and 10, related to transfer pricing aspects, since they present a new stan-
dard – the so-called “value creation” –, whose alignment to the arm’s length
standard will be analyzed. In this sense, this article focuses on three aspects of
the final report on these actions, whose departure from the arm’s length stan-
dard is proposes as a hypothesis: the group synergy, the recharacterization of
contractual arrangements and the proposals on intangibles. As a conclusion, it
will be demonstrated the absence of alignment between this parameter of “va-
lue creation”, mainly applied to these three situations, and the concept of arm’s
length standard usually defined by scholars and by OECD itself.
Keywords: Transfer pricing, Beps, Arm’s length, Intangibles.

Introdução
No final de 2015, foram publicados os relatórios finais do Plano de Ação
do Projeto Beps após mais de dois anos de drafts e debates acerca das quinze
ações que o compõe. Trata-se, portanto, de momento ideal para avaliação dos
resultados alcançados até aqui, especialmente a consistência e conveniência
das orientações ou best practices propostas ao longo do Plano de Ação.
Nesse contexto, portanto, justifica-se avaliar se e em que medida as pro-
postas veiculadas nos relatórios do Projetos Beps correspondem ao chamado
dos líderes do G20, no sentido de uma solução global para problemas relacio-
nados ao planejamento tributário internacional – ou se, por outro lado, tradu-
zem a captura de interesses próprios de seus países-membros ou das vozes que
mais se fizeram ressonar em seus fóruns.
De fato, o Projeto Beps já é realidade e vem sendo, inclusive, posto em
prática mesmo por países que não são membros da OCDE – como é o caso
da Colômbia, que se noticia ter firmado acordo de dupla tributação com a
França em que se inseriu a redação sugerida de preâmbulo constante da Ação
06 (Abuso de tratados) do Projeto Beps. No Brasil, as influências do projeto
já se fazem notórias: além da frustrada tentativa de instituição, via medida

260
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

provisória, da obrigação de declaração de planejamentos tributários, alega-


damente inspirada na Ação 12, a Receita Federal do Brasil já regulamentou a
obrigação da Declaração País a País, conforme Ação 13 do citado projeto. Na
política brasileira de acordo para evitar a dupla tributação, inobstante não seja
o país signatário no instrumento multilateral, acordos renegociados (Argenti-
na e Suécia) ou novos acordos (Cingapura e Suíça) já incorporaram uma série
de orientações resultante do Projeto Beps. É bem verdade que, como se sabe, a
legislação brasileira acerca dos preços de transferência é bastante diversa dos
padrões sugeridos no âmbito da OCDE. Todavia, é justamente a tendência de
incorporação de diversas orientações do projeto que demonstra a necessidade
de que se verifiquem sua consistência e conveniência para a solução de confli-
tos e dilemas próprios da tributação internacional que envolvam não apenas
países desenvolvidos, via de regra centrais nos fóruns da OCDE, mas também
países em desenvolvimento que, ao menos até aqui, não assumiram papel ati-
vo no delineamento de políticas fiscais internacionais.
Tais questões se mostram ainda mais relevantes se levado em conta que
o Projeto Beps traz consigo um (re)alinhamento de políticas fiscais interna-
cionais. Em outras palavras, o Plano de Ação se trata de um debate de lege
ferenda, isto é, que envolve o redesenho de regras de tributação internacional
cuja avaliação dependerá de dois fatores, a saber: (i) sua adequação aos funda-
mentos em que se alega estar alicerçado (consistência); e (ii) os efeitos de sua
adoção por um amplo espectro de países (conveniência), sempre dentro da
perspectiva cooperativa a que se pretendeu atrelar o Projeto Beps.
Para tanto, tais questões serão debatidas sob a perspectiva das Ações
08 a 10 (“Assegurar que os resultados de preços de transferência estejam de
acordo com a criação de valor”), por tratar-se de um profícuo caso a ser es-
tudado quanto aos questionamentos trazidos acima. Em primeiro lugar, pelo
fato de que as regras de preços de transferência são lastreadas no princípio
arm’s length, o qual a OCDE endossou expressamente em seu relatório no seio
do Projeto Beps, impondo-se verificar se as soluções propostas pela OCDE
estão alinhadas, e em que medida, com tal princípio. Em segundo lugar, é
inegável que a questão das operações intragrupo – particularmente aquelas
que envolvem intangíveis – são centrais e cruciais no desenvolvimento dos
esquemas tributários cuja publicidade deu ensejo à tendência que originou o
Projeto Beps: centrais, porque são tais regras que possibilitaram a transferên-

261
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

cia de lucros entre jurisdições (profit shifting); cruciais, porque tais esquemas
decorreram de verdadeira cumplicidade entre Administrações fiscais e con-
tribuintes, no sentido de permitir e até mesmo estimular essa tax arbitrage
(PICHHADZE, 2015, p. 102-106). Por essa razão, conveniente investigar para
qual sentido apontam as orientações da OCDE, principalmente na medida
em que traz novo rumo em matéria de preços de transferência, colocando no
centro do debate um inovador critério: a criação de valor.
Por tudo quanto colocado até aqui, o método eleito abordará, basica-
mente, a análise dos principais aspectos do relatório final das Ações 08-10
para confrontá-los, de imediato, com o próprio princípio arm’s length, a fim
de verificar (i) sua pertinência e consistência frente a tal princípio; e (ii) even-
tuais limitações que o princípio imponha a tais soluções.
O plano do trabalho, portanto, partirá da estipulação do conceito a que
se denominou arm’s length, assente na premissa de que não se trata da atri-
buição de qualquer significado possível, mas da identificação de um conteúdo
que seja suportado pela justificação subjacente às regras de preços de trans-
ferência. Em seguida, serão expostos os três aspectos do relatório final a se-
rem explorados: (i) a alocação dos ganhos de sinergia; (ii) a desconsideração
de arranjos contratuais irracionais ou não usuais; e (iii) os intangíveis, par-
ticularmente quanto à questão da criação de valor (e seu reflexos em situa-
ções como rateios de custos e economias regionais). Ao cabo, após verificar a
(manutenção da) importância do princípio arm’s length nos dias atuais, serão
apresentadas algumas conclusões quanto ao multilateralismo e cooperativis-
mo propostos pelo Projeto Beps à luz do caso escolhido para estudo.

1. Fundamento e justificação do princípio arm’s length


É inegável que causa alguma espécie o desprezo, para fins fiscais, do
preço firmado em determinado contrato celebrado entre partes dependentes.
Para ficar com um exemplo singelo, imagine-se um simples contrato de com-
pra e venda celebrado entre matriz e sua subsidiária: o preço, como se sabe,
é elemento necessário para a caracterização desse tipo contratual. Contudo,
as regras de preços de transferência vêm, justamente, para desprezar aquela
condição contratual (preço) e, sem que necessariamente haja qualquer indício

262
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de simulação (hipótese de um pagamento ocultado, desnaturado para outra


operação etc.), estabelecem qual será o preço para fins fiscais.
No entanto, é absolutamente pertinente, para fins de direito tributário,
que se tome o preço praticado entre partes dependentes como aquele que te-
ria sido praticado entre partes independentes. Certo é haver, aqui, uma fic-
ção legal que toma como realizada entre partes independentes (para fins de
atribuição de consequências fiscais) uma operação que, na realidade, se deu
entre pessoas vinculadas (SCHOUERI, 2015b, p. 697). A justificação de tal
regra, restritiva à autonomia privada que rege os contratos, encontra-se na
necessidade de que se comparem indivíduos (e pessoas jurídicas) quanto à
parcela com que contribuirão para o custeio estatal. Isso porque não se podem
comparar preços de operações controladas e de operações independentes, na
medida em que são distintas a tal grau que a comparação seria impossível:
as operações independentes, ao contrário das primeiras, estão submetidas à
lógica de mercado e, portanto, ao típico conflito de interesses entre as par-
tes contratantes. Daí a noção de que as regras de preços de transferência tra-
zem consigo métodos de “conversão” entre “unidades-monetárias de grupo”
e “unidades-monetárias de mercado” (SCHOUERI, 2013, p. 17). A questão,
portanto, deixa de ser a justificação em si do ajuste, mas sua correção, uma vez
que os métodos se pautam, sempre, em uma determinada presunção, isto é,
admitem que partes independentes contratariam daquela forma a que resulta
sua aplicação (SCHOUERI, 2015b, p. 697).
Esse fundamento, portanto, recorre inegavelmente ao princípio da igual-
dade tributária e, em matéria de impostos (como é o caso), à capacidade con-
tributiva, princípio e parâmetro para determinação do montante da parcela
da renda ou do lucro de um indivíduo ou de uma pessoa jurídica que deve ser
vertida ao custeio estatal geral (TIPKE, 1998, p. 63).
Dessa forma, apenas haverá fundamento jurídico – e, por conseguinte,
justificação – para as regras de preço de transferência na condição de serem
entendidas como realizadoras da igualdade tributária, viabilizando a com-
paração entre contribuintes que auferem lucros em operações controladas e
aqueles que a auferem em operações independentes. Daí que, sob a perspecti-
va jurídica, o único conteúdo possível de ser atribuído ao princípio arm’s leng-
th é aquele relacionado à imputação, às operações controladas, das condições

263
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

com as quais se praticariam operações comparáveis entre partes independen-


tes, porque baseado no princípio da igualdade tributária.
A seguir, será verificada a hipótese de que, a partir da análise dos aspec-
tos centrais do relatório final das Ações 08 – 10 do Projeto Beps, a OCDE teria
se afastado do princípio arm’s length assim definido e fundamentado, o que
pode implicar a inconsistência jurídica na aplicação de alguns métodos ou
soluções ali presentes, bem como colocar em questão a conveniência de sua
adoção por países subdesenvolvidos à luz de uma avaliação da política fiscal
cuja implementação pretende a OCDE.

2. Primeiro aspecto: sinergia entre


companhias de grupo multinacional

2.1 Orientação da OCDE: atribuições conforme ação


coordenada e deliberada
O primeiro aspecto escolhido para análise diz respeito à sinergia exis-
tente dentro do grupo, isto é, ganhos e perdas que decorrem exclusivamente
da organização dos negócios na forma de grupo econômico multinacional.
A abordagem da OCDE tem por pressuposto critério decisivo na análise da
sinergia: a existência de uma ação coordenada e deliberada de uma ou mais
entidades do grupo da qual decorra a sinergia analisada.
Exemplo de ganho não decorrente de uma ação específica é a economia
de custos, por exemplo, com honorários advocatícios, contábeis etc. na reali-
zação de contratos, laudos, auditorias na hipótese de realização de negócios
intragrupo. Nessa situação, como é evidente, o ganho não decorre da atuação
específica de um membro do grupo, de modo que a OCDE expressamente
reconhece a desnecessidade de qualquer ajuste baseado no princípio arm’s
length, dada a ausência de uma ação coordenada e deliberada de que tenha
decorrido a sinergia (OCDE, 2015, § 1.158).
Contrária, contudo, é a orientação quanto às situações em que a sinergia
decorre de ações coordenadas e deliberadas, hipótese em que os ganhos ou perdas
devem ser atribuídos na proporção da contribuição de cada entidade na geração

264
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de tal resultado, o que logo traz questões quanto à identificação dessa sinergia, sua
quantificação e, principalmente, o estabelecimento do grau de contribuição de
cada entidade do grupo na sua geração (OCDE, 2015, §§ 1.159-1.162).
O relatório traz interessante exemplo que permite identificar essa distin-
ção proposta pela OCDE. No primeiro caso, é apresentada uma subsidiária (S)
de determinado grupo multinacional que contrata, com parte independente,
um empréstimo cuja notação de crédito (AAA) foi superior àquela que a sub-
sidiária obteria (Baa) se fosse levado em conta, exclusivamente, seu balanço
individual, em razão dos esforços da matriz (P) na elaboração de demons-
trações financeiras. Simultaneamente, a subsidiária (S) contrata empréstimo
do mesmo montante com outra entidade do grupo (T), com juros equivalen-
tes à notação AAA. De acordo com a OCDE, os juros contratados entre as
subsidiárias devem ser considerados arm’s length, porque não apenas eram
equivalentes (dada a notação do crédito) com aqueles praticados em operação
independente, mas também porque nenhum ajuste quanto ao ganho de siner-
gia seria devido, uma vez que a notação obtida pela subsidiária (AAA) teria
decorrido de sua condição de membro do grupo multinacional, e não da ação
coordenada e deliberada de algum outro membro.
Distinta, contudo, seria a situação em que a subsidiária (S) apenas obti-
vesse notação de crédito elevada (AAA) em razão da inclusão da matriz (P)
como garantidora do empréstimo. Nesse caso, sugere a OCDE que seja reali-
zada uma compensação que permita atribuir o ganho de sinergia (correspon-
dente à diferença entre a taxa de juros de uma notação de crédito AAA para
aquela aplicável à notação Baa) à matriz (P), cuja inclusão como garantidora
evidenciou uma ação deliberada e coordenada para assegurá-lo.
Curiosa a distinção, uma vez que a descrição da primeira hipótese deixa
claro os esforços da matriz (P) em elaborar demonstrações financeiras tais que
assegurassem a notação de crédito elevada no grupo206. O risco de tal aproxi-
mação é a constatação de que, no limite, toda sinergia poderia ser atribuída à
matriz de acordo com esse critério, se tomado de forma extrema, uma vez que
a própria organização na forma de grupo econômico.

206 “P is the parent company of an MNE group engaging in a financial services business. The strength
of the group’s consolidated balance sheet makes it possible for P to maintain an AAA credit rating
on a consistent basis” (OECD, 2015, §1.164).

265
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Contudo, a consistência de tal critério frente ao princípio arm’s length é


duvidosa, especialmente se considerado o exemplo tratado no relatório quanto
à concentração da aquisição de bens numa única companhia do grupo. Como
se sabe, quantidade ou volume de aquisição é elemento que influencia direta-
mente na fixação do preço, de modo que a concentração de aquisições é dos
mais clássicos exemplos de ganhos de sinergia. No exemplo, dada companhia
(A) adquire equipamentos por US$ 110/cada, ao invés de US$ 200/cada, em
razão da quantidade adquirida, para suprimento de todo o grupo. Nesse caso,
não entende a OCDE que deva a companhia (A) revender os equipamentos
para as demais companhias do grupo por U$ 200/cada ou preço assemelha-
do (o que significaria reter, na companhia adquirente, os ganhos de sinergia),
mas por preço ligeiramente superior a US$ 110/cada (no exemplo, US$ 116/
cada), tão somente para fixar uma remuneração em razão do serviço prestado
às demais companhias do grupo, consistente na coordenação das aquisições.
De outra banda, caso essa companhia (A) apenas negociasse a aquisição, mas
os fornecedores que entregassem diretamente às demais companhias, menor
ainda deveria ser a remuneração da companhia (A).
Por fim, o relatório aborda situação esquematizada abaixo, em que a
aquisição de equipamentos por duas subsidiárias industriais do grupo é reali-
zada no mesmo momento, de modo a aproveitar um desconto do fornecedor
(para compras acima de 7.500 unidade, um desconto de 5% sobre o preço
nominal, que é US$ 10/unidade). Contudo, a subsidiária responsável pela con-
tração (um centro de serviços compartilhados), orienta o fornecedor a alocar
todo o desconto numa única nota fiscal, emitida na aquisição realizada pela
subsidiária sediada no país “C”, cuja alíquota nominal do imposto sobre a
renda é inferior àquela do país “B”, da outra subsidiária:

266
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Segundo o relatório final, sob tais circunstâncias, a companhia sediada


no país “B” faria jus a uma compensação de US$ 2.500,00, uma vez que o ga-
nho de sinergia decorreu da ação deliberada e coordenada do grupo na obten-
ção dos descontos fundamentaria, à luz do princípio arm’s length, que parte
da economia seja também alocada à subsidiária residente em “B”, nada obs-
tante não exista relação direta entre as duas subsidiárias industriais (o que, à
primeira vista, afastaria até mesmo a necessidade de qualquer compensação).
Da análise dos exemplos dados no relatório, surgem diversas dúvidas.
Como evidenciar uma ação coordenada e deliberada? A possibilidade de con-
centração de compras numa única companhia não decorre, simplesmente, da
organização sob a forma de grupo multinacional? No último exemplo, a ação da
qual decorreu o ganho não foi deliberadamente tomada pelo centro de serviços
compartilhado, que manteve as negociações com o fornecedor? Há, contudo,
um traço comum a todos eles: a exigência de ajustes que, à primeira vista, não
correspondem às condições em que contratariam partes independentes, o que
implica, inevitavelmente, um afastamento do princípio arm’s length.

2.2 Limites decorrentes do próprio princípio arm’s length


Nos exemplos, verificam-se orientações da OCDE no sentido da realiza-
ção de ajustes que dificilmente poderiam ser sustentados a partir da ficção e da

267
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

presunção em que se funda o princípio arm’s length. No primeiro caso de ajuste,


em que a matriz assegurou a notação AAA por ter garantido o crédito da subsi-
diária, não se aventaria que, tendo sido contratada a garantia com terceiros, toda
a economia decorrente da melhoria da notação fosse destinada à garantidora
como custo da garantia. De fato, naquele exemplo em particular, pode-se cogi-
tar algum ajuste baseado no princípio arm’s length, porém relacionado ao custo
da garantia do empréstimo, e não à alocação da sinergia decorrente de uma ação
coordenada e deliberada, o que são coisas completamente diferentes.
O exemplo da centralização das compras é ainda mais evidente. Os des-
contos foram obtidos, exclusivamente, em razão da concentração das aqui-
sições numa subsidiária, que adquiriu propriedade de tais mercadorias para
então revendê-las dentro do grupo. A orientação do relatório, contudo, é que
a revenda se dê a preço ligeiramente superior ao custo de aquisição (para re-
presentar a remuneração pelo serviço de coordenação das compras), desconsi-
derando que as revendas serão em volume inferior e, portanto, se essa mesma
venda fosse realizada entre partes independentes, o preço seria significativa-
mente superior àquele com o qual adquiriu a companhia concentradora das
compras, isto é, sem o desconto. Ademais, tal ajuste sequer se justifica com
base na orientação do próprio relatório quanto à existência de ação coordena-
da e deliberada: ora, que ação coordenada e deliberada se evidenciou por parte
das companhias que adquirirão da subsidiária concentradora das aquisições?
Ao menos na descrição do exemplo, não se pôde verificar a preocupação em
delinear critério firmado pelo próprio relatório.
Novamente, parece não haver dúvidas de que, no exemplo da concentra-
ção das várias aquisições do grupo num único momento para aproveitamen-
to de descontos, a necessidade de “divisão” do desconto global entre todas
as adquirentes igualmente não encontra paralelo nas operações entre partes
não relacionadas. É dizer: o ajuste, na forma de glosa parcial do custo daque-
la entidade à qual não foi alocado desconto, significará lhe impor condição
(preço com desconto) não equiparada àquela que seria praticada, entre partes
independentes, na aquisição da mesma quantidade por ela adquirida (que não
faria jus a qualquer desconto).
O que importa, aqui, é entender o motivo pelo qual o relatório falha ao
propor critérios de alocação de ganhos e perdas de sinergia entre as compa-
nhias do grupo que se baseiem no princípio arm’s length. Trata-se de avaliar

268
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aquilo que se convencionou denominar “falha conceitual”: se é verdade que


o princípio arm’s length tem por efeito o ajuste de operações controladas a
partir da ficção de que teriam sido realizadas entre partes independentes e
mediante a presunção de que partes independentes contratariam sob deter-
minadas condições, assegurando-se a comparabilidade entre contribuintes,
parece evidente a dificuldade de se encontrarem as condições sob as quais
partes independentes contratariam em questão relacionada à sinergia. Isso
porque, conceitualmente, sinergia é algo que decorre única e exclusivamente
da organização das atividades empresariais sob a forma de grupo econômico
multinacional, de tal sorte inexistir qualquer comparabilidade, ainda que em
grau mínimo, com as operações praticadas entre partes independentes, justa-
mente porque inexiste, neste caso, a estrutura de grupo.
Tudo isso leva à conclusão que os ganhos de sinergia não são atinen-
tes ao princípio arm’s length (SCHOUERI, 2015b, p. 699), ao menos não se
considerado o conteúdo estipulado acima a partir da justificação jurídica do
princípio. Por essa razão, qualquer tentativa de ajuste relacionado à sinergia
intragrupo que pretenda basear-se no princípio arm’s length tende a se mos-
trar inconsistente, na medida em que não refletirá as condições sob as quais
partes independentes contratariam – justamente porque não existe situação
comparável fora da organização como grupo econômico.

3. Segundo aspecto: desconsideração arranjos contratuais

3.1 Orientação da OCDE: usualidade e


racionalidade comercial
Outro aspecto relevante do relatório diz respeito à desconsideração de
arranjos contratuais, inserida na necessidade de correta identificação da ope-
ração controlada para, então, proceder-se a comparação com transações entre
partes independentes.
O ponto de partida da identificação de operação controlada deve ser,
aponta o relatório, o seu arranjo contratual. Contudo, a mera consideração
dos instrumentos contratuais pode se mostrar insuficiente para o correto re-
conhecimento da transação em três típicas situações apontadas pelo relató-

269
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

rio: (i)  certas transações podem não estar refletidas ou não estar refletidas
adequadamente nos instrumentos contratuais apresentados pelo contribuinte
(OCDE, 2015, § 1.49); (ii) a conduta das partes dependentes pode diferir da-
quela expressada pelo instrumento contratual (OCDE, 2015, § 1.46); e (iii) os
arranjos contratuais podem diferir daqueles que seriam adotados por partes
independentes atuando de maneira comercialmente racional em circunstân-
cias comparáveis (OCDE, 2015, §§ 1.122-1.125).
Nas duas primeiras situações, a orientação do relatório é no sentido da
consideração das condutas efetivamente praticadas pelas partes dependentes
– o que não deve, a princípio, causar maiores problemas, uma vez que é certo
que a inexistência de instrumento contratual não importa a inexistência de
transação financeira ou relação jurídica, bem como o descompasso entre a
vontade declarada no instrumento contratual e a conduta dos contratantes
(típica situação de dissimulação) implica a consideração, para fins de direito,
da segunda em detrimento da primeira.
A terceira situação, por outro lado, implica a excepcional medida de des-
consideração do arranjo contratual efetivamente levado a efeito por partes
dependentes. De fato, reconhece o relatório sua excepcionalidade, uma vez
que tal desconsideração é fonte provável de dupla tributação (OCDE, 2015, §
1.122), daí porque não pode ser considerada uma alternativa para as Adminis-
trações fiscais diante da mera dificuldade em determinar as condições at arm’s
length da transação. Segundo o relatório, portanto, o elemento chave para a
avaliar a viabilidade da desconsideração é a ausência, na transação controla-
da, da racionalidade comercial de arranjos contratuais que poderiam ter sido
firmados por partes não relacionadas em circunstâncias econômicas compa-
ráveis, levando-se em consideração as “opções efetivamente disponíveis” às
partes vinculadas. Não observado esse critério, aponta o relatório, qualquer
intento de desconsideração redundará em arbitrariedade por parte da Autori-
dade fiscal. O fundamento da desconsideração reside no fato de que, ausente
a mínima racionalidade comercial na transação controlada, será inviável sua
comparação com qualquer outra operação que se daria entre partes não rela-
cionadas, ainda que procedidos ajustes de comparabilidade, pelo singelo fato
de que tal transação sequer existiria numa relação de mercado.
Dois exemplos são trazidos pelo relatório para ilustrar as hipóteses de
desconsideração do arranjo contratual. Na primeira situação, descreve-se

270
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

uma companhia (S1) que desenvolve atividade industrial com relevantes in-
vestimentos em estoque e maquinário, mantidos numa área de recorrentes
enchentes nos últimos anos. Por essa razão, não há mercado ativo de segu-
radoras contra riscos naquela área, o que leva a companhia (S1) a contratar
parte relacionada (S2) para assegurar os estoques e maquinários de riscos,
em contrapartida de um prêmio anual correspondente a 80% do valor dos
ativos segurados. Segundo o relatório final, referida transação é desprovida de
qualquer racionalidade econômica, dada a inexistência de mercado ativo de
seguros em razão da elevada probabilidade de ocorrência do sinistro, além de
se verificarem alternativas mais atrativas e realistas à companhia (S1), como
a transferência dos ativos para outra região ou, simplesmente, a assunção dos
riscos de perda em razão de enchentes. Dado esse contexto, a transação re-
alizada entre as companhias (S1 e S2) não deve ser considerada para fins de
aplicação das regras de preços de transferência.
O segundo exemplo relata uma companhia (S1) que realiza pesquisas
para o desenvolvimento de intangíveis utilizados na criação de novos produ-
tos a serem manufaturados e vendidos. Mediante o recebimento de parcela
única e imediata, a companhia (S1) acorda transferir para outra companhia
associada (S2) direito ilimitado de exploração dos intangíveis que vierem a ser
desenvolvidos. Segundo o relatório, essa operação não seria comercialmente
racional, na medida em que a imprevisibilidade da produção da companhia
(S1) tornaria impossível avaliar a compensação do valor recebido em troca de
resultados futuros de sua pesquisa, razão pela qual alguns ajustes deveriam
ser feitos, requalificando a transação seja como espécie de financiamento da
companhia (S1), seja como licença à companhia (S2), o que ensejaria compen-
sações periódicas pela exploração dos intangíveis.
Quanto aos exemplos do relatório, logo numa primeira análise, deve-se
apontar sua relativa simplicidade e, especialmente com relação ao segundo, a
falta de informação que permitiria uma análise mais acurada. Isso porque, no
segundo caso, o contexto em que a transação se inseriu é crucial para a aná-
lise de sua racionalidade comercial (bem como da existência de alternativas
efetivamente disponíveis) e dos critérios eleitos para requalificação de relações
contratuais. O primeiro caso, por sua vez, serve de ponto de partida para uma
relevante questão: confundem-se irracionalidade comercial e dissimulação?

271
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3.2 Dissimulação e a correta identificação


da operação controlada
Como já visto, a identificação da transação controlada demanda a aná-
lise da conduta efetiva das partes dependentes, de modo a verificar a eventual
existência de espécie de “pacto dissimulatório”, isto é, que os contratantes te-
nham firmado termo aparentando instruir uma determinada relação quando,
na realidade, praticam negócio distinto.
Sob essa perspectiva, cabido questionar se, de fato, o primeiro exemplo
se trata de um contrato de seguro. Tal tipo contratual é caracterizado, essen-
cialmente, por sua natureza aleatória, isto é, faz parte de sua causa jurídica a
proteção econômica contra um dano futuro e incerto. No entanto, ao menos
da descrição do exemplo, é questionável a existência dessa álea no caso con-
creto, no mínimo: há significativo grau de certeza da ocorrência da enchente
e, por conseguinte, do sinistro que se pretende segurar. Diante do descasa-
mento entre o tipo contratual escolhido entre as partes e sua conduta, isso de-
correndo de uma desnaturação da causa do negócio, poderá haver indícios da
existência, de um lado, de um negócio jurídico meramente aparente que ocul-
ta aquele efetivamente acordado entre as partes, evidenciando a ocorrência de
simulação, portanto. Assim, não se tratando de contrato de seguro, as transa-
ções financeiras podem ser requalificadas conforme a estrutura jurídica que
melhor se adeque às circunstâncias fáticas da conduta das partes envolvidas.
Gera, pois, dúvida se toda situação de “irracionalidade comercial”, como se
pretende no relatório, confunde-se com a simulação, nos termos estipulados acima.
É corriqueiro identificar negócios jurídicos praticados por contribuintes
em contexto diverso daquele em que normalmente se identifica referido tipo
contratual. Contudo, é importante assinalar que “racionalidade comercial” ou
a noção adjacente de que dado arranjo deva necessariamente ser o mais vanta-
joso possível para ambas as partes não são categorias jurídicas suficientes para
desconstituir a via contratual eleita pelo contribuinte. Duas razões podem ser
aventadas nesse sentido:
I. não é acertado pressupor que toda relação contratual necessariamente
constituirá a melhor alternativa efetivamente disponível, seja porque
a ideia de “mais vantajoso” é significativamente vaga (no geral sendo

272
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

estipulada num sentido financeiro, apenas), seja porque não é factível


supor que toda relação contratual tenha por substrato uma conduta
racional dos agentes, o que não passa de uma construção teórica ideal
de um modelo da teoria econômica; e
II. embora seja verdade que, em países cujo direito civil adota a cláusula
rebus sic stantibus como exceção ao paradigma do pacta sunt servanda,
a excessiva onerosidade contratual pode ser causa de sua desconsti-
tuição ou reajuste, vale anotar que tal consequência se aplica somente,
via de regra, na hipótese de excessiva onerosidade superveniente, em
razão de substancial alteração no estado de coisas que contextualizou
a contratação, donde não se pode concluir que eventual ausência de
vantagem econômica ótima para ambas as partes infirme a validade do
instrumento contratual.

Com relação ao primeiro fundamento, é questionável a percepção in-


cutida nas orientações da OCDE de que as opções efetivamente disponíveis
devam ser aquelas claramente mais atrativas às partes dependentes que a es-
trutura contratual eleita no caso (OCDE, 2010, § 9.163), um dos critérios para
análise da racionalidade comercial da operação (PAREKH, 2015, p. 300). Em
primeiro lugar, sendo um parâmetro altamente subjetivo, retira a efetividade,
a utilidade e, mais importante, a mínima certeza quanto aos resultados da
aplicação em si do teste da racionalidade comercial da transação, devendo-se
resguardar às multinacionais a liberdade de organizar seus negócios da forma
que melhor lhes convier. Em segundo lugar, a noção de atratividade compor-
tar inúmera concepções (não apenas financeira, como aparenta priorizar o re-
latório), as quais devem ser admitidas pela Autoridade fiscal. Resultado disso,
portanto, é o deslocamento de todo o ônus probatório para o Fisco (ZORNO-
ZA PEREZ e NAVARRO IBARROLA, 2015, p. 513), a quem caberia – sob tais
critérios – demonstrar a absoluta inexistência de qualquer vantagem para o
grupo multinacional (em todos os aspectos e não apenas em termos financei-
ros), ônus de tal gravidade que, por isso, acaba por esvaziar tal critério.
O segundo fundamento, contudo, traz preocupações ainda mais rele-
vantes com o critério da OCDE. Se é verdade que a racionalidade comercial
não é um parâmetro suficiente para a desconsideração de contratos no âmbito
do direito civil, tampouco deve ser esse o resultado para fins fiscais (inclusive

273
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de aplicação do princípio arm’s length). Merece destaque, portanto, o quanto


as premissas assentadas pela OCDE para a desconsideração e requalificação
de contratos passam completamente ao largo de critérios lastreados na teoria
contratual (LANGE, LANKHORST e HAFKENSCHEID, 2015, p. 9-11). Isso
porque, se o grupo multinacional organiza seus negócios sem infringir norma
alguma, estabelecendo relações contratuais condizentes com seu regramento
civil (isto é, ausente hipótese de simulação), não poderia a Autoridade fiscal,
simplesmente, desconsiderar esse arranjo, justamente pelo fato de que tal ar-
ranjo não seria desconsiderado se acordado entre partes independentes. Caso
assim o fizesse, poderia ser identificada, no caso concreto, substancial violação
à liberdade própria da estruturação de negócios, no mais das vezes assegurada
pelas difundidas constituições de cunho liberal, baseando-se num critério in-
suficiente para infirmar contratos que viessem a ser celebrados entre partes in-
dependentes. Sob tais considerações, surgem problemas efetivos de consistência
do critério da racionalidade comercial frente ao princípio arm’s length.

3.3 Limites decorrentes do próprio princípio arm’s length


Como exposto acima, o princípio arm’s length traduz consigo, de uma só
vez, uma ficção jurídica e uma presunção relativa (SCHOUERI, 2015b, p. 697).
A primeira, relacionada à tomada de uma transação realizada entre partes
relacionadas como se entre partes independentes tivesse sido realizada. Aqui,
importante destacar que, como é próprio da ficção jurídica, aplica-se uma
consequência jurídica própria de atos que sabidamente não são aqueles verifi-
cados na realidade jurídica do caso – é o que se pode denominar de técnica de
remissão: baseado na lei, remete-se a uma hipótese (H1) a consequência pró-
pria de outra hipótese (H2), sendo que ambas hipóteses não são semelhantes
(SCHOUERI e BARBOSA, 2014, p. 257-260).
Inegável, portanto, que a aplicação do princípio arm’s length pressupõe um
descolamento, em algum grau, entre o tratamento fiscal atribuído a uma dada
transação e sua realidade jurídica: é o exemplo do ajuste de preço na compra
e venda controlada, comentada acima, em que não se aventa uma simulação
quanto ao montante acordado pelo preço, apenas admite-se uma consequência
jurídico-tributária (dedução de custos ou tributação de ganhos) distinta (quan-
titativamente, no caso) daquela que seria própria da transação realizada. Tudo

274
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

isso lastreado num fundamento de comparabilidade entre operações controla-


das e independentes (isto é, ajusta-se para aproximar controladas de indepen-
dentes), sob contexto da realização da igualdade tributária.
Assente isso, se do arm’s length sempre decorre um descolamento da
realidade, deve-se analisar a razão pela qual, na linha do tópico anterior, a
desconsideração de negócios jurídicos baseada na (ir)racionalidade comercial
constituiu um afastamento, contudo, potencialmente inadmissível.
É bem verdade que a OCDE sempre foi expressa quanto à excepcionali-
dade da requalificação de contratos, justamente pelo potencial de dupla tri-
butação que dela advém. No entanto, até mesmo em razão da dificuldade de
se encontrar um consenso na matéria – inclusive pela resistência de alguns
países em admitir sua consistência frente ao princípio arm’s length (KOO-
MEN, 2015, p. 18) – o relatório final apresentou exemplos excessivamente sin-
gelos e carentes de informação: o primeiro, numa situação típica de completa
desnaturação dos contratos de seguro (dada a ausência de álea); o segundo,
numa análise quanto a supostas alternativas efetivamente disponíveis às par-
tes contratantes sem expor, por outro lado, elementos fundamentais para tal
análise, notadamente o poder de barganha entre os contratantes (PAREKH,
2015, p. 305-306). Por essa razão e diante da falta de critérios efetivos que
se extraiam dos exemplos da OCDE, interessante a proposta de identificar o
limite da requalificação a partir de rigoroso ônus probatório imposto às Auto-
ridades fiscais, a quem competirá provar (i) a absoluta ausência de compará-
veis; (ii) a identificação de condições específicas que não estarão presentes em
transações similares independentes; e (iii) a proporcionalidade da proposta de
transação alternativa (ZORNOZA PEREZ e NAVARRO IBARROLA, 2015, p.
513), o que poderia ser mais bem exprimido como uma razoabilidade no sen-
tido de congruência, isto é, a exigência de uma vinculação da requalificação
fiscal à realidade e à natureza das coisas (ÁVILA, 2015, p. 199).
O que importa, aqui, é que a proposta de se entender como excepcional
apenas aquelas hipóteses que atendam aos três critérios acima mencionados,
mantendo-se o maior grau possível de vinculação à realidade (jurídica) deline-
ada pelo contribuinte, acaba por esvaziar a racionalidade comercial enquanto
critério para a requalificação de arranjos contratuais. Isso porque a definição
implícita de racionalidade comercial traz consigo noções como alternativas efe-
tivamente disponíveis e opções claramente mais atrativas que, no final das con-

275
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tas, vão muito além da excepcionalidade pretendida nos termos postos acima.
De fato, se adotadas as limitações ali discutidas, baseadas no rigoroso ônus de
prova da Autoridade fiscal, tem-se, ao cabo, que as situações admitidas para a
requalificação serão tão somente aquelas em que a irracionalidade assume um
grau tão extremo que se tem a própria desnaturação do negócio jurídico cele-
brado vis-à-vis ao tipo contratual eleito, como é o caso do primeiro exemplo.
E nem poderia ser diferente. Realmente, da leitura do Artigo 9(1) da Con-
venção-Modelo da OCDE, base normativa para a aplicação do princípio arm’s
length no contexto dos acordos de bitributação, é determinado o ajuste de pre-
ços de transferência quando estabelecidas condições entre partes dependentes
que difiram daquelas que teriam sido estabelecidas entre partes independen-
te, e não na hipótese em que difiram daquelas que teriam sido estabelecidas
entre partes independentes que atuassem de maneira comercialmente racional
(LANGE, LANKHORST e HAFKENSCHEID, 2015, p. 9). Por outro lado, cri-
térios baseados na racionalidade econômica e na existência de alternativas viá-
veis mais favoráveis, da forma como exposta pela OCDE, parece pressupor que
transações entre partes independentes se deem, necessariamente, com o fito do
lucro meramente financeiro (cerne do seu conceito de racionalidade comercial)
– o que é controverso e vai além, portanto, do princípio arm’s length.
Não se pode olvidar, nesse ponto, que a noção do contrato como instru-
mento de troca de riquezas, numa perspectiva ótima, isto é, de maximização
de ganhos de ambas as partes (KOOMEN, 2015, p. 4) é, para dizer o mínimo,
mitigada com a constatação da existência de falhas de mercado, notadamente
assimetrias de informação e externalidades não monetarizadas (SCHOUERI,
2015a, p. 42-45). De outra banda, tampouco é verdadeiro que partes indepen-
dentes sempre atuarão de modo comercialmente racional, mesmo porque é pró-
prio do comportamento humano traços de limitada racionalidade e, no mais
das vezes, de oportunismo. Analisando a questão sob a perspectiva de teorias de
negociação e de tomada de decisões, evidencia-se uma série de situações em que,
diante do conflito próprio da contratação entre partes independentes, os nego-
ciantes tendem a chegar a um resultado não ótimo (LANGE, LANKHORST e
HAFKENSCHEID, 2015, p. 11), como bem exemplifica o “dilema do prisionei-
ro” e outros problemas da teoria de jogos (PAREKH, 2015, p. 306).
Outro aspecto essencial para a identificação da racionalidade comercial
como um critério que vai além do arm’s length é a constatação de que nem

276
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sempre partes independentes entram em arranjos objetivando a maximização


de seu fluxo de caixa (como parece sugerir o relatório, especialmente com
o segundo exemplo). É o caso, para ficar num exemplo singelo, de agentes
propensos ao risco, de comportamento econômico arrojado e especulativo,
para os quais as vantagens de dado arranjo contratual decorrem muito mais
da chance de elevados ganhos, ainda que em probabilidades mitigadas, se
comparada com a certeza de um fluxo de caixa garantido. Especuladores são
racionais? Complexo e, em certa medida, despiciendo introduzir espinhosa
questão no campo – já tormentoso – dos preços de transferência.
Em suma, o que importa consignar é que, embora os ajustes de preços
de transferência sempre impliquem um descolamento da realidade (jurídi-
ca) mediante a técnica de remissão (ficção), esse afastamento deve ser (i) o
menor possível, mantendo-se na maior medida o arranjo contratual firmado
pelas partes independentes; (ii) estritamente justificado nas condições sob as
quais partes não relacionadas contratariam. Assim, atende-se à natureza de
presunção relativa dos ajustes de preços de transferência: muitas vezes, não
existem terceiros independentes que participem de transações idênticas àque-
las levadas a efeito pelas empresas associadas; contudo, deve-se presumir que
tais ajustes modulem a operação controlada o mais próximo possível das con-
dições contratadas entre independentes, nada além disso.
Quanto ao relatório final, os exemplos – porque singelos – demonstram
situações passíveis de desconsideração do arranjo contratual: o primeiro, por-
que desnaturado o contrato de seguro dada a virtual ausência de álea; o se-
gundo, porque, em que pese a ausência de informações (especialmente quanto
ao poder de barganha entre as partes), orienta no sentido de um ajuste no pre-
ço (condição da transação), mantendo relativamente íntegra a natureza jurídi-
ca da operação em si, qual seja, de transferência de intangíveis (circunstância
da transação, cuja desconsideração pode acarretar sérios problemas quanto
ao arm’s length). Os demais ajustes, no segundo caso, devem ser realizados
nas operações independentes (ajustes de comparabilidade), e não na transação
legitimamente firmada pelos contribuintes.
Em suma, apesar da simplicidade dos exemplos, a manutenção de um
critério baseado na racionalidade econômica e nas demais alternativas efeti-
vamente disponíveis às partes evidencia um potencial afastamento do princí-
pio arm’s length, o que pode eliminar a justificativa dos ajustes.

277
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4. Terceiro aspecto: intangíveis e


a questão da criação de valor

4.1 Aplicação do “princípio da criação de valor” e


alocação dos resultados relacionados ao intangível
De tudo quanto discutido até aqui, evidenciaram-se pontos sensíveis em
que as orientações constantes do relatório final se distanciam do princípio
arm’s length. No entanto, em nenhum dos casos acima, o contraste entre tal
princípio e as orientações da OCDE é tão expressivo como no caso dos intan-
gíveis – e, por conseguinte, tão evidentes as consequências de tal afastamento.
De fato, não se pode olvidar que os grandes esquemas de planejamento
tributário internacional, estruturados por empresas multinacionais verdadei-
ramente globais, envolveram a manipulação de regras de preços de transferên-
cia no tocante a intangíveis essencialmente. Avaliar o princípio arm’s length e
sua aplicação nesses casos traz à tona, de imediato, questões de praticabilidade
próprias da dificuldade de identificação de operações comparáveis.
Diante desses impasses, a solução indicada pela OCDE, em termos ge-
rais, aponta no sentido de um novo critério de comparação, pretensamente
abrigado pelo princípio arm’s length: a criação do valor do intangível.
Identificado “intangível” como um ativo imaterial, de caráter não finan-
ceiro, de cujo uso ou de cuja transferência deverão decorrer compensações
financeiras (OCDE, 2015, § 6.7), a questão centra-se na avaliação quanto a
qual entidade os resultados relacionados ao intangível, sob condições arm’s
length, devem ser atribuídos. Segundo o relatório, o ponto de partida para
tanto é a identificação de sua propriedade legal, o que, contudo, não basta para
a atribuição dos respectivos resultados, na medida em que deverão ser atribu-
ídos às demais entidades que desempenharam funções, assumiram riscos ou
utilizaram ativos que tenham contribuído à criação do valor de tal intangível
(OCDE, 2015, §§ 6.47-6.49).
Sendo assim, o relatório estabelece uma noção econômica ou funcional
de propriedade do intangível como critério determinante na alocação arm’s
length dos resultados dele decorrentes, caracterizada pelo desenvolvimento de
funções como delineamento e controle dos programas de pesquisa e marke-

278
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ting, gerenciamento e controle orçamentário, controle sobre decisões estraté-


gicas relacionadas ao desenvolvimento do intangível, bem como relacionadas
à proteção do intangível, assim entendidas como funções que usualmente con-
tribuem decisivamente para o valor do intangível (OCDE, 2015, § 6.56). Assim
sendo, é com base nesse critério, vale dizer, do local em que tais funções são
exercidas que, via de regra, deve-se alocar o resultado relativo à exploração do
intangível – sendo que, se seu proprietário legal não controla, nem desempe-
nha diretamente nenhuma dessas funções relacionadas ao desenvolvimento,
aprimoramento, manutenção, proteção ou exploração do intangível, não será
a mera propriedade legal que, segundo o relatório, lhe garantirá alguma par-
cela do resultado a ele relacionado (OCDE, 2015, § 6.54).
Tais critérios concretizam, portanto, a denominada criação do valor, se-
gundo a qual os resultados da atividade econômica devem ser alocados no
local em que criado seu valor e assim entendida como, no caso de intangíveis,
a atividade intelectual relacionada ao seu desenvolvimento, aprimoramento, à
sua manutenção, proteção ou exploração.
Firmadas as premissas sobre as quais se fundam as diretrizes da OCDE
na questão dos intangíveis, três casos concretos podem ser reveladores das
consequências de tal perspectiva: (i) as hipóteses de subcontratação e rateio de
custos no desenvolvimento de intangíveis; (ii) as implicações da transferência
da propriedade legal de intangíveis; e (iii) a alocação das vantagens (econo-
mias) regionais, a partir do que tais situações poderão ser avaliadas à luz de
sua consistência frente ao princípio arm’s length.

4.1.1 Subcontratação e rateio de custos no


desenvolvimento de intangíveis
O relatório da OCDE, como visto, privilegia expressamente uma pers-
pectiva funcional da propriedade dos intangíveis. No entanto, ali mesmo se
reconhece que nem sempre as funções cruciais para a criação de valor de in-
tangíveis são desempenhadas por uma única entidade, sem que isso signifi-
que, por si só e imediatamente, que ao proprietário legal do intangível não
deveria ser alocada parte alguma dos resultados dele decorrentes. Nesse caso,
imprescindível será que o proprietário legal, portanto, mantenha todo o con-
trole sobre as atividades de pesquisa e desenvolvimento e, caso não as tenha

279
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

realizado diretamente, proveja compensações aos subcontratados para que se


aloquem a eles resultados decorrentes do intangível de acordo com critério
que leve em consideração as funções desempenhadas, os riscos assumidos e
os ativos empregados em seu desenvolvimento (OCDE, 2015, §§ 6.51 e 6.53).
A consequência será a necessidade de que serviços de pesquisa prestados
intragrupo sejam remunerados não de forma fixa e acordada previamente ao
desenvolvimento do intangível, mas com base nos resultados reais de sua explo-
ração, cuja lucratividade apenas será efetivamente avaliada posteriormente ao
seu desenvolvimento (actual, ex post returns) (OCDE, 2015, §§ 6.69-6.70 e 7.41).
Situação idêntica ocorre com os acordos de compartilhamento (rateio) de
custos, definido no relatório como um arranjo contratual entre empresas para
compartilhar suas contribuições e riscos relacionados ao desenvolvimento, pro-
dução ou obtenção de ativos tangíveis ou intangíveis, bem como de serviços
decorrentes da utilização de tais ativos ou, ainda, serviços dos quais se espera
a criação de benefícios para a atividade empresarial individual de seus partici-
pantes (OCDE, 2015, § 8.3). Como se pode ver, trata-se de arranjo que vai além
do desenvolvimento de intangíveis; contudo, é nesse particular que se revelam
com maior nitidez as particularidades do relatório da OCDE acerca da matéria.
Isso porque o foco da análise deve ser centrado na avaliação do valor
da contribuição de cada participante, que não necessariamente se confundi-
rá com o custo financeiro da atividade que tenha ficado sob sua responsa-
bilidade (OCDE, 2015, §§ 8.11-8.13), o que é sensível em rateios voltados ao
desenvolvimento de intangíveis, já que pode haver significativa discrepância
na relevância das contribuições quanto à criação de seu valor, na linha das
diretrizes da OCDE. De fato, nessa situação, o valor da contribuição de cada
participante levará em conta a tecnologia empregada no desenvolvimento do
intangível, de forma que o relatório é bastante enfático ao apontar que uma
compensação às partes do rateio baseada no reembolso do custo acrescido de
pequena margem de lucro (como, ademais, é praxe em tais arranjos) pode não
refletir o valor da contribuição da equipe de pesquisa no desenvolvimento do
intangível (OCDE, 2015, §§ 6.79 e 8.26).

280
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4.1.2 Transferência da propriedade legal de intangíveis


A transferência da propriedade legal de intangíveis também é fortemen-
te impactada com as novas diretrizes da OCDE, especialmente com relação
àqueles denominados “intangíveis de difícil avaliação”. Segundo o relatório,
tais transações são caracterizadas pela presença dos seguintes elementos (ain-
da que não cumulativamente): (a) desenvolvimento apenas parcial do intan-
gível no momento da transferência; (b) ausência de expectativa de exploração
econômica por muito anos após a transferência; (c) expectativa de exploração
inovadora do intangível, o que torna projeções de rentabilidade bastante in-
certas; (d) pagamento único por ocasião da transferência; ou (e) desenvolvi-
mento do intangível mediante subcontratação ou compartilhamento de cus-
tos (OCDE, 2015, § 6.190).
Transações com tais características são, portanto, dotadas de conside-
rável assimetria de informações entre contribuintes e Administrações fiscais
(OCDE, 2015, § 6.191). Nesses casos, a orientação do relatório é no sentido da
precificação do intangível a partir dos resultados verificados posteriormente
à transferência (ex post outcomes) (OCDE, 2015, § 6.192) – o que, na prática,
significa a desconsideração da propriedade legal e seguir o esquema geral de
alocação dos resultados relacionados ao intangível de acordo com a parcela de
contribuição de cada empresa associada na criação de seu valor207.

4.1.3 Vantagens relacionadas a mercados locais


Finalmente, a terceira situação diz respeito à alocação das vantagens re-
lacionadas a mercados locais. Tais vantagens podem se verificar, basicamen-
te, de duas formas: (i)  redução de custos, em razão do desenvolvimento da
atividade econômica em localidade com inexpressivos custos trabalhistas, de
infraestrutura e demais dispêndios operacionais; ou (ii) maximização de re-

207 Há, de todo modo, algumas exceções e essa orientação, basicamente relacionadas (i) ao fornecimento
de detalhada informação pelos contribuintes acerca das circunstâncias da precificação à época
da transferência; (ii)  à existência de eventos futuros imprevisíveis à época da transação; (iii)  à
existência de acordos de precificação com Administrações fiscais; e (iv) à fixação de safe harbors
quantitativas (20% de diferença) e temporal (cinco anos de exploração comercial compatível com a
precificação da transação) (OCDE, 2015, § 6.193).

281
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ceitas, dadas particularidades do mercado local (pressão de demanda, acesso


limitado ao mercado etc.) (LANGE e LANKHORST, 2014, p. 223).
Assim como na hipótese dos acordos de compartilhamento de custos, não
se trata de questão exclusivamente relacionada a intangíveis. No entanto, é jus-
tamente a conjunção de tais vantagens à exploração de um intangível (notada-
mente uma marca altamente valorizada) que tratará os maiores problemas de
aplicação, considerando a provável ausência de comparáveis disponíveis.
Exemplo corriqueiro dessa conjunção é a hipótese em que dada multi-
nacional responsável pela produção e venda de artigos de luxo de renomado
designer europeu transfere sua atividade industrial para país cujos custos ope-
racionais são relativamente baixos (como a Índia, por exemplo), bem como
explora mercados comerciais em que há demanda tal que consumidores es-
tão dispostos a pagar um maior preço por elas (como seria o caso da China)
(LANGE e LANKHORST, 2014, p. 223).
Na hipótese de tais vantagens ficarem retidas no grupo (isto é, não te-
nham sido repassadas aos clientes mediante redução de preços), a OCDE pro-
põe dois tratamentos específicos, conforme se verifiquem, ou não, compará-
veis nos mercados de tais produtos. Havendo, deverá ser verificado o preço
praticado entre partes independentes em operações similares e fixá-lo como o
preço arm’s length (OCDE, 2015, § 1.142). O problema, contudo, está no fato
de que a identificação de tais comparáveis tende a encontrar bastante dificul-
dade, especialmente no setor dado como exemplo (artigos de luxo), conside-
rando que o valor agregado da marca e a exclusividade das peças tendem a
inviabilizar comparação entre operações – além do fato de que, tipicamente,
tais vantagens regionais decorrem da transferência da atividade econômica do
grupo multinacional para país de baixo custo, e não na terceirização da ativi-
dade (contratação de terceiro independente), o que mitiga, ainda mais, a pro-
babilidade de identificação de operações não controladas para comparação.
Ausentes comparáveis no mercado local, a determinação acerca da exis-
tência e alocação das vantagens regionais do grupo multinacional deverá ser
baseada, de acordo com a OCDE, na análise de todos os fatos e circunstâncias
relevantes, levando-se em conta as funções desenvolvidas, os riscos assumidos
e os ativos empregados pelas empresas associadas (OCDE, 2015, § 1.143).
Evidente que, aqui, tratando-se de vantagens regionais relacionadas à
exploração de intangíveis (marca, por exemplo), a análise funcional orientada

282
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

pela OCDE levará em conta, inevitavelmente, a criação do valor, verificando-


-se tendência no sentido de que tais vantagens sejam alocadas no local em
que criado o valor da mercadoria e seu intangível adjacente, isto é, no local da
atividade intelectual relacionada ao seu desenvolvimento, aprimoramento, à
sua manutenção, proteção ou exploração.

4.2. Limites decorrentes do próprio princípio arm’s length


Seguindo a metodologia aqui proposta, confrontar as orientações da
OCDE frente ao princípio arm’s length significa questionar como partes inde-
pendentes contratariam nas condições avaliadas (SCHOUERI, 2015b, p. 695),
o que demanda analisar ponto a ponto as situações exemplificadas acima.
Antes, contudo, algumas características chamam atenção quanto às
orientações da OCDE e à denominada criação de valor. Em primeiro lugar,
o relatório dá relevada importância à análise das funções desempenhadas em
detrimento da propriedade legal e da própria atribuição (assunção) de riscos
contratualmente estipulados (LANGE, LANKHORST e HAFKENSCHEID,
2015, p. 12). Essa abordagem traz consigo as dificuldades hoje já existentes
na aplicação dos métodos de preços de transferência sugeridos pela OCDE,
notadamente quanto à praticabilidade da análise funcional na alocação dos
lucros, demandando elevada casuística e complexa documentação por parte
dos contribuintes. Ademais, é fato que, no contexto da globalização, decisões
estratégicas podem ser tomadas pelo grupo de altos gerentes em qualquer lu-
gar; trabalhos podem ser compartilhados, divididos ou até mesmo terceiriza-
dos; decisões, portanto, são tomadas rapidamente e de forma descentralizada
(GARBARINO e D’AVOSSA, 2015, p. 16).
Há, ainda, um problema conceitual com a proposta do OCDE, que aca-
ba desconsiderando o fato de que a propriedade legal do intangível decorre de
transação ou evento relevante para a alocação do lucro a ele correspondente.
Isso porque, ou bem o intangível foi desenvolvido pela subsidiária, que empre-
gou recursos aportados de sua matriz no seu desenvolvimento, ou bem referido
intangível, desenvolvido na jurisdição da matriz, foi transferido à subsidiária.
Na primeira hipótese, é difícil conceber justificativa para que se aloquem, na
matriz, rendimentos e lucros decorrentes de intangível que nunca estiveram sob

283
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sua propriedade legal. Na realidade, propô-lo significa, no limite, aproximar-se de


um sistema de tributação universal real (“real universal taxation system”), com a
absoluta desconsideração do princípio da entidade e todas as questões que se po-
dem colocar acerca da legitimidade desse modelo (LAVEZ, 2013, p. 302).
Na segunda hipótese, de transferência ou subcontratação, ignora-se que a
aquisição do intangível gerou, inevitavelmente, um preço ou um custo. Assim, o
problema a ser enfrentado não é a transferência do intangível ou a subcontratação
na sua elaboração, mas o valor atribuído a tais operações. Isso porque, uma vez
entendido que a transferência ou subcontratação deu-se a valor de mercado, care-
cerá de fundamento eventual pretensão para a posterior complementação da base
tributável daquele que transferiu o intangível ou que tenha sido subcontratado
para seu desenvolvimento. O mesmo vale quando o intangível é transferido ainda
com baixo valor, antes que se torne um direito com elevado valor agregado. Tudo
isso porque é essa a situação que se teria caso essa transferência ou subcontratação
se desse entre pessoas não vinculadas, ou seja, é esse o resultado que se pode espe-
rar da aplicação do princípio arm’s length.
O subsequente evento de supervalorização do intangível dificilmente
poderia justificar, entre partes independentes, espécie de complementação na
parcela dos resultados supervenientes a ser atribuída àquela que o transferiu.
E isso por dois motivos: em primeiro lugar, insuficientes as considerações ge-
rais do relatório quanto à “imprevisibilidade” dos eventos que levaram à va-
lorização do intangível, uma vez que é justamente essa a premissa do negócio,
em se tratando de intangíveis de difícil avaliação, especialmente se transfe-
ridos antes de concluída a pesquisa ou a inserção em mercado. Em segundo
lugar, ignora-se o risco financeiro envolvido pela aquisição (pela subsidiária)
de intangível ainda em desenvolvimento e não inserido no mercado, dada a
incerteza quanto à sua rentabilidade.
O exemplo das vantagens regionais é ainda mais sintomático do des-
colamento das orientações da OCDE face ao princípio arm’s length: como é
evidente, a alocação da economia decorrente da localização do contratado
dependerá, quase que exclusivamente, das relações de oferta e demanda para
aqueles serviços ou produtos naquele mercado (LANGE e LANKHORST,
2014, p. 224). Em outras palavras, existentes numerosos agentes econômicos
dispostos a desenvolver a mesma atividade a ser contratada, a vantagem re-
gional tende a ser repassada ao contratante, diminuindo-se os preços con-

284
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tratados; ao contrário, se inexistente concorrência para aquele determinado


setor econômico (o que, em geral, é o caso da manufatura de artigos de luxo,
dado o alto grau de especificidade), a tendência seria de retenção dos ganhos
com o contratado local, majorando-se o preço contratado. No entanto, pelo
que se pode perceber da orientação da OCDE, carece de relevância a análise
do poder de barganha entre as empresas associadas, nitidamente vinculado
às particularidades do mercado em que desenvolvida a atividade econômica.

5. As Ações 8-10 do BEPS na perspectiva dos


países em desenvolvimento: Arm’s length,
criação de valor e inter-nation equality
Os três aspectos analisados até aqui permitem concluir um razoável
afastamento das orientações da OCDE do princípio arm’s length, especial-
mente em matéria de sinergia, recaracterização de operações e intangíveis,
na medida em que não refletem ajustes que impliquem condições que seriam
contratadas entre partes independentes.
Assentados os distanciamentos mais significativos, cabe analisar a hipó-
tese de que o relatório final é, a um só tempo, inconsistente com a justificação
das regras de preços de transferência e inconveniente que venha a ser imple-
mentado, especialmente por aqueles países periféricos no debate das políticas
fiscais internacionais, em geral capturado pelos membros da OCDE.
Em primeiro lugar, distanciando-se do arm’s length, as regras de preço
de transferência passam a carecer de fundamento jurídico. Na medida em que
implicam razoável restrição à liberdade dos contribuintes em organizarem
suas atividades econômicas (já que desconsidera condições contratuais firma-
das entre partes independentes), tais ajustes somente podem ser admissíveis se
escorada na realização da igualdade tributária, isto é, se revelados indispensá-
veis para a justa comparação entre contribuintes.
De outro lado, por mais que se apontem dificuldades em sua aplicação,
o princípio arm’s length sob essa perspectiva (assegurar a comparabilidade
entre dependentes e independentes) traz consigo a segurança de que outro
critério não será válido senão a aproximação da transação controlada com
aquela que teria sido realizada entre partes independentes em condições com-

285
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

paráveis. O que se vê, no entanto, são orientações no sentido da consolidação


de um princípio da criação de valor, que dá exacerbada ênfase a determina-
das funções no desenvolvimento da atividade econômica em detrimento de
outras, desprivilegiando a alocação contratual de riscos e a propriedade legal
(decorrente de ato oneroso, no mais das vezes) de intangíveis. É, pois, duvi-
dosa a aderência da criação de valor ao princípio arm’s length, na medida em
que toma por pressuposto que somente algumas atividades agregam valor a
uma determinada atividade econômica, o que se demonstrou não ser de todo
verdadeiro se consideradas operações entre partes independentes.
O que não se pode olvidar, de todo modo, é que a ampla maioria dos acor-
dos de bitributação disciplinam a matéria dos preços de transferência sob a égi-
de do princípio arm’s length, de sorte que enublar seu sentido somente poderá
implicar numerosos conflitos, cujo resultado certo é, pois, a dupla tributação. E,
aqui, é fundamental salientar que não parece legítimo que, sob premissas rele-
vantes como aquelas sobre as quais se fundou o Projeto Beps, se deixe de lado o
acúmulo de quase um século no combate à dupla tributação. Pode-se aventar a
mitigação das oportunidades de dupla não tributação; o que não se pode admi-
tir é que isso se dê às custas de um retrocesso em questões já bem desenvolvidas.
Se são inconsistentes, também é inconveniente a adoção de tais medidas
aos países subdesenvolvidos. Isso porque, se afastado o princípio arm’s length
em seu conteúdo aqui estipulado, deixa de existir um critério genuinamente
e a priori preferencial para determinação dos ajustes. Tanto é assim que, da
leitura do relatório final da OCDE, pôde-se perceber uma concepção segundo
a qual a criação do valor de determinada atividade econômica se encontra
justa e exclusivamente no local em que desenvolvida a ideia, a pesquisa, o
intangível: vale dizer, em países desenvolvidos. Dois exemplos bem ilustram
essa questão. A sinergia, enquanto ganho ou perda decorrente exclusivamente
da conformação da atividade na forma de grupo multinacional, ser alocada na
jurisdição cuja companhia residente tiver contribuído, de forma coordenada e
deliberada, para sua geração é dizer, no mais das vezes, que tais ganhos devem
ser atribuídos à matriz que, via de regra, localiza-se em países centrais da po-
lítica econômica mundial – em ajustes que, como se viu, dificilmente podem
ser justificados pelo princípio arm’s length.
Ainda mais sintomática é a questão das vantagens regionais: a proposta
de alocação de tais ganhos conforme circunstâncias como as funções desem-

286
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

penhadas, os ativos empregados e os riscos assumidos (com a clara conotação


do princípio da criação de valor) ignora por completo que referida economia
relaciona-se muito mais com o mercado em si no qual a atividade econômica
é desenvolvida (mão-de-obra barata, menores custos de infraestrutura etc.)
do que com a criação do valor do intangível subjacente à atividade, sobretudo
num contexto em que praticamente se nega a mínima contribuição do merca-
do para tal agregação de valor, o que é acintosamente equivocado – e compro-
vado pelo caso das vantagens regionais.
Evidencia-se, assim, a inconveniência da adoção de tais paradigmas por
países subdesenvolvidos, típicas economias em que a atividade será desenvol-
vida através de aportes de capital estrangeiro, deixando claro que a proposta
da OCDE de mudança de rumos da política fiscal internacional, especialmen-
te em matéria de preços de transferência, não é justificada nem pela compara-
bilidade entre contribuintes (porque inconsistente com o princípio arm’s len-
ght), tampouco pela perspectiva da inter-nations equality, na medida em que
desloca o debate dos preços de transferência de um campo eminentemente
jurídico (mecanismos de comparabilidade) para o campo próprio da política
internacional. Esse cenário, contudo, é extremamente desfavorável para países
que não estejam no centro dos fóruns de tributação internacional, justamente
por prescindir de um critério jurídico apriorístico (porque descolado do arm’s
length, cujo critério é a comparabilidade) e por basear-se numa decisão de
conveniência política em que países com menor poder de barganha – como é
o caso dos subdesenvolvidos – podem verificar as principais diretrizes serem
capturadas pelos interesses dos países centrais nesse campo.

6. Conclusões
Das considerações trazidas até aqui, demonstrou-se o relativo descolamento
das orientações da OCDE, no contexto do Projeto Beps, do princípio arm’s leng-
th, consagrado nas convenções para evitar a dupla tributação, particularmente se
entendido como realização da igualdade tributária. Afastar-se de tal parâmetro,
além de tornar as regras de preços de transferência carentes de embasamento ju-
rídico, potencializa a ocorrência de dupla tributação, na medida em que se per-
dem critérios apriorísticos de avaliação das operações controladas por parâmetros
próprios de política fiscal, menos voltados à comparação entre contribuintes que

287
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

à alocação de bases imponíveis entre os estados, com base num critério simples-
mente fruto de uma escolha política (criação de valor).
Elege-se como critério a criação de valor, assim entendida como o desenvol-
vimento do intangível de cuja exploração derivam os resultados econômicos da
atividade. Fica preterida, como evidenciado, a relevância do mercado na agrega-
ção de valor à atividade econômica, premissa dificilmente refutável e que não se
fez presente no relatório final da OCDE em matéria de preços de transferência.
Sob tais perspectivas, resta claro que a mudança de rumos da política fis-
cal pretendida pela OCDE (ao menos em matéria de preços de transferência) não
apenas se apresenta inconsistente com o princípio arm’s length, como também sua
adoção pode revelar-se inconveniente para países em desenvolvimento, na medi-
da em que tendem a ficar alijados desse peculiar conceito de “criação de valor”.

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290
10. BEPS e o Plano de Ação n. 10:
Considerações sobre Serviços de Baixo Valor
Agregado, Método de Commodities e o
Método da Divisão de Lucros Transacionais

Paulo Ayres Barreto


Advogado, Livre-Docente em Direito Tributário e Professor
Associado na Universidade de São Paulo (USP).

Hugo Marcondes Rosestolato da Costa


Advogado. Mestrando em Direito Tributário pela
Universidade de São Paulo (USP). Especialista em
Direito Tributário e Processual Tributário.

Resumo: O presente artigo visa a examinar os possíveis impactos das


conclusões alcançadas pela OCDE no Relatório Final do Plano de Ação nº 10
do Projeto BEPS, em face da legislação brasileira. Para tanto, serão expostas as
premissas declaradas do referido Projeto da OCDE, notadamente coerência,
consideração da agregação de valor e transparência. Em seguida, será exami-
nada a reafirmação do princípio arm´s length pela OCDE e a forma como este
se relaciona com a legislação brasileira de preços de transferência. Traçado
esse cenário, serão analisadas as conclusões alcançadas no tocante aos três
principais pontos do Relatório Final do Plano de Ação 10 (serviços intragrupo
de baixo valor adicionado, método das commodities e método da divisão de
lucros) e sua relação com o contexto brasileiro.
Palavras-Chave: BEPS, Plano de Ação 10, preços de transferência, commodities.
Abstract: The present article aims to examine the possible impacts that
the conclusions reached by the OECD on BEPS´ Final Report on Action Plan
10, may have considering the Brazilian legislation. In order to do so, the an-
nounced premises of the Project will be exposed: notably, coherence, conside-
ration of value-adding activities and transparency. Following, the reaffirma-
tion of the Arm´s Length Principle and the way in which it relates to Brazi-

291
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

lian Law will be analyzed. Considering this scenario, the conclusions reached
regarding the three main points of the Final Report on Action Plan 10 (low
value-adding intragroup services, commodities method and profit-split me-
thod) will be analyzed, as well as their relations to the Brazilian context.
Key-Words: BEPS, Action Plan 10, transfer pricing, commodities.

Introdução
Visando combater o agravamento do problema da erosão da base tribu-
tável das nações em razão de planejamentos tributários internacionais tidos
como agressivos, a Organization for Economic Co-operation and Develop-
ment (“OECD”) publicou em 12 de fevereiro de 2013, por provocação do G20,
estudo intitulado “Endereçando a erosão da base tributável e a transferência
artificial de lucros” (OECD, 2013).
Nesse documento, que gerou grande repercussão no plano internacional,
foi intentado o dimensionamento das perdas enfrentadas pelos estados em
decorrência do que se convencionou denominar de BEPS (Base Erosion and
Profit Shiffting).
Em uma análise, ainda que circunstancial, acerca da real extensão do
problema, é indicado que em 2010 Barbados, Bermudas e Ilhas Virgens Britâ-
nicas receberam, em conjunto, 5,11% do total global de Investimento Externo
Direto (“IED”), ao passo que países como Alemanha e Japão, conhecidos pela
representatividade na indústria mundial, receberam, respectivamente, 4,77%
e 3,76% do IED global (OCDE, 2013, p. 17).
Também chamam a atenção dados referentes a investimentos realizados
através de sociedades de propósito específico208 (“SPE”), residentes em países de
baixa ou nenhuma tributação, atuando com função de holding ou de prestação
de serviços financeiros intragrupo. Em 2011, por exemplo, o total de investi-

208 A OECD define SPEs como sendo empresas que atendam aos seguintes requisitos: (i) ser formalmente
registrada e sujeita as obrigações fiscais e legais do país onde é residente; (ii) ser, em última análise,
controlada, direta ou indiretamente, por empresas domiciliadas em outras jurisdições; (iii) ter
poucos ou nenhum empregado e pouca ou nenhuma produção no país de residência, além de pouca
ou nenhuma presença física; (iv) ter quase a totalidade de seus ativos e riscos representados por
investimentos internacionais; (v) ter como função principal o desempenho de atividade de holding
ou de prestação de serviços financeiros intragrupo. (OECD, 2013, p. 22).

292
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mentos recebidos pela Holanda foi de USD 3,2 bilhões, ao passo que os investi-
mentos recebidos através de SPEs foram de USD 2,6 bilhões (OECD, 2013, p. 18).
Como um dos principais fatores do agravamento deste problema, que se
tornou mais evidente com a globalização, o estudo apontou que as regras uni-
laterais, bilaterais e multilaterais de tributação internacional não foram capa-
zes de acompanhar o crescente nível de integração econômica internacional.
Isto se deu em função do fato de que, hodiernamente, as empresas multi-
nacionais (Multinational Enterprises – “MNEs”) estão estruturadas com base
em matrizes organizacionais e gerenciais globais, com cadeias de suprimentos
e produção mundialmente integradas e com a centralização de diversas fun-
ções em níveis regionais ou mesmo globais, existindo fluxos de decisão que
transcendem a estrutura legal e geográfica das empresas. Deste modo, as en-
tidades do grupo, localizadas nas mais diversas jurisdições, conseguem atuar
de forma integrada na busca por objetivos empresariais comuns.
Delineada a problemática em apreço, em 19 de julho de 2013 a OECD
publicou os Planos de Ação que pretendia elaborar para o enfrentamento do
fenômeno BEPS, entre os quais destacamos aqueles que se voltam para a atu-
alização das regras de preços de transferência, que são ações 8, 9 e 10, as quais
têm por escopo garantir que a aplicação de tais regras estejam em linha com a
cadeia de geração de valor.
Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo a apreciação do Plano de
Ação número 10, que teve seu relatório final publicado em 05 de outubro de 2015.
“Ação 10 – Outras transações de alto risco
Desenvolver regras para evitar BEPS em transações que não ocorre-
riam, ou que dificilmente ocorreriam entre partes relacionadas. Será
necessário adotar regras de preços de transferência ou medidas espe-
ciais para: (i) dar maior clareza as circunstâncias nas quais transações
podem ser requalificadas; (ii) aclarar a aplicação dos métodos de preços
de transferência, em particular o de divisão de lucros, no contexto das
cadeias globais de geração de valor; e (iii) prover proteção contra tipos
comuns de pagamentos que ocasionam a erosão de base de cálculo,
como, por exemplo, taxas de gestão e custos do controlador.” (OECD,
2013, p 20-21). (Tradução Livre)

293
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Não se pretende aqui traçar um estudo exaustivo acerca da temática em


apreço, mas apenas apontar algumas considerações tópicas sobre os principais
itens abordados no Plano de Ação, muitos dos quais não receberam uma res-
posta completa e definitiva.
Nessa medida, começaremos pelo exame de algumas das premissas nas
quais se enraízam os estudos que ora comentamos para, então, tecermos al-
guns comentários acerca do princípio arm’s lengh, verdadeiro centro gravita-
cional das diretrizes da OECD em matéria de preços de transferência.
Feito isso, será realizada uma breve análise quanto à adoção, ou não,
desse princípio pelas normas brasileiras de regência da matéria e, a partir daí,
abordaremos os três pontos centrais do Plano de Ação nr. 10, buscando traçar
um paralelo entre as recomendações apresentadas no plano internacional e a
experiência brasileira.

1. Três pressupostos do projeto BEPS


Tendo identificado que os princípios e regras clássicos em matéria de
tributação internacional, centrados em evitar a ocorrência de dupla tributa-
ção, acabam por oferecer substancial espaço para planejamentos tributários
que ensejam a dupla não tributação, o projeto BEPS se fundamentou em três
pilares, nos quais se baseiam suas principais diretrizes.
O primeiro desses fundamentos está no pressuposto de que sem que haja
coerência entre as normas domésticas que tratam de operações internacio-
nais, não há como se evitar que surjam espaços ricos em capacidade contribu-
tiva, não alcançados por qualquer norma tributária.
Tais espaços, que podem decorrer tanto da política fiscal implementa-
da por uma dada jurisdição com vistas ao seu desenvolvimento econômico,
quanto de uma norma sub-includente (SCHAUER, 2002) que em razão de
limitações em sua formulação não contemple situações que deveriam ser al-
cançadas se aplicada diretamente sua justificação (o respeito ao princípio da
capacidade contributiva), são um dos alvos do projeto BEPS.
Nesses termos, a OECD buscou identificar possíveis incoerências normati-
vas entre os diversos ordenamentos e propor soluções integrativas para os mes-
mos, de modo à ‘costurar’ os espaços vazios e encontrar formas de garantir que

294
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nenhuma parcela das manifestações de riquezas surgidas no campo internacio-


nal fuja à base tributável de ao menos uma das jurisdições envolvidas. Pretende-
-se que haja a incidência de pelo menos um tributo sobre cada operação, muitas
vezes sem considerar a política fiscal do Estado que confere incentivos.
Um segundo pilar no qual se lastrearam diversos dos estudos realizados
foi o de que é necessário identificar como as atividades empresariais efetiva-
mente geram valor, de modo a garantir que a tributação seja dividida entre as
nações considerando essa mesma sistemática de geração de riqueza.
Nesse particular, a exigência de uma maior substância econômica vem a
coroar a ideia de que dita ‘geração de valor’ está sempre atrelada às atividades,
funções e riscos desempenhados pelas diversas pessoas jurídicas envolvidas
numa determinada cadeia de produção, distribuição e venda.
Esse segundo pressuposto, contudo, esconde uma grande armadilha
para os países em desenvolvimento. Isso porque, ao figurar como premissa,
não é debatido e nem analisado de forma mais aprofundada, sendo simples-
mente tomado por verdade.
Ao não reconhecer que os mercados consumidores tem um papel funda-
mental na geração e circulação de riqueza, forma-se uma sistemática onde as
jurisdições que possuem tais mercados (ex. Brasil, China, Índia etc.), de onde
efetivamente saem os recursos financeiros que fazem com que toda a cadeia
produtiva se mantenha viável, restem sobremaneira prejudicadas na reparti-
ção da arrecadação tributária.
Mais uma vez, acreditamos restar claro que os estudos e diretrizes traça-
das pela OECD têm o condão de beneficiar as nações onde residem os princi-
pais agentes da economia internacional, prejudicando, assim, os países menos
desenvolvidos, onde se localizam as fontes de muitas das riquezas que fazem
toda essa engrenagem multinacional girar.
É justamente essa a espécie de armadilha, escondida em premissas tão
facilmente aceitas quando não analisadas a fundo, que nos leva a indagar se as
recomendações finais publicadas pela OECD realmente devem ser aceitas por
todos os países que estão envolvidos no projeto BEPS.
Um terceiro pressuposto adotado foi o de que se faz necessário otimizar os
parâmetros de transparência internacional, garantindo que todas as jurisdições

295
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tenham acesso a todas as informações que possam ser relevantes para que a
mesma exerça suas competências tributárias da forma mais eficiente possível.
Tal preocupação, todavia, deve ser também associada ao reconhecimento
da importância de se garantir segurança jurídica aos agentes internacionais, se-
gurança essa que é um elemento necessário para fomentar e resguardar o exer-
cício da atividade econômica, tanto em escala nacional quanto internacional.

2. A crise e a reafirmação do princípio arm’s length


Base para toda a sistemática de preços de transferência erigida pela
OECD, o princípio arm’s length está intrinsecamente ligado à noção de que o
preço a ser praticado em operações realizadas por partes vinculadas deve ser
um preço sem favorecimento, ou seja, um preço que seria adotado fossem as
partes do negócio verdadeiramente independentes. Nessa linha, “a OCDE de-
finiu um preço arm’s length como o preço que teria sido acordado entre partes
não relacionadas, envolvidas em transações iguais ou similares, sob idênticas
ou similares condições.” (BARRETO, 2001).
Significa dizer que, nas transações internacionais entre agentes vin-
culados, para que se resguarde a base tributável das jurisdições envolvidas,
faz-se necessário o controle dos preços praticados, ainda que para efeitos
exclusivamente fiscais.
Tal controle, que pode ser levado a cabo por diferentes métodos, deve, se-
gundo propõe a OECD, estar sempre pautado na busca pelo preço que teria
sido praticado se a mesma transação ocorresse entre partes não vinculadas. Essa
busca é o norte que deve auxiliar os contribuintes, numa análise caso a caso, a
identificar o melhor método para averiguação do preço, e também a aplicá-lo,
no intuito de se descobrir o ‘valor de mercado’ de um dado bem ou prestação.
Ocorre que, numa economia cada vez mais integrada, tanto vertical
como horizontalmente, onde várias das grandes multinacionais controlam
toda a cadeia de produção, distribuição e venda de certos bens e serviços, tor-
na-se cada vez mais difícil encontrar comparáveis para determinadas presta-
ções intragrupo, acarretando um severo aumento na dificuldade de se aplicar
o princípio arm’s length.

296
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

E não é só a integração dos grupos econômicos que dificulta, no plano


pragmático, a observância dessa diretriz, também o aumento no número e na
relevância dos intangíveis representa um desafio de grandes proporções.
Nesse diapasão, o princípio do arm’s length se viu diante de uma cri-
se que tinha origem na grande dificuldade prática de sua adoção, aliada aos
enormes custos de conformidade exigidos e a uma incerteza cada vez maior
com relação aos resultados obtidos. Nessa linha, a OECD recorre a discursos
como a repartição das bases tributárias em conformidade com a geração de
valor209, o que não necessariamente se baseia em parâmetros comparativos,
como faz o arm´s length.
Imagine-se, por exemplo, a dificuldade em se definir qual o valor de
mercado de um intangível desenvolvido internamente por uma empresa, bem
como de quanto essa mesma empresa pode cobrar de royalties pela cessão
desse mesmo intangível para suas controladas domiciliadas no exterior.
Outro exemplo é a patente incoerência que existe em propor a adoção
do princípio arm’s length para se encontrar o valor de mercado de operações
que apenas ocorrem em razão da sinergia decorrente dos vínculos de controle
existente entre as partes. Ora, tais operações, por sua própria natureza, nunca,
ou dificilmente, seriam praticadas por partes independentes, como então se
poderia aplicar esse princípio?
Diante de tantas dificuldades, dois caminhos eram possíveis: (i) reconhecer
que o secular princípio arm’s length não é mais adequado para controle das tran-
sações internacionais ou (ii) aprimorar esse mesmo princípio, oferecendo diretri-
zes por vezes mais sofisticadas, por outras mais práticas, para sua aplicação
Com a divulgação dos relatórios finais dos planos de ação 8, 9 e 10 do
BEPS restou claro que a OECD decidiu trilhar a segunda alternativa, bus-
cando aprofundar as recomendações quanto às análises de racionalidade co-
mercial, substância econômica, lucros e sinergias econômicos, bem como de
controle e alocação de riscos e funções (KOOMEN, 2015, p. 10).
Dessa forma, foi reforçado o caráter antielisivo do arm’s length, que acabou
por ser reafirmado pela OECD. Muitos estudos ainda precisam ser realizados,

209 Geração de valor, conforme acima exposto, que é entendida pela OCDE como estando vinculada
exclusivamente à atuação dos agentes econômicos, não restando espaço para qualquer apreciação
do poder de produção de riqueza que deriva da existência de mercados consumidores.

297
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

como é reconhecido nos supracitados relatórios finais, entretanto, uma direção


já foi dada: a melhor alternativa para o controle dos preços das transações in-
ternacionais entre partes vinculadas é o aprimoramento do sistema já existente.
Há, contudo, uma ressalva que deve ser feita. Em razão do esforço em se
manter fiel ao princípio que dá lastro para todas as diretrizes internacionais
de preços de transferência, a OECD está acabando por alargar as fronteiras
desse mesmo princípio e, ao fazê-lo, paulatinamente o vai modificando.
Expostos, ainda que de maneira perfunctória, os contornos e tensões do
princípio arm’s length, pedra de toque do sistema internacional de controle de
preços de transferência, passa-se à análise de como o tema é trabalhado pela
legislação brasileira.

3. O princípio arm’s length e a sistemática brasileira de


controles de preços de transferência
Inauguradas pela Lei n.º 9.430 de 1996, muito embora conste em sua ex-
posição de motivos a intenção de alinhamento com as melhores práticas in-
ternacionais, as regras de preços de transferência em vigor no Brasil guardam
algumas idiossincrasias que as distanciam do princípio arm’s lengh.
Há explícita contradição entre a exposição de motivos e as normas con-
tidas na Lei 9.430/1996. Enquanto o padrão arm´s length busca efetivamente
apurar o preço sem interferência, o Brasil, conforme já defendemos, distan-
ciando-se de tal fim, recorreu a ficções e presunções legais absolutas e mistas,
estabelecendo cálculos médios que se afastam do objetivo de determinar o
preço sem interferência, fixando margens mínimas de lucro, ofendendo o con-
ceito de renda (BARRETO, 2010, p. 222).
Com efeito, o ajuste na base de cálculo do imposto sobre a renda estipu-
lado com referência a margens fixas pode resultar na tributação de riqueza que
não consubstancia efetiva renda, em ofensa ao conceito constitucionalmente
incorporado. A única forma de admitir a constitucionalidade do aludido di-
ploma normativo implica reconhecer o caráter sugestivo de seus métodos, em
grande parte baseados em margens fixas, admitindo-se outros meios de prova
infirmadores da conduta de favorecimento em operações realizadas entre par-
tes ligadas (BARRETO, 2009, p. 147).

298
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

As margens fixas previstas na legislação brasileira, apenas visam a asse-


gurar que uma parcela das riquezas envolvidas na transação seja atribuída ao
Brasil, não demonstrando maiores preocupações com o efetivo valor de mer-
cado das prestações que se pretende controlar. Essa circunstância apenas re-
força que o Brasil não está, de fato, em linha com a realidade internacional210.
Ademais, se no sistema proposto pela OECD cabe às partes provar por-
que um determinado método é o mais aderente e adequado a uma determina-
da prestação, o mesmo não ocorre no Brasil.
Tendo optado pela adoção de métodos alternativos, onde não se faz neces-
sário justificar o porquê da eleição de um determinado método para comprova-
ção de que o preço praticado está em linha com o preço presumido de mercado,
o legislador brasileiro deu mais um passo no sentido de se distanciar da experi-
ência internacional. A teor do art. 18, § 4º da Lei 9.430/96, “na hipótese de utili-
zação de mais de um método, será considerado dedutível o maior valor apurado”,
desde que não ultrapassado o valor constante dos documentos de aquisição.
Se, por um lado, temos em nosso país um sistema de preços de transfe-
rência que prestigia a praticabilidade e previsibilidade quanto ao controle a
ser exercido, por outro, nos deparamos com uma realidade que pode, muitas
vezes, inviabilizar os negócios dos contribuintes ao exigir que os mesmos pra-
tiquem preços absolutamente incompatíveis com o mercado.
Tendo por base o acima exposto, uma primeira preocupação que se deve
guardar em mente, ao se estudar os resultados do plano de ação número 10 do
BEPS e seus possíveis reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, é a de que
se tratam de duas sistemáticas substancialmente distintas, mormente quando
considerado o entendimento do Fisco brasileiro de que os métodos previstos na
legislação são exaustivos e inafastáveis, figurando como presunções absolutas.
É dizer, o diálogo a ser travado entre os juristas e legisladores brasileiros
com relação aos mais recentes estudos da OECD acerca da temática em apre-
ço deve ser cercado de redobrada atenção. Isso para não corrermos o risco de
acabar por importar apenas uma parte da ideia, a qual, quando destacada do

210 Muito embora existam métodos como o de Preços Independentes Comparados e o do Preço de
Venda nas Exportações, onde se buscam comparáveis em operações praticadas com partes não
vinculadas, nos parece restar claro que a sistemática brasileira, onde não prevalece a regra do best
method, guarda divergências expressivas com as recomendações da OCDE.

299
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

contexto no qual foi construída, pode acabar ensejando resultados bastante


diversos daquele originalmente pretendidos.
Por fim, uma circunstância merece destaque: a tão alardeada incorpo-
ração de conceitos e sistemáticas brasileiras pela OECD não ocorreu. Muito
embora em sede de estudos preliminares, como notado por Robert Robillard
(ROBILLARD, 2015, p. 447-453), a OECD tenha chegado a dar sinais de que
poderia abrir espaço para a adoção de métodos formulares211 de controles para
as transações internacionais, isso acabou por não ocorrer, tendo os relatórios
finais, como já adiantado, reafirmado o prestígio da adoção do arm’s length.

4. O risco de conflitos normativos: consequência lógica da


adoção de sistemáticas distintas.
Reconhecendo o risco de que venham a surgir, ou melhor, que conti-
nuem surgindo conflitos decorrentes das diferenças entre as normas brasilei-
ras e as normas internacionais de controle de preços de transferência, o Fisco
brasileiro vem se posicionando no sentido de que será posto em prática o pro-
cedimento amigável previsto no artigo 25 da convenção modelo da OECD.212
O problema permanece. Em primeiro lugar porque o Brasil não possui tra-
tados para evitar a dupla tributação com muitos países. Em segundo lugar, porque
apesar das regras de procedimento amigável já existirem há décadas, as mesmas
nunca foram postas em prática pelo Brasil, assim como não o foram também às
previsões de possibilidade de alteração das margens fixas de preços de transferência.

211 Cabendo destacar que, mesmo que o fizesse, ainda estaria bastante distante da realidade brasileira,
uma vez que tais métodos requerem uma análise de elementos de alocação (quantidade de empregados,
intangíveis utilizados, ativos empregados, etc) para definição da distribuição de lucros entre as
jurisdições envolvidas. Com isso, nota-se que até mesmo o método do Formulary Apportionment,
rechaçado pela OECD por não buscar traduzir uma realidade de mercado, não poderia ser comparado
com os diversos métodos de margens pré-fixadas existentes na legislação brasileira.
212 Consta do relatório final das Ações 8, 9 e 10 do BEPS que:“When Brazil’s Tax Treaties contain
Article 9, paragraph 1 of the OECD and UN Model Tax Conventions and a case of double taxation
arises that is captured by this Treaty provision, Brazil will provide access to MAP in line with the
minimum standard of Action 14”. OECD, Aligning Transfer Pricing Outcomes with Value -
ACTIONS 8-10: 2015 Final Reports (OECD Publishing 2015), p. 185. Disponível em: http://www.
oecd.org/tax/aligning-transfer-pricing-outcomes-with-value-creation-actions-8-10-2015-final-
reports-9789264241244-en.htm. Consulta em 27/12/2015.

300
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Enquanto não for encontrada uma solução para as incongruências entre


a sistemática brasileira e a que vigora no resto do mundo, que se mostre pas-
sível de ser implementada na prática, os contribuintes brasileiros continuarão
sujeitos ao risco de virem a ser duplamente tributados, podendo sofrer ajustes
de preços de transferência simultâneos e incongruentes.
Por exemplo, digamos que a empresa A tenha exportado bens para empresa
B, que é sua controlada e, em razão das regras de preços de transferência brasi-
leiras, tenha reconhecido um ajuste de preços de transferência (adição no cálculo
do lucro tributável). Aqui a lei brasileira teria identificado tais operações como
abusivas, uma vez que teriam sido praticados preços inferiores àqueles definidos
através dos métodos de identificação do preço de mercado presumido.
Como as regras brasileiras são substancialmente distintas daquelas da
OECD, pode muito bem ocorrer que, ao analisar essa mesma operação, a empresa
B se veja obrigada a também realizar um ajuste de preços de transferência, uma
vez que um estudo realizado a luz do princípio arm’s length leva a conclusão de
que o valor originalmente atribuído a operação está acima do valor de mercado.
Nesse exemplo, onde as regras brasileiras e internacionais conflitam
quanto ao preço da operação, tende a ocorrer a dupla tributação, a qual apenas
poderia ser evitada com recurso aos mecanismos de solução de conflito pre-
sentes nos tratados internacionais para evitar a dupla tributação, que, como já
adiantado, nunca foram postos em prática no Brasil.
Essa questão se torna ainda mais grave quando se leva em consideração
o fato de que as regras brasileiras de tributação da renda em bases universais,
recém atualizadas pela Lei n.º 12.973/14, não permitem que as empresas brasi-
leiras compensem integralmente os ajustes de preços de transferência por ela
realizados, em operações com suas controladas, contra os lucros auferidos por
essas mesmas controladas no exterior.
Para melhor ilustrar o ponto, imagine-se que a empresa X, domiciliada
no Brasil, realize importações de insumos da empresa Y, que é uma contro-
lada da empresa X domiciliada no exterior. Digamos que o valor total da im-
portação tenha sido de R$ 100. Contudo, em razão da aplicação das regras de
preço de transferência brasileira, tenha se concluído que o valor máximo pelo
qual tal operação poderia ser realizada é R$ 80.

301
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Nesse caso, a empresa X teria que realizar uma adição (R$20) na apu-
ração de seu imposto de renda para incluir a diferença entre o preço pago
(R$100) e o valor máximo dedutível para fins fiscais (R$80). Esse ajuste, rea-
lizado apenas na base de cálculo do imposto de renda da empresa X, em nada
contamina o resultado contábil da empresa Y (que não é reduzido dos mesmos
R$20 que foram adicionados a base tributável da empresa A).
Ocorre que, como a empresa X está sujeita a tributação da renda em ba-
ses universais no Brasil, ela deve reconhecer como renda tributável, em 31
de dezembro de cada ano, o valor do lucro contábil de suas controladas no
exterior. Ao fazê-lo, os mesmos R$20, que já foram oferecidos à tributação no
Brasil em razão das regras de preços de transferência, são novamente tributa-
dos: dessa vez em razão das regras de tributação em bases universais.
Visando corrigir esse desvio normativo, que afronta os princípios da iso-
nomia e da capacidade contributiva, o legislador previu que podem ser dedu-
zidos do lucro das controladas no exterior os ajustes de preços de transferência
espontaneamente realizados pelas controladoras brasileiras213. Todavia, junta-
mente com essa permissão, constam diversas limitações, entre as quais destaca-
mos a de que o valor a ser deduzido está limitado ao valor do imposto de renda
e da CSLL devidos no Brasil em razão do ajuste de preço de transferência214.
Retomando o exemplo acima traçado, a empresa X, quando for tributar
os lucros auferidos pela empresa Y na sistemática prevista na Lei n.º 12.973/14,
não poderá deduzir o valor (R$20) do ajuste de preços de transferência ante-
riormente realizado. Nessa hipótese, o valor máximo a ser deduzido, atendidas
as demais condições impostas pela legislação215, será de R$ 6,8 (34% de R$ 20).
Em outras palavras, a empresa X teve de adicionar R$ 20 ao seu lucro tri-
butável, tributará novamente os mesmos R$ 20 quando reconhecer os lucros
contábeis auferidos pela empresa Y, apenas sendo admitida a dedução de R$ 6,8.
Em resumo, nesse exemplo, haverá dupla tributação sobre o valor de R$ 13,2.
Aqui, mais uma vez, temos um distanciamento entre a legislação brasileira
e os objetivos traçados pelo BEPS, onde a preocupação com a dupla tributação
deveria ser tida como tão importante quanto o combate a dupla não tributação.

213 Art. 86, da Lei n.º 12.973/14 e art. 23, da Instrução Normativa n.º 1.520/14.
214 Art. 86, §1º, IV da Lei n.º 12.973/14 e 23, §2º, IV da Instrução Normativa n.º 1.520/14.
215 Art. 86, §1,º da Lei n.º 12.973/14 e Art. 23, §1º, §2º e §3º, da Instrução Normativa RFB nr.º 1.520/14.

302
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

5. Análise do texto final do Plano de Ação nr. 10


Expostas nossas considerações iniciais acerca do projeto BEPS e do pa-
norama atual do princípio arm’s length, passa-se ao exame de alguns dos prin-
cipais tópicos que foram endereçados pelo texto final do Plano de Ação nr. 10.
Nessa medida, um primeiro comentário que se faz pertinente é o de que
o resultado dos estudos parece ter se distanciado da proposta original, tendo
em vista que os principais temas abordados nesse último texto foram os ser-
viços intragrupo de baixo valor adicionado, o chamado método de commodi-
ties e a problemática do método da divisão de lucros (profit-split).
Destarte, segregando esses tópicos do restante do relatório final, que é
um documento conjunto para os planos de ação de nr. 8, 9 e 10, passa-se ao
exame individual de cada um deles, sem, contudo, deixar de contextualizar
nossas ponderações com os demais aspectos relevantes do BEPS e do ordena-
mento jurídico brasileiro.

6. Os serviços intragrupo de baixo valor adicionado


Em linha com a preocupação de manter a racionalidade na alocação de
custos de conformidade, o Plano de Ação n. 10 propõe a alteração do capítulo
VII das Orientações sobre Preços de Transferência da OECD para que seja in-
cluído um método simplificado opcional, verdadeiro safe harbour para com-
provação do atendimento as regras de preços de transferência com relação a
serviços intragrupo de baixo valor agregado216.
Antes de nos aprofundarmos nessa nova sistemática, entendemos ser rele-
vante delinearmos com clareza as hipóteses onde a mesma se mostra aplicável, o
que se procura fazer por meio do oferecimento de critérios bem definidos para a
identificação daquilo que a OECD entende por serviços de baixo valor agregado.

216 A própria OCDE admite o fato de que suas recomendações apenas poderão alcançar seus respectivos
objetivos caso sejam adotadas em larga escala geográfica, demonstrando preocupação com os
possíveis conflitos que a nova sistemática pode gerar. Foi essa a razão pela qual essa organização
admitiu a necessidade de estudos complementares para viabilizar a implementação do método
simplificado, os quais devem ter início já em 2016.

303
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Nesse diapasão, uma definição conotativa de ‘serviços de baixo valor


adicionado’ pode ser formulada, a partir do relatório da OECD, da seguinte
forma: são atividades de natureza acessória, não integrando objeto principal
das empresas envolvidas, sem envolvimento de intangíveis e sem a assunção
de riscos relevantes.
Já num esforço de formação de uma definição denotativa, podemos citar
como exemplo as atividades de: i) contabilidade e auditoria interna; ii) proces-
samento e administração de contas a pagar e contas a receber; (iii) adminis-
tração de atividades de recursos humanos; (iv) monitoramento e compilação
de informações; (v) serviços de TI que não integrem o núcleo de atividades do
prestador; (vi) comunicação interna e externa; (vii) jurídico interno de conte-
údo não estratégico, entre outros.
Para tais serviços, a OECD propõe que o contribuinte tenha a opção de
adotar um método simplificado, composto pela aplicação de margem de 5%
sobre o total de custos incorridos, que:
“1 Especifique uma vasta categoria de típicos serviços intragrupo que
exijam uma margem muito limitada a ser aplicada sobre os custos.
2 Aplique consistentemente chaves de alocação a todos os recebedores
dos serviços intragrupos.
3 Forneça maior transparência através de requisitos específicos de
compliance, inclusive documentação demonstrando a formação do
centro de custos.” (tradução livre). (OECD, 2015, p. 141)

Nos moldes acima, os contribuintes teriam a liberdade para escolher en-


tre a elaboração de um estudo completo de preços de transferência, incorren-
do nos custos necessários para tanto, ou pela adoção de margem fixa de 5%,
como aponta o relatório final, para fins de comprovação.
Completamente distinta é a experiência brasileira, onde, quaisquer que se-
jam os serviços envolvidos, existem margens fixas e pré-definidas, as quais, no en-
tendimento do Fisco, são obrigatórias caso o contribuinte deseje aplicar qualquer
método que não o de preços independentes comparados (que nem sempre pode
ser escolhido em razão da dificuldade em se obter parâmetros para comparação).
Essa significativa diferença faz com que a OECD possa manter-se con-
forme o princípio do arm’s length e, simultaneamente, oferecer opções que

304
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tragam maior praticabilidade a legislação tributária, ao passo que, no Brasil,


se prevalecer o entendimento do Fisco, estaremos inequivocamente distantes
desse mesmo princípio.

7. O chamado ‘método das commodities’


As operações internacionais com commodities, que são de fulcral relevo
para a balança comercial de países em desenvolvimento, em especial na Amé-
rica Latina, foram identificadas por essas mesmas jurisdições como um ponto
de preocupação com relação ao risco de erosão da base tributável.
Em resposta a essa constatação, tais jurisdições passaram a adotar solu-
ções unilaterais específicas para comercialização internacional de commodi-
ties, as quais inicialmente foram entendidas como compondo um ‘sexto méto-
do’ de controle de preços de transferência: o método de commodities.
Observando esse fenômeno, a OECD reconheceu a necessidade fornecer di-
retrizes mais claras para a tratativa fiscal desse tipo de transação (OECD, 2015, p.
51), razão pela qual abordou o tema no Plano de Ação n. 10 e, em 16 de Dezembro
de 2014, publicou um draft para discussões a esse respeito (OECD, 2014)217.
Nesse documento, foram preliminarmente delineados alguns dos prin-
cipais pontos de atenção com relação a essas transações, dentre os quais a
possiblidade dos contribuintes optarem por adotar datas de precificação que
fossem necessariamente mais vantajosas, o risco de cobranças excessivas por
parte de outras entidades do grupo com relação a serviços de transporte, ma-
rketing e processamento.
Também foi indicado, como possível fonte de alocação abusiva de lucros,
o envolvimento de entidades residentes em países com tributação favorecida
que apresentem pouca ou nenhuma funcionalidade na cadeia de produção e
distribuição das commodities.
Após as discussões que seguiram a publicação desse primeiro Draft, e
também as mais de 200 páginas de comentários que foram apresentados218 pela

217 OECD, Action 10: Discussion Draft on the Transfer Pricing Aspects of Cross-Border Commodity
Transactions, disponível em http://www.oecd.org/tax/beps-reports.htm. Consultado em 27/12/2015.
218 Comentários públicos disponíveis em: http://www.oecd.org/ctp/transfer-pricing/public-
consultation-action-8-10-transfer-pricing-matters.htm. Consultado em 27/12/2015.

305
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

comunidade internacional, 05 de outubro de 2015 a OCDE publicou o relatório


final do Plano de Ação n. 10, onde o assunto foi tratado em 5 curtas páginas.
Superadas as discussões iniciais, ficou assentado que a tratativa a ser
adotada para operações envolvendo commodities seria incluída no Capítulo II
das diretrizes de preços de transferência da OECD, como um desdobramento
do método de Preços Independentes Comparados (ou Comparable Uncon-
trolled Prices – CUP) e não como um sexto método.
Nesses moldes, foi apontado que o CUP é, em regra, o método mais apro-
priado para demonstrar se as transações com commodities realizadas por
uma dada empresa respeitaram, ou não, o princípio arm’s length. Seguindo
essa linha, foram apresentados esclarecimentos adicionais, que tinham por
objetivo dar maior segurança e previsibilidade aos mecanismos de compa-
ração de preços e de produtos (nesse caso commodities), dentre os quais se
sobressaem os seguintes:
I. Commodities devem ser entendidas como produtos físicos para os
quais cotações são utilizadas na definição dos preços praticados por
partes não relacionadas.
II. O termo ‘cotação’ designa o preço da commodity em determinado pe-
ríodo, o qual pode ser obtido numa bolsa, nacional ou internacional, de
mercadorias ou futuros, ou mesmo em notórias e transparentes agên-
cias de reporte e estatísticas, quando esses mesmos preços também fo-
rem utilizados como referência para definição de preços praticados por
partes não relacionadas.
III. A base de precificação (ex. período específico no qual é apurada uma
média de cotações) utilizada é um fator particularmente relevante, ca-
bendo ao contribuinte fornecer evidências seguras de qual a base eleita
para a transação (ex. propostas, contratos, registrados ou outros do-
cumentos que definam os termos da negociação podem figurar como
evidências seguras);
IV. Em contratos de longo prazo, caso os contribuintes apliquem consis-
tentemente uma mesma base de precificação em suas operações com
partes relacionadas, as administrações tributárias devem determinar o
preço parâmetro aplicável tomando em conta a base escolhida e consis-
tentemente aplicada pelo contribuinte.

306
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

V. Para que o CUP seja aplicável de forma segura a operações com


commodities, todas as características economicamente relevantes das
operações, controladas e independentes, representadas pelo preço co-
tado, devem ser comparáveis.
VI. As características economicamente relevantes se incluem, dentre ou-
tras, as características físicas e de qualidade da commodity; os termos
contratuais das operações entre partes relacionadas, tais como volu-
mes negociados, duração dos contratos, tempo e termos de entrega,
transporte, seguro e termos negociados com relação à varrição cam-
bial. Para algumas commodities, algumas características economica-
mente relevantes (ex. pronta entrega) podem acarretar aplicação de
prêmios ou descontos.
VII. Se o preço cotado for utilizado como referência para determinar o pre-
ço de mercado, ou mesmo um range de preços de mercado, os con-
tratos padrão que estipulam as especificações com bases nas quais as
commodities negociadas nas bolsas podem ser relevantes.
VIII. Contribuições obtidas através de funções desempenhadas, ativos em-
pregados ou riscos assumidos por outras entidades que integrem a
cadeia de comercialização devem ser remunerados em linha com as
orientações da OECD.

Percebe-se que, embora a OECD manifeste concordância com a aplica-


ção do CUP para commodities, baseada na adoção de preços-parâmetro cota-
dos em bolsas ou mesmo agências confiáveis, há nítida preocupação com os
necessários ajustes que decorrem das especificidades das transações isolada-
mente consideradas.

8. As transações com commodities no direito brasileiro –


os métodos PECEX e PCI
Figurando entre as jurisdições pioneiras na criação de regras específicas
para commodities, o Brasil, por meio da Medida Provisória nr. 563 de 03 de
abril de 2012, posteriormente convertida na Lei n. 12.715 de 17 de setembro de

307
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2012, inaugurou em seu ordenamento jurídico os métodos de Preço Sob Co-


tação na Importação (“PCI”) e Preço Sob Cotação na Exportação (“PECEX”).
Com uma sistemática de apuração diária, sem precedentes em matéria
de preços de transferência no Brasil, onde os cálculos sempre foram realizados
em bases anuais, os novos métodos, que são bem anteriores aos estudos da
OECD acerca do tema, foram inseridos no ordenamento jurídico pátrio sem
qualquer discussão prévia com a sociedade civil, dando ensejo a uma série de
dúvidas e questionamentos por parte dos contribuintes.
Tendo a lei outorgado competência a Receita Federal para regulamentar
a matéria, em 28 de dezembro de 2012, foi publicada a Instrução Normativa
nr. 1.312, que, num primeiro momento, limitou-se a reproduzir o texto po-
sitivado em sede de lei, além de listar as bolsas e índices que deveriam ser
utilizados para fins de aplicação dos novos métodos.
Essa primeira regulamentação, que também foi alvo de críticas em razão
de não endereçar diversas das lacunas existentes, foi em seguida alterada pela
Instrução nr. 1.395 de 13 de setembro de 2013, que, além de promover subs-
tanciais alterações na lista das commodities alcançadas pelos novos métodos,
representou um grande avanço na racionalização das novas regras, sanando
diversas das inconsistências presentes na regulamentação original219.
Tomando em conta a complexidade envolvida no PECEX/PCI, bem
como o fato de não ser a proposta desse trabalho a de realizar um estudo
de fôlego acerca desse item específico, optamos por abordar apenas um dos
pontos nevrálgicos que circundam o tema: o distanciamento existente entre
as regras brasileiras e as recomendações da OECD com relação à remuneração
das diversas partes envolvidas na cadeia de comercialização de commodities.
Sobre o tema, as diretrizes internacionais possuem clareza hialina no
sentido de que as contribuições prestadas por entidades vinculadas presentes
na cadeia de produção, distribuição e comercialização de commotities cotadas
em bolsa devem ser remuneradas de acordo com o princípio arm’s length.
Essa recomendação, que visa garantir uma adequada repartição de bases
tributáveis entre os países, está em linha com a realidade dos mercados de
bens dessa natureza. Isso porque as commodities costumam ser produzidas

219 A Instrução Normativa nr. 1.312/12 sofreu ainda diversas outras alterações, sendo, contudo,
mantida como base de toda regulamentação em matéria de preços de transferência.

308
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

em países fisicamente distantes de seus principais mercados, os quais muitas


vezes são pulverizados e de difícil acesso a partir dos países produtores pelas
mais diversas razões, dentre as quais podemos destacar: (i) fuso-horário; (ii)
língua; (iii) especificidades culturais; (iv) conhecimento do mercado local.
Como consequência dessas particularidades de mercado, a utilização de
‘traders’, distribuidores, agentes e outros intermediários se mostra como lugar
comum na comercialização global e commodities. Destarte, a forma pela qual
tais intermediários devem ser remunerados é uma das questões centrais ao se
estudar o controle fiscal desse mesmo mercado.
Sobre o tema, o plano de ação, como acima exposto, é claro: os interme-
diários devem ser remunerados de acordo com o princípio arm’s length (ou
seja, levando-se em consideração as funções efetivamente desempenhadas e
os riscos assumidos).
Já no Brasil, a Receita Federal sempre reconheceu a importância dos ajus-
tes a título de custos de intermediação, que constaram tanto na regulamentação
do método dos Preços Independentes Comparados (PIC), quanto nas disposi-
ções comuns ás receitas de exportação220 e até mesmo nas regras específicas do
PECEX/PCI, onde foram inseridas por meio da Instrução Normativa 1.395/13.
Contudo, em 05 de junho de 2015, ou seja, antes da divulgação das reco-
mendações finais da OECD acerca do tema, mas após os comentários iniciais
que já acenavam a preocupação com relação ao tema221, foi publicada a Instru-
ção Normativa nr. 1.568, a qual restringiu a realização de ajustes de custos de in-
termediação na apuração do PECEX/PCI, de modo que apenas taxas cobradas
diretamente por bolsas de mercadorias e futuros pudessem ser consideradas.

220 Esse ajuste já era previsto nas Instruções Normativas n.º 38/97, n.º 32/01 e n.º 243/02, foi mantido
no artigo 22 da Instrução Normativa n.º 1.312/12 e, posteriormente, estendido para fins de PCI
e o PECEX pela Instrução Normativa n.º 1.395/13, com previsão expressa de que esse deveria ser
apurado com base em operações realizadas com partes não vinculadas, ou, na ausência dessas, em
laudos que atendessem aos requisitos legais.
221 Vide carta enviada pelo Comitê de Indústria e Negócios da OECD (BIAC), que, em carta enviada
para OECD no dia 06 de fevereiro de 2015, onde foi destacado que: “Mercados de commodities são
sobremaneira complexos e envolvem participação de diversos agentes econômicos na cadeia de
fornecimento até que o produto seja entregue ao cliente final (ex. produtores, corretores, distribuidores,
comerciantes, etc), sendo que nessa cadeia os distribuidores assumem um papel crítico, assumindo
uma ampla gama de riscos e funções inerentes à comercialização internacional de commodities. Por
essa razão, a compreensão dessa realidade por parte das autoridades tributárias é elemento crucial das
discussões acerca de preços de transferência nas operações com commodities. (Tradução livre)”.

309
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vale dizer, após a alteração promovida na regulamentação publicada


pela Receita Federal, restou clara a intenção do Fisco Brasileiro: o valor pelo
qual as commodities são vendidas a seus clientes finais, onde quer que esses
estejam, deve ser, integralmente, tributado no Brasil. Nenhuma parcela desse
preço final pode ser atribuída a nenhuma outra entidade que participe da ca-
deia de comercialização e distribuição das commodities.
Esse tratamento até pode parecer razoável caso se parta da premissa de
que, em se tratando de commodities (produtos que possuem alta liquidez e
não possuem diferenciações qualitativas) listadas em bolsa, sempre seria pos-
sível aos exportadores brasileiros comercializá-las diretamente aos respecti-
vos clientes finais.
Ocorre que essa premissa é, em muitos casos, mostra-se distante da re-
alidade. Em primeiro lugar, porque o PECEX/PCI não é exclusivamente apli-
cável a bens cotados em bolsa, alcançando também produtos listados pela Re-
ceita Federal que apenas possuem cotação em índices, como, por exemplo, os
concentrados de Níquel, Zinco e Cobalto.
Em segundo lugar, pois existem produtos, como é o caso do minério de
ferro, cuja comercialização em bolsas se dá em patamares ínfimos (inferiores
à 5% do total comercializado nos mercados globais). É dizer que, em casos
como esse, os produtores brasileiros, ainda que assim desejassem, não con-
seguiriam comercializar toda a sua produção em bolsas internacionais. Essa
liquidez simplesmente não existe.
Em terceiro lugar, como decorrência direta da regulamentação cambial
imposta pelo Banco Central e das regras de comércio exterior constantes da
legislação Brasileira, os exportadores nacionais possuem inúmeras restrições
para praticar operações com preços futuros222, não conhecidos no momento
do embarque das mercadorias com destino ao exterior.
Com isso, sem lançar mão de intermediários no exterior, que muitas vezes
assumem substanciais riscos de variação nas cotações das commodities, seria

222 Diversos contratos internacionais de comercialização de commodities possuem fórmulas de


precificação complexas, envolvendo, muitas vezes, cotações médias de períodos passados, presentes
e futuros, como, por exemplo: (i) média do trimestre anterior ao da entrega dos bens no porto de
destino; (ii) média do mês corrente em que ocorrer o embarque das commodities; (iii) média do
trimestre em que ocorrer a entrega dos bens no porto de destino.

310
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

praticamente impossível para as empresas brasileiras atuarem nos mercados in-


ternacionais, onde tais fórmulas de precificação são comumente utilizadas.
Por todas essas razões, para conseguir comercializar seus produtos em
escala global, em especial nos mercados que ficam física ou culturalmente
distantes do Brasil, as empresas nacionais precisam lançar mão de ‘traders’,
agentes e distribuidores.
Esses intermediários, numa realidade de mercado, obviamente não assu-
miriam altos riscos, como, por exemplo, o da volatilidade de preços, nem de-
sempenhariam funções de alto valor agregado, como a negociação de preços
e gerenciamento de contratos complexos, sem uma remuneração adequada.
Também não fariam vultosos investimentos para viabilizar e/ou otimizar o
acesso de diversos produtos aos mercados internacionais.
A OECD reconheceu essa circunstância quando apontou que esses mes-
mos intermediários fazem jus a uma remuneração não favorecida, seguindo o
princípio arm’s length. Todavia, o fisco brasileiro a ignorou por completo, ao
restringir demasiadamente o conceito de dedução de custos de intermediação,
exigindo, de forma inconstitucional223, a prática de preços de transferência su-
periores aos preços reais de mercado, dando ensejo à tributação de uma renda
virtualmente inexistente.
Em suma, apesar de o Brasil ter sido pioneiro na criação de regras espe-
ciais de preços de transferência para commodities, e muito embora a regula-
mentação da Receita Federal já tenha amadurecido significativamente com
relação ao texto originalmente proposto pela Instrução Normativa 1.312/13,
as regras pátrias ainda carecem de ajustes.
Dentre esses ajustes, e para que não se fulmine a competitividade inter-
nacional dos exportadores de commodities brasileiras, é de suma importância
que se reconheça, assim como o fez a OECD, a relevância do papel assumi-
do pelos intermediários na cadeia de comercialização global, os quais, como
concluiu o Plano de Ação nr. 10 do BEPS fazem jus a uma remuneração que
respeite o princípio arm’s length.

223 Sem contar a ofensa aos limites da competência tributária da União, que decorre de pretender
tributar algo que renda não é, a ofensa ao princípio da isonomia também é patente, uma vez que o
ajuste a título de custos de intermediação aplicável a todas as demais exportações e importações foi
deformado, única e exclusivamente, para fins do PECEX e do PCI.

311
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

9. O Método da Divisão de Lucros: um estudo inacabado


Constante do escopo inicial do Plano de Ação nr. 10, a revisão das di-
retrizes com relação ao Método da Divisão do Lucro Transacional, que não é
previsto na legislação brasileira, mas apenas nas Guidelines da OECD224, não
foi concluída com a divulgação do relatório final.
Tendo publicado um draft para discussão do tema em apreço em 16 de
dezembro de 2014, o grupo de trabalho responsável recebeu mais de 500 pá-
ginas de comentários da sociedade internacional, tendo restado clara a exis-
tência de muitas dúvidas e dificuldades que demandam respostas mais claras
e objetivas por parte das diretrizes.
Nesse contexto, o relatório final, ao invés de contemplar conclusões de-
finitivas, optou por reconhecer a necessidade de estudos adicionais sobre o
tema, que devem ser conduzidos ao longo do próximo ano.
Algumas considerações, todavia, já foram apresentadas no texto de outubro
de 2015, dentre as quais se pode notar um esforço no delineamento de alguns con-
ceitos e também das hipóteses nas quais esse é o método mais indicado.
Inicialmente, no que se refere à sua aplicação, foi notada que a maior vir-
tude desse método consiste na possibilidade do oferecimento de soluções para
operações altamente integradas, onde as partes realizem contribuições únicas
e valiosas, para as quais os métodos unilaterais não seriam apropriados.
Tal virtude, entretanto, deve ser sopesada com os vícios que permeiam
essa alternativa, como, por exemplo, o alto nível de subjetividade envolvido
nas análises e os altos custos de compliance atrelados à elaboração de do-
cumentação suporte, isso sem contar a insegurança jurídica que advém da
inexistência de critérios que garantam que a sua escolha não será questionada
pelas autoridades fiscais.
Nesse diapasão, as principais preocupações externadas foram:
I. Falta de definição do que deve ser entendido por “contribuições únicas
e valiosas”225;

224 Vide Capítulo II, Parte III, Seção C das Orientações de Preços de Transferência da OECD.
225 Sobre o tema, o relatório aponta que: “Alguns comentários recebidos com no Draft para discussão
de Dezembro sugeriram que contribuições “únicas” sejam entendidas como aquelas que não podem
ser comparadas com outras verificadas entre partes não relacionadas, e que contribuições “valiosas”

312
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

II. Falta de definição quanto ao que se deve entender por “atividades altamen-
te integradas”226, que teriam o condão de justificar a aplicação do método;
III. Dificuldade prática de aplicação do método pelos contribuintes e de
fiscalização do método pelas Autoridades Fiscais;
IV. Dificuldade na definição dos pesos a serem atribuídos aos critérios de
alocação de resultados227;
V. Aplicação do método em casos onde a repartição dos lucros não seria
capaz de apontar uma realidade arm’s length; e
VI. Utilizar o método na ausência de comparáveis confiáveis sem, contudo,
avaliar se o método em si seria aplicável.

Considerando essas tantas inquietações, que não foram devidamente en-


dereçadas pelo Plano de Ação n. 10, acreditamos ainda haver amplo espaço
para amadurecimento do método em pauta, que possui um potencial de apli-
cação crescente em razão do fenômeno de verticalização de cadeias produti-
vas que vem sendo experimentado em tempos recentes.

sejam definidas como aquelas que geram a expectativa de geração de benefícios econômicos futuros.
Outros foram além, propondo que contribuições “valiosas” poderiam ser aquelas que dão ensejo
a vantagens competitivas. Várias entidades que enviaram comentários com relação ao Draft para
discussão de Dezembro defenderam a noção de que o compartilhamento de riscos significantes
consiste em uma contribuição “única e valiosa” e, portanto, poderiam resultar na conclusão de
que o método de divisão do lucro transacional poderia ser o mais apropriado frente a essas
circunstâncias.” OECD, Aligning Transfer Pricing Outcomes with Value - ACTIONS 8-10: 2015
Final Reports (OECD Publishing 2015), p. 58. Disponível em: http://www.oecd.org/tax/aligning-
transfer-pricing-outcomes-with-value-creation-actions-8-10-2015-final-reports-9789264241244-
en.htm. Consulta em 27/12/2015.
226 “(...) integração, por si só, pode não ser suficiente para justificar a escolha do método. Todos os
grupos multinacionais são integrados em maior ou menor escala e, portanto, não é claro como o
critério de ‘altamente integrados’ deve ser aplicado.” Ibid. p. 58.
227 O relatório final apontou que: “Apesar de haver um consenso geral de que os critérios de divisão de
lucros devem ser baseados numa análise das funções desempenhadas pelas partes, os mecanismos
pelos quais tais contribuições são quantificadas não são sempre claros. Possíveis critérios que são
utilizados na prática em diversas medidas são o valor do capital investido, os custos, pesquisas
de contribuições funcionais, sopesamento de fatores, bem como expectativas de retorno
equalizadas. Comentadores observaram vantagens e desvantagens nesses mecanismos, baseados
em questões como a disponibilidade de informação, possibilidade de mensuração, subjetividade e
praticabilidade, sendo enfatizada a atual falta de orientações com relação aos critérios para divisão
de resultados – como esses podem ser divididos.” Ibid. P. 59.

313
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

10. Conclusões
Os estudos desenvolvidos no bojo do Plano de Ação n. 10, como não poderia
deixar de ser, estão umbilicalmente vinculados à sistemática de preços de transfe-
rência proposta pela OECD, gravitando em torno do princípio arm’s length. Com
efeito, o relatório final visa a efetuar modificações nos Guidelines na OECD, que
funcionam como comentários ao art. 9º da Convenção Modelo da entidade.
Nesse sentido, faz-se necessária uma análise cum grano salis acerca da
aplicabilidade desses mesmos estudos às normas brasileiras sobre preços de
transferência, que possuem uma série de particularidades a serem considera-
das, dentre as quais a de estarem inseridas em um ordenamento jurídico onde
as competências tributárias são delineadas por conceitos determinados.
Não é dizer que não exista muito a ser aprendido com os estudos recen-
temente publicados pela OECD, mas apenas que esses, para serem aplicados
no Brasil, precisam ser avaliados a luz do direito pátrio.
De qualquer modo, também é de fulcral relevância que as recomendações
traçadas no contexto dos estudos acerca do BEPS devem ser entendidas em con-
junto, uma vez que fazem parte de um intrincado sistema de normas antielisivas.
Isso não significa dizer que a adoção de uma das muitas diretrizes obrigaria
o Brasil a seguir todas as demais, mas apenas que é de suma importância uma de-
tida avaliação acerca: (i) das possíveis incompatibilidades das recomendações com
o sistema constitucional tributário brasileiro e (ii) do contexto no qual tal diretriz
foi traçada e das outras recomendações que com ela se vinculam.
Sem isso, corre-se o risco de se desvirtuar a lógica das aludidas dire-
trizes, transformando regras antielisivas que tinham o objetivo de evitar a
erosão da base tributável e a alocação artificial de lucros em instrumentos
meramente arrecadatórios, que podem até mesmo levar a dupla tributação.
Aqui, o risco maior que se vislumbra é que, no atual momento de arro-
cho orçamentário, o Fisco brasileiro, que é o grande formulador das políticas
tributárias nacionais, opte por incorporar as recomendações da OECD de for-
ma pontual e distorcida, usando a existência de um movimento internacional
de combate ao BEPS apenas para incrementar a arrecadação de tributos.
Caso isso venha, de fato, a ocorrer, perdem todos. Perdem os contribuin-
tes brasileiros, que terão sua competitividade internacional severamente re-

314
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

duzida. Perde a economia brasileira e internacional, em razão da redução do


fluxo de negócios entrando e saindo do país. Perde o Fisco, que, ao final do
dia, terá uma fatia maior de um bolo que está cada vez menor, seja em razão
da insegurança jurídica gerada, seja em razão da ausência de critérios de tri-
butação que visem ao fortalecimento das empresas brasileiras.

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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316
11. Os Serviços Intragrupo no Plano de Ação
10 do Projeto BEPS e o Contexto Brasileiro

Paulo Arthur Cavalcante Koury228

Resumo
O presente artigo visa a analisar a relevância que se pode imprimir às
conclusões do Relatório Final do Projeto BEPS sobre o Plano de Ação 10 acer-
ca dos serviços intragrupo em face do ordenamento jurídico brasileiro. Para
tanto, expor-se-ão as conclusões do relatório acerca da manutenção do padrão
arm´s length, sobre o regime geral de preços de transferência aplicável aos ser-
viços intragrupo e o regime simplificado e eletivo proposto para os serviços
intragrupo de baixo valor adicionado, bem como as diferenças em relação à
identificação e ao tratamento dos cost contribution agreements. Em seguida,
serão analisadas as possíveis relevâncias dessas conclusões em relação ao Bra-
sil em três diferentes níveis argumentativos, a saber: a) no nível pré-legislativo;
b) no nível de interpretação dos tratados já firmados; c) no nível de interpreta-
ção da lei interna e qualificação de fatos.
PALAVRAS-CHAVE: BEPS, Brasil, Preços de Transferência, Serviços
Intragrupo.

Abstract
The present article aims to analyze the relevance one can attribute to
the conclusions derived by the Final Report on Action Plan 10 of the BEPS
Project concerning intra-group services in regard to Brazilian Law. In order
to address this, the article will describe the Report´s conclusions on the sup-

228 Doutorando e Mestre em Direito Tributário pela USP. MBA em IFRS (normas internacionais de
contabilidade) pela Fipecafi. Especialista em Direito Tributário pelo Ibet. Bacharel em Direito pela
UFPa, com período cursado na Univeristy of Florida. Advogado em São Paulo. Professor convidado
nos cursos de especialização do Ibdt e Ibet. E-mail: paulo.arthur@airesbarreto.adv.br.

317
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

port of the arm´s length standard, on the ordinary transfer-pricing regime on


intragroup services and on the simplified and elective approach to low value-
-adding intragroup services, as well as the differences from characterization
and treatment of cost contribution agreements. Following up, the possible re-
levance of such conclusions to Brazil will be analyzed in three different levels
of argumentation: a) at pre-legislative level; b) at tax treaty interpretation level;
c) at domestic law interpretation and fact classification level.
KEY-WORDS: BEPS, Brazil, Transfer-Pricing, Intragroup Services.

1. Introdução: as conclusões do plano de ação 10 do


projeto BEPS e os países em desenvolvimento
O discurso do Projeto BEPS é marcado, de um lado, pelo apelo de legi-
timação popular de suas medidas e, por outro lado, pela pretensa adesão de
muitos países de características variadas. Em ambos os casos, pode-se perce-
ber a estrutura do discurso político, marcado pela oposição entre o “nós” (co-
munidade internacional pretensamente coesa e preocupada com as práticas
de erosão da base e deslocamento de lucros) contra o “eles” (grandes multina-
cionais que pretendem se furtar ao pagamento de tributos). Ademais, valores
como justiça fiscal, cooperação e tributação da substância econômica exercem
papel importante no discurso de legitimação do Projeto.
Em princípio, não há nada de errado nessa discussão. Até mesmo para
um positivista, que defenda a distinção firme entre a moral e o direito229, o
discurso moral-político terá relevância, pelo menos, na apreciação avaliató-
ria do direito posto230 e no momento pré-legislativo. Todavia, o que não pode
ocorrer é uma aceitação acrítica das proposições do BEPS sem consideração
do contexto nacional, da relevância da motivação valorativa do Projeto e mes-
mo da aderência entre seus motivos anunciados (expostos acima) e seus reais
desideratos, aferíveis a partir das medidas efetivamente propostas.

229 A distinção entre direito e moral é apenas uma das vertentes possíveis do positivismo. (TROPER,
2003, p. 19).
230 Para MACCORMICK (2006, p. 313), a distinção entre a descrição e a apreciação avaliatória do
direito, pautada no programa positivista, continuam fundamentais para a doutrina jurídica.

318
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Com essa advertência em mente, o presente estudo busca analisar a re-


levância do tratamento dos serviços intragrupo no Relatório Final da Ação
nº 10 do Projeto BEPS, sob a perspectiva dos países em desenvolvimento, em
especial a brasileira.
O Relatório Final único que abrange as conclusões das três ações re-
lacionadas aos preços de transferência (Ações 8, 9 e 10) foi intitulado “Alig-
ning Transfer Pricing Outcomes with Value Creation” (alinhando os preços de
transferência à criação de valor). A teor do Relatório, suas conclusões foram
pautadas nos três pilares do Projeto BEPS, quais sejam: a) introduzir coerên-
cia nas legislações domésticas sobre atividades internacionais; b) reforço nos
requisitos de substância nos padrões internacionais existentes; c) aprimora-
mento da transparência e da segurança jurídica (OECD, 2015, p. 3).
Embora sejam esses os objetivos declarados, não se deve deixar de exa-
minar criticamente a real aderência do conteúdo do relatório final a essas fi-
nalidades. Como afirma SCHOUERI (2016, p. 2), estaria havendo uma mo-
dificação do propósito das regras de preços de transferência, cujo desiderato
original de regra anti-elisiva específica estaria sendo suplantado por uma fun-
ção de mera alocação da carga tributária.
Nesse contexto, este artigo visa a examinar a relevância do Relatório Fi-
nal do Projeto BEPS acerca dos serviços intragrupo, sob a perspectiva dos
países em desenvolvimento, em especial o Brasil. Para tanto, as conclusões
do referido Plano de Ação serão contextualizadas em face do posicionamen-
to geral esposado pelo BEPS acerca dos preços de transferência. Em seguida,
examinar-se-ão os possíveis impactos que essas modificações poderiam ter
nos países em desenvolvimento, a partir do caso do Brasil, em três níveis de
argumentação distintos, a saber: a) no nível pré-legislativo; b) no nível de in-
terpretação dos tratados já firmados; c) no nível de interpretação da lei interna
e da qualificação de fatos.

319
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2. O tratamento dos preços de transferência relativos a


serviços intragrupo no relatório final da ação nº 10 do BEPS

2.1 A manutenção do padrão arm´s length


A justificativa da existência de regras de preços de transferência reside
na circunstância que os preços praticados entre partes relacionadas podem se
desviar daqueles que seriam adotados entre empreendimentos não relaciona-
dos, em transações comparáveis (SCHOUERI, 2013, p. 11).
Com as regras de preços de transferência, evita-se o aumento de uma des-
pesa (erosão da base tributável) de uma entidade em um país e o aumento dos
lucros de outra entidade em país diverso (deslocamento de lucros), por meio de
preços “reais de grupo” que sejam distintos dos valores “reais de mercado”.
A consecução desse objetivo de evitar a elisão tributária por meio de
transferências entre partes relacionadas poderia ser endereçada de diversas
formas. Todavia, dentre as demais formas de combater o problema, o padrão
arm´s lengh prevaleceu, sendo adotado não somente pela convenção modelo
da OCDE, mas também pelo modelo da ONU e dos EUA e pela Convenção
Arbitral entre Países da União Europeia (KOFLER, 2013, pp. 646-647).
Como assevera BRAUNER (2009, p. 275), a ideia básica do padrão arm´s
length consiste em atribuir às transações entre partes relacionadas o valor que
lhes teria sido dado caso partes independentes realizassem o mesmo negó-
cio, sob condições comparáveis. Trata-se, pois, de uma comparação que visa a
promover a igualdade da tributação entre os contribuintes que transacionam
com partes relacionadas e aqueles que negociam com partes independentes
(SCHOUERI, 2013, p. 37).
O padrão arm´s length, ensina SCHOUERI (2016, p. 14), baseia-se em
uma ficção seguida de uma presunção. A ficção consiste na determinação le-
gal de que as transações entre partes relacionadas sejam tratadas como tran-
sações entre partes independentes (quando na verdade são diferentes). A pre-
sunção, de sua parte, consiste em assumir a legislação que o preço praticado
pelas partes independentes, em uma situação comparável, seria aquele obtido
por meio de um dos métodos aceitos.

320
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O arm´s length, todavia, vem sendo alvo de críticas severas (AVI-YO-


NAH; BENSHALOM, 2011, pp. 373-377). Por um lado, critica-se a noção de
que as transações intragrupo devam ser comparadas com negociações entre
partes independentes e questiona-se da existência de parâmetros de compara-
bilidade para a maioria das situações (objeções conceituais). De outra banda,
critica-se a complexidade do sistema baseado no arm´s length, os custos envol-
vidos, as disputas geradas e a falta de segurança jurídica (objeções práticas).
Nesse contexto, ressurgem alternativas ao padrão arm´s length, dentre
as quais deve-se distinguir entre: a) o approach unitário ou global formula-
ry apportionment; b) perspectivas híbridas baseadas no approach unitário; c)
remodelação do padrão arm´s length para albergar elementos formulares não
baseados no modelo unitário.
O primeiro modelo baseia-se no lucro consolidado do grupo, que poste-
riormente tem porções alocadas a cada uma das entidades por meio de uma
fórmula pré-estabelecida, que tomará em conta variáveis como folha de salá-
rios, ativos e receita (SCHOUERI, 2016, pp. 19-20). Com isso, todas as tran-
sações entre partes relacionadas, componentes do grupo, são desconsidera-
das. Ao contrário do que ocorre com o padrão arm´s length, não há ficção de
independência entre as entidades, mas uma forma de aproximação unitária
(SCHOUERI, 2013, pp. 36-37).
O modelo unitário tradicionalmente sofreu rejeição expressa da OCDE.
Nos Guidelines de 2017 (OECD, 2017, 1.16-1.32), a entidade rejeita essa alter-
nativa sob os seguintes argumentos: a) dificuldade de implementação de um
modo que previna a dupla-tributação e assegure uma tributação única; b) ne-
cessidade de coordenação extensiva acerca da fórmula de alocação e da conta-
bilidade para determinar a base de cálculo; c) caráter arbitrário da fórmula; d)
problemas de conversão de moedas; e) custos de conformidade; f) não poderia
ser utilizado em relação a entidades não consolidadas. Em adição, ressalta
SCHOUERI (2013, p. 37) a relevância da justificação do padrão arm´s length,
pautada no princípio da igualdade. O approach unitário, como alternativa ex-
cludente em relação ao arm´s length e sua perspectiva transacional, continua
definitivamente rejeitado pela OCDE.
Ganham importância, todavia, as perspectivas híbridas, dentre as quais
aquelas baseadas no approach unitário. AVI-YONAH e BENSHALOM (2011,
pp. 383-387), nessa linha, defendem a adoção do formulary apportionment,

321
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nos casos em que o padrão arm´s length seria inadequado, marcadamente no


que respeita a intangíveis móveis e ativos financeiros. Os autores, que dis-
tinguem esse modelo da forma de aproximação unitária, defendem que as
transações internas relativas a tais intangíveis e ativos financeiros seriam des-
considerados, efetuando-se alocação dos resultados verificados com terceiros
por meio de uma fórmula.
Proposta de certo modo similar, mas conceitualmente distinta, consiste
em uma remodelação do padrão arm´s length para albergar elementos for-
mulares não baseados no modelo unitário, em casos específicos. SCHOUERI
(2016, pp. 34-35), nessa linha, defende a adoção do método que denominou
“Rebuttable Fixed-Margins - RFM” ou margens fixas refutáveis, que consis-
te na adoção de margens de lucro pré-estabelecidas para fixação de preços
de transferência considerando custos ou valor de revenda, que poderiam ser
questionadas pelos contribuintes em situações específicas.
Tal método, defende o autor, consistiria em um passo a mais na presun-
ção estabelecida pelos métodos de cálculo tradicionais dos preços de transfe-
rência, porém ainda no padrão arm´s length, uma vez que não desconsidera as
transações intragrupo (SCHOUERI, 2016, pp. 32-33).
Expostos os três modelos e já adiantada a repulsa pela aproximação
unitária pura, discute-se se a OCDE estaria caminhando para uma das duas
alternativas finais: um sistema híbrido com elementos do global formulary
apportionment ou um sistema dentro do arm´s length que tome em conta
elementos formulares. ROBILLARD (2015, p. 453), nessa linha, identificou,
com preocupação, que nos artigos para discussão (discussion drafts) publi-
cados pela OCDE antes do Relatório Final, haveria um “flerte” com a adoção
de alternativas similares ao approach formular, sem qualquer referência aos
elementos de comparabilidade característicos do padrão arm´s length.
Em linha similar, AVI-YONAH e BENSHALOM (2011, p. 397) afirmam que
já existiria uma tendência de migração do padrão arm´s length para uma forma
de aproximação mais formular, que deveria ser melhor explicitada e estruturada.
Em que pese haja certa área de interpenetração, parece relevante discer-
nir entre a adoção de um modelo híbrido que envolva, em parte, o approach
unitário da adoção de elementos formulares dentro do padrão arm´s length.
O primeiro sistema, ainda que limitado a alguns ingressos, desconsidera as

322
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

operações entre partes relacionadas e abandona a fundamentação teórica do


arm´s length, enquanto que o segundo busca manter-se dentro do padrão.
A respeito da forma de aproximação que apresenta efetiva hibridez, o tra-
balho do Projeto BEPS sobre os profit-splits representa campo de perquirição
relevante. Todavia, considerando-se os limites temáticos deste trabalho, focar-
-se-á no tratamento dos serviços intragrupo de baixo valor adicionado. Relati-
vamente a este tema, o Relatório Final da Ação 10 do Projeto BEPS parece ter
dado mais um passo para a última das alternativas acima referidas, consistente
em uma solução dentro do modelo arm´s length, porém com a previsão de ele-
mentos formulares para transações específicas, como se passa a expor.

2.2 Os serviços intragrupo no relatório final da ação 10


Conforme acenado acima, o Projeto BEPS produziu apenas um Relatório
Final para as três ações que lidam com aspectos materiais do regramento dos
preços de transferência, implementados mediante modificações nos Guideli-
nes da OCDE. Nesse passo, o capítulo inicial do Relatório Final trata de revi-
sões à Seção D do Capítulo I dos Guidelines, que versa sobre recomendações
para a aplicação do arm´s length. Trata-se de tema em comum para as três
ações, cuja relevância inicial consiste na reafirmação da adoção do padrão
arm´s length, pelo menos a nível de discurso anunciado.
Dentre os temas tratados no referido capítulo, estão os chamados ganhos
de sinergia (group synergies, synergy gains, synergy rents), que consistem em
vantagens que têm as multinacionais em função da diminuição de seus cus-
tos por razão de sua estrutura coordenada. Como exemplos paradigmáticos,
podem-se citar a integração de aquisições (que resulta em ganhos de escala)
e a obtenção de melhores taxas de financiamento em decorrência da força do
balanço consolidado do grupo.
Nesses casos, aponta-se para uma debilidade associada ao arm´s length,
consistente na circunstância que, se realizados ajustes baseados em valores
usados por partes não relacionadas, a soma dos lucros das duas entidades
associadas resultante seria menor que os ganhos efetivamente auferidos pela
multinacional (KOFLER, 2013, p. 647). Essa questão, como pontua SCHOUE-

323
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

RI (2016, p. 18), somente terá relevância quando ambas as partes aplicarem, de


maneira independente, ajustes de preços de transferência.
Endereçando esse (pretenso) problema, o Relatório Final do Projeto
BEPS (OECD, 2015, pp. 47-50) sobre preços de transferência propõe que, ini-
cialmente, seja questionado se o benefício advém única e exclusivamente da
condição de parte de um grupo multinacional ou se resulta de ações delibe-
radas e coordenadas do grupo para esse fim. No primeiro caso, por serem
os ganhos meramente incidentais, não haveria necessidade de atribuição de
compensação separada em razão desses ganhos. Seria essa a hipótese verifica-
da no caso de obtenção de uma taxa de juros de terceiro mais vantajosa pela
simples circunstância de ser membro do grupo. No segundo caso, quando
houvesse ação específica e coordenada para a obtenção do ganho, este deveria
ser dividido entre os membros do grupo, após a alocação de compensação
apropriada à entidade que centralizasse a atividade. É o que ocorreria nos cen-
tros de compra integrados, por exemplo.
Em ambos os casos, o preço mais vantajoso pago ao terceiro é considera-
do como um valor arm´s length, de modo que a despesa dedutível pelas entida-
des do grupo será o valor efetivamente pago, acrescido, quando for o caso, de
uma remuneração em razão do serviço prestado pela entidade que centraliza
a atividade. Com isso, restringe-se a abrangência do ajuste possível à compen-
sação do serviço prestado por uma entidade à outra, o que, em certa medida,
diminui a possibilidade de adoção de métodos diversos que possibilitem a não
inclusão dos ganhos de sinergia nos lucros de qualquer das entidades.
Nessa linha, o passo seguinte consiste na determinação do preço arm´s
length desse “serviço” que se reputa prestado por uma entidade do grupo à ou-
tra, matéria especificamente tratada pela Ação nº 10 do Projeto BEPS, no que
respeita aos serviços intragrupo. Frise-se, de início, que essa matéria abrange
a questão dos ganhos de sinergia, mas não está restrita a ela. Ao instituir re-
visões no Capítulo VII dos Guidelines, que já tratava especificamente dos ser-
viços intragrupo (Special Considerations for Intra-Group Services), o Relatório
Final das ações sobre preços de transferência do Projeto BEPS expressamente
afirma a preocupação com a erosão da base tributável do país onde está loca-
lizado o membro do grupo que paga pelos serviços, buscando evitar a mani-
pulação de preços para montantes “excessivos” de modo a gerar deduções na
residência da fonte pagadora e deslocar lucros (OECD, 2015, p. 141).

324
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em que pese o foco central desse capítulo do relatório seja intitulado


“low value-adding intra-group services” (serviços intragrupo de baixo valor
adicionado) e seu objetivo principal consista na descrição do modelo simplifi-
cado de tributação desse tipo de serviço, vislumbra-se uma dualidade entre o
tratamento ordinário que devem receber os serviços intragrupo genericamen-
te considerados e o tratamento simplificado e eletivo que se propõe para uma
subcategoria de serviços intragrupo: aqueles que presumivelmente adicionam
pouco valor à atividade. Por esse motivo, o tratamento ordinário e o regime
simplificado são tratados separadamente nos subtópicos que seguem.

2.2.1 Os serviços intragrupo em geral:


o tratamento ordinário
O que se denominou tratamento ordinário dos serviços intragrupo, para
fins da presente exposição, consiste em pequenos aprimoramentos ao modelo
já constante dos Guidelines de 2010 (OECD, 2010, 7.1-7.42), incorporados aos
Guidelines de 2017 (OECD, 2017, 7.1-7.42). Com efeito, mantém-se o tratamen-
to em duas etapas, consistentes na determinação de ter sido prestado um ser-
viço intragrupo, seguida da determinação do preço arm´s length.
Resumidamente, conforme o relatório (OECD, 2015, pp. 144-146), a
determinação de ter sido prestado um serviço intragrupo reside na resposta
positiva a essas duas questões: a) houve atividade que tenha proporcionado
a um membro do grupo um valor econômico ou comercial para melhorar
ou manter sua posição de mercado?; b) um empreendimento independente,
em circunstâncias comparáveis, pagaria por esse serviço? Em todo caso, estão
expressamente excluídas as atividades típicas de acionistas (como emissão de
ações, demonstrativos da companhia mãe que refletem a investida, etc.), os
serviços duplicados e aqueles que proporcionam um benefício meramente in-
cidental (como os benefícios de ser parte do grupo de que se tratou quando da
análise dos ganhos de sinergia).
A segunda etapa, por sua vez, consiste na determinação do preço arm´s
length a ser atribuído ao serviço prestado por uma entidade do grupo à outra,
quando a resposta às questões acima for positiva. Para tanto, conforme o rela-
tório final, cuja dicção foi incorporada no Capítulo VII dos Guidelines de 2017,
deve-se identificar o preço efetivamente pago na operação controlada. Esse pre-

325
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ço poderá ter sido liquidado: a) por meio de cobrança direta (direct-charge me-
thod), quando ocorre a cobrança ordinária de um valor em moeda; b) por meio
de cobrança indireta (indirect-charge method), como alocação e rateio de custos;
c) embutida nos custos de outras transferências (OECD, 2015, pp. 147-149).
Em seguida, o relatório recomenda a aplicação de um dos métodos acei-
tos para o cálculo do preço de transferência, sendo recomendado o método de
preços independentes comparados (comparable uncontrolled price - CUP) ou
um método baseado em custos como o método custo mais lucro (cost-plus me-
thod - CPM) ou o método transacional não tradicional das margens líquidas
de lucro (transactional net-margin method - TNMM). Em todo caso, poderá
ser necessária uma análise funcional completa dos ativos, riscos e funções
envolvidos (OECD, 2015, pp. 150-151).
A breve exposição do tratamento ordinário dispendido aos serviços intra-
grupo pela nova versão do Capítulo VII dos Guidelines da OCDE, após as mo-
dificações empreendidas pelo Relatório Final das Ações 8-10 do Projeto BEPS,
embora não tenha modificado muito o tratamento anterior, teve por fito deixar
clara a abrangência do novo tratamento simplificado e eletivo para os serviços
intragrupo de baixo valor adicionado, sobre o qual se passa a discorrer.

2.2.2 Os serviços intragrupo de baixo valor


adicionado: o regime simplificado
Conforme já exposto e expressamente consignado no Relatório Final, os
serviços intragrupo de baixo valor adicionado consubstanciam uma subca-
tegoria dos serviços intragrupo em geral (OECD, 2015, p. 153). Para essa ca-
tegoria específica, o Relatório propõe um sistema simplificado e eletivo, que
visa a promover os seguintes fins: a) redução de custos de conformidade para
demonstração do preço arm´s length; b) maior segurança jurídica na determi-
nação de preços e certeza de que serão aceitos pela fiscalização; c) documenta-
ção mais específica (OECD, 2015, p. 156).
Para tanto, o Relatório inicialmente define o que se entende por servi-
ços intragrupo de baixo valor adicionado, de modo a circunscrever o escopo
de aplicação do regime simplificado. Essa definição é feita de três maneiras
diferentes, a saber: a) definição intensional (que enumera características que
deve ter um serviço para que pertença à classe dos serviços intragrupo de bai-

326
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

xo valor adicionado); b) definição extensional positiva (que enumera serviços


que se encaixam no conceito); c) definição extensional negativa (que enumera
serviços que não se encaixam no conceito).231
Enunciando a definição intensional, afirma o Relatório Final que um ser-
viço intragrupo deve ter as seguintes características para ser considerado um
serviço intragrupo de baixo valor adicionado, a saber: a) natureza de suporte; b)
não ser parte do negócio principal do grupo; c) não requerer o uso de intangíveis
únicos e valiosos nem levar à sua criação; d) não envolver a assunção, controle
ou criação de qualquer risco significativo para o prestador (OECD, 2015, p. 153).
No que respeita aos serviços que não se enquadram no conceito (defi-
nição extensional negativa), são enumerados: a) serviços que constituam o
negócio principal do grupo; b) serviços de pesquisa e desenvolvimento; c) ser-
viços de manufatura e produção; d) compra de matérias-primas; e) vendas,
marketing e distribuição; f) transações financeiras; g) extração, exploração e
manufatura de recursos naturais; h) seguro e resseguro; i) serviços executivos
de nível sênior (OECD, 2015, pp. 153-154).
Por fim, são serviços que se enquadram no conceito de serviços intragru-
po de baixo valor adicionado: a) contabilidade e auditoria; b) processamento e
administração de contas a pagar e contas a receber; c) atividades de recursos
humanos, como: c.1) recrutamento; c.2) treinamento e desenvolvimento de
empregados; c.3) serviços de remuneração; c.4) desenvolvimento e monito-
ramento de procedimentos de saúde e segurança; d) monitoramento e com-
pilação de informações referentes a marcadores regulatórios; e) serviços de
tecnologia da informação; f) comunicações internas e externas; g) serviços
legais; h) serviços relativos a obrigações tributárias; i) serviços de natureza
administrativa em geral (OECD, 2015, pp. 154-155).
Única e exclusivamente para os serviços intragrupo que se enquadrem
nessas definições, o Relatório Final propõe um regime simplificado de apura-
ção do preço arm´s length, que será eletivo para os contribuintes, cuja adoção
pela legislação interna dos países participantes se esperava fosse levada a cabo
antes de 2018 (OECD, 2015, p. 142).

231 Uma definição intensional, conotativa ou por designação, consiste na enumeração das características
definitórias que deve ter um elemento para pertencer a uma classe, enquanto que uma definição
extensional ou denotativa consiste na enumeração de elementos que pertencem a uma classe
(GUIBOURG; GHIGLIANI; GUARINONI, 2000, pp. 58-59).

327
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O regime simplificado é composto de quatro fases. Na primeira fase, aplica-


-se o teste do benefício (benefit test), para definir se um serviço foi efetivamente
prestado, de maneira similar ao que ocorre no procedimento ordinário. A segun-
da fase consiste na determinação do cost pool, consistente na soma de todos os
custos incorridos pelo grupo para cada categoria de serviço intragrupo de baixo
valor adicionado, seguida da retirada dos custos atribuíveis a serviços cujo presta-
dor e beneficiário sejam únicos e identificáveis de maneira isolada.
Em seguida, na terceira fase, alocam-se os custos do cost pool para cada en-
tidade, com base em chave de proporção baseada em sua necessidade particular
de um dado tipo de serviço. Por fim, na última etapa, adiciona-se uma margem
fixa de 5% a tais custos, que não precisa ser justificada com base em estudo algum.
ROBILLARD (2015, p. 449), após criticar que esse modelo ora propos-
to pela OCDE, na forma como enunciado no discussion draft que antecedeu
o Relatório Final, não tomaria comparáveis enquanto parâmetro, cogita de
tratar-se de uma regra safe harbour, consistente em um padrão objetivo que
pode ser usado pelo contribuinte como alternativa à regra baseada em fatores
subjetivos e complexos. O autor, em seguida, rejeita essa alternativa, analisan-
do a forma como o Projeto BEPS vinha tratando outros temas, para concluir
que a OCDE estaria às portas do formulary apportionment.
Todavia, não parece se justificar a asserção de que a adoção do padrão
de margens fixas necessariamente signifique rompimento com o padrão arm´s
length, uma vez que, como afirma SCHOUERI (2016, pp. 34-35), trata-se de
uma forma de aproximação transacional que apenas leva a presunção de que
se valem os preços de transferência em geral um passo adiante. Ademais,
o regime simplificado proposto pela OCDE é eletivo para os contribuintes,
aproximando-se do regime de margens fixas refutáveis proposto pelo autor.
Dessa forma, o regime simplificado proposto para os serviços intragrupo
de baixo valor adicionado, em que pese possa ter a generalização da margem de
5% questionada, não parece significar um rompimento em relação ao padrão
arm´s length, mas uma redefinição do princípio, com a adoção de elemento for-
mular em uma situação específica, de maneira eletiva para o contribuinte.

328
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2.3 Os serviços intragrupo e os


cost contributition agreements
Para finalizar a descrição do tratamento dos serviços intra-grupo no Rela-
tório Final das Ações 8 a 10 do Projeto BEPS, importa, ainda, distingui-los dos
chamados “cost contribution agreements”, “cost contribution arrangements” ou
CCA, tratados no Capítulo VIII dos Guidelines da OCDE. Embora apresentem
certa similaridade com os serviços intra-grupo, parecem haver duas diferenças
fundamentais entre estes e os CCAs, no Relatório Final em questão.
Primeiramente, os CCAs não pressupõem um pagamento de preço por
cobrança direta (direct-charge method) ou indireta, consistente na alocação e
rateio de custos (indirect-charge method), como fazem os serviços intra-grupo
(OECD, 2015, pp. 147-149). Conforme a definição constante do Relatório Fi-
nal, um CCA é um arranjo contratual dentre empresas para compartilhar
contribuições e riscos envolvidos no desenvolvimento conjunto, produção ou
obtenção de intangíveis, ativos tangíveis ou serviços, sob a expectativa de que
tais intangíveis, ativos tangíveis ou serviços beneficiarão os negócios indivi-
duais de cada um dos participantes (OECD, 2015, p. 163).
Ressalte-se que tal definição dos CCAs, ao contrário do que fazia a de-
finição constante do parágrafo 8.3 dos Guidelines de 2010 (OECD, 2010), não
faz referência ao compartilhamento de “custos e riscos”, mas ao compartilha-
mento de “contribuições e riscos”. Nessa linha, o Relatório Final, que introduz
modificações aos Guidelines da OCDE, após estabelecer uma distinção entre
CCAs de serviços e CCAs de desenvolvimento (OECD, 2015, pp. 165-166),
determina que, para os primeiras, as contribuições consistirão primariamente
na performance de serviços (OECD, 2015, p. 170). Dessa forma, como se pode
depreender também dos exemplos de CCAs de serviços referidos pelo Relató-
rio (OECD, 2015, pp. 177-180), estes arranjos contratuais, na forma como ali
referidos, compreendem apenas avenças em que cada participante contribui
com prestações materiais de serviços em benefício dos demais.
Em suma, para fins do Relatório Final das Ações 8 a 10 do Projeto BEPS,
arranjos contratuais intragrupo para fruição de serviços em que as partes se
obrigam a contribuir com a prestação de serviços umas às outras serão tra-
tados pelo Capítulo VIII dos Guidelines revisados (cost contribution arrange-
ments), enquanto que o pagamento direto ou indireto de preço por empresas

329
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de um mesmo grupo para uma outra empresa também vinculada estará sob o
escopo do Capítulo VII dos referidos Guidelines revistos (intra-group services).
Essa distinção importa uma consequência muito importante. Enquanto
nos serviços intra-grupo, na sistemática do Projeto BEPS, haverá a perquiri-
ção da efetividade do serviço prestado (benefit test), seguida da determinação
do preço arm´s length, que envolve uma margem de lucro para a entidade do
grupo que presta o serviço, no caso dos CCAs a sistemática é distinta.
Uma vez identificado um CCA, o arm´s length será utilizado para deter-
minar o valor da contribuição de cada participante, com base no valor que por
ela seria pago por partes independentes em condições comparáveis (OECD,
2015, p. 170). Os CCAs, como se percebe, pressupõem uma contribuição ma-
terial e não meramente de pagamento. O passo, seguinte, então, consiste em
balancear as contribuições, de modo que o valor arm´s length das contribui-
ções de cada participante seja equivalente aos benefícios individualmente es-
perados do acordo (OECD, 2015, p. 172).

3. A (ir)relevância do tratamento dos serviços intragrupo


na ação 10 do projeto beps sob a perspectiva dos países em
desenvolvimento: o caso brasileiro
Exposto, de maneira geral, o tratamento dispendido pelo Relatório Fi-
nal do Projeto BEPS aos serviços intragrupo de baixo valor adicionado, em
contraste com o tratamento ordinário dos serviços intragrupo e dos CCAs,
passa-se a analisar a relevância que se podem imprimir a tais recomendações
no ordenamento jurídico brasileiro.
O Projeto BEPS, em suas várias ações, conforme já exposto, funciona
em diferentes níveis de argumentação (recomendações de modificação de leis
internas, mudanças no texto de tratados, mudanças nos comentários aos tra-
tados já firmados, etc.), mesclando elementos políticos, técnicos e jurídicos,
dentre outros. Por esse motivo, adicionado ao impulso de aplicação imediata
das conclusões do Projeto BEPS no Brasil em razão de seu apelo moral, afigu-
ra-se relevante discernir possíveis impactos do tratamento final dos serviços
intragrupo em diferentes níveis de argumentação jurídica.

330
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Como predica AARNIO (2011, p. 63), em sede do estudo doutrinário do


direito, não é o enunciado final sobre a norma o aspecto mais importante, po-
rém o procedimento discursivo que o justifica. Por esse motivo, a análise que
se segue será apartada nas possíveis consequência que poderia ter o tratamen-
to final do tema em análise no Projeto BEPS, nos países em desenvolvimento,
com especial foco no Brasil, em três diferentes níveis de argumentação, que
apresentam distintas relações com as conclusões do BEPS. São eles a relevân-
cia das conclusões sobre serviços intragrupo: a) no nível pré-legislativo; b) no
nível de interpretação dos tratados já firmados; c) no nível de interpretação da
lei interna e qualificação de fatos.

3.1 A argumentação do BEPS no âmbito de lege ferenda


No âmbito pré-legislativo do discurso jurídico, embora se possa
vislumbrar a necessidade de aderência aos ditames constitucionais e de
tratados, verifica-se que a argumentação não é constrita pela vinculação
ao direito vigente, como ocorre com a aplicação do direito. Nessa por-
ção do discurso, as razões substantivas (morais, econômicas, políticas,
institucionais, etc.) a que se refere PECZENIK (2009, p. 257 e 269), que
contrastam com razões de autoridade baseadas nas fontes do direito,
têm livre trânsito e relevância crucial. Dessa forma, resta sobremodo
ressaltada a importância do discurso de legitimação em que se escora o
Projeto BEPS, cuja relevância no ambiente político no Brasil vem sendo
notada com muita intensidade. Com efeito, é cada vez mais frequente
a referência ao discurso do BEPS e da OCDE para justificar medidas
legislativas, como a declaração de planejamentos tributários, a repatria-
ção de capitais e a troca de informações.
Dessa forma, relativamente ao tratamento dos serviços intragrupo no rela-
tório Final das Açoes 8 a 10 do Projeto BEPS, o endosso, pela OCDE, de um re-
gime simplificado e eletivo para os serviços intragrupo de baixo valor agregado
baseado em margem fixa, como compatível com o arm´s length parece importar
relevante oportunidade para que o Brasil faça ajustes em sua legislação interna.
Com efeito, o discurso geral do Brasil relativamente aos preços de trans-
ferência, pautado em razões de praticabilidade e segurança jurídica, nunca
esteve tão próximo da OCDE. Todavia, essa aproximação é apenas aparente

331
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

caso se considere a interpretação de que as margens fixas brasileiras não ad-


mitiriam prova em contrário que contrasta com a circunstância de o regime
simplificado para os serviços intragrupo de baixo valor adicionado, no BEPS,
ser opcional para os contribuintes. Em que pese essa interpretação rígida da
legislação brasileira não seja a mais coerente com a lei, com os tratados ou
com a Constituição da República Brasileira, o discurso do BEPS configura
ótima oportunidade para que se introduza, claramente, por via legislativa,
uma maior flexibilidade no modelo.
Poderiam ser introduzidas modificações na legislação admitindo expres-
samente prova em contrário das margens legais, ou facultando expressamente
ao contribuinte o uso de outros métodos que não os previstos na lei, nas hipó-
teses em que esses fossem provados inservíveis para uma aferição de preços
arm´s length. Com isso, o modelo do Brasil poderia se tornar, efetivamente,
um bom paradigma do método de “Rebuttable Fixed-Margins” (margens fixas
refutáveis) a que se refere SCHOUERI (2016, pp. 30-40), apto a ser reproduzi-
do em outros países em desenvolvimento.

3.2 A argumentação do beps no âmbito da


interpretação dos tratados
Conforme exposto, o Relatório Final das Ações 8 a 10 do Projeto BEPS
consiste, basicamente, em modificações aos Guidelines da OCDE sobre preços
de transferência que, por sua vez, nada mais são do que comentários ao art. 9º
da Convenção Modelo da entidade (SCHOUERI, 2013, p. 411). Nesse sentido,
perquirir sobre a relevância do tratamento dos serviços intragrupo no referido
relatório do BEPS relativamente à interpretação do art. 9º dos tratados contra a
bitributação firmados pelo Brasil (largamente baseados no modelo OCDE) sig-
nifica, em última instância, analisar a relevância interpretativa de uma modi-
ficação nos comentários ao dispositivo, posteriormente à conclusão do tratado.
Os tratados, como predica VOGEL (1986, pp. 30-31), assim como as leis
internas, demandam interpretação, que pode ser regulada pelo direito. Todavia,
prossegue o Autor, a interpretação dos acordos internacionais, mesmo por tribu-
nais domésticos, não deve se basear nas regras de interpretação da lei domésti-
ca, mas sim no regime internacional. Dessa forma, como esclarece SCHOUERI

332
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(2013, pp. 409-410), tanto os adeptos da teoria da adesão232 como os paladinos da


teoria da transformação233 concordam que os tratados internacionais devem ser
interpretados em conformidade com normas especiais de direito internacional.
Nesse contexto, é altamente controversa a relevância, ou não, dos comen-
tários à Convenção Modelo da OCDE para a interpretação dos tratados basea-
dos no modelo. Via de regra, busca-se na Seção 3 da Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 7.030/2009), que
versa sobre a interpretação desses instrumentos normativos, supedâneo para
justificar a relevância dos referidos comentários (dentre os quais se incluem
as Guidelines sobre preços de transferência). Em que pese essa convenção, por
sua pretensão de aplicabilidade sobremodo ampla, a quaisquer tratados sobre
quaisquer matérias, não tome em conta as particularidades dos tratados con-
tra a bitributação, sua aplicação tem resolvido certas incertezas na área, como
noticia VOGEL (1986, p. 33).
As controvérsias sobre a relevância dos comentários podem ser dividi-
das da seguinte forma: a) controvérsias sobre a relevância interpretativa dos
comentários existentes quando da conclusão do tratado versus relevância dos
comentários posteriores; b) controvérsias sobre a relevância interpretativa dos
comentários para países membros da OCDE versus relevância dos mesmos
para países não membros que adotem o modelo.
No que respeita à primeira controvérsia, afirma-se que os comentários
existentes quando da conclusão de um tratado poderiam ser tomados como
“meios suplementares de interpretação”, na condição de “trabalhos preparató-
rios”, de modo a auxiliar na clarificação de sentidos ambíguos e de resultados
absurdos, na forma do art. 32 da Convenção de Viena. Para VOGEL (1986, p.
40), entretanto, não há razão para dar uma relevância meramente secundária
aos comentários nessa hipótese, uma vez que, em se tratando de tratados con-
tra a bitributação, essas informações são amplamente conhecidas. Adicional-
mente, ressalta o Autor que recomendações do Conselho da OCDE de 30 de

232 Conforme essa teoria, defendida no Brasil por SCHOEURI (2013, pp. 97-116), a circunstância de um
tratado ser adotado pelo direito interno de um país não faz com que o instrumento perca a natureza
de direito internacional. O tratado, assim, fixaria a jurisdição do Estado.
233 Em conformidade com essa teoria, os tratados internacionais são incorporados ao direito interno
após o processo de ratificação, como direito interno. Nessa linha, cf. BARRETO (2001, pp. 164-167).

333
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

julho de 1963, que são de consideração obrigatória para os países membros,


obrigam à adoção da Convenção Modelo e de seus comentários.
Nessa linha, é coerente a posição adotada por LANG e BRUGGER (2008,
pp. 99-100), para quem se um dado tratado contra a bitributação foi firmado com
base na Convenção Modelo da OCDE, a interpretação de boa-fé determinada pelo
art. 31 da Convenção de Viena conduz à consideração de terem as partes adotado
o sentido então conhecido, explicitado por meio dos Comentários, sem, contudo,
que se lhes atribua maior relevância do que ao próprio texto da convenção.
A questão, contudo, é mais complexa quando se trata de modificações
introduzidas aos comentários ou Guidelines posteriormente à conclusão do
tratado. Sobre o tema, o parágrafo 35 da introdução aos comentários do ano
de 2017 afirma que mudanças aos comentários seriam aplicáveis à interpreta-
ção de convenções concluídas antes de sua adoção, desde que não resultantes
de mudanças no texto da convenção, pois eles refletiriam o consenso dos pa-
íses membros da OCDE em relação à interpretação das previsões existentes e
sua aplicação a situações específicas (OECD, 2017, § 35).
A crítica de Elis, citado por LANG e BRUGGER (2008, p. 102), a essa
declaração é precisa. Expressa o Autor sua perplexidade que um órgão possa
determinar a extensão de sua própria competência. Com efeito, essa afirma-
ção dos próprios comentários, por si só, não possui grande relevância. Toda-
via, há argumentos normativos para sustentar a relevância de modificações
subsequentes de comentários.
Nessa linha, BROEKHUIJSEN (2013) sustenta a possibilidade de considera-
rem-se os comentários como “regras pertinentes de Direito Internacional aplicá-
veis às relações entre as partes”, na forma do art. 31, 3, “c”, da Convenção de Viena,
ainda que se trate meramente de soft law. LANG e BRUGGER (2008, pp. 103-104),
de sua parte, levantam a possibilidade de se terem as modificações aos comen-
tários como “prática seguida posteriormente na aplicação do tratado”, na forma
do art. 31, 3 “b”, da Convenção de Viena, concluindo que, ainda que sejam assim
consideradas, as modificações terão papel limitado na interpretação dos tratados.
Vê-se, pois, que mesmo sob a ótica dos países membros da OCDE, é altamente
controversa e problemática a aplicação imediata de modificações posteriores aos
comentários da OCDE para a interpretação dos tratados.
Tratado de foco temático deste artigo, a questão resta ainda mais conturbada
em função da segunda polêmica, sobre a relevância dos comentários para países

334
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

não membros da OCDE (o que costuma ser o caso dos países em desenvolvimen-
to). A esse respeito, VOGEL (1986, p. 42), referindo-se aos comentários existentes
quando da conclusão do tratado, afirma que estes serão relevantes para países não
membros tão-somente quando o enunciado do tratado coincidir com a Conven-
ção Modelo da OCDE e seu contexto não sugerir outra interpretação.
Essas considerações, contudo, não se aplicam no caso de modifica-
ção subsequente à conclusão do tratado. Nesses casos, vale a advertência de
SCHOUERI (2013, p. 412), conforme a qual a frequente mudança de posição
da OCDE consubstancia relevante argumento para que suas conclusões sejam
tomadas com cautela. Com efeito, para um país que não é membro da OCDE,
mudança posterior de comentários ou dos Guidelines sobre preços de transfe-
rência terá pouca ou nenhuma relevância interpretativa.
Todavia, em se tratando de mudança levada a efeito no contexto do Projeto
BEPS, poder-se-ia cogitar de uma relevância maior. Com efeito, o Brasil é mem-
bro do G20 e participou do projeto, de modo que as conclusões do Relatório
Final poderiam ser tomadas como “prática seguida posteriormente na aplicação
do tratado”, na forma do art. 31, 3 “b”, da Convenção de Viena ou como regras
de soft law aplicáveis, na forma do art. 31, 3 “c”, da referida convenção.
Nessa linha, o Brasil fez constar nota do referido Relatório Final, segun-
do a qual continuará aplicando sua legislação baseada em margens fixas de
lucro e usará as recomendações do relatório nesse contexto (OECD, 2015, p.
185). Logo, percebe-se que, embora tenha ressalvado a aplicação de sua legis-
lação de margens fixas, o Brasil concordou em seguir as recomendações do
relatório. Ainda que não se possa considerar esse um “acordo posterior entre as
partes relativo à interpretação do tratado ou à aplicação de suas disposições”,
na forma do art. 31, 3 “a”, da Convenção de Viena, uma vez que não houve um
compromisso formal, a declaração parece confirmar certa relevância inter-
pretativa das conclusões do relatório, que poderá ser reconduzida ao art. 31, 3
“b” ou “c”, da Convenção de Viena.
Especificamente no que respeita ao tratamento ordinário dos serviços
intragrupo, o Relatório Final manteve, em linhas gerais, as recomendações
já constantes das versões anteriores dos Guidelines, de modo que restou re-
forçada a relevância do padrão arm´s length e sua concretização por meio de
comparações baseadas nos métodos da OCDE, para fins de aplicação do art.
9º da Convenção Modelo.

335
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Já no que tange aos serviços intra-grupo de baixo valor adicionado, pare-


ce-nos que o tratamento simplificado e eletivo deva servir de evidência acerca
da compatibilidade do padrão arm´s length determinado pelo art. 9º dos tra-
tados com o uso de margens fixas em casos específicos, de forma eletiva para
o contribuinte. Com efeito, utilizadas de maneira eletiva, as margens fixas
efetivamente contribuem para a redução dos custos de conformação e para a
promoção da segurança jurídica.
A segurança jurídica, em seu vetor calculabilidade, consiste na capacida-
de elevada de prever o espectro de consequências jurídicas que poderão advir
de seus comportamentos no passado, como leciona ÁVILA (2012, p. 258). Tal
capacidade de saber o resultado final da interpretação das regras de preços de
transferência sem dúvidas é incrementada fortemente por um sistema que se
vale de margens fixas cujo uso garante ao contribuinte que não haverá ques-
tionamentos de parte da Administração. Todavia, esse regime deve ser eletivo
para os contribuintes, sob pena de quebra da lógica do padrão arm´s length
(SCHOUERI, 2016, p. 35).
Essa parece ser a grande relevância interpretativa do tratamento dos servi-
ços intragrupo de baixo valor adicionado no Relatório Final das Ações 8 a 10 do
Projeto BEPS em relação ao Brasil e aos demais países em desenvolvimento que
pretendam introduzir normas de preços de transferência similares: o art. 9º da
Convenção Modelo, que determina o uso do padrão arm´s length é compatível
com o uso de presunções baseadas em margens fixas de lucro, conquanto essa
forma de aferição dos preços de transferência seja eletiva para o contribuinte.

3.3 A argumentação do beps no âmbito de interpretação


do direito interno e da qualificação de fatos
No que respeita à interpretação da legislação doméstica de preços de
transferência e à qualificação de fatos sobre essas regras, no Brasil, parece-nos
importante analisar a possível relevância das conclusões do Relatório Final
das Ações 8 a 10 do Projeto BEPS em referência a duas situações, a saber: a) o
caráter taxativo ou não das margens de lucros previstas na legislação domés-
tica, especialmente para o Método Custo Mais Lucro; b) a qualificação dos
chamados contratos de rateio de custos sob o sistema tributário brasileiro.

336
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No que respeita ao primeiro tema, primariamente referente à interpretação


do direito tributário in abstracto, as conclusões do Relatório Final reforçam a
tese segundo a qual seria possível a compatibilidade entre os métodos brasileiros
baseados em margens fixas e o arm´s length prescrito pelos tratados, conquanto
as margens fossem interpretadas como meramente sugestivas ou refutáveis.
Nessa linha, defende SCHOUERI (2016, pp. 34-35) que as margens pre-
vistas pela legislação brasileira podem ser refutadas por meio de provas que
demonstrem que o preço arm´s length da transação provavelmente seria outro
sob pena de violação da legislação interna e dos tratados. Em linha similar,
defende BARRETO (2009, p. 140) que, para não haver violação ao arm´s length
e ao conceito de renda, os métodos prescritos pela Lei 9.430/96 não devem ser
tidos como taxativos, senão meramente sugestivos. Todavia, esse entendimen-
to não vem encontrando eco na Administração Tributária nem no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais, que entende que os parâmetros da Lei
9.430/96, aplicados de maneira taxativa, estariam de acordo com o arm´s leng-
th.234 Na mesma linha segue parte do Poder Judiciário.235
Contudo, o regime simplificado previsto no Relatório Final das Ações 8
a 10 do Projeto BEPS para os serviços intragrupo de baixo valor adicionado
não chancela o regime brasileiro, se interpretado dessa forma. Pelo contrário.
Embora o regime tenha por objetivo a promoção da segurança jurídica e a
redução de complexidades, como se afirma em relação à legislação brasileira
(ILLARAZ, 2014, pp. 227-228), trata-se de opção do contribuinte. Logo, o que
se chancela é a compatibilidade entre os tratados e um regime de standardi-
zação236 que não venha em prejuízo do contribuinte, facultando-se-lhe outros
meios de cálculo do preço, caso a padronização lhe seja muito danosa.
Nessa linha, as conclusões do Relatório Final das Ações 8 a 10 do Projeto
BEPS assumem relevância interpretativa como fator que corrobora com a inter-
pretação de que as margens previstas na Lei 9.430/96 podem ser afastadas em
certas situações, mediante provas de seu descabimento. Tal linha argumentativa
se somada a tantas outras mais que suportam essa conclusão (baseadas, por
exemplo, no princípio da igualdade, no conceito de renda ou na exposição de

234 Cf. Acórdão 108-09.763, Sessão 13/11/2008 e Acórdão 1401-000.801, Sessão 12/06/2012.
235 TRF-3, Apelação Cível nº 0001368-09.2010.4.03.6100/SP, DJ 16/05/2016.
236 Sobre o uso de margens fixas como standardização, ver Schoueri (2016, pp. 35-37).

337
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

motivos da lei), de modo a dar azo a uma argumentação juridicamente mais


robusta que depende, como predica AARNIO (2011, p. 114), da quantidade e
qualidade de linhas argumentativas distintas a suportar a mesma conclusão.
A segunda questão acima referida, concernente aos contratos de rateio
de custos, por sua vez, é mais relacionada à qualificação de fatos sob as pres-
crições do direito interno. Como predica HAGE (1997, pp. 95-96), embora não
haja uma precisão absoluta nessas operações, pode-se distinguir entre a ativi-
dade interpretativa do direito a partir das fontes legais e a atividade classifica-
tória de fatos, que parte de uma descrição mais bruta dos mesmos, de modo
que o resultado dessas operações deverá coincidir para que haja a subsunção.
Nesse contexto insere-se a polêmica acerca da qualificação jurídica dos
chamados contratos de rateio de despesas no direito brasileiro. De maneira
geral, pode-se afirmar tratar-se de um contrato inominado cujo objeto é o
rateio de despesas para exercício de uma atividade por uma empresa em favor
das demais, no contexto de um grupo econômico. Em face desses contratos,
existem diversas polêmicas relativamente à sua classificação e subsunção das
remessas feitas à empresa centralizadora em conceitos de direito interno como
os de “renda”, “receita de prestação de serviços”, “lucro” e “ faturamento”. Ga-
nha relevância, então, a chamada “tese da recomposição patrimonial”, confor-
me a qual tais remessas seriam meros reembolsos por despesas incorridas por
uma entidade em nome de outra.
Nesse passo, adverte XAVIER (1997, p. 13), com supedâneo em BAU-
MHOFF, que a exigência ou não de inclusão de um “adicional de lucro” nes-
sas remessas depende da própria concepção que se tem acerca desses acordos
de rateio de lucros. Nesse contexto, defende-se, em sede doutrinária, que a
atividade realizada pela entidade centralizada não estaria sujeita ao Imposto
municipal sobre Serviços (ISS), por não se enquadrar no conceito de serviço
(CARRAZZA, 2003, pp. 128-132). Adicionalmente, defende-se que as remes-
sas de “reembolso de custos” realizadas à entidade centralizadora não esta-
riam sujeitas à incidência das contribuições sobre receita (PIS e COFINS) e
não comporiam a base de cálculo do Imposto sobre a Renda (IRPJ) ou da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dessa entidade (LONGO,
2002, pp. 68-73; CASTRO, 2010, pp. 90-102).
Nesse contexto, valendo-se também da “tese da recomposição patrimo-
nial’, POLIZELLI (2009, pp. 257-259) defende que as remessas de entidades

338
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

brasileiras para partes vinculadas no exterior a título de reembolso de des-


pesas em contrato de rateio, bem como as entradas recebidas por entidades
brasileiras de partes vinculadas no exterior em razão desses contratos, não
estariam sujeitas às regras de preços de transferência, em razão da natureza
de reembolso do valor.
Sem adentrar no mérito dessas discussões, que em muito desbordaria
dos limites temáticos deste estudo, cabe-nos perquirir acerca da relevância
que se pode imprimir às conclusões do Relatório Final das Ações 8 a 10 do
Projeto BEPS em relação a elas. Em princípio, caso se fossem aplicar direta-
mente as conclusões do Relatório aos contratos de rateio acima referidos, estes
provavelmente seriam classificados como serviços intragrupo e possivelmente
como serviços intragrupo de baixo valor agregado, de modo a exigir aplicação
de regras de preços de transferência e a atribuição de margens de lucro para
adequá-los ao padrão arm´s length. Dessa forma, o Relatório classificaria esses
fatos como “serviços intragrupo” e como consequência jurídica prescreveria a
obediência ao padrão arm´s length. Tais circunstâncias podem ter relevância
na prática argumentativa do direito tributário interno brasileiro?
No que respeita às discussões quanto à dedutibilidade dos pagamentos
realizados à entidade centralizadora em face da base de cálculo do IRPJ e da
CSLL, bem como no que tange à polêmica acerca da incidência de ISS, PIS e
COFINS sobre a atividade e as remessas a ela relacionadas, parece-nos que o
referido Relatório não terá relevância argumentativa alguma. É que se trata de
conceitos construídos a partir da legislação interna, em relação aos quais não
têm qualquer pertinência a argumentação do BEPS.
Relativamente a essas discussões, sequer seria possível considerar jurídico
um argumento que sustentasse que as atividades desenvolvidas em sede de um
contrato de rateio consubstanciariam serviço para fins de incidência do ISS, da
Contribuição ao PIS e da COFINS. Como ensina ALEXY (2013, p. 210), a argu-
mentação jurídica se caracteriza pela vinculação ao direito vigente. Dessa forma,
uma vez que não se pode reconduzir a argumentação do BEPS a nenhuma fonte
do direito interno, essa não deverá influir em sua construção argumentativa.
Já no que tange à aplicabilidade da legislação de preços de transferência,
as referidas conclusões poderiam ter alguma relevância sobre a interpretação
do art. 9º dos tratados firmados pelo Brasil, com base na Convenção Modelo da
OCDE, como se procurou demonstrar acima. Com isso, poder-se-ia cogitar de

339
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

o tratado autorizar um ajuste de preços de transferência pelo Brasil para adicio-


nar uma margem de lucro aos pagamentos de “reembolso de despesas” recebi-
dos por uma entidade centralizadora no Brasil, oriundos de pessoa vinculada
no exterior. Entretanto, deve-se ter em mente que o Brasil nunca adotou a versão
do art. 7º da Convenção Modelo da OCDE revisada conforme o chamado AoA
(authorised OECD approach), que demanda a inclusão de lucros em todas as
transações entre partes de um grupo.237 Ademais, a referência do art. 19 da Lei
9.430/96, que trata sobre os ajustes de preço de transferência no Brasil, à “venda
dos bens, serviços ou direitos, nas exportações” parece remeter a questão nova-
mente à apreciação fática quanto à existência ou não de um serviço prestado.

Considerações finais
Em face do quanto exposto, conclui-se que, sob a perspectiva dos países
em desenvolvimento, em especial do Brasil, deve-se analisar cuidadosamente
a possível relevância que se pode imprimir às conclusões do Plano de Ação 10
do Projeto BEPS. Para tanto, mostra-se profícua a segregação dessas influên-
cias em níveis argumentativos distintos, a saber:
a) no nível pré-legislativo as conclusões do Relatório Final do Projeto BEPS
acerca da compatibilidade entre o regime eletivo e simplificado para serviços
intragrupo de baixo valor agregado, pautado em margem fixa, e o arm´s length,
associadas à relevância do discurso de legitimação do BEPS para qualquer me-
dida legislativa doméstica nele inspirada, vislumbra-se relevante oportunidade
para que se introduza, claramente e por via legislativa, uma maior flexibilidade
no modelo brasileiro, admitindo-se prova em contrário das margens da legisla-
ção ou facultando ao contribuinte o uso de outros métodos.
b) no nível de interpretação dos tratados já firmados, parece-nos que,
em função de o Brasil ser membro do G20 e ter declarado que utilizará as
recomendações do relatório no contexto de sua própria legislação interna, é
possível dar relevância à circunstância de ter o Relatório Final ressaltado que
o art. 9º da Convenção Modelo, que determina o uso do padrão arm´s length,
é compatível com o uso de presunções baseadas em margens fixas de lucro,
desde que essa forma de aferição dos preços de transferência seja eletiva para

237 Sobre o tema, cf. OECD (2010).

340
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

o contribuinte. A relevância dessa interpretação, que apenas corrobora inter-


pretação doutrinária há muito existente no Brasil, pode ser baseada no art.
31, 3 “b”, da Convenção de Viena, enquanto “prática seguida posteriormente
na aplicação do tratado”, ou ainda no art. 31, 3 “c”, da referida convenção, na
forma do ou como regras de soft law aplicáveis.
c) no nível de interpretação da lei interna as conclusões do Relatório Final
das Ações 8 a 10 do Projeto BEPS assumem relevância interpretativa como fa-
tor que corrobora a interpretação de que as margens previstas na Lei 9.430/96
podem ser afastadas em certas situações, mediante provas de seu descabimen-
to. Já quanto à qualificação de fatos em face do direito interno (qualificação
das atividades levadas a cabo nos contratos de rateio de custos como serviços,
por exemplo), não se pode dar relevância alguma às conclusões do BEPS.
Em síntese, buscou-se ressaltar a relevância do exame crítico das propo-
sições do Projeto BEPS em face do contexto brasileiro, bem como da análise
segregada do relevo que se pode (ou não) imprimir às conclusões do Projeto
em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, em diferentes níveis argumen-
tativos (de lege ferenda, de interpretação dos textos normativos e de qualifica-
ção dos fatos). Com efeito, parece ser esse o papel mais relevante a ser exercido
pelo estudo doutrinário do direito em face de um contexto tão propenso a
análises apressadas como a discussão internacional sobre tributação no con-
texto do Projeto BEPS.

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344
12. O Controle de Preços de Transferência
em Operações com Intangíveis no
Contexto do BEPS e a Perda da
Hegemonia do Princípio Arm’s Length

Roberto Codorniz Leite Pereira


Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela
Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito pela Escola de
Direito de São Paulo da FGV.
Associado e professor em cursos de pós-graduação do Instituto
Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Advogado em São Paulo.

Resumo: O objetivo deste artigo é chamar atenção para os limites que o


princípio arm’s length – até então o único princípio orientador da aplicação de
regras de controle de preços de transferência em operações internacionais entre
partes vinculadas – em operações envolvendo intangíveis no contexto atual de
combate ao fenômeno do base erosion and profit shifting (BEPS). O presente es-
tudo evidencia, primeiramente, o plano de ação nº 8 da OCDE e os desafios im-
postos pelos bens intangíveis no tocante à sua identificação e mensuração dando
especial destaque para as oportunidades de BEPS por eles ensejadas. Na sequ-
ência, passa-se à análise da proposta da OCDE para combater as oportunidades
apontadas, no que se destaca a utilização do princípio da criação de valor como al-
ternativa ao princípio arm’s length em operações envolvendo intangíveis. O tema
passa a ser analisado sob uma perspectiva crítica à luz das abordagens teóricas
que vem sendo propostas pela literatura especializada. Ao final, o autor firma o
seu posicionamento crítico no tocante às alternativas propostas sugerindo que os
critérios orientadores da aplicação do princípio da criação de valor em substitui-
ção ao princípio arm’s length em operações envolvendo intangíveis – caminho
tido pelo autor como inevitável – não apenas prestigiem, como sugere a OCDE,
a contribuição de cada parte na geração de valor do intangível, mas, sobretudo, o
papel desempenhado pelo mercado local dos países em que ocorre o seu desenvol-
vimento, perspectiva até então ignorada pela referida organização.

345
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Palavras-chave: Preços de Transferência, Intangíveis, Princípio Arm’s


Length, Princípio da criação de valor
Abstract: This article aims to highlight the limits of arm’s length princi-
ple – so for considered the only guiding principle to the application of transfer
pricing rules – in cross border transactions involving intangibles especially
in the current context of countering base erosion and profit shifting (BEPS)
strategies worldwide. This study describes the OECD’s action plan n. 08 and
the challenges imposed by intangibles specially its identification and measu-
rability and opportunities of BEPS. It is also analyzed OECD recommenda-
tions to address these challenges with special attention to the proposal of the
application of a value creation principle in cross border transactions involving
intangibles. Many different perspectives from legal doctrine will be scrutini-
zed regarding the possible acceptance of value creation principle and a for-
mulary apportionment system instead of (or in addition to) the arm’s length
principle so far adopted. In the end, the author support its own point of view
and also criticizes the functional analysis suggested by OECD since it ignores
the importance of local markets of emerging countries as an important value
creation element of intangibles.
Key-words: Transfer Pricing Rules, Intangibles, Arm’s Length Principle,
Value Creation Principle

Introdução
Em julho de 2013, a OCDE, através da publicação do relatório denomi-
nado Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, traçou as linhas gerais de
um ambicioso plano de combate ao fenômeno da erosão de bases imponíveis e
da alocação de lucros em países estratégicos com finalidade de redução da car-
ga tributária – o que se convencionou chamar de Base Erosion and Profit Shif-
ting (BEPS) –, devidamente detalhado em relatório denominado Addressing
Base Erosion and Profit Shifting publicado poucos meses antes. Desde então,
têm sido intensos os debates sobre cada um dos 15 planos de ação propostos.
O foco das atenções internacionais, a par de se evitar a dupla tributação
da renda como forma destinada a favorecer o livre fluxo de capitais no mundo,
passou a ser, mais do que nunca, evitar a dupla não tributação da renda. Pas-

346
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sou-se a defender a existência um regime tributário internacional no tocante


à tributação sobre a renda capaz de impor a observância ao chamado single
tax principle, segundo o qual a renda seria tributada não mais nem menos do
que uma única vez (BRAUNER, 2014). Este passaria a ser o novo paradigma
norteador das políticas fiscais internacionais.
Em relação às regras de controle de preços de transferência, a OCDE pro-
pôs, como finalidade comum dos planos de ação nº 8, 9 e 10, o alinhamento
da tributação oriunda da aplicação das regras de preços de transferência com
a criação de valor (“assure that transfer pricing outcomes are in line with value
creation”), em especial, em operações envolvendo intangíveis, alocação de ris-
co e capitais e transações de elevado risco dificilmente realizadas entre partes
independentes (OCDE, 2013, p. 20).
O presente artigo se propõe a discutir a postura adotada pela OCDE no
tocante ao controle dos preços de transferência envolvendo transações com
intangíveis que são objeto do plano de ação nº 8. Os planos de ação nº 9 e 10,
conquanto venham a ser objeto de algumas considerações, não serão objeto de
uma análise mais aprofundada.
O foco aqui proposto é investigar em que medida os desafios impostos
pelos bens intangíveis nas transações internacionais da atualidade podem ser
devidamente solucionadas recorrendo-se ao princípio do arm’s length, que,
até o presente momento, norteou o desenho de normas de preços de transfe-
rência, bem como a celebração de tratados destinados a evitar a dupla tribu-
tação, ou se, por outro lado, os desafios impostos demarcam a sua crise ante a
sua inaptidão para combater o BEPS.
As perguntas que deverão ser respondidas são as seguintes: o modelo
atual controle dos preços de transferência das operações envolvendo intan-
gíveis demarcam a sua crise? Existem alternativas para combater o BEPS que
obedeçam ao princípio arm’s length ou as únicas alternativas eficazes necessa-
riamente requerem a adoção de um novo princípio?
A nossa proposta é no sentido de que, se o objetivo das políticas tribu-
tárias a partir de agora for o combate ao fenômeno da dupla não tributação
orientando-se pelo princípio do single tax principle, o princípio arm’s length
pode ter chegado, de fato, ao seu limite. Desta afirmação, no entanto, não de-
corre a conclusão de que devamos seguir o caminho da aplicação do formula-
ry apportionment como defende parte da literatura; antes, no entanto, deve-se

347
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

admitir um regime híbrido em que ora será aplicado o princípio arm’s length
desde que haja operações comparáveis no mercado para tanto, ora será reco-
nhecida competência tributária aos países na medida da sua participação para
a agregação de valor através de outros métodos que já não serão arm’s length.
O principal obstáculo para a validade deste possível regime híbrido é, a
nosso ver, o fato de o princípio arm’s length possuir status de obrigação de Direi-
to Internacional Público, de natureza tanto convencional (i.e., prevista no artigo
9º dos tratados celebrados para evitar a dupla tributação da renda), quanto não
convencional (i.e., trata-se de um verdadeiro costume internacional).
Por fim, para estes últimos casos, criticaremos a análise funcional pro-
posta pela OCDE na medida em que ela desconsidera o mercado como fator
de agregação de valor aos intangíveis.
Esclarecemos, ainda, que, por ocasião da publicação da segunda edição
da presente obra, algumas das ponderações presentes na primeira edição fo-
ram objeto de uma reflexão maior da nossa parte, de modo que o leitor se
deparará com novas considerações – ou, ainda, a própria reformulação de
algumas das nossas opiniões presentes no artigo publicado na edição ante-
rior – sem, no entanto, que o cerne do nosso posicionamento, anteriormente
defendido, tenha sido alterado.

1. O plano de ação nº 8 e a emergência dos intangíveis


como um desafio fiscal global

1.1 O plano de ação nº 8


Antes mesmo de qualquer aprofundamento quanto ao tema dos intangí-
veis, é de fundamental importância ter em mente o exato conteúdo do plano
de ação nº 8, objeto do presente estudo. Leia-se:
Desenvolver regras que previnam a erosão das bases imponíveis e a
alocação de lucros (BEPS) através da alocação de bens intangíveis em
membros do grupo societário. Isto envolve: (i) adotar uma definição
ampla e clara de intangíveis; (ii) assegurar que lucros associados à
transferência e o uso de intangíveis sejam alocados de forma apropria-
da de acordo com (ao invés de em oposição a) criação de valor; (iii)

348
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

desenvolver regras de preços de transferência ou medidas especiais re-


lativas à transferência de intangíveis de difícil precificação; e (iv) atu-
alizar as recomendações relativas aos acordos de repartição de custos.
(OCDE, 2013, p. 20)238

Além do diagnóstico de que operações com intangíveis dão ensejo ao


BEPS, a OCDE sugere, como estratégia destinada a enfrentar o problema, pri-
meiramente, a conceituação dos bens intangíveis e, posteriormente, a criação
de mecanismos capazes de neutralizar os efeitos da sua alocação orientada
por finalidade estritamente tributária, conferindo às jurisdições de cujos con-
tribuintes contribuíram para a sua formação – i.e., para agregar-lhe valor –
competência tributária proporcionalmente à sua participação.
É bem verdade que as transfer pricing guidelines da OCDE já possuíam
um capítulo inteiro (capítulo VI) destinado apenas a disciplinar a aplicação
das regras de preços de transferência em operações com intangíveis. No en-
tanto, em vista das dificuldades crescentes envolvendo transações com intan-
gíveis – em especial, a sua definição, identificação e mensuração do seu valor
–, a OCDE deu início, em 2010, a novas frentes de pesquisa que, posteriormen-
te, culminaram no relatório sobre intangíveis publicado no contexto do plano
de ação nº 8 do BEPS em 2014 (OCDE, 2014), objeto da versão final publicada,
recentemente, em 2015 (OCDE, 2015).
Comecemos, portanto, pela evidenciação do conceito de bens intangí-
veis, tal como adotado pela organização.

1.2 O conceito de bens intangíveis

1.2.1 O desafio da identificação e valoração dos intangíveis


Não é nada simples a tarefa de definir o que são bens intangíveis. Tais
bens são, na realidade econômica atual – caracterizada, sobretudo, pelo forte

238 No original: “Develop rules to prevent BEPS by moving intangibles among group members. This will
involve: (i) adopting a broad and clearly delineated definition of intangibles; (ii) ensuring that profits
associated with the transfer and use of intangibles are appropriately allocated in accordance with (rather
than divorced from) value creation; (iii) developing transfer pricing rules or special measures for transfers
of hard-to-value intangibles; and (iv) updating the guidance on cost contribution arrangements.”

349
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

crescimento do comércio eletrônico –, os maiores responsáveis pela geração de


valor agregado para grandes grupos empresariais. Reuven Avi-Yonah (2007, p.
113) aponta que a sua geração se dá através de sofisticados laboratórios dota-
dos de ativos físicos de elevada tecnologia, bem como mediante o emprego de
mão-de-obra, na maioria das vezes, altamente qualificada.
Adicionaríamos a esta fórmula a própria figura do mercado fora do qual
o intangível não possui valor algum bem como a ressalva de que, atualmente,
laboratórios sofisticados não são mais necessários para a criação de um intan-
gível haja vista a multiplicidade de formas que os intangíveis podem assumir,
sobretudo, no campo do comércio digital; uma plataforma de acesso à inter-
net ou, até mesmo, um aplicativo de smartphone desenvolvidos com recursos
relativamente escassos já configuram, a depender do preço que lhe for impu-
tado pelo mercado, intangíveis valiosos.
A primeira dificuldade envolvendo intangíveis está na sua identificação.
Nem sempre os intangíveis se encontram adequadamente evidenciados pela
contabilidade, sobretudo, quando eles são desenvolvidos pela própria empresa
em vez de serem adquiridos de outro agente econômico. Intangíveis, pela sua
própria natureza, podem dar ensejo a outros intangíveis bastando-se, neste
sentido, imaginar que uma determinada empresa A, que detém uma marca,
pode licenciar o seu direito de uso para outra empresa B o que leva, portanto,
à caracterização de dois intangíveis distintos.
Diversos bens intangíveis são protegidos por institutos da proprieda-
de intelectual e, desse modo, são facilmente identificáveis, ao passo em que,
outros dificilmente serão detectados por não serem objeto de igual proteção.
Passando-se da etapa da identificação, chega-se à necessária mensuração do
seu valor, o que se revelará uma tarefa igualmente ou ainda mais complexa.
Como mensurar, por exemplo, o valor que a proximidade com o mercado
consumidor possui para determinada empresa? Seria isto um intangível? O
que dizer, então, de uma ação judicial com decisão definitiva de mérito que
confere um privilégio tributário a determinado grupo societário? Como se
daria a sua identificação e mensuração?
Em ambos os exemplos, o valor dos elementos apontados parece ser intui-
tivamente evidente, mas será muito difícil identificá-los (eles não são refletidos
nas contas de ativo do balanço patrimonial da empresa) e, ainda que isso seja
feito, a mensuração do seu valor se revelará uma tarefa ainda mais desafiadora.

350
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1.2.2 A definição proposta pela OCDE


Ciente da complexidade imposta pelos bens intangíveis, a OCDE (2015,
p. 67) propõe que, por intangível, deve-se entender um bem: (i) que não é fí-
sico nem caracteriza um ativo financeiro; (ii) sobre o qual recaem direitos de
propriedade, podendo o ativo intangível ser controlado para fins do seu uso
em transações de mercado; e (iii) cujo uso ou cessão seriam adequadamente
remunerados, caso viessem a ocorrer entre partes independentes em condi-
ções comparáveis de mercado.
A organização pondera (OCDE, 2015, p. 67), ainda, que os critérios usa-
dos para a qualificação contábil, conquanto possam ser levados em conside-
ração para a identificação dos intangíveis, não restringem a análise que deve,
neste sentido, ir além deles. Pondera a organização (OCDE, 2015, p. 67), tam-
bém, que há intangíveis passíveis de proteção por institutos da propriedade
intelectual (e.g., patentes e marcas) ou, ainda, de natureza contratual (e.g., se-
gredos industriais), ao passo em que outros não, mas isso, no entanto, não ca-
racteriza condição necessária para a qualificação de um bem como intangível.
Um importante aspecto a ser destacado é o fato de que a própria OCDE
(2015, p. 70) aponta para a existência de intangíveis únicos e valiosos (“uni-
que and valuable intangibles”) reconhecendo que, para eles, não há operações
comparáveis no mercado – o que implica um nítido reconhecimento dos li-
mites, neste caso, do princípio arm’s length – e cujo emprego na atividade
econômica é capaz de gerar benefícios econômicos expressivos.
O problema está, precisamente, nas inegáveis dificuldades existentes na
avaliação do seu valor exato, caracterizando-se, de acordo com a própria no-
menclatura utilizada pela OCDE, como hard-to-value intangibles. Neste sen-
tido, Georg Kofler (2013, p. 655) aponta, como principal problema dos intan-
gíveis, as situações em que existe uma enorme diferença entre a expectativa de
rentabilidade futura a partir da avaliação feita à época em que o intangível foi
adquirido no mercado (rentabilidade projetada) e os resultados efetivamente
alcançados a partir da sua exploração (rentabilidade concreta). Este problema
se faz especialmente presente com hard-to-value intangibles.
Na sequência, a OCDE (2015, p. 70-73) arrola, exemplificativamente, uma
lista de bens intangíveis, a saber: patentes, know-how e segredos comerciais,
marcas, nomes comerciais, direitos contratuais e licenças governamentais, li-

351
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

cenças e direitos similares relativos a intangíveis e o goodwill. Pondera, ainda,


que as sinergias (economias de escala) existentes no seio de grupos societários
de multinacionais e as características específicas dos mercados, conquanto
denotem valores expressivos, não são considerados intangíveis haja vista que
sobre eles não se pode ter direito de propriedade algum (OCDE, 2015, p. 73).

1.3 Os desafios identificados


A OCDE (2015, p. 74) reconhece, expressamente, que a falta de transações
comparáveis realizadas por terceiros independentes com intangíveis ou de in-
tangíveis similares no mercado – em especial os intangíveis de difícil mensura-
ção (“hard-to-value intangibles”) – são dois dos principais desafios a serem en-
frentados quando da aplicação das regras de controle de preços de transferência.
Outros desafios reconhecidos pela OCDE (2015, p 74) são: (i) a proprie-
dade e o uso de diferentes intangíveis por diferentes empresas associadas per-
tencentes ao grupo societário transnacional; (ii) a dificuldade de se isolar o
impacto de qualquer intangível em particular na renda incorrida pelo grupo;
(iii) o fato de que vários membros do grupo societário poderão desempenhar
atividades relativas ao desenvolvimento, aprimoramento, manutenção, pro-
teção e exploração de um intangível de modo mais integrado do que partes
independentes; (iv) o fato de as contribuições feitas pelos diversos membros
do grupo societário ocorrerem ao longo de anos não coincidentes com aqueles
em que há o retorno do investimento; e, por fim, (v) a separação contratual
entre propriedade jurídica, assunção de riscos, financiamento necessário ao
desenvolvimento dos intangíveis e a consecução das principais funções sepa-
ração esta que não ocorre em contratos celebrados entre partes independentes.
Como se vê, a OCDE acaba por colocar em xeque a ideia de compara-
bilidade como critério orientador das regras de preços de transferência em
transações envolvendo intangíveis, ainda que, a todo tempo, a organização
expressamente rejeite a possibilidade de adoção de qualquer método que leve
a resultados que não estejam em linha com o princípio arm’s length. Resta sa-
ber, desse modo, qual é a estratégia proposta pela organização para enfrentar
os desafios apontados ao controle de preços de transferência.

352
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1.4 A estratégia de combate da OCDE:


a análise funcional e de controle
A OCDE colocou os intangíveis como um dos centros das preocupações
relativas à efetividade das regras de preços de transferência adotadas pelos pa-
íses comumente orientadas pelas suas guidelines cujo princípio de inspiração
foi, desde o início, o princípio arm’s length, previsto no artigo 9º da Conven-
ção Modelo da OCDE.
A aplicação do princípio ao caso concreto implica o ajuste fiscal de lucros
tomando-se como referencial comparativo o que empresas independentes te-
riam realizado em transações e circunstâncias comparáveis de mercado (OCDE,
2010, p. 33). A essência do princípio está, portanto, na ideia de comparabilidade.
A proposta central apresentada pela OCDE é, em suma, não reconhecer à
jurisdição de residência do proprietário jurídico do intangível em causa, auto-
maticamente, os direitos relativos à tributação dos seus resultados futuros sem
submetê-lo, antes disso, aos testes de análise funcional e de controle.
De acordo com a OCDE (2015, p. 77), em operações envolvendo a trans-
ferência ou a exploração de intangíveis, o princípio arm’s length estará sendo
prestigiado na medida em que os agentes econômicos sejam proporcional e
adequadamente remunerados pelas funções por eles desempenhadas, pelos
ativos utilizados e pelos riscos assumidos referentes ao desenvolvimento, apri-
moramento, manutenção, proteção e exploração de um intangível. Esta é a
essência da chama análise funcional (functional analysis) que – reitere-se – a
todo tempo é considerada arm’s length pela organização.
Assim, na medida em que a propriedade jurídica do intangível pertence
a pessoa distinta daquelas que desempenham as funções, empregam os ativos
e assumem os risco do seu desenvolvimento, aprimoramento, manutenção,
proteção e exploração, deve-se atribuir competência aos países onde residem
estas últimas pessoas para tributarem os retornos que seriam esperados da
sua contribuição para a formação do intangível e não, de modo automático, à
jurisdição onde o primeiro reside.
Mais do que isso: a aplicação das regras de preços de transferência estaria,
também, em conformidade com o princípio da criação de valor (value creation
principle), segundo o qual aos países seria reconhecida jurisdição tributária na

353
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

medida da sua participação para a agregação de valor aos intangíveis. Via de regra,
os países que mais contribuem para a formação dos intangíveis são desenvolvidos.
Antes mesmo da publicação do relatório final, ao analisarem o relatório
parcial sobre intangíveis, Carlo Garbarino e Mario D’Avossa (2015, p. 14) ma-
nifestaram o entendimento de que o novo enfoque da OCDE trouxe, essencial-
mente, duas inovações de maior importância em relação à abordagem anterior:
(i) primeiramente, o conceito de propriedade jurídica do intangível foi relativiza-
do mediante a adoção de um conceito de propriedade econômica antes presente
nas guidelines da OCDE apenas de modo embrionário e que, a partir do presente
momento, passou a exigir participação econômica mais substancial por parte do
titular jurídico do intangível para que a jurisdição da sua residência fizesse jus à
tributação da integralidade dos resultados dele decorrentes; (ii) em segundo lugar,
a própria análise funcional, tal como exposta acima.
A OCDE (2015, p. 78-79) não exige, no entanto, que o proprietário jurí-
dico sempre desempenhe todas as funções relativas ao desenvolvimento, apri-
moramento, manutenção, proteção e exploração do intangível. A organização
admite que, alternativamente, a entidade venha a contar com a contribuição
de terceiros independentes para tanto ou, ainda, de partes vinculadas, desde
que, tais partes venham a ser remuneradas em condições arm’s length. No
caso de delegação do exercício de funções para partes independentes, será
fundamental, também, a caracterização de controle sobre as funções desem-
penhadas (control analysis) ao passo em que, caso a delegação seja para partes
vinculadas, ou bem o controle far-se-á igualmente presente ou bem, acaso ou-
tra entidade venha a exercer o controle, deverá o titular jurídico do intangível
remunerá-la em condições arm’s length (OCDE, 2015, p. 78-79).
Assim, se a entidade que detiver os direitos de propriedade do intangível
não desempenhar as funções apontadas acima (teste da análise funcional) e
nem exercer o controle do seu exercício nos termos apontados (teste da análise
de controle), a sua jurisdição de residência não fará jus à tributação da integra-
lidade dos resultados que o intangível vier a gerar sendo-lhe negada, portanto,
competência tributária.
Um exemplo pode ilustrar o foco das atenções da organização e como as
análises funcional e de controle podem contribuir para a correta aplicação das
regras de preços de transferência em transações envolvendo intangíveis. Imagi-
ne-se que a determinada empresa “A Corp.”, situada em país de baixa tributação

354
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sobre a renda, seja conferido o direito de propriedade de determinado intangível


que ainda está em fase de desenvolvimento ficando, no entanto, a cargo de “B
Corp.” e “C Corp.”, controladoras de “A Corp.”, situadas em países de elevada
tributação, o emprego de ativos, a assunção de riscos e o desempenho de todas
as funções para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, cabendo-lhes em
contrapartida apenas o recebimento, por A Corp., da mera compensação pelos
custos incorridos (ou qualquer outra forma de remuneração que não reflita a
sua participação nos resultados futuros esperados com a exploração do intangí-
vel), sendo esta compreendida como a única obrigação contratual desta última.
Finalizada a fase de desenvolvimento do intangível, este começa a ser explora-
do por A Corp., normalmente junto ao mercado consumidor de outros países,
sendo-lhe imputado todos os lucros correspondentes. Veja-se:

Neste caso, o risco que a OCDE visa a evitar é que à jurisdição de “A Corp.”
venham a ser imputados todos os resultados futuros decorrentes da explora-
ção do intangível desenvolvido, em prejuízo às pretensões fiscais das jurisdi-
ções de residência de “B Corp.” e “C Corp.”, aos quais seria imputada, quando
muito, a remuneração pelo desenvolvimento do intangível, mas não os lucros
decorrentes da sua exploração. A aplicação das regras de preços de transferên-
cia, seguindo-se o princípio da criação de valor, deve resultar na atribuição de
competência tributária aos países de “B Corp.” e “C Corp.”, na exata medida da
sua contribuição para a agregação de valor ao intangível, evitando-se a alocação
futura dos resultados no país de residência de “A Corp.” (de baixa pressão fiscal).

355
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Quanto ao teste da análise de controle, Garbarino e D’Avossa (2015, p.


14) alertam para o risco de que, tal como formulado pela OCDE, os requisi-
tos exigidos tenham atingido tamanha rigidez que, mesmo em se tratando de
operações que fossem realizadas entre terceiros independentes, eles jamais se
fariam presentes. Neste ponto, os autores chamam atenção para operações en-
volvendo partes independentes em que determinado sujeito adquire direitos de
propriedade sobre determinado intangível, mas não assume nenhuma atividade
de controle propriamente dita, de modo que o único risco assumido consiste no
próprio investimento realizado. A partir da afirmação de que o novo conceito
de controle parece não estar de acordo com o princípio arm’s length, os autores
propõem que o conceito de controle seja adequadamente calibrado.
Apesar de a OCDE não admitir, em momento algum, que estaria abrindo
mão, ainda que parcialmente, do princípio arm’s length, Yariv Brauner (2014,
p. 98) aponta que os diversos problemas apontados – em especial, a existência
de intangíveis que não possuem comparáveis no mercado – clamam por “solu-
ções inovadoras” que sejam capazes de ir “além da retórica do princípio arm’s
length”, no que reconhece os seus limites para alocar adequadamente as bases
imponíveis em operações envolvendo intangíveis, bem como a importância de
soluções de formulary apportionement para o alinhamento entre tributação e
agregação de valor (princípio da criação de valor).
Kofler (2013, p. 656), ao reconhecer que alguns dos métodos de determina-
ção de preços de transferência envolvendo intangíveis de difícil avaliação (hard-to-
-value intangibles) poderão se distanciar do princípio arm’s length, propõe, como
alternativa, a alteração da redação do artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE.
A nosso ver, questionamos em que medida situações em que uma em-
presa “de papel” que venha a ser titular jurídica de um intangível, assumindo,
apenas, os riscos relativos ao financiamento do seu desenvolvimento, sem, no
entanto, desempenhar quaisquer das funções apontadas, requer uma análise
funcional para aplicação de regras de preços de transferência ou se tal proble-
mática não deveria, por outro lado, ser enfrentada mediante o recurso à teoria
da substância sobre a forma, simulação, abuso de direito e figuras afins, ou,
ainda, testes de propósito negocial amparados por regras antielisivas. Seria,
neste sentido, plenamente possível que a separação da propriedade jurídica da
propriedade econômica de um intangível, a depender da legislação dos países
envolvidos, venha a ser caracterizada como conduta orientada pela única fi-

356
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nalidade de obtenção de economia fiscal decorrente da alocação de resultados


em jurisdições de menor carga tributária.
Entendemos, no entanto, que mesmo o caminho proposto acima reque-
reria algum critério de mensuração para o reconhecimento de competência
tributária aos países envolvidos, haja vista que as teorias apontadas acima são
apenas capazes de identificar o abuso e artificialismo da operação sem, no en-
tanto, apresentar qualquer critério adequado para a alocação de competência
tributária aos países envolvidos. Não obstante as críticas que lhe são apre-
sentadas, esta é a finalidade à qual se propõe o princípio da criação de valor
defendido pela OCDE.
Parece-nos que o princípio arm’s length possui limitações em se tratando
de intangíveis. Afinal, mesmo o teste funcional e de controle, defendido pela
OCDE como sendo o elemento de convergência entre os princípios da criação
de valor e arm’s length, poderá se afastar deste último princípio haja vista que,
a depender da natureza do intangível em causa (i.e., se o intangível for único
e valioso), não será possível identificar, nas relações ocorridas entre partes
independentes em condições normais de mercado, o critério apropriado para
alocar os lucros associados à sua exploração aos diversos agentes envolvidos
de acordo com as funções envolvidas, os riscos incorridos e os ativos emprega-
dos. Neste contexto, qualquer estimativa que se faça dos retornos apropriados
para cada um dos agentes envolvidos será, ao fim e ao cabo, arbitrária.
A questão que, inevitavelmente, fica no ar é: como, então, associar o con-
trole de preços de transferência à jurisdição que deu causa à criação de valor?
É o que passaremos a analisar adiante.

2. Os planos de ação nº 9 e 10
Antes, no entanto, importa chamar atenção para dois outros planos de
ação que, não obstante não sejam o objeto específico do presente estudo, com
ele possuem identidade no tocante à finalidade a ser buscada: alinhar a tri-
butação decorrente do controle de preços de transferência com a criação de
valor. Trata-se dos planos de ação nº 9 e 10.

357
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Veja-se, primeiramente, o teor do plano de ação nº 9 proposto pela OCDE:


Desenvolver regras que previnam a erosão das bases imponíveis e a
alocação de lucros (BEPS) através da transferência de riscos entre, ou
alocando capital em excesso para, membros do grupo. Isto envolve-
rá a adoção de regras de preços de transferência ou medidas especiais
que assegurem que resultados inapropriados sejam incorridos por uma
entidade tão somente porque contratualmente ela assumiu riscos ou
empregou capital. As regras que deverão ser desenvolvidas também re-
quererão o alinhamento dos retornos com a criação de valor. Este tra-
balho será coordenado com o trabalho relativo à dedução de despesas
com juros e outros pagamentos. (OCDE, 2013, p. 20)239

A preocupação da OCDE com este plano de ação diz respeito à potencial


manipulação da geração de resultados mediante a alocação de riscos e capitais
entre as distintas entidades que compõem o grupo societário.
Do ponto de vista da alocação internacional de capital, é evidente que
a alocação intragrupo jamais poderá ser comparável à gestão de capital feita
por entidades isoladas o que evidencia mais uma limitação do princípio arm’s
length (BRAUNER, 2014, p. 101).
No tocante à alocação de riscos, o princípio arm’s length tampouco é capaz
de oferecer uma solução adequada. Entendemos, neste sentido, que a questão
deverá ser enfrentada por mecanismo semelhante à análise funcional proposta
pela OCDE para os intangíveis, ou seja, identificar em que medida os retornos
oriundos dos riscos assumidos são, de fato, legítimos e esperados ou se, por ou-
tro lado, trata-se da alocação artificial de riscos realizada por meio de contrato.
Feitas essas breves considerações, confira-se, agora, o teor do plano de
ação nº 10:
Desenvolver regras que previnam a erosão das bases imponíveis e a
alocação de lucros (BEPS) através da realização de transações que não
ocorreriam, ou ocorreriam apenas remotamente, entre partes indepen-
dentes. Isto envolverá a adoção de regras de preços de transferência

239 No original: “Develop rules to prevent BEPS by transferring risks among, or allocating excessive
capital to, group members. This will involve adopting transfer pricing rules or special measures to
ensure that inappropriate returns will not accrue to an entity solely because it has contractually
assumed risks or has provided capital. The rules to be developed will also require alignment of returns
with value creation. This work will be co-ordinated with the work on interest expense deductions and
other financial payments.”

358
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ou medidas especiais destinadas a: (i) esclarecer as circunstâncias nas


quais as transações podem ser recaracterizadas; (ii) esclarecer a aplica-
ção dos métodos de determinação de preços de transferência, em espe-
cial o método da divisão de lucros [profit split], no contexto das cadeias
globais de valor; e (iii) fornecer proteção contra tipos comuns de paga-
mentos causadores de erosão das bases imponíveis, tais como taxas de
administração e despesas de diretoria. (OCDE, 2013, p. 20-21)240

No presente plano de ação, a OCDE reconhece os limites de comparabi-


lidade que algumas operações possuem, colocando, novamente, em xeque o
princípio arm’s length como fundamento lógico dos métodos aplicáveis para
estas operações. Um exemplo emblemático são os serviços de baixo valor
agregado intragrupo para os quais a OCDE reconhece não haver, em deter-
minadas situações, comparáveis internas para a determinação dos seus preços
de transferência (OCDE, 2015, p. 153). Robert Robillard (2015, p. 449) aponta
que, ao fazer a distinção entre serviços intragrupo com e sem comparáveis
internas, a OCDE teria restringido a análise de comparabilidade a transações
comparáveis internas – o que, até então, jamais ocorreu – e admitido que as
operações comparáveis internas seriam preferíveis às externas o que, na pers-
pectiva do autor, é uma das evidências de que o princípio arm’s length possui
nítidos limites e não fornece soluções adequadas para estas situações.
É interessante observar, também, como, no plano prático, haverá situa-
ções em que as fronteiras entre os serviços intragrupo e os intangíveis serão
de difícil determinação – e.g., um contrato de transferência de know-how com
um elemento de prestação de serviços – ensejando dúvidas quanto à sua natu-
reza exata, ou seja, se teria ocorrido a mera transferência de um intangível ou
a prestação de um serviço propriamente (OCDE, 2015, p. 143).
Ademais, a alternativa proposta pela OCDE mediante a adoção do méto-
do de divisão de lucros (profit split method) é apontada, também, como uma
saída honrosa para o princípio arm’s length (BRAUNER, 2014, p. 102). De fato,
muito embora o método da divisão de lucros seja um método arm’s length,

240 No original: “Develop rules to prevent BEPS by engaging in transactions which would not, or would
only very rarely, occur between third parties. This will involve adopting transfer pricing rules or special
measures to: (i) clarify the circumstances in which transactions can be recharacterised; (ii) clarify the
application of transfer pricing methods, in particular profit splits, in the context of global value chains;
and (iii) provide protection against common types of base eroding payments, such as management fees
and head office expenses.”

359
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

conforme será evidenciado mais adiante, há situações em que inexistem com-


paráveis capazes de amparar a adequada repartição de lucros em operações
internacionais intragrupo.

3. Os rumos incertos do princípio arm’s length: superação,


manutenção ou simples perda de exclusividade?
Diante do atual cenário descrito acima em que o princípio arm’s leng-
th é colocado à prova nas situações mais extremas e desafiadoras, surgiram
diferentes correntes teóricas destinadas a identificar a melhor solução para o
futuro das regras de controle de preços de transferência. Três foram as linhas
teóricas identificadas e que serão analisadas na sequência: (i) a sua necessária
superação em prol da adoção do formulary apportionment; (ii) a sua manu-
tenção; e (iii) a mera perda da sua exclusividade, aceitando-se um regime que
combine soluções arm’s length com soluções alternativas.

3.1 Primeira perspectiva: superação gradual em prol


da adoção do formulary apportionment
O método ao qual se fez referência até o presente momento como formu-
lary apportionment consiste na atribuição de lucros para cada uma das enti-
dades que compõem o grupo societário transnacional mediante a aplicação
de uma fórmula matemática predeterminada cujas variáveis dizem respeito
a informações relativas a ativos, custos, pagamentos e vendas realizadas pelo
grupo como um todo (CARRENO; SÁNCHEZ-BRINAS, 2015, p. 206).
Este método de determinação de preços de transferência, em oposição a
todos os métodos que são arm’s length, não considera as entidades que com-
põem o grupo societário de modo isolado (i.e., individualmente), mas trata o
grupo inteiro como uma única entidade para fins de alocação da parcela de
lucro para cada unidade que o compõe. Sua maior virtude é, tal como tem sido
apontado no contexto do combate ao BEPS, não deixar qualquer parcela dos
resultados sem ser tributada (até mesmo os resultados decorrentes das siner-
gias são tributados), sendo este um instrumento bastante eficaz para o comba-
te ao BEPS, ou seja, para evitar o fenômeno da dupla não tributação da renda.

360
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O formulary apportionment foi adotado, pela primeira vez, na Califórnia,


em 1986, como uma resposta do Tesouro Norte-Americano ao Congresso para
problemas constatados na aplicação das regras norte-americanas de preços de
transferência que, muitas vezes, se deparavam com situações em que não era
possível identificar uma operação comparável (AVI-YONAH, 2007, p. 113-114).
Atualmente, apenas os EUA adotam o formulary apportionment – ainda
assim, apenas internamente (i.e., para determinar os resultados imputáveis
aos Estados Federados) – ao passo em que o consenso ao redor do resto do
mundo – ao menos até o início do projeto de combate ao BEPS – é que o con-
trole de preços de transferência se dê nos termos do princípio arm’s length.
Há tentativas de adoção do formulary apportionment pelos Estados-Membros
da União Europeia, exteriorizadas pela proposta de Diretiva para a Common
Consolidated Corporate Tax Base (“CCCTB”).
Aqueles que defendem que os desafios declarados no projeto BEPS teriam
aberto caminho para a adoção do formulary apportionment não defendem a
substituição imediata do princípio arm’s length; entendem, no entanto, que
este último assumirá um papel secundário – e não mais de proeminência tal
como ocorre atualmente – até que, futuramente, seja totalmente substituído.
Robillard (2015, p. 453), por exemplo, após fazer as suas ponderações re-
lativas (i) aos serviços de baixo valor agregado prestados intragrupo (já deta-
lhados anteriormente), (ii) ao plano de ação nº 04 que trata da erosão das bases
imponíveis mediante a dedução de juros pagos a beneficiário no exterior, no
que pondera que as deduções aceitas obedecem a critérios arbitrários e pré-
-definidos (formulary, neste sentido), e (iii) à aplicação do profit split method
em cadeias globais de valor que, na opinião do autor, são mais próximas em
sua natureza do formulary apportionment, conclui que, muito embora o prin-
cípio arm’s length ainda não seja mandado de imediato ao cemitério, às mácu-
las que lhe serão feitas apontam para a sua futura “morte”.
Defensores desta primeira perspectiva entendem, também, que o plano
de ação nº 13 da OCDE representaria um primeiro passo rumo à adoção do
formulary apportionment. Antes de aprofundarmos a análise, importa ter em
mente o seu exato teor:
Desenvolver regras relativas à documentação de preços de transfe-
rência capaz de alcançar transparência para a administração fiscal,
levando-se em consideração os custos que serão incorridos para tan-

361
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

to. A regras a serem desenvolvidas incluem a obrigação de que todas


as transnacionais forneçam a todos os governos relevantes as infor-
mações necessárias relativas à alocação global da sua renda, atividade
econômica e tributos pagos entre os países de acordo com um modelo
comum. (OCDE, 2013, p. 23)241

A OCDE (2015, p. 15-16) propôs a elaboração três relatórios para um con-


trole mais adequado dos preços de transferência: (i) master file, cuja finalidade é
fornecer uma visão ampla sobre os negócios realizados pelo grupo societário, o
que inclui a natureza das operações, as políticas de preços de transferência ado-
tadas, bem como a alocação global de renda e atividades econômicas; (ii) local
file, no qual deverão constar informações mais detalhadas relativas às operações
internacionais realizadas pela empresa tais como dados financeiros referentes
ao volume de operações praticadas com partes vinculadas no exterior, análises
comparativas e a seleção dos métodos de aplicação de preços de transferência
adotados pela empresa); e, por fim, (iii) o country-by-country report (“CbC re-
port”), o qual deve conter informações amplas e consolidadas sobre a alocação
global da renda, indicadores quanto à alocação das atividades econômicas e,
ainda, os tributos recolhidos em cada jurisdição fiscal.
A OCDE (2015, p. 16), receosa de que as informações, sobretudo, do
country-by-country report viessem a ser utilizadas para a substituição dos mé-
todos arm’s length pelo formulary apportionment, fez ressalva expressa de que
as informações do relatório não poderiam ser utilizadas para esta finalidade.
Isto, no entanto, não impediu que o referido relatório fosse visto como um
primeiro passo rumo ao sistema formular.
Com efeito, durante os debates que antecederam a elaboração do relató-
rio final relativo ao plano de ação nº 13, defendeu-se que o country-by-country
report deveria ser adaptado para a adoção futura do formulary apportionment
ou, ainda, para o método profit split cuja fidelidade ao princípio arm’s length
é muito questionada (BRAUNER, 2015, p. 83). A própria ressalva feita pela
OCDE foi criticada por ser o reflexo de extremo conservadorismo da orga-

241 No original: “Develop rules regarding transfer pricing documentation to enhance transparency for tax
administration, taking into consideration the compliance costs for business. The rules to be developed
will include a requirement that MNE’s provide all relevant governments with needed information on
their global allocation of the income, economic activity and taxes paid among countries according to
a common template.”

362
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nização ao não abrir mão da hegemonia do princípio arm’s length como pa-
radigma orientador das políticas internacionais de preços de transferência
(BRAUNER, 2015, p. 83).

3.2 Segunda perspectiva: manutenção da sua exclusividade

3.2.1 Manutenção do princípio e


dos seus métodos tradicionais
Conforme demonstrado anteriormente, o formulary apportionment toma o
grupo societário em seu todo como uma única entidade consolidada, desconsi-
derando-se todas as diversas unidades que o compõem, para, a partir do balan-
ço consolidado, imputar a cada unidade a parcela de resultados que lhe compete
segundo parâmetros predeterminados. A finalidade buscada pelo formulary ap-
portionment de se alocar resultados segundo parâmetros objetivos denota o aban-
dono da ideia de comparabilidade, ou seja, já não se busca mais atribuir às transa-
ções realizadas entre partes dependentes o mesmo tratamento que seria aplicável
a partes independentes em condições normais de mercado.
O controle de preços de transferência mediante a utilização de métodos
arm’s length, por outro lado, trata cada unidade que compõe o grupo societário
separadamente – i.e., respeitando a sua autonomia patrimonial – e atribui a cada
transação intragrupo realizada o mesmo tratamento tributário que seria atribuí-
vel a outras unidades em transações realizadas entre partes independentes.
Luis Eduardo Schoueri (2015) pondera que a justificativa para a adoção
do princípio arm’s length se encontra nos princípios da isonomia e capacida-
de contributiva. Isto porque, sempre que contribuintes transacionam tendo
como pano de fundo uma relação de vinculação, seja por vínculo societário,
seja por vínculo negocial ou contratual, tais contribuintes têm em suas mãos
a possibilidade de, mediante a manipulação de preços, transferir lucros e dei-
xar de submetê-los à tributação de tal modo que partes independentes jamais
teriam (SCHOUERI, 2015). Assim, as regras de preços de transferência fun-
dadas no princípio arm’s length têm por finalidade, de uma só vez, igualar o
tratamento tributário conferido a ambas as situações descritas neutralizando
as distorções ensejadas pela relação de vinculação societária ou negocial e tri-

363
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

butar as transações realizadas entre partes dependentes de modo consistente


com a capacidade contributiva manifestada (SCHOUERI, 2015).
O princípio arm’s length parte de uma ficção jurídica segundo a qual
uma operação realizada entre partes vinculadas deverá receber o mesmo
tratamento tributário recebido por transações praticadas entre terceiros in-
dependentes, muito embora com estas últimas as primeiras não se confun-
dam (SCHOUERI, 2013, p. 101). A ficção jurídica ocorre na medida em que
situações distintas recebem as mesmas consequências jurídicas (ao menos do
ponto de vista tributário). Por outro lado, os métodos de determinação de pre-
ços de transferência corresponderiam a presunções jurídicas de que os preços
parâmetro identificados mediante a sua aplicação são os mesmos preços que
terceiros teriam pactuado (SCHOUERI, 2013, p. 101).
Apesar da defesa da exclusividade do princípio arm’s length, esta linha te-
órica também reconhece que o princípio possui falhas que lhe são intrínsecas.
A primeira delas corresponde à incapacidade de os métodos pautados no
princípio arm’s length captarem ganhos cuja causa é o elevado nível de inte-
gração (sinergia) existente entre as diversas unidades que compõem os grupos
transnacionais. Neste sentido, há os inegáveis ganhos de sinergia decorrentes
de economias de escala (e.g., negociações feitas pela matriz-controladora do
grupo com fornecedores estratégicos geram redução nos preços dos bens e
serviços o que beneficia todos os membros do grupo, contratações intragru-
po são realizadas com menores custos de avaliação e negociação de cláusulas
contratuais, entre outras situações). Esta seria uma falha intrínseca ao prin-
cípio arm’s length o qual parece menosprezar a razão que justifica a própria
existência de grupos transnacionais– i.e., obter sinergias e ganhos de escala
– resultando em renda que deixa de ser tributada (SCHOUERI, 2015).
A segunda falha consiste nos custos elevados que são normalmente im-
putados aos métodos arm’s length tanto para contribuintes quanto para o Fis-
co (SCHOUERI, 2015). Ademais, para que se adote o princípio em questão
deve-se aceitar a premissa de que todas as operações realizadas entre partes
vinculadas possuem comparáveis no mercado o que, conforme apontamos
anteriormente, não é necessariamente verdadeiro quando são realizadas ope-
rações com intangíveis, dada a natureza singular que muitos deles possuem.
Apesar disso, os defensores desta linha – dentre os quais, destaca-se Luís
Eduardo Schoueri – estão dispostos a pagar o preço da manutenção de um

364
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

sistema de controle de preços de transferência pautado em um princípio que,


conquanto tenha as suas limitações, possui inegáveis vantagens – dentre as
quais, destacam-se a busca pela igualdade e a tributação fiel à capacidade con-
tributiva individual – e encontra-se enraizado no Direito Tributário Interna-
cional, o que se vê pelos quase 4.000 tratados firmados com base nas Conven-
ções-Modelo da OCDE e ONU em cujo artigo 9º encontra-se corporificado o
princípio aqui tratado (SCHOUERI, 2015).
A presente linha teórica também aponta para problemas práticos decor-
rentes da aplicação do formulary apportionment. As dificuldades concentram-
-se na falta de um consenso entre os países acerca dos critérios que orientam
a fórmula a ser aplicada para a repartição dos resultados auferidos por grupos
transnacionais. Carreño e Sanchez-Briñas (2015, p. 207-208) relatam que a ex-
periência do formulary apportionment tem se revelado bem sucedida em mer-
cados altamente integrados normalmente identificáveis dentro das fronteiras
de um único país (e.g., os EUA).
Os autores espanhóis relatam, também, que mesmo na União Europeia
– que é uma união supranacional caracterizada, também, por um mercado al-
tamente integrado – as tentativas de aplicação do método formular, que vêm
sendo empreendidas desde 2001, não foram bem sucedidas até o presente mo-
mento, fundamentalmente, porque os países não chegaram a um consenso so-
bre a composição da fórmula de repartição de resultados a serem tributados
(CARRENO; SÁNCHEZ-BRINAS, 2015, p. 206). Há, aqui, uma tensão muito
grande entre países de residência e países de fonte que inviabiliza a sua adoção.
Por fim, Bernard Castagnède (2010, p. 105-107), conquanto reconheça as
limitações do princípio arm’s length (principe de pleine concurrance) – sobretu-
do, em razão de nem sempre ser possível identificar operações comparáveis no
mercado – e a necessidade de um maior aprofundamento nos estudos relativos
ao formulary apportionment (taxation unitaire), entende que é o primeiro prin-
cípio que irá continuar sendo o paradigma fundamental das regras de controle
de preços de transferência, haja vista que o segundo requer que os países com-
partilhem dos mesmos critérios para a determinação dos resultados de grupos
transnacionais o que, a seu ver, remete à (por ora, improvável) ideia de um Di-
reito Tributário Comum (possivelmente, na forma de um acordo multilateral).

365
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Feitas estas ponderações, passamos à análise da linha que defende o mé-


todo da divisão de lucros (proft split method) como possível alternativa para
a manutenção da hegemonia do princípio arm’s length como vetor orientador
das regras de preços de transferência.

3.2.2 Seria o profit split uma alternativa viável para a


manutenção da hegemonia do princípio arm’s length?
O profit split method é geralmente aplicável em situações em que há um
nível de integração econômica tão elevado em determinadas operações rea-
lizadas entre partes vinculadas que não é possível tratar as transações reali-
zadas entre as partes de modo individualizado. Assim, o profit split method
compara a alocação de lucros realizada na operação sob controle das regras
de preços de transferência com a alocação de lucros realizada por partes inde-
pendentes em operações comparáveis. A partir desta comparação, obtém-se a
repartição de lucros arm’s length derivados exclusivamente das operações sob
controle (SCHOUERI, 2015, p. 07-08).
A comparação se dá, portanto, em relação à repartição de lucros – i.e.,
ao profit split – que terceiros independentes teriam realizado caso a operação
não tivesse sido realizada entre partes vinculadas. Daí ser correto dizer que,
ao se respaldar na ideia de comparabilidade, o profit split é um método arm’s
length. Tanto a OCDE (2010), quanto parte relevante da literatura especializa-
da (SCHOUERI, 2015, p. 08; e CHAND; WANG, 2014, p. 402), têm se posicio-
nado firmemente no sentido de que o profit split method é um método arm’s
length de modo que ele poderia, ao menos em princípio, representar uma al-
ternativa às limitações que os outros métodos tradicionais de preços de trans-
ferência – comparable uncontrolled price method (CUP), resale price method
(RPM) e cost plus method (CPM) – possuem em termos de comparabilidade.
Ademais, é importante destacar que o profit split method não pode ser
confundido com o formulary apportionment (CHAND; WANG, 2014, p. 402);
este último desconsidera a individualidade (i.e., a personalidade jurídica, a
autonomia patrimonial e decisória) das unidades que compõem todo o grupo
societário, imputando-lhes uma parcela dos resultados incorridos com todas
as operações realizadas a partir de uma fórmula, ao passo em que o primeiro
reparte apenas os lucros decorrentes das operações sob controle respeitando-

366
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

-se a autonomia patrimonial de todas as sociedades individualmente conside-


radas (SCHOUERI, 2015, p. 403).
De acordo com a OCDE (2010, p. 96-98), há duas técnicas distintas uti-
lizadas para efetuar a repartição de lucros em operações controladas, a saber:
contribution analysis e residual analysis.
Através da contribution analysis, busca-se, em um primeiro momento,
alocar para cada parte envolvida a parcela razoável de lucros que partes inde-
pendentes alocariam para aquele determinada transação (comparable profit split
- OCDE, 2010, p. 96-98). No entanto, caso inexistam transações comparáveis,
admite-se a realização de uma análise funcional partindo-se das funções de-
sempenhadas individualmente pelos entes envolvidos, dos ativos empregados e
dos riscos assumidos – análise semelhante senão idêntica àquela proposta pelo
plano de ação nº 8 – para a determinação da contribuição de cada ente visando,
com isso, a alocar-lhes uma parcela de lucro economicamente consistente com a
sua participação (contribution profit split - OCDE, 2010, p. 96-98).
Por meio da segunda (residual analysis), busca-se alocar para cada parte
envolvida a justa remuneração pela contribuição feita para a transação atra-
vés da aplicação do transactional net margin method (TNMM), o qual parte
da remuneração que seria alocada em operações comparáveis realizadas por
terceiros independentes. No entanto, havendo lucro residual, a sua repartição
se dá através de análise da contribuição de cada parte para a transação con-
siderada, seguindo-se os fatos e circunstâncias envolvidos no caso concreto
(OCDE, 2010, p. 97-98).
Vikram Chand e Sagarn Wang (2014, p. 405) defendem que o profit split
é o método arm’s length com maior aptidão para alinhar a tributação da ren-
da através do controle de preços de transferência e a criação de valor (value
creation). Segundo os autores, as formas de aplicação do método determinam
o lucro correspondente para cada parte de acordo com as suas contribuições
para a transação controlada. Assim, em virtude de a alocação dos lucros entre
as partes envolvidas se dar a partir de uma ratio determinada a partir da con-
tribuição de cada um, e não a partir de uma fórmula pré-determinada, este
método conseguiria, ao mesmo tempo, manter-se fiel ao princípio arm’s leng-
th, alocar competência tributária aos países na medida da sua participação
para a criação de valor e distanciar-se do formulary apportionment.

367
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ocorre, no entanto, que o profit split method também possui limitações


em termos de comparabilidade, conquanto ele seja defendido com um méto-
do arm’s length. Estas limitações se fazem presentes especialmente diante do
contexto descrito pela OCDE no relatório final dos planos de ação nº 8, 9 e 10,
no qual, se destacam as operações envolvendo intangíveis.
Diante dessas limitações é que se podem compreender as afirmações
constantemente feitas no sentido de que o profit split seria um método muito
próximo ao formulary apportionment ou, ainda, representaria um passo rumo
à sua adoção (BRAUNER, 2014, p. 98; e ROBILLARD, 2015). As limitações em
termos de comparabilidade levam o profit split a partir de uma análise funcio-
nal que, pela sua própria natureza dissociada da ideia de comparabilidade, já
o distancia do princípio arm’s length.
Assim, a nosso ver, a afirmação de que o profit split method seria a so-
lução para a “salvação” do princípio arm’s length revela-se, no mínimo, criti-
cável pois as “válvulas de escape” para as situações em que este método não
encontra comparáveis no mercado podem se distanciar do referido princípio.
Em verdade, entendemos que insistir na adoção deste método, diante das di-
ficuldades decorrentes da aplicação dos métodos tradicionais, significa aceitar
a existência de um regime híbrido em que ora se recorre a uma solução arm’s
length, ora a solução estará totalmente dissociada deste princípio, apresentan-
do-se feições nitidamente de formulary apportionment.

3.3 Terceira perspectiva: perda de exclusividade com a


emergência de um regime híbrido
Alguns autores defendem uma abordagem intermediária na medida em
que, por um lado, reconhecem as limitações do princípio arm’s length, mas,
por outro lado, não estão dispostos a abrir mão das suas inegáveis vantagens
e veem nos custos necessários para a sua substituição – veja-se que são quase
4.000 tratados internacionais que preveem, em seu artigo 9º, o princípio aqui
tratado – um entrave determinante da sua permanência.
Destaca-se, dentre autores que defendem a adoção de um regime híbrido,
Reuven Avi-Yonah (2007, p. 113) para quem o princípio arm’s length constitui
um costume internacional que é, neste sentido, fonte de Direito Internacio-

368
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nal Público já que grande parte dos tratados internacionais celebrados para
evitar a dupla tributação corporificam o referido princípio. Desse modo, o
autor sustenta que seria no mínimo questionável qualquer tentativa por porte
dos países no sentido de adotar um método de determinação de preços de
transferência que fosse contrário ao referido princípio (AVI-YONAH, 2007,
p. 113). Mais adiante, ao analisarmos a natureza jurídica do princípio arm’s
length, retornaremos a este ponto, bastando, por ora, apenas pontuarmos este
importante aspecto que permeia o presente debate.
Não obstante o autor reconheça que o princípio arm’s length não poderia
ser substituído por outro, ele defende que – sobretudo, em operações envolvendo
intangíveis – a parcela residual de lucros não repartida através dos métodos tra-
dicionais de preços de transferência seja dividida entre as empresas vinculadas de
modo casuístico (AVI-YONAH, 2007, p. 117). Parece-nos, neste ponto, que o autor
admite soluções que não sejam arm’s length propriamente ditas com a finalidade
de alcançar a parcela residual dos lucros não repartidos pelos métodos tradicio-
nais o que, ao fim e ao cabo, o torna um defensor de um regime híbrido.
Yariv Brauner (2014, p 98), por sua vez, entende que os desafios exterio-
rizados pelos planos de ação aqui tratados exigem “soluções inovadoras” o que
significa reconhecer os limites do princípio arm’s length nas situações descritas e
adotar elementos de formulary apportionment como mecanismo eficaz para ali-
nhar a tributação decorrente do controle de preços de transferência com a criação
de valor. Desse modo, o princípio do arm’s length teria perdido a sua hegemonia
para o princípio da criação de valor o qual requer outras aproximações para a sua
concretização que não sejam arm’s length (BRAUNER, 2015, p. 84).
Como se vê, a presente linha teórica defende uma solução híbrida, espe-
cialmente, para casos, tais como aqueles envolvendo operações com intangí-
veis, em que uma grande parcela residual de lucros deixará ser repartida entre
os países através da aplicação dos métodos tradicionais – i.e., métodos arm’s
length - de determinação de preços de transferência.

3.4 A nossa perspectiva


A partir de toda a exposição das ideias feita até o presente momento,
podemos concluir que a finalidade de alocar competência tributária aos países

369
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de acordo com a sua contribuição para a geração de valor agregado – i.e., o


princípio da criação de valor – nem sempre se revelará compatível com o prin-
cípio arm’s length. A adoção do formulary apportionment é um nítido exemplo
de como se pode concretizar o primeiro, contrapondo-se ao segundo.
Mais ainda do que isso: um resultado somente satisfará ambos os princípios
por mero acaso pois ambos são orientados por finalidades absolutamente distintas.
Por um lado, o princípio arm’s length tem por finalidade resguardar os
princípios da capacidade contributiva e da isonomia na medida em que neu-
traliza os efeitos tributários decorrentes de transações realizadas entre partes
dependentes, equiparando-os aos efeitos oriundos de transações realizadas
entre terceiros, em condições normais de mercado.
Por outro lado, o princípio da criação de valor tem por finalidade assegurar
que os países tenham competência tributária proporcional à participação dos seus
residentes na criação de valor do intangível, evitando que determinada parcela
dos resultados empresariais deixe de ser submetida à tributação – ou seja: comba-
te-se a dupla não tributação da renda reforçando-se o single tax principle.
Sem pretender defender, aqui, a necessária adoção de um regime tribu-
tário internacional pautado pelo single tax principle, reconhecemos que os de-
safios impostos pelos bens intangíveis, pela possibilidade de livre alocação de
capitais e riscos e pelas operações intragrupo que não encontram comparáveis
no mercado, requerem uma solução que vá além daquela que o princípio arm’s
length pode oferecer. No entanto, reconhecemos, também, que, pelas razões já
expostas no tópico 3.2, o princípio arm’s length possui inegáveis vantagens e o
“custo” da sua substituição seria altíssimo. Por estas razões, entendemos que
o referido princípio não deve ser descartado, mas, apenas, deve ceder espaço –
ou seja: perder a sua hegemonia – para que, em algumas situações específicas
em que inexistirem transações comparáveis devido, por exemplo, à natureza e
ao valor único do intangível, outras perspectivas sejam adotadas. Neste senti-
do, defendemos que seja criado um regime híbrido.
Note-se, no entanto, que aceitar que o princípio arm’s length tem limi-
tes e que outras aproximações sejam adotadas exatamente onde os métodos
convencionais falham não implica aceitar que, a partir do presente momento,
os países terão tanto maior competência tributária, quanto maior for a sua
contribuição para a criação de valor em um intangível nos termos das aná-
lises funcional e de controle propostas pela OCDE. Trata-se de duas coisas

370
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

completamente distintas. A aplicação do princípio da criação de valor, tal


como defendida pela OCDE, representa um segundo passo que vai além do
reconhecimento das limitações do princípio arm’s length e não o passo ime-
diatamente posterior que, a nosso ver, seria a adoção de um princípio com
resultados equivalentes em termos de alocação de competências tributárias.
Assim, entendemos que o princípio da criação de valor, por partir das aná-
lises funcional e de controle defendidas pela OCDE que atribuem competência
tributária aos países na medida da contribuição dos seus residentes para a agre-
gação de valor aos intangíveis, não reflete a alocação de competências que o
princípio arm’s length até então estabeleceu. Daí ser criticável a afirmação feita
pela OCDE de que o princípio arm’s length estará sendo tanto mais prestigiado
quanto mais o princípio da criação de valor estiver sendo concretizado nas situ-
ações envolvendo intangíveis, alocação de riscos, capital e em casos envolvendo
operações intragrupo que não possuem comparáveis no mercado.
É dizer: o princípio da criação de valor é per se um salto indutivo pois não
é uma decorrência lógica direta da assunção de que o princípio arm’s length
possui limitações. Trata-se de uma proposta de uma nova alocação de compe-
tências tributárias entre os países. Temos dúvidas quanto ao fato deste novo
princípio ser o mais adequado como solução às limitações do princípio arm’s
length, mas, assumindo que ele venha a ser adotado internacionalmente, resta
saber se os critérios que orientam as análises funcional e de controle refletem
uma (re)alocação justa de competências, prestigiando adequadamente todas
as variáveis que levam à agregação de valor ao intangível.
Há, no entanto, críticos à perspectiva apresentada acima que coloca em
polos opostos o princípio arm’s length e o princípio da criação de valor, este
último podendo ser concretizado pelo formulary apportionment.
Em interessante análise sobre a evolução do princípio arm’s length no
Direito Norte-Americano, Reuven Avi-Yonah demonstra que, a despeito das
dificuldades com as quais as cortes norte-americanas sempre se depararam
quando da análise de casos concretos e os debates realizados no âmbitos dos
Poderes Legislativo e Executivos para a substituição do referido princípio por
outro, os EUA jamais abriram mão de adotar o princípio arm’s length (1995,
p. 129-147). O autor destaca que, mesmo em casos em que as Cortes Norte-
-Americanas afastavam os métodos apresentados pelos contribuintes e deter-
minavam, elas mesmas, os preços arm’s length aplicáveis ao caso concreto,

371
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

havia um forte esforço argumentativo no sentido de justificar o que se estava a


fazer como condizente com o princípio arm’s length (1995, p 112-129).
No entanto, as dificuldades de aplicação do referido princípio deram
causa à propositura de novos métodos (i.e., o Profit Split Method e o TNMM)
que, embora necessários para atender às necessidades existentes, se tornaram
progressivamente mais distantes da ideia de comparabilidade que orientou os
métodos transacionais “tradicionais” (CUP, Resale Price e Cost Plus). Ainda
assim, empreendeu-se, nos EUA (e, posteriormente, no âmbito da OCDE), um
enorme esforço para se afirmar que os referidos novos métodos estavam em
linha com o princípio arm’s length, ainda que de modo mais distante e im-
preciso quando comparado aos métodos tradicionais. Diante disso, sustenta
Avi-Yonah, que o princípio arm’s length foi sendo progressivamente expandi-
do (1995, p 129-147), afastando-se do ideal de comparabilidade vislumbrado
em sua gênese (nos anos 1920) que, em verdade, só poderia ser perfeitamente
concretizado através do método CUP.
Neste contexto, dada a progressiva expansão do conceito do princípio
arm’s length (pautada na sua suposta plasticidade), vislumbra o autor a possi-
bilidade de que o princípio possa continuar a se expandir de modo a abarcar,
em determinado momento, soluções de formulary apportionment; afinal os
métodos transacionais tradicionais de comparabilidade e o formulary appor-
tionment não seriam dois métodos dicotômicos, mas, antes disso, “dois pon-
tos extremos em uma linha contínua” (1995, p. 147-159).
Brian Arnold e Thomas McDonnell parecem partilhar do mesmo ponto
de vista ao defender que “o princípio arm’s length e o formulary apportion-
ment não deveriam ser vistos como polos extremos, mas como parte de uma
linha contínua de métodos que vão desde o método CUP até as fórmulas pré-
-determinadas. Não está claro exatamente onde o princípio arm’s length ter-
mina e o formulary apportionment começa, e é contraproducente e irrelevante
a busca por rótulos para se aplicar aos métodos.” (1993, p. 1.377- 1.381).
Com a devida vênia aos referidos autores, discordamos, em parte, do seu
posicionamento.
Em primeiro lugar, se é verdade que os EUA, bem como a própria OCDE,
foram progressivamente aceitando que outros métodos – inicialmente, o Resale
Price Method e o Cost Plus Method e, posteriormente, o Profit Split Method e o
TNMM – fossem considerados em linha com o princípio arm’s length – no que

372
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

se expandiu o conceito do referido princípio tornando adaptável às novas situa-


ções da realidade prática –, isso não significa reconhecer que qualquer método
pudesse ser considerado arm’s length ao sabor das pressões exercidas pela rea-
lidade. Há, certamente, um limite a ser observado. Conquanto se admita que o
princípio arm’s length seja permeável quer a uma interpretação dinâmica quer à
heteroreferência ao qual o próprio Direito está sujeito em razão da sua interação
com outras ciências e com a própria realidade prática, haverá casos que não ca-
racterizam uma zona cinzenta, mas a própria negação do princípio arm’s length.
Em outras palavras, a linha contínua à qual se fez referência acima é finita ao
invés de infinita, tal como a abordagem apontada sugere.
Em segundo lugar, parece-nos que a retórica apontada tem por finalida-
de contornar o maior entrava existente na atualidade à substituição completa
do princípio arm’s length pelo formulary apportionment. Trata-se da natureza
jurídica que o referido princípio possui no Direito Internacional Público.
Por um lado, o princípio arm’s length é norma convencional presen-
te em quase 4.000 convenções bilaterais assinadas até o presente momento.
Com efeito, o referido dispositivo se faz presente desde a primeira convenção-
-modelo da OCDE (1963) e da ONU (1981), tendo sido mantido pela ampla
maioria dos países que a adotaram como ponto de partida para a negociação
de convenções bilaterais. Há divergências entre os países (dos quais o Brasil é
um exemplo), quando muito, quanto à adoção do parágrafo segundo ao arti-
go 9º da Convenção-Modelo da OCDE, o qual prevê procedimento amigável
quando o ajuste primário e secundário efetuado pelos países, por divergirem,
resultam em dupla tributação.
Ao analisarmos os requisitos constitutivos de um costume internacio-
nal – i.e., a prática geral e a opinio juris sive necessitatis – a conclusão de que o
princípio arm’s length se tornou um costume internacional é inexorável.
A prática geral é atestada não apenas pela previsão do artigo 9º na maior
parte das convenções internacional destinadas a evitar a dupla tributação da
renda celebradas até os dias de hoje, como também pela legislação interna dos
países que efetuam o controle de preços de transferência através dos métodos
recomendados pela OCDE, todos em linha com o princípio arm’s length.
A opinio juris – i.e., a convicção (ou crença) por parte dos sujeitos de Direito
Internacional de que a adoção de determinada prática se impõe como uma obri-
gação jurídica (DINH et all, 2009, p. 361-364) – fica muito clara por muitos dos

373
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

próprios elementos caracterizadores da prática internacional, i.e., a celebração


de convenções contendo dispositivo equivalente ao artigo 9º das Convenções-
-Modelo da OCDE e ONU, e a própria legislação interna dos Estados, e por
instrumentos de soft law, que incorporam a opinião de organizações internacio-
nal, dos Estados que delas fazem parte, bem como do restante da comunidade
internacional que os adota acerca da juridicidade do princípio arm’s length.
Por outro lado, reconhecendo-se o primado da teoria das obrigações pa-
ralelas no Direito Internacional Público – segundo o qual uma mesma obri-
gação pode ter natureza convencional e não convencional de modo autônomo
(i.e., a cessação de uma obrigação não influencia necessariamente existência
da outra, de modo que, e.g., uma norma possa manter a sua juridicidade no
Direito Internacional enquanto costume, ainda que o tratado no qual ela es-
tivesse prevista anteriormente seja denunciado) (DUPUY; KERBRAT, 2016,
p. 365-367) – é o nosso entendimento de que o princípio arm’s length é, atu-
almente, além de norma convencional, também um costume internacional.
O mesmo entendimento é partilhado por Reuven Avi-Yonah (2007, p. 1-21) e
Thomas Chantal (1996, p. 135).
É por estas razões que entendemos não ser possível a substituição com-
pleta do princípio arm’s length pelo formulary apportionment, mas, quando
muito, a adoção deste último nas situações em que o a aplicação do primeiro
não se revelar possível. Daí a defesa de um regime híbrido.
Ademais, tal como demonstrado acima, a maior dificuldade decorrente
da aceitação do princípio da criação de valor, podendo ser concretizado me-
diante a adoção do formulary apportionment, está na sua conciliação com o
artigo 9º da Convenção Modelo da OCDE que elencou o princípio arm’s leng-
th como critério de alocação de resultados em caso de transações realizadas
entre partes vinculadas. Como resposta a este desafio, poder-se-ia dizer que a
proposta de um regime híbrido não visa à substituição completa do princípio
arm’s length por outro, mas apenas reconhece as suas limitações. Neste senti-
do, poder-se-ia afirmar que o artigo 9º da Convenção Modelo não será igno-
rado ao se aceitar uma abordagem híbrida na medida em que ele continuará
sendo aplicável a todas as situações em que houver comparáveis de mercado,
justamente, como determina a sua redação.
Portanto, entendemos que a abordagem híbrida aqui proposta não neces-
sariamente encontrará no artigo 9º dos tratados firmados com base na Conven-

374
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ção Modelo da OCDE um obstáculo absolutamente intransponível. Uma alter-


nativa possível para elucidar esta questão poderia ser a atualização dos comen-
tários da convenção modelo visando-se a esclarecer que abordagens alternativas
podem ser aceitas nos casos em que inexistirem comparáveis de mercado.

4. Pensando em caminhos para a adoção de um regime


híbrido: críticas à análise funcional proposta pela OCDE
Supondo-se que o princípio da criação de valor será o novo princípio
orientador das políticas tributárias de criação e aplicação de regras de preços
de transferência em transações em que inexistem comparáveis de mercado –
i.e., em transações nas quais a aplicação do princípio arm’s length revela-se
incapaz de efetuar a devida alocação de competências tributárias seguindo-se
parâmetros de mercado –, mantendo-se a hegemonia do princípio arm’s leng-
th para todas as situações em que houver uma transação comparável, a nossa
análise deverá recair, portanto, sobre os critérios que nortearão a repartição
de resultados para fins tributários.
Não se pode desprezar que o princípio da criação de valor foi, em sua gê-
nese, o fruto de um ideal político, desprovido de bases teóricas verdadeiramente
sólidas (HEY, 2018, p. 205-206). Conquanto o referido princípio, na sua origem,
não seja novo tendo a sua origem no ideal do benefits principle, foi após os es-
cândalos do final dos anos 2010, que levaram a opinião pública a condenar es-
quemas de planejamento tributário internacional utilizando-se da manipulação
de preços de transferência, que a classe política se sentiu pressionada a dar uma
solução para este problema (HEY, 2018, p. 205-206). Este foi o contexto que ca-
talisou o desenvolvimento recente do princípio da criação de valor.
Em tese, o princípio da criação de valor permite que seja realizada uma
divisão mais detalhada das competências tributárias em transações interna-
cionais, já que, em tese, tudo contribui para a criação de valor, o que poderá
levar ao aumento de casos de dupla tributação da renda já que um maior nú-
mero de jurisdições poderá se sentir legitimada a reivindicar competência tri-
butária (HEY, 2018, p. 206-207). Os ganhos de sinergia – verdadeira razão de
existir dos grupos transnacionais – devem ser adequadamente captados pelo

375
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

princípio da criação de valor. O desafio está, no entanto, em como reparti-los


entre as jurisdições fiscais relevantes.
A nosso ver, a OCDE criou um ideal político capaz de atender aos anseios
dos seus Estados-Membros, mas não desenvolveu bases teóricas que fossem
capazes de refletir a importância de todos os elementos relevantes na agrega-
ção de valor, enquanto novo critério para o reconhecimento de competências
tributárias. Com efeito, OCDE não foi capaz de apontar como a aplicação do
princípio da criação de valor será capaz de atender aos princípios da eficiência,
neutralidade e praticabilidade (HEY, 2018, p. 205-206).
Além disso, tem-se que a consequência de a OCDE não ter desenvolvido
bases teóricas mais sólidas para o princípio da criação traduz-se, inclusive, na
ausência de critérios objetivos para a alocação de resultados tributáveis aos
países na medida da sua participação para a agregação de valor ao intangível.
Neste ponto, é importante retomarmos a análise funcional proposta pela
OCDE. Relembrando-se, a OCDE propõe que os resultados gerados por um
intangível sejam atribuídos aos países de residência dos contribuintes segun-
do: (i) a participação relativa das funções desempenhadas por cada um; (ii) os
riscos efetivamente assumidos; e (iii) os ativos empregados para o seu desen-
volvimento, aprimoramento, manutenção, proteção e exploração.
Uma primeira dificuldade que decorre da a aplicação da análise funcional
“DEMPE” (i.e., Development, Development, Enhancement, Maintenance, Protec-
tion and Exploitation), de que trata o item (iii) apontado acima, é a sua elevada
dificuldade no plano prático, em função de diversas dificuldades observados pelos
agentes econômicos, especialmente o fato de que grupos transnacionais atuam
em complexas cadeias de valor com equipes de trabalho localizadas em diferentes
jurisdições fiscais participando, de diferentes formas, nas funções apontadas, e a
inexistência de qualquer critério de alocação destas funções a entidades específi-
cas situadas em diferentes jurisdições (STORCK et all, 2016, p. 218).
Ademais, apesar de prescindirem de maior objetividade, é possível afir-
mar que os critérios propostos para a alocação de resultados privilegiam o
reconhecimento de competência tributária para os países das sociedades con-
troladoras de grandes grupos societários transnacionais onde, em regra, está
alocada toda a infraestrutura e mão de obra qualificada empregada no seu
desenvolvimento. Ou seja: os critérios propostos atribuem com maior peso
competência tributária a países que, em geral, são desenvolvidos.

376
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Assim, revela-se criticável a circunstância de a OCDE desprezar o mer-


cado local dos países onde reside o proprietário jurídico do intangível como
variável importante de agregação de valor. Isto porque, o mercado é condição
fundamental para que os intangíveis sejam precificados segundo a utilidade
individual por eles gerada. É dizer: é no mercado onde as curvas de oferta (do
intangível) e demanda se cruzam e determinam o preço do intangível. O mer-
cado é, portanto, um fator de agregação de valor fundamental para o intan-
gível sem o qual inexistem retornos a serem imputados àqueles que contribu-
íram para a sua formação. A importância do mercado local para a agregação
de valor e a sua necessária consideração em qualquer análise funcional que se
pretenda realizar é destacada, também, por Pasquale Pistone e Peter Hongler
(2015, p. 1-63), sobretudo no âmbito da economia digital.
O que propomos é que, se é verdade que o caminho para o princípio da
criação de valor é inevitável nas hipóteses em que inexistirem transações com-
paráveis, ao menos as variáveis da análise funcional da OCDE devem ser repen-
sadas para que a alocação de competências tributárias decorrente da sua aplica-
ção não seja injusta ao ignorar, por completo, a importância do mercado local
como importante fator de agregação de valor ao intangível. Sem a consideração
do mercado local como variável importante de reconhecimento de competência
tributária, o próprio princípio (da criação de valor) falhará na sua missão.

Conclusões
Os desafios narrados pela OCDE através dos seus planos de ação nº 8, 9 e
10 de fato demandam dos formuladores de políticas tributárias nacionais a to-
mada de uma decisão. Esta decisão não é nada fácil: ou bem se aceita o princípio
arm’s length com todos os seus problemas e virtudes admitindo-se, também, que
parcela da renda decorrente de transações realizadas entre partes vinculadas em
grupos transnacionais deixe de ser tributada; ou bem se devem reconhecer as
falhas do referido princípio, buscando solucioná-las, seja pontualmente, no que
teríamos um regime híbrido, seja de um modo mais radical substituindo-o por
completo por outros métodos, como é o caso do formulary apportionment.
É muito improvável que os desafios encontrados no contexto do projeto
de combate ao BEPS sejam capazes de levar ao afastamento do princípio arm’s
length que até então norteou a elaboração de políticas tributárias no tocante

377
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a regras de controle de preços de transferência. A OCDE não só já vinha re-


jeitando as propostas de adoção do formulary apportionment antes do projeto
BEPS, como, no seu decorrer, ressaltou várias vezes que o princípio arm’s leng-
th continuaria tendo a sua hegemonia garantida.
A nosso ver, a OCDE foi, no mínimo, contraditória, ao manter a todo
e qualquer custo a hegemonia do princípio arm’s length e, ao mesmo tempo,
prever como solução para os problemas apontados o princípio da criação de
valor (i.e., atribuir competência tributário para os países na medida da sua
contribuição para agregação de valor ao intangível). É contraditória a defesa
de ambos, pois, para que se possa concretizar o princípio da criação de valor,
os métodos que serão utilizados, na maior parte das vezes, já não serão arm’s
length na medida em que se pautarão pelas análises funcional e de contro-
le propostas pela própria organização cujos critérios não necessariamente se
pautam pela ideia de comparabilidade.
Assim, entendemos que, de todas as possíveis soluções propostas para
solucionar os problemas decorrentes dos intangíveis, a melhor delas é a cria-
ção de um regime híbrido o que, entretanto, não leva à imediata conclusão de
que a melhor saída para solucionar situações em que os métodos arm’s length
não puderem ser aplicados será, necessariamente, o reconhecimento de com-
petência tributária aos países na medida da participação dos seus residentes
para a agregação de valor ao intangível.
Não obstante, cremos que, se o caminho rumo à alocação de competên-
cia tributária aos países na exata medida da sua participação para a agregação
de valor aos intangíveis for inevitável, então temos que rever os critérios das
análise funcional e de controle proposta pela OCDE pois elas ignoram, por
completo, a importância do mercado como fator de agregação de valor ao in-
tangível, sobretudo, o mercado local do seu titular jurídico.
Parece-nos, neste sentido, que as análises funcional e de controle pro-
postas pela OCDE como guias para a concretização do princípio da criação
de valor são um ótimo negócio para os países desenvolvidos, desprezando-se,
por completo, a participação dos mercados dos países em desenvolvimento na
agregação de valor aos intangíveis.

378
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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381
13. Desenvolvimento de um instrumento
multilateral: Ação 15 do Projeto BEPS

Roberto Duque Estrada242


Ana Paula Saunders243
Daniel Vieira de Biasi Cordeiro244

I – Introdução
O processo da globalização alterou de forma substancial o modo de organiza-
ção dos negócios ao redor do mundo. Empresas, antes adstritas aos seus respectivos
mercados nacionais, passaram a investir cada vez mais de maneira internacional e
no desenvolvimento de novas tecnologias, em muito ligadas a bens intangíveis.
A evolução do mercado internacional, impulsionada pela referida globa-
lização, proporcionou às empresas a possibilidade de se organizar em cadeias
produtivas multinacionais, estendendo as diversas etapas de produção por vá-
rios países diferentes, conforme os benefícios de infraestrutura, localização
geográfica e, também, carga tributária oferecidos pelos mesmos.
O progresso legislativo no âmbito do direito tributário internacional, no
entanto, não acompanhou o ritmo dessa evolução e tal descompasso fez com
surgissem oportunidades para que as empresas multinacionais reduzissem
substancialmente (ou até mesmo evitassem) a tributação a que estavam sujei-
tas. Essa prática foi denominada internacionalmente como Base Erosion Profit
Shifting245 (“BEPS”) e consiste em transferir e realocar os lucros tributáveis e pa-

242 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Sócio do Brigagão Duque-
Estrada Advogados.
243 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Advanced LL.M. (Master
of Laws) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda. Gerente de
Planejamento Fiscal-Brasil na Vale S.A.
244 Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Advanced LL.M. (Master of
Laws) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda. Especialista de
Tributação Internacional na Embraer S.A.
245 Tradução livre: Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros

383
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

gamentos dedutíveis do ponto de vista fiscal de modo a maximizar o aproveita-


mento fiscal das deduções e reduzir a tributação efetivamente sofrida nos lucros.
A prática do BEPS, contudo, não passou despercebida pelos governos das
principais economias do mundo. Nesse cenário, a Organização para a Coope-
ração e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) e o G20246 lançaram o um es-
pecífico conjunto de medidas para conter esse problema, cujo objetivo princi-
pal foi justamente revisar os padrões internacionais de tributação e, com isso,
coibir o chamado planejamento tributário abusivo feito pelas multinacionais.
Foi nesse contexto que, entre os meses de agosto e outubro de 2015, na
esteira dos à época recém publicados relatórios finais do Projeto BEPS, desen-
volveu-se, sob a coordenação dos professores Luís Eduardo Schoueri e Marcus
Lívio Gomes, um ciclo de debates na cidade do Rio de Janeiro, cujo resultado
se consolidou na primeira edição da presente obra.247
Pela relevância e caráter dinâmico do tema abordado, bem como pela
implementação prática (e as questões dela decorrentes) do que até então era
apenas objeto de debates, torna-se necessário revisitar o que antes se disse
sobre o assunto; seja para ratificar o que antes se defendeu ou até mesmo para,
com o aprendizado do que se viu na prática, mudar a posição antes sustentada.
O presente artigo busca, então, atualizar a análise feita na primeira edi-
ção desta obra acerca da Ação 15 do Projeto BEPS, que teve como objeto o
desenvolvimento de um instrumento multilateral (Multilateral Convention to
Implement Tax Related Measures to Prevent Base Erosion and Profit Shifting
ou, simplesmente, MLI) para auxiliar as jurisdições que assim desejaram na
implementação das medidas desenvolvidas ao longo do Projeto BEPS.

II – Multilateral Instrument (MLI): o que é e como funciona


Como se disse na primeira edição do presente artigo, um dos principais
motivos apontados pela OCDE para a adoção de um instrumento multilateral

246 Grupo formado pelos ministros de finanças das 19 maiores economias do mundo e, ainda, pela
União Europeia.
247 GOMES, Marcus Lívio. SCHOUERI, Luís Eduardo (orgs). A tributação internacional na era pós-
BEPS: soluções globais e peculiaridades de países em desenvolvimento. Volumes I, II e III. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

384
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

foi a existência de uma ampla rede de tratados bilaterais em vigor, que dificul-
taria imprimir celeridade aos procedimentos de renegociação individualizada
de todos os acordos pelos países signatários.
Segundo a Organização, o MLI, além de desejável, seria perfeitamente
alcançável e permitiria que países em desenvolvimento se beneficiassem das
medidas desenvolvidas no Projeto BEPS, já que estes países, em especial, po-
deriam enfrentar dificuldades na renegociação de seus tratados. A adoção de
um instrumento multilateral garantiria, também, a coesão internacional das
medidas desenvolvidas e a consistência na forma de implementação, evitan-
do o descompasso em uma hipotética implementação unilateral e individual
pelos países e o possível surgimento de novas oportunidades para BEPS ou,
ainda, situações de dupla tributação.
Com base nesse entendimento, a OCDE desenvolveu o MLI como um
instrumento coexistente com os tratados em vigor, alterando ou inserindo
cláusulas nesses acordos, de forma vinculante para os países que o ratifica-
ram. Nada obstante, há hipóteses de flexibilização criadas como maneira de
incentivar os países a aderirem ao instrumento, como, por exemplo, a pos-
sibilidade de fazerem reservas à aplicação de determinadas cláusulas ou de
optarem por cláusulas alternativas.
Inicialmente, o MLI foi desenvolvido tendo por objeto apenas as medi-
das desenvolvidas ao longo do Projeto BEPS que resultaram em alterações
dos tratados internacionais baseados na Convenção Modelo (CM) da OCDE,
a saber: instrumentos híbridos (objeto da Ação 2), prevenção do abuso dos
tratados (Ação 6), revisão do conceito de estabelecimento permanente (Ação
7) e revisão dos mecanismos de solução de conflitos (Ação 14), como será dis-
cutido de forma pormenorizada adiante.
Isso não impede, todavia, que ele seja atualizado no futuro, de modo a
comportar novos dispositivos, inserindo outras medidas decorrentes do Pro-
jeto BEPS e, também, da experiência internacional decorrente da implemen-
tação das medidas após o fim do projeto, caso assim desejem seus signatários.
O MLI é atualmente dividido em 7 (sete) grandes partes, quais sejam:
Parte I – escopo e interpretação; Parte II – instrumentos híbridos; Parte III
– abuso dos tratados; Parte IV – evasão do status de estabelecimento perma-
nente; Parte V – melhoria na resolução de disputas; Parte VI – arbitragem; e
Parte VII – disposições finais. Ele deve ser considerado um instrumento fle-

385
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

xível e somente será aplicado aos tratados e disposições indicados pelos países
signatários, com exceção de alguns minimum standards, que são obrigatórios,
como no caso da cláusula PPT (principal purpose test), e que os países signatá-
rios devem necessariamente se comprometer a implementar.
Como se pode notar das considerações gerais acima, o MLI é, na ver-
dade, uma máscara que, quando aplicável, se sobrepõe ao texto original dos
tratados, devendo ser interpretado de forma coordenada com os tratados e
dispositivos em vigor indicados pelos países como covered tax agreements248
quando da sua adesão.
O conceito de covered tax agreements é também o ponto de partida para
determinar se um tratado específico foi alterado pelo MLI. Isto é, deve-se em
primeiro lugar verificar se ambos os países são signatários do instrumento
e se indicaram o tratado sob análise em sua lista de convenções quando da
adesão. Em caso positivo, passa-se à análise dos dispositivos do MLI aos quais
tais países aderiram. Caso se verifique que ambos listaram o tratado, bem
como aderiram ao dispositivo aplicável ao caso concreto em questão sem fazer
reservas, tal tratado pode ser considerado devidamente alterado no que diz
respeito àquela disposição específica.

III – O Plano de Ações do BEPS e o MLI


A Convenção Multilateral, como exposto até agora, pode ser definida
como a consolidação das ações propostas no Projeto BEPS em um único tex-
to para que todas as jurisdições possam seguir as orientações propostas pela
OCDE sem maiores dificuldades. Esse, no entanto, apesar de ser o principal
objetivo da Organização é, sem dúvida, um desafio na prática, uma vez que
conciliar os distintos interesses dos mais diversos Estados sem afetar as suas
respectivas soberanias não é matéria fácil.
A conciliação dos interesses das múltiplas jurisdições participantes do
Projeto BEPS já foi amplamente debatida no primeiro artigo que escrevemos
sobre o tema, mas, especificamente sobre as principais medidas do Plano de

248 Um covered tax agreement nada mais é do que um tratado igualmente indicado por ambos os países
que o haviam firmado bilateralmente no passado (ou multilateralmente, conforme o caso) e que
agora são signatários do MLI.

386
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Ação da OCDE abrangidas na Convenção Multilateral podem ser destacadas


4 (quatro), devidamente descritas nos itens abaixo249.

III.1 – Plano de Ação 2 – Neutralização dos efeitos


dos hibrid. mismatches
Os descasamentos híbridos (em uma tradução literal da expressão hybrid
mismatches), como destacado por Roberto Duque Estrada, é uma “expressão
de difícil tradução para o português”. O conceito abrange situações em que o
tratamento tributário conferido por um Estado a determinado rendimento
ou a pessoa, combinado com o tratamento conferido pelo outro Estado, gera
oportunidades de economia fiscal250. Como as diferentes interpretações das
jurisdições podem levar à dupla tributação ou, ainda, à dupla não tributação,
a Convenção Multilateral reservou a Parte II (arts. 3 a 5) para tentar colocar
em prática o elencado no Plano de Ação 2.
Nessa linha, o art. 3º abrange as entidades transparentes e aduz que elas só
terão direito aos benefícios do tratado, especialmente a redução do imposto reti-
do na fonte, se forem tratadas como entes tributáveis no Estado de Residência251.
Assim, quando este Estado atribuir determinado rendimento a um residente
sob sua competência, caberá ao Estado da Fonte também observar essa regra de
atribuição da renda, inovando, dessa forma, no âmbito do Partnership Report252 .

249 A própria OCDE destacou que a Convenção observou as seguintes ações do Plano BEPS: The MLI
helps the fight against BEPS by implementing the tax treaty-related measures developed through the
BEPS Project in existing bilateral tax treaties in a synchronized and efficient manner. These measures
will prevent treaty abuse, improve dispute resolution, prevent the artificial avoidance of permanent
establishment status and neutralise the effects of hybrid mismatch arrangements.
250 https://www.conjur.com.br/2018-mai-16/consultor-tributario-convencao-multilateral-ocde-
protocolo-mendoza#author. Acesso em 08.05.2019.
251 1. For the purposes of a Covered Tax Agreement, income derived by or through an entity or
arrangement that is treated as wholly or partly fiscally transparent under the tax law of either
Contracting Jurisdiction shall be considered to be income of a resident of a Contracting Jurisdiction
but only to the extent that the income is treated, for purposes of taxation by that Contracting
Jurisdiction, as the income of a resident of that Contracting Jurisdiction.
252 https://read.oecd-ilibrary.org/taxation/the-application-of-the-oecd-model-tax-convention-to-
partnerships_9789264173316-en#page3. Acesso em 13.05.2019.

387
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Como o art. 3º não requer a sua total observância, mas apenas um mini-
mum standard, inúmeras jurisdições optaram por não ratificá-lo na sua tota-
lidade. É o caso, por exemplo, da Índia, da Suécia, da França e de Cingapura.
O art. 4º analisa as entidades com dupla residência (dual resident
entities)253, questão muito discutida pela OCDE, uma vez que foi verificado
que em inúmeras situações a dupla residência era utilizada pelas companhias
na intenção de obter uma vantagem fiscal. Com efeito, como a regra de desem-
pate (ou o tie breaker rule) era facilmente manipulada, restou definido pelo
MLI que a residência fiscal dos contribuintes será determinada pelo Mutual
Agreement Procedure (MAP) ou o denominado Procedimento Amigável.
Caso não haja um acordo entre as partes contratantes, a entidade com
dupla residência fiscal não fará jus aos benefícios do tratado. França, Suécia,
Luxemburgo e Cingapura são exemplos de jurisdições que não observarão o
art. 4º e, portanto, o tie breaker rule previsto na Convenção Modelo da OCDE
continuará sendo observado.
Por fim, o art. 5º fornece três alternativas às partes contratantes no que
tange à aplicação dos métodos para eliminar a dupla tributação. No caso de
não ser possível uma escolha em comum, cada jurisdição aplicará o método
selecionado apenas para os seus residentes254.
A primeira opção (Option A) destaca a impossibilidade de aplicar o méto-
do isenção ao rendimento que não seja de fato tributado. No caso de haver reco-
lhimento de imposto no Estado Fonte, o outro Estado Contratante, por conse-
guinte, concederá crédito pelo imposto pago anteriormente pelo contribuinte.
A segunda opção (Option B) traz a impossibilidade de aplicação do método de

253 1. Where by reason of the provisions of a Covered Tax Agreement a person other than an individual
is a resident of more than one Contracting Jurisdiction, the competent authorities of the Contracting
Jurisdictions shall endeavour to determine by mutual agreement the Contracting Jurisdiction of which
such person shall be deemed to be a resident for the purposes of the Covered Tax Agreement, having
regard to its place of effective management, the place where it is incorporated or otherwise constituted
and any other relevant factors. In the absence of such agreement, such person shall not be entitled to any
relief or exemption from tax provided by the Covered Tax Agreement except to the extent and in such
manner as may be agreed upon by the competent authorities of the Contracting Jurisdictions.
254 1. A Party may choose to apply either paragraphs 2 and 3 (Option A), paragraphs 4 and 5 (Option B), or
paragraphs 6 and 7 (Option C), or may choose to apply none of the Options. Where each Contracting
Jurisdiction to a Covered Tax Agreement chooses a different Option (or where one Contracting
Jurisdiction chooses to apply an Option and the other chooses to apply none of the Options), the
Option chosen by each Contracting Jurisdiction shall apply with respect to its own residents.

388
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

isenção aos dividendos que foram tratados como despesas dedutíveis no outro
Estado Contratante e, por último, a terceira opção (Option C) sugere a substitui-
ção do método de isenção como um todo pelo método da concessão de crédito.
A preferência pela utilização do método de crédito pelo imposto pago
em detrimento da escolha pela isenção não é novidade com as discussões do
BEPS. No entanto, ainda que a isenção na tributação de determinada renda
possa aumentar os riscos de uma dupla não tributação, não significa que as
jurisdições não possam optar por ela, como destacado no próprio art. 5º.
Como esse dispositivo não requer a sua total observância, mas sim, al-
gumas exigências mínimas, inúmeros Estados optaram pela não ratificação.
É o caso, por exemplo, do Egito, da Holanda, de Luxemburgo, da Malásia, da
Bélgica, da Índia e da Suíça.

III.2 – Plano de Ação 6 – Prevenção de abusos na


utilização de tratados
O Plano de Ação 6 dispõe sobre as medidas a serem observadas para
prevenir a utilização abusiva dos tratados, sendo as principais discutidas pela
OCDE a (i) a inserção da cláusula de PPT, regra geral anti-abuso baseada na
verificação do propósito de determinada transação e (ii) a existência da cláu-
sula LOB (limitation on benefit), que comprovará se o contribuinte possui de
fato uma ligação com o Estado de Residência.
Nessa linha, a Parte III (arts. 6 ao 11) do MLI se dedica ao “Treaty Abuse”
e, ainda que seja extremamente relevante na contenção da erosão da base tri-
butária, por se tratar da observância de apenas um minimum standard, não é
necessária a ratificação de todas as alternativas propostas.
O art. 7º elenca 3 (três) opções para as jurisdições observarem, quais
sejam: (i) o PPT; (ii) o PPT + a LOB de forma mais simplificada (SLOB255),
devidamente listada nos parágrafos 8º a 13º do art. 7º; ou (iii) a LOB de forma
mais extensiva em conjunto com uma provisão “anti-conduit”.
Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça são exemplos de países que apli-
carão o Principal Purpose Test, mas se reservaram quanto à cláusula LOB de

255 Simpliffied LOB.

389
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

forma mais simplificada. De acordo com estudo realizado pela KPMG256, to-
dos os países optaram pelo PPT na tentativa de conter o abuso dos tratados.
Apenas 12 (doze) jurisdições, tais como Argentina, Chile, Colômbia, México,
Uruguai, Índia e Indonésia escolheram a opção 2. No que tange ao Tratado
celebrado com os EUA, como os norte-americanos não assinaram o MLI, o
PPT e a SLOB não serão observados pela Índia.

III.3 – Plano de Ação 7 – Prevenção de


mecanismos para evitar a caracterização
de estabelecimento permanente
Objetivando evitar as estratégias negociais e as operações dos planeja-
mentos tributários agressivos que foram utilizadas pelos contribuintes para
desvirtuar a caracterização dos estabelecimentos permanentes (EPs), a Parte
IV do MLI é dedicada a essa problemática.
Os novos dispositivos tentam complementar o conceito de EP já amplamen-
te discutido na Convenção Modelo da OCDE, em especial sobre os agentes de-
pendentes ou os comissários. Assim, dispõem que, no caso de atividades habituais
como conclusão de contratos ou negociações a eles ligadas, os comissários devem
ser considerados como EP no Estado Contratante no qual as atividades ocorrem.
Novamente, não se trata de observar a integralidade dos artigos, mas
apenas requisitos mínimos e, com isso, em relação às opções trazidas pelo art.
13 no que tange à caracterização do EP, enquanto a Holanda observa o dispos-
to no parágrafo 2º (opção A)257, Bélgica e Luxemburgo observam a opção B258,

256 https://home.kpmg/us/en/home/insights/2017/06/tnf-kpmg-analysis-mli-implementing-treaty-
related-beps.html. Acesso em 13.05.2019.
257 2. Notwithstanding the provisions of a Covered Tax Agreement that define the term “permanent
establishment”, the term “permanent establishment” shall be deemed not to include: a) the activities
specifically listed in the Covered Tax Agreement (prior to modification by this Convention) as activities
deemed not to constitute a permanent establishment, whether or not that exception from permanent
establishment status is contingent on the activity being of a preparatory or auxiliary character; b) the
maintenance of a fixed place of business solely for the purpose of carrying on, for the enterprise, any
activity not described in subparagraph a); c) the maintenance of a fixed place of business solely for any
combination of activities mentioned in subparagraphs a) and b), provided that such activity or, in the case of
subparagraph c), the overall activity of the fixed place of business, is of a preparatory or auxiliary character.
258 3. Notwithstanding the provisions of a Covered Tax Agreement that define the term “permanent
establishment”, the term “permanent establishment” shall be deemed not to include: a) the activities
390
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

destacada no parágrafo 3º. Já a Índia e a França optaram pela observância de


ambos os parágrafos. Suécia, Austrália, China, Alemanha e Inglaterra, contu-
do, não aplicarão o art. 12 na sua integralidade.

III.4 – Plano de Ação 14 – Introdução de mecanismos


para tornar mais efetivas as resoluções de conflitos
A Parte V da Convenção Multilateral trata da melhoria dos mecanismos
para solução das disputas entre as jurisdições objetivando não somente uma solu-
ção eficaz, mas em tempo mais célere. O Procedimento Amigável ganha impor-
tância considerável com o MLI e tenta se consolidar como uma prática eficaz no
controle da erosão da base tributária, sem, contudo, haver expressivas novidades.
Assim, o art. 16, baseado no minimum standard, dispõe sobre o MAP e ape-
sar de trazer algumas novidades, em suma maioria, apenas ratifica as provisões
anteriormente elencadas na CMOCDE, como, por exemplo, a possibilidade de o
contribuinte apresentar a proposta de procedimento amigável não apenas ao seu
Estado de Residência, mas, para qualquer um dos Estados Contratantes.
Seguindo a linha do Plano de Ação 14 que recomenda a inclusão do art. 9(2)
da CMOCDE nas convenções internacionais, o art. 17 trata dos riscos da dupla
tributação no que tange aos ajustes de preço de transferência. Com efeito, o MAP
poderá ser utilizado para diminuir a problemática do desencontro das jurisdições
em relação à necessidade dos ajustes correlativos de preços de transferência.
Há agora também a existência da Cláusula Compulsória de Arbitragem
(MBA – Mandatory Binding Arbitration) prevista nos art. 18 a 26. Apesar da
compulsoriedade da mesma, o MLI traz certa flexibilidade na maneira como

specifically listed in the Covered Tax Agreement (prior to modification by this Convention) as
activities deemed not to constitute a permanent establishment, whether or not that exception from
permanent establishment status is contingent on the activity being of a preparatory or auxiliary
character, except to the extent that the relevant provision of the Covered Tax Agreement provides
explicitly that a specific activity shall be deemed not to constitute a permanent establishment
provided that the activity is of a preparatory or auxiliary character; 21 b) the maintenance of a
fixed place of business solely for the purpose of carrying on, for the enterprise, any activity not
described in subparagraph a), provided that this activity is of a preparatory or auxiliary character;
c) the maintenance of a fixed place of business solely for any combination of activities mentioned
in subparagraphs a) and b), provided that the overall activity of the fixed place of business resulting
from this combination is of a preparatory or auxiliary character.

391
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

os países aplicarão a MBA. O novo dispositivo prevê que, no caso de não se


alcançar uma solução consensual dentro do prazo de 2 (dois) anos, a contro-
vérsia poderá ser submetida ao Procedimento de Arbitragem a pedido do con-
tribuinte interessado. Diferentemente do Procedimento Amigável, a cláusula
de arbitragem envolve o proferimento de uma decisão vinculante às partes
por um terceiro independente e imparcial à discussão.
Vale novamente destacar o estudo da KPMG que verificou que 25 (vinte
e cinco) países259 ratificaram os dispositivos sobre arbitragem

IV – O MLI na prática: um sucesso?


Como se pode observar da própria dinâmica de aplicação do MLI, ex-
plicada nos tópicos anteriores, o sucesso na sua implementação depende de
uma adesão maciça ao mesmo por parte dos países, como se disse na primeira
edição do presente artigo, sob pena de não se atingir o resultado almejado e,
na prática, limitar consideravelmente sua efetividade.
Tal risco, inclusive, foi reconhecido pela OCDE no relatório final da
Ação 15, em que se destacou que, não só essa própria ação, mas o sucesso do
projeto BEPS como um todo, dependia (e talvez ainda dependa) da adesão de
um relevante número de países ao MLI. Este risco, segundo a Organização,
era majorado pelo fato de, em regra, referida adesão depender da vontade po-
lítica dos líderes representantes de cada país.
À época da primeira edição, questionamos se de fato seria possível atin-
gir o volume de adesões desejado, tendo por base a experiência internacio-
nal no contexto dos instrumentos existentes até aquele momento. A conven-
ção multilateral para evitar a dupla tributação dos royalties de copyright, por
exemplo, aberta para assinatura em 1979, nunca entrou em vigor em virtude
da baixa adesão dos países.260

259 Andorra, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Fiji, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda,
Itália, Japão, Liechtenstein, Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Portugal, Cingapura,
Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça e Inglaterra.
260 Multilateral Convention for the Avoidance of Double Taxation of Copyright Royalties. Disponível em: https://
treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XXVIII-1&chapter=28&lang=en.
Consulta em 18/05/2019. Esta convenção continha dispositivo condicionando sua vigência à ratificação
pelo décimo país, o que nunca ocorreu.

392
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Apesar de ainda haver espaço para questionamento acerca do seu suces-


so e de um longo caminho pela frente até que se possa afirmar categoricamen-
te que sua implementação foi bem sucedida, os primeiros quatro anos desde a
publicação dos relatórios finais do projeto BEPS parecem indicar que as mu-
danças ocorridas no cenário internacional, como as graves crises econômicas
enfrentadas em escala global no passado recente, elevaram o apetite dos paí-
ses por uma atuação coordenada contra o chamado planejamento tributário
abusivo e, por conseguinte, o interesse na adoção de medidas gerais e globais.
Pode-se questionar, como se verá adiante, o quão nociva para a efetivi-
dade do instrumento foi a ausência de subscrição dos Estados Unidos. Pode
acontecer, ainda, de os países fazerem reservas a diversos dispositivos do MLI,
limitando sua aplicabilidade prática na alteração de tratados firmados ante-
riormente, a despeito de uma elevada adesão.
Por outro lado, o elevado número de países que já aderiram ao MLI261 parece
demonstrar que o insucesso de outras convenções multilaterais não deve se repe-
tir, tendo em vista o aparente desejo de ação coordenada por parte das jurisdições
para evitar planejamentos tributários abusivos das multinacionais, que, ao fim,
resultam, para esses Estados, uma menor receita de arrecadação tributária.
Além do elevado número de países signatários, a representatividade dos
mesmos frente à economia global pode ser considerada outro bom indicativo
de que a OCDE caminhou acertadamente com o instrumento multilateral.
Das vinte maiores economias do mundo262, apenas duas não aderiram ao MLI
até o momento, sendo uma delas os Estados Unidos, como já mencionado, e a
outra o Brasil, cuja posição será abordada no tópico a seguir.
Como se vê, ainda que seja cedo para determinar o sucesso (ou não) do MLI,
os indicativos até o momento são de que, ao contrário do que se esperava (inclusive
como se disse na primeira edição deste artigo), a necessidade de adesão maciça ao

261 Até a publicação do presente artigo 87 países aderiram ao MLI e outros 6 manifestaram sua
intenção de também aderir. https://www.oecd.org/tax/treaties/beps-mli-signatories-and-parties.
pdf. Consulta em 18/05/219.
262 São elas, em ordem decrescente, de acordo com o World Economic Outlook do Fundo Monetário
Internacional de abril de 2018: Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia,
França, Brasil, Itália, Canadá, Coréia do Sul, Rússia, Austrália, Espanha, México, Indonésia,
Turquia, Holanda, Arábia Saudita e Suíça. https://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2018/01/
weodata/index.aspx. Consulta em 18/05/2019.

393
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

instrumento não será impeditivo para sua aplicabilidade prática, diante do signifi-
cativo número de adesões e da representatividade econômica dos países aderentes.

V – O Brasil e o MLI
O Brasil, como antecipado acima, não aderiu ao MLI. A justificativa
brasileira para essa não adesão foi a de que a complexidade do instrumen-
to provocaria prolongadas discussões no Congresso Nacional, que precisaria
aprovar o seu texto para internalizá-lo em nosso ordenamento jurídico, o que
atrasaria a implementação efetiva das mudanças necessárias. 263
Além disso, considerando o baixo número de tratados contra dupla tri-
butação firmados pelo Brasil se comparado a outros países264 permitiria ao
Brasil renegociar seus tratados para ajustá-los às conclusões do projeto BEPS
com maior facilidade, bem como inserir dispositivos no mesmo sentido em
novos tratados que venham a ser firmados.
De fato, parece ter sido esta a posição adotada pelo Brasil, não só no dis-
curso de justificativa para não aderir ao MLI, mas também na prática, como se
pode notar dos novos tratados assinados com a Suíça, Singapura e Emirados
Árabes Unidos, bem como dos protocolos de emenda às convenções firmadas
com a Argentina e com a Suécia.
Nesses novos acordos, pode-se notar os reflexos do projeto BEPS, mere-
cendo destaque o preâmbulo dessas convenções que agora, prevê expressamente
que a eliminação da dupla tributação não deve conduzir a uma situação de du-
pla não-tributação, em linha com o que dispõe o Artigo 6.1 do MLI, in verbis:
“Visando eliminar a dupla tributação com relação aos tributos abran-
gidos por este acordo sem criar oportunidades para dupla não-tri-
butação ou tributação reduzida através de evasão ou elisão tributária
(incluindo através da prática de treaty shopping com objetivo de obter

263 Como mencionado por Roberto Duque Estrada, um dos autores do presente artigo, em https://
www.conjur.com.br/2018-mai-16/consultor-tributario-convencao-multilateral-ocde-protocolo-
mendoza. Consulta em 18/05/2019.
264 Até a publicação do presente o Brasil tem 33 tratados contra dupla tributação em vigor, considerando
que o tratado com a Alemanha foi por esta denunciado em 2005.

394
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

alívio da dupla tributação previsto neste acordo para o benefício indi-


reto de residentes em países terceiros).”265

Destaca-se, também a previsão contida no artigo 1º, pelo qual as con-


venções contra a bitributação não se aplicarão quando os rendimentos forem
obtidos por entidades transparentes.
No mais, de forma inovadora na prática brasileira de negociação de trata-
dos, houve a inclusão de cláusulas LOB e PPT, também contidas no instrumento
multilateral, sendo a cláusula PPT, inclusive, um dos minimum standards pre-
visto no artigo 7.1 do MLI, parte da seção que visa a coibir o abuso dos tratados.
Antes mesmo de firmar os novos tratados, que, como visto, já refletem
parte dos dispositivos do MLI, o Brasil alterou seu tratado com a Argentina
através de um protocolo que incluiu as supracitadas previsões, bem como al-
terou o seu preâmbulo fazendo constar explicitamente que o tratado não tem
por objetivo gerar a dupla não-tributação. Essas modificações mostram, mais
uma vez, o alinhamento com o Projeto BEPS.
Por ter sido a primeira alteração de um tratado brasileiro em linha com o
Projeto BEPS e por sua importância, este protocolo, o Protocolo de Mendoza,
será abordado de forma pormenorizada a seguir.

VI – O Protocolo de Mendoza
Em 2018, o Brasil firmou três novos tratados contra a bitributação (Suíça,
Singapura e Emirados Árabes Unidos), bem como alterou o protocolo de emenda
ao Tratado Brasil-Argentina. Em 2019, o Brasil também firmou novo protocolo de
emenda ao Tratado Brasil-Suécia. Esses acordos revelaram a intenção do país em
adotar nos seus tratados muitas das medidas aprovadas nos relatórios do Projeto
BEPS. Ponto comum nesses textos foi a aprovação de medidas para evitar a utili-

265 Tradução livre do texto original: “Intending to eliminate double taxation with respect to the taxes
covered by this agreement without creating opportunities for non-taxation or reduced taxation through
tax evasion or avoidance (including through treaty-shopping arrangements aimed at obtaining reliefs
provided in this agreement for the indirect benefit of residents of third jurisdictions)”. Disponível
em https://www.oecd.org/tax/treaties/multilateral-convention-to-implement-tax-treaty-related-
measures-to-prevent-BEPS.pdf. Acesso em 18.05.2019.

395
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

zação abusiva dos tratados, bem como uma ampliação do conceito de estabeleci-
mento permanente, alargando a possibilidade de tributação na fonte.
Além disso, incluiu-se nos tratados com a Suíça, Singapura e Emirados Ára-
bes Unidos, e no protocolo de emenda com a Suécia, um artigo para possibilitar a
tributação na fonte da renda derivada da prestação de serviços técnicos. Esse dispo-
sitivo não é propriamente derivado do Projeto BEPS, mas sim de uma atualização da
Convenção Modelo da ONU, consistindo em um efetivo instrumento para anular
a dupla (não) tributação da renda nesses casos. Cláusula semelhante, curiosamente,
não foi acordada no protocolo ao acordo entre o Brasil e a Argentina.
O primeiro tratado a ser ajustado às novas medidas preconizadas pela OCDE
foi justamente o firmado pelo Brasil com a Argentina. A Argentina, é bom que se
diga, foi uma das 67 (sessenta e sete) jurisdições266 que assinaram o MLI durante
a cerimônia organizada pelo Grupo em Paris, em junho de 2017, demonstrando
o compromisso daquele país em adotar as propostas originadas no Projeto BEPS,
até como uma forma de planejar e preparar o seu ingresso na Organização267.
O protocolo de emenda ao tratado foi assinado em 24.07.2017, na cida-
de de Mendoza, e introduziu uma série de modificações ao tratado original de
17.05.1980. Posteriormente, o Decreto nº 9.482/2018 ratificou referida emenda
(Protocolo de Mendoza) destinado a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão
fiscal em matéria de imposto sobre a renda. Composto de 28 (vinte e oito) artigos,
o Decreto foi publicado no dia 27.08.2018 e entrou em vigor na mesma data.
Muitos dos pontos defendidos no Projeto BEPS e duplicados no MLI não
foram abordados no Protocolo de Mendoza, como, por exemplo, o artigo 4
daquele instrumento, pelo qual havendo reconhecimento de dupla residência
fiscal as partes devem resolver a questão por meio do MAP.
Como o protocolo de emenda ao tratado com a Argentina foi o texto
inaugural da nova política tributária a ser praticada pelo Brasil no período
pós-BEPS, a sua análise é importante para compreender a abordagem que será
empreendida pelo país nas convenções e nos protocolos que seguirão.

266 Global Tax Alert – EY. Argentina and 67 other jurisdictions signed the Multilateral Convention to
Implement Tax Treaty Related Measures to Prevent BEPS. Disponível em: https://www.ey.com/gl/
en/services/tax/international-tax/alert--argentina-signs-multilateral-convention-to-implement-
tax-treaty-related-measures-to-prevent-beps. Acesso em 22.05.2019.
267 Estadão. Brasil perde terreno na OCDE para Argentina. Disponível em: https://economia.estadao.com.
br/noticias/geral,brasil-perde-terreno-na-ocde-para-argentina,70001979060. Acesso em 22.05.2019.

396
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

VI.1 – Combate ao uso abusivo e indevido dos tratados


O preâmbulo do tratado foi substituído para deixar claro que o objetivo
da Convenção é eliminar a dupla tributação da renda, sem criar oportuni-
dades para a não tributação ou tributação reduzida por meio de evasão ou
elisão fiscal, inclusive por meio do uso abusivo de tratados com o objetivo de
estender indiretamente os benefícios a residentes de terceiros Estados. Essa
determinação está em linha com a Ação 6 do Projeto BEPS e o intuito com
esse novo preâmbulo foi estabelecer parâmetros para frear o uso indevido dos
tratados e combater o treaty shopping268.
Não obstante, como bem anota Ramon Tomazela269, a mera inserção des-
sa disposição tem efeitos limitados, tendo em vista que ela não exclui os resul-
tados que podem advir da aplicação em concreto do tratado. Se a aplicação da
disposição convencional em combinação com as leis internas resultar em uma
situação de dupla não tributação, não é possível recusar tal efeito apenas pela
invocação ao preâmbulo para permitir a cobrança de tributo em violação ao
acordo firmado anteriormente.
No mais, foi definido, no dispositivo 16 do protocolo, o artigo 27.1, que
estabelece uma regra PPT, pela qual não será concedido benefício se for razoá-
vel concluir, considerando todos os fatos e circunstâncias relevantes, que a sua
obtenção foi um dos principais objetivos do arranjo negocial ou da transação
que resultou direta ou indiretamente nele, a menos que fique demonstrado
que a sua concessão, nessas circunstâncias, seria de acordo com o objeto e o
propósito da Convenção.
A propósito, dentre as medidas do MLI adotadas pelo Protocolo de Men-
doza e que certamente causará mais polêmica é a introdução de referida regra.
Trata-se, sem dúvida, da disposição que causará mais controvérsias no Bra-
sil, podendo enfrentar inclusive resistências no Congresso Nacional, que tem
sido refratário à aprovação de normas gerais antielisivas incompatíveis com

268 “Treaty shopping” refere-se a uma situação em que uma pessoa, que é residente em um país e obtém
renda ou ganhos de capital de outro país, é capaz de se beneficiar de um tratado tributário firmado
entre o país da fonte e um terceiro país. Essa situação surge frequentemente quando uma pessoa é
residente em um país que não tem um tratado contra a bitributação com o país da fonte.
269 Brazil’s absence from the Multilateral BEPS Convention and the new amending protocol signed
between Brazil and Argentina. Disponível em: http://kluwertaxblog.com/2017/09/05/brazils-absence-
multilateral-beps-convention-new-amending-protocol-signed-brazil-argentina. Acesso em 23.05.2019.

397
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

o princípio da legalidade, rejeitando reiteradamente providências legislativas


nesse sentido. Essa questão ocorreu, inclusive, com a versão original da LC
104/2004, com a MP 66/2002 e, mais recentemente, com a MP 685/2015.
Cláusulas como essa levantam grandes debates interpretativos nas juris-
dições em que têm sido aplicadas, especialmente no âmbito da UE, em que os
princípios e liberdades nela assegurados são incompatíveis com o extremo grau
de subjetividade que um dispositivo dessa natureza confere à administração fis-
cal na aplicação do tratado. A partir do momento em que se aceita deixar nas
mãos da administração fiscal o poder de recusar a aplicação de benefícios para
certos contribuintes, “por se considerar razoável concluir que tenha tido como
um dos principais objetivos obter um benefício outorgado pela convenção”, es-
tará o particular completamente exposto à subjetividade do aplicador da lei.
Mais objetiva é a regra de LOB, que estabelece condições baseadas na
natureza jurídica, na propriedade e nas atividades gerais da entidade para que
o destinatário usufrua dos benefícios do tratado. O artigo 16 do Protocolo
também previu o artigo 27.3 do tratado com a Argentina270, o qual dispõe
que na hipótese de uma pessoa jurídica obter rendimentos de fontes do outro
Estado contratante, ela não terá o direito aos benefícios da convenção caso
mais de 50% dos direitos de participação efetiva nessa sociedade (ou, no caso
de uma sociedade anônima, mais de 50% do valor agregado das ações) for de
propriedade, direta ou indiretamente, de qualquer combinação de uma ou
mais pessoas que não sejam residentes do primeiro Estado contratante.
Não obstante, dispõe o mesmo Artigo 27.3 que essa limitação não se aplica
caso essa entidade exerça, no Estado contratante do qual for residente, uma ati-
vidade comercial de substância que não seja a mera detenção de títulos ou quais-
quer outros ativos, ou a mera prestação de atividades auxiliares, preparatórias ou
quaisquer outras atividades similares com respeito a outras entidades associadas.

270 3. Não obstante as disposições dos parágrafos 1 e 2, uma entidade legal residente de um Estado
Contratante e que obtenha rendimentos de fontes no outro Estado Contratante não terá direito nesse
outro Estado Contratante aos benefícios da presente Convenção se mais de cinquenta por cento da
participação efetiva nessa entidade (ou, no caso de uma sociedade, mais de cinquenta por cento do
valor agregado das ações com direito a voto e das ações em geral da sociedade) for de propriedade,
direta ou indiretamente, de qualquer combinação de uma ou mais pessoas que não sejam residentes
do primeiro Estado Contratante. Todavia, esta disposição não se aplicará se essa entidade exercer,
no Estado Contratante do qual for residente, uma atividade comercial de substância que não seja a
mera detenção de títulos ou quaisquer outros ativos, ou a mera prestação de atividades auxiliares,
preparatórias ou quaisquer outras atividades similares com respeito a outras entidades associadas.

398
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Outra situação a ser combatida na Ação 6 do Projeto BEPS é quando um


contribuinte, sujeito à tributação maior de dividendos prevista no Artigo 10.2.b,
atribuível aos investimentos de portfólio, busca obter uma tributação menor, nos
limites do Artigo 10.2.a, aplicável aos investimentos com participação significati-
va. A solução identificada no trabalho da OCDE foi estabelecer um período míni-
mo de participação de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias.
No protocolo de emenda ao tratado com a Argentina estabeleceu-se que
para usufruir de uma alíquota menor do imposto retido na fonte, o benefici-
ário deve ter participação na empresa que distribui esses dividendos por um
período mínimo de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias. Em linha com a
CMOCDE, a participação do beneficiário efetivo na sociedade há de ser, pelo
menos, de 25%. A tributação dos dividendos, nesse caso, está limitada a 10%,
ao passo que a versão de 2017 da CM, desenvolvida após o Projeto BEPS, ainda
prevê o limite de 5%. Em todos os demais casos, a tributação fica limitada a
15% do montante bruto dos dividendos.

VI.2 – Definição do conceito de


Estabelecimento Permanente (“EP”)
A Ação 7 do Projeto BEPS pretendeu revisar a definição de EP, com vistas
a evitar arranjos contratuais utilizados pelos contribuintes para contornar a sua
existência, tal como a estratégia de substituir as subsidiárias por comissários,
erodindo a base tributária do país no qual as vendas de fato ocorrem. A fim de
solucionar esses impasses, a OCDE agrupou o seu trabalho em três frentes: (i)
enfrentar manobras que obstam o reconhecimento de um EP através de comis-
sários e estratégias similares; (ii) combater as práticas que obstam o reconheci-
mento de um EP através das exceções do Artigo 5.4; e (iii) enfrentar outras es-
tratégias que obstam o reconhecimento de um EP (por exemplo, fragmentando
duas ou mais atividades entre diferentes partes relacionadas a fim de contornar
o limite de tempo definido nos tratados para a configuração de um EP).
A solução apontada no relatório final, em relação à primeira frente de
trabalho, foi reconhecer a existência de um EP na hipótese de o agente con-
cluir habitualmente contratos ou desempenhar habitualmente o papel princi-
pal que leva à conclusão dos contratos. Em consonância, o novo Artigo 5.4 do

399
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Tratado Brasil e Argentina agora estabelece que haverá a configuração de um


EP na hipótese de o agente concluir habitualmente contratos ou desempenhar
habitualmente o papel principal que leva à conclusão dos contratos que são
rotineiramente celebrados sem modificação substancial pela empresa. Com
efeito, esses contratos são: (i) em nome da empresa; ou (ii) para a transferência
da propriedade, ou para a concessão do direito de uso, de bens de propriedade
dessa empresa ou sobre os quais a empresa tenha um direito de uso; ou (iii)
para a prestação de serviços por essa empresa.
Com relação à segunda frente de trabalho, o objetivo da OCDE foi ga-
rantir que cada uma das exceções ali incluídas se restringia a atividades com
características auxiliares ou preparatórias, preservando a ideia de que o reco-
nhecimento de um EP tem a ver com a presença de uma atividade econômica
no Estado da fonte. A clássica situação a ser combatida pelo Projeto BEPS, por
exemplo, é a de uma empresa que mantém um grande armazém, em que um
número significativo de funcionários trabalha com o objetivo de entregar mer-
cadorias vendidas online. É comum que essas empresas utilizem o dispositivo
citado a fim de contornar a obrigação tributária correspondente. O objetivo da
Ação 7, então, é justamente remover a natureza preparatória ou auxiliar dessas
atividades, ao enfatizar no final do artigo 5.4 que essas atividades só não vão
caracterizar um EP se elas forem exercidas com essas características.
Nessa linha, o novo Artigo 5 (3) (f) da convenção com a Argentina dis-
põe que a expressão “estabelecimento permanente” não inclui a manutenção
de instalação fixa de negócios unicamente para fins de qualquer combina-
ção das atividades mencionadas nas alíneas (a) e (e), apenas se o conjunto das
atividades da instalação fixa de negócios resultante dessa combinação for de
caráter preparatório ou auxiliar.
Em relação à terceira frente de trabalho, o relatório final da Ação 7
propôs, em linha com a Ação 6, que os Estados inserissem em seus tratados
tributários regras anti-abuso, como o PPT, ou outra provisão que permita a
tributação dessas atividades quando realizadas por empresas relacionadas em
um local de construção durante diferentes períodos de tempo, cada um exce-
dendo 30 (trinta) dias, mesmo que, para uma empresa específica, o período
proposto no artigo 5.3 não tenha sido excedido. Especificamente no tratado
com Argentina, o artigo 5.2.g do acordo assinala que um canteiro de obras
ou um projeto de construção, de montagem ou de instalação constituem um

400
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

EP apenas se perdurarem por um período superior a 6 (seis) meses e cum-


pre destacar que não houve modificação desse período com o novo protocolo.
Eventual abuso com o fim de contornar esse prazo será combatido pela já
mencionada regra de PPT.
Por fim, o artigo 5.5, que foi substituído com o novo protocolo, con-
tém uma cláusula padrão segundo a qual não se reconhecerá um EP quando
uma pessoa atuando em um Estado contratante por conta de uma empresa
do outro Estado contratante exercer atividades negociais no primeiro Estado
mencionado como um agente independente e atuar para a empresa no curso
normal dessas atividades. O dispositivo foge da regra quando dispõe que na
hipótese de uma pessoa atuar exclusivamente ou quase exclusivamente por
conta de uma ou mais empresas estreitamente relacionadas, essa pessoa não
será considerada um agente independente, no que diz respeito a essas empre-
sas, configurando, nesses casos, um EP.
Deveras, essas providências têm baixo impacto prático no Brasil, tendo
em vista a inexistência de definição mais ampla pela lei interna de hipóteses de
caracterização do conceito de EP que autorizariam o Brasil a tributar os lucros
auferidos por aquele estabelecimento como se lucros de uma pessoa jurídica
nacional fossem. É que, na verdade, a política fiscal brasileira tem sido no sen-
tido de gravar as remessas de pagamentos ao exterior com o imposto de renda
na fonte, escusando-se, assim, do ônus de uma apuração sintética do lucro.

VI.3 – Juros
Registra-se que a redação original do tratado entre Brasil e Argentina
não estabelecia, no artigo 11, um limite para a retenção de juros na fonte. A
redação proposta pelo novo protocolo estipula que a alíquota, nesse caso, deve
ser limitada a 15%.
Importante destacar que nem o acordo original nem o protocolo de emen-
da dispuseram a respeito da submissão a essa cláusula dos juros sobre o capital
próprio. Com efeito, o Brasil tem sustentado que tais remunerações revestem
a natureza de “juros” e assim devem ser tratados para efeitos de aplicação das
convenções, tendo, inclusive, feito tal assimilação nos tratados mais recentes.

401
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

VI.4 – Royalties
A redação original do tratado firmado entre Brasil e Argentina também
não previa um limite para a retenção de royalties na fonte. A redação proposta
pelo novo protocolo estipula que a alíquota, nesse caso, deve ser limitada a
15% do seu montante bruto, na hipótese de eles estarem relacionados ao uso
ou à concessão do uso de marcas de indústria ou de comércio; ou a 10%, em
todos os demais casos. Foi adicionada, ainda, uma nova redação ao item 7 do
protocolo original, para deixar claro que as rendas provenientes do uso ou da
concessão de uso de software serão classificadas como royalties.

VI.5 – Métodos para eliminar a bitributação


Pela redação original do acordo, a Argentina deveria conceder uma isenção
aos rendimentos tributados no Brasil; ao contrário, este deveria aplicar o método
de crédito, exceto se os rendimentos recebidos pelo residente no país caracteriza-
rem-se como dividendos. Nesse caso, o método de isenção deveria ser aplicado.
Com o novo protocolo, aplica-se o método de crédito para ambos os Es-
tados. A dedução não excederá a fração do imposto sobre a renda ou sobre o
capital, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos ou ao
capital que puderem ser tributados nesse outro Estado (artigo 23.1).
Essa providência terá efeitos relevantes sobre os investimentos brasilei-
ros na Argentina, já que a legislação interna (Lei nº 12.973/2014) prevê a tribu-
tação automática no Brasil dos lucros auferidos pelas controladas no exterior,
considerados disponíveis por ficção legal na data da sua apuração e a versão
original do tratado não só assegurava — como continua a assegurar —, em
seu artigo 7º, que os lucros de uma sociedade residente em um determinado
Estado só podem ser tributados naquele mesmo Estado, mas também era ca-
tegórico no sentido de que estariam isentos de tributação os dividendos pro-
venientes da Argentina pagos a uma sociedade residente no Brasil e detentora
de mais de 10% do capital da empresa argentina (artigo 23.2)271.

271 Nesse ponto específico é bom que se diga que a Receita Federal fazia ouvidos moucos ao tratado,
afirmando constantemente que o Brasil tributa parcela equivalente do ajuste do valor do investimento
em controlada no exterior, não surtindo qualquer efeito a cláusula de isenção de dividendos prevista
no tratado firmado entre o Brasil e a Argentina (Ver, p.ex., Solução de Consulta Cosit n, 400/2017).

402
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Por fim, quando os rendimentos obtidos por um residente de um Estado


contratante ou o capital que esse possuir estiverem isentos de tributo nesse Es-
tado, este poderá, todavia, levar em conta os rendimentos ou o capital isentos
ao calcular o montante do tributo incidente sobre os rendimentos ou o capital
remanescentes desse residente (artigo 23.2).

VI.6 – Procedimento amigável


Na redação original do tratado, o prazo para que uma das partes subme-
tesse o seu caso à apreciação da autoridade competente do Estado contratante
de que é residente seria de 2 anos. Com a redação proposta pelo novo protoco-
lo, o prazo passou a ser de 3 anos contados da data da primeira notificação do
ato que conduzir a uma tributação em desacordo com a Convenção.

VII – A ausência dos Estados Unidos


e sua importância para o MLI
Como amplamente destacado em nosso artigo inicial, a escolha de um ins-
trumento multilateral foi a solução encontrada para se evitar que a adoção das
medidas para conter o BEPS dependesse das inúmeras negociações bilaterais en-
tre os países no que tange à atualização dos milhares de tratados contra a dupla
tributação existentes atualmente. Caso as soluções para o problema fossem imple-
mentadas apenas bilateralmente, considerando toda a demora envolvida no pro-
cesso, já estariam ultrapassadas quando efetivamente entrassem em vigor.
Com o modelo de convenção multilateral e a consequente possibilidade
de os países signatários optarem pela inclusão ou não de certas disposições,
bem como poderem escolher soluções alternativas, a sua importância é ex-
trema e sua observância deveria feita de forma automática pelos Estados. No
entanto, esse não foi o caso.
A maioria dos países de fato aderiu ao MLI. Essa, contudo, não foi a posi-
ção dos Estados Unidos272, o que, infelizmente, não é uma surpresa para a co-

272 Como visto anteriormente, o Brasil também não aderiu.

403
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

munidade internacional, já que não é de hoje que o país não vem cooperando
internacionalmente com medidas multilaterais visando a evitar a bitributação.
Nada obstante alguns atos internos cooperativos promulgados pelo país,
como, por exemplo, o já citado FATCA, em dezembro/2017, o Presidente Do-
nald Trump promulgou o Tax Cut and Jobs Act (TCJA), tendo sido destacado
pela Casa Branca como “the most significant Federal tax reform enacted in the
United States in decades”273. O TCJA reduziu a alíquota do Imposto de Renda
corporativo de 35% para 21%274 e destacou 4 (quatro) principais objetivos: (i)
redução da carga tributária para as denominadas “middle-income families”;
(ii) simplificação do imposto e suas obrigações para as pessoas físicas; (iii)
crescimento econômico; e (iv) repatriação do lucro auferido no exterior.
Nada obstante tais medidas unilaterais terem sido editadas com o obje-
tivo de evitar a erosão da base tributária, como, por exemplo, a limitação da
dedutibilidade dos juros para 30%, a nova sistemática de tributação dos lucros
auferidos no exterior275, há alguns pontos no TCJA que são prejudiciais aos
tratados celebrados pelos EUA. É o caso do novo imposto criado, o Base Ero-
sion Anti-Abuse Tax (BEAT)276 que permite a tributação sobre os pagamen-
tos feitos por empresas norte-americanas para partes relacionadas situadas
no exterior. Com essa possibilidade, há agora nítida violação aos dispositivos
relacionados ao Princípio da Não Discriminação estabelecidos nos tratados

273 h t t p s : / / w w w . w h i t e h o u s e . g o v / w p c o n t e n t / u p l o a d s / 2 0 1 8 / 0 2 / W H _
CuttingTaxesForAmericanWorkers_Feb2018.pdf. Acesso em 05.05.2019.
274 Essa nova alíquota está muito próxima da média da alíquota nominal de IR corporativo da OCDE,
tornando os Estados Unidos ainda mais atrativo para investidores nacionais e internacionais.
275 A nova legislação determinou que a pessoa jurídica norte-americana seja tributada sobre os lucros
acumulados entre 1987 e 2017 auferidos por suas controladas estrangeiras e por algumas outras
sociedades estrangeiras. Assim, no caso de PJ com lucros mantidos no exterior em caixa haverá a
tributação à alíquota de 15,5%. Já em relação aos períodos de apuração a partir de 2018, os lucros
das controladas estrangeiras sujeitam-se a uma tributação de 10,5% sobre determinados sócios
qualificados, se tais valores estiverem sujeitos a uma tributação efetiva no exterior de pelo menos
13,125%. No entanto, quando uma empresa norte-americana possuir uma subsidiária estrangeira
com efetiva atividade em outro local, os seus lucros não estarão sujeitos à tributação nos Estados
Unidos, com exceção se estiverem sujeitos a uma alíquota estrangeira reduzida.
276 O BEAT é um imposto sobre os pagamentos realizados pelos norte-americanos para empresas
overseas. Para maiores explicações sobre essa nova tributação, verificar: http://www.roedl.net/
us/en/tax_reform/key_business_tax_provisions/base_erosion_and_anti_abuse_tax_beat.html.
Acesso em 05.05.2019.

404
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

internacionais.277 Além desse ponto, destaca-se também a limitação imposta


pelo TCJA quanto à utilização dos créditos referentes aos impostos pagos no
exterior por empresas norte-americanas em total desacordo com os artigos 23
A e 23 B da Convenção Modelo da OCDE.
O que se percebe é que, enquanto a maioria dos países caminha em con-
junto para a solução (ou diminuição) do BEPS, os EUA se isolam cada vez
mais com suas medidas unilaterais desconsiderando os seus próprios DTTs
e objetivando a centralização dos investimentos estrangeiros em seu próprio
território. Ainda que domesticamente o país permita o treaty override, ao edi-
tar normas internas que contrariam os seus próprios tratados, há, no mínimo
um descontentamento e uma desconfiança das demais jurisdições.
Não poderia, portanto, ser diferente em relação ao MLI. As medidas prote-
tivas editadas de maneira recorrente pelos EUA parecem não olhar para a pro-
blemática mundial e apenas para o governo americano não faz sentido aderir a
uma convenção multilateral. Como justificativa, o U.S. Department of Treasury
destacou que a rede de tratados internacionais celebrados pelo país permite ape-
nas minimamente a efetivação do BEPS, sendo a essência do MLI consistente
com a política dos tratados internacionais que o país segue há décadas278.
Apesar da afirmativa americana, não custa mencionar que o Projeto
BEPS, ainda que não direcionado aos EUA, intensificou-se com a análise dos
planejamentos fiscais das maiores e principais empresas norte-americanas e o
pouco recolhimento tributário por elas efetuado. Assim, independentemente
de as convenções celebradas pelo país já possuírem a cláusula LOB e, nada
obstante o pensamento americano de que os seus DTTs não possibilitam a
ocorrência do BEPS, o foco de combate da OCDE foi justamente o ínfimo
pagamento de tributos pela Apple, Google e Amazon, empresas americanas
com lucros anuais exorbitantes e que se aproveitaram das lacunas legislativas
existentes criando planejamentos tributários arrojados (ou, na visão da comu-
nidade internacional, agressivos).

277 No início de dezembro, os Ministros das Finanças de cinco países europeus (Alemanha, França,
Inglaterra, Espanha e Itália) escreveram para o secretário do Tesouro Steven Mnuchin na tentativa
de demonstrarem sua insatisfação com a reforma tributária no país. Para maiores informações:
https://www.reuters.com/article/usa-tax-europe-letter/european-finance-ministers-call-for-u-s-
tax-reform-rethink-idUSA5N1JY023. Acesso em 06.05.2019.
278 https://www.bna.com/treasury-official-explains-n73014453413/. Acesso em 06.05.2019.

405
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Além disso, as discussões travadas no âmbito do Projeto BEPS têm de-


monstrado que o sistema tributário individualizado (como, por exemplo, o
U.S. check the box regime) pode aumentar a erosão da base tributária de outras
jurisdições, uma vez que permite a dupla não tributação dos lucros auferidos
pelas multinacionais. Com isso, a cooperação entre as jurisdições mostra-se
novamente ser importante nesse contexto.
Em termos financeiros, a postura de isolamento dos EUA e não colabora-
ção internacional, ratificados pelo TCJA, já têm trazido consequências negati-
vas para o país. Em março/2018, foi noticiada a tentativa europeia de cobrança
de imposto digital de big techs. A ideia inicial era a aplicação de um impos-
to digital sobre o faturamento da Apple, da Google e do Facebook à alíquota
de 3%279, mas, com a intensa discussão sobre o tema ocorrida ainda naquele
ano280, em março/2019, a União Europeia desistiu dessa questão e abandonou
a possibilidade da criação do referido imposto281.
Ainda que ao final a nova tributação não tenha sido colocada em prática,
a simples ideia de taxar tais empresas americanas demonstra a insatisfação
europeia com o baixo recolhimento tributário promovido por elas. Por certo,
a briga e o afastamento entre os dois blocos intensificar-se-á ainda mais com
as constantes medidas protetivas editadas pelo governo americano.
Resta evidente, portanto, que a participação americana no Projeto BEPS
e, por conseguinte, sua aderência ao MLI, é mais do que necessária. Somente
com a colaboração dos Estados como um todo é que o problema da dupla não
tributação poderá ser resolvido ou minimizado e, nessa linha, seria interessante
que os Estados Unidos não se isolassem, pois, ainda que sejam a maior potência
mundial, precisam acompanhar a evolução da política fiscal internacional, cuja
tendência é no aprimoramento do intercâmbio entre as jurisdições com trocas
de informações e apoio econômico. Não basta fecharem os olhos para a situa-
ção de não recolhimento tributário proporcionado pelas principais empresas

279 Nesse sentido verificar a notícia integral em http://europa.eu/rapid/press-release_IP-18-2041_


en.htm. Acesso em 06.05.2019.
280 https://www.handelsblatt.com/today/politics/digital-services-tax-german-business-mobilizes-
against-eu-digital-tax/23583742.html?ticket=ST-1639568-TTfOd5VITwHNEyjsldUQ-ap4. Acesso
em 06.05.2019.
281 https://www.dci.com.br/neg%C3%B3cios/uni-o-europeia-abandona-plano-de-imposto-digital-
para-trabalhar-em-reforma-global-1.785767. Acesso em 06.05.2019.

406
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

americanas e destacarem que a sua própria legislação e tratados celebrados não


ocasionam o BEPS. O ideal é, de fato, uma parceria com as demais jurisdições.
Sobre o tema, vale citar o texto abaixo que resume com precisão a questão:
“A política fiscal internacional encontra-se em um estágio transfor-
mador. As autoridades tributárias europeias e de vários outros países
pretendem impor uma maior carga tributária sobre multinacionais
norte-americanas como Google, Facebook  e Apple, e suas afiliadas.
Fiscais estrangeiros buscam adotar medidas contra a “erosão da base
tributária e transferência de lucros”, com a firme percepção de que as
empresas norte-americanas deveriam contribuir mais para seus cofres
públicos. Historicamente, o governo dos Estados Unidos tem sido um
líder em discussões de políticas fiscais e na proteção dos interesses cor-
porativos no exterior. Ao adotar uma postura óbvia de América first, e
uma atitude casual face aos compromissos internacionais, os Estados
Unidos arriscam enfraquecer tanto a sua autoridade moral em moldar
políticas fiscais quanto a sua efetividade em lidar com outros países.
Essa postura certamente será custosa não apenas em seus impactos po-
líticos, mas também em termos financeiros.”282

Como os EUA já deixaram em aberto a possibilidade de adesão futura ao


MLI, é interessante que o país revise a sua postura individualista para não gerar
ainda mais atritos políticos e financeiros com a comunidade europeia, tendo em
vista que a cooperação entre essas jurisdições é fundamental para o crescimento
ainda maior da potência americana. Já para a OCDE, a participação dos EUA nas
discussões travada pela Organização e a sua observância e a sua ratificação ao
MLI são fundamentais para que se atinja o principal objetivo do Projeto BEPS283.

282 A íntegra do artigo pode ser verificada em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-08/opiniao-eua-


atuam-lone-rangerna-tributacao-internacional. Acesso em 06.05.2019.
283 Apesar de a crimônia de assinatura do MLI ter ocorrido em junho/2017, ele permanece em aberto
para ratificações posteriores de outras jurisdições: “The MLI remains open for signature to all
intersted jurisdictions after the signing ceremony on 7 June 2017. A large numbers of jurisdictions
are actively working towards signature of the MLI and more are expected to follow by the end of 2017.
At the occasion of the 7 June signing ceremony, a group of countries have already explicitly expressed
their intent to sign the MLI as soon as possible. It is expected that many other jurisdictions will sign the
MLI in the course of 2017.” in https://www.oecd.org/tax/treaties/MLI-frequently-asked-questions.
pdf. Acesso em 08.05.2019.

407
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

VIII – Conclusão
Como visto, o MLI é um instrumento que visa garantir maior coesão
nos parâmetros adotados pelos países no âmbito da tributação internacional,
mas que ainda está em desenvolvimento. Sua implementação prática desde a
publicação do relatório final da Ação 15 do Projeto BEPS tem ocorrido de for-
ma mais tranquila e com indícios de sucesso do que inicialmente se esperava,
inclusive contrariando o que se mencionou na primeira edição do presente
artigo com base nas experiências anteriores de convenções multilaterais.
A adoção e implementação deste instrumento multilateral é altamente re-
comendável para garantir a coesão supracitada, tendo em vista a ampla rede de
tratados bilaterais atualmente em vigor. Com o MLI, as jurisdições provavelmente
conseguiriam implementar as medidas desenvolvidas ao longo do Projeto BEPS
de forma coordenada, eis que consolidadas em um único documento. Tal coor-
denação ajudaria a evitar os descompassos gerados por eventuais implementações
unilaterais, que poderiam levar ao surgimento de novas oportunidades para a
erosão da base tributária ou, ainda, a situações de dupla tributação.
O presente artigo buscou demonstrar essa importância do MLI, bem como
a necessidade de adesão das diversas jurisdições para, assim, o objetivo da OCDE
ser atingido. Apesar de ainda haver um longo caminho pela frente até que se possa
afirmar que sua implementação foi bem sucedida, é certo que, atualmente, por
haver um maciço interesse na adoção de medidas coordenadas em escala global
para a contenção do BEPS, as chances de êxito são grandes. O elevado número de
países que já aderiram ao MLI corrobora esse ponto.
Embora o instrumento não tenha ainda sido ratificado pelos Estados
Unidos e pelo Brasil, os indicativos, até o momento, são de que a necessidade
de adesão maciça ao MLI não será impeditivo para sua aplicabilidade prática,
já sendo estimado pela OCDE que mais de 1200 tratados bilaterais são atual-
mente alcançados pelo MLI.284

284 https://www.oecd.org/tax/treaties/multilateral-instrument-BEPS-tax-treaty-information-
brochure.pdf. Acesso em 30.05.2019.

408
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Com relação ao Brasil, embora não tenha aderido ao instrumento com


base em questões procedimentais internas, a postura adotada pelo país nos
seus mais recentes acordos e protocolos internacionais parece demonstrar que
de fato não aderiu ao MLI apenas por questões formais, mas que, material-
mente, pretende implementar as medidas desenvolvidas ao longo do Projeto
BEPS em linha com os princípios hoje positivados no texto do instrumento.

409
Parte III – Transparência e
Economia Digital
14. O Conceito de Estabelecimento
Permanente – Evolução do Conceito
e as Alterações Propostas pelo
Plano de Ação 7 do BEPS

Ronaldo Apelbaum
Mestrando em Direito Tributário pela Universidade de São
Paulo (USP). Vice-Presidente de Turma na 1ª Seção do Conse-
lho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF – MF). Advogado
licenciado em São Paulo – SP.

Resumo
O presente artigo analisará os impactos das mudanças propostas pela
Ação 7 do Plano BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), trabalho coordena-
do pela OCDE e que visa inserir alterações no Modelo-Convenção e em seus
comentários, decorrentes das alterações nas formas de praticar negócios e da
experiência dos planejamentos tributários observados nos últimos anos. Esse
Plano, especificamente, trata do conceito de Estabelecimento Permanente (PE),
tão relevante para a consecução da tributação regulada por esses instrumentos.
Esse trabalho discorrerá sobre o histórico evolutivo do conceito de PE, a
visão da doutrina e dos países-membro da OCDE, além dos tribunais, sobre
o conceito e os novos contornos pretendidos. Veremos, ainda, se de fato as
mudanças propostas terão o condão de alterar o tratamento fiscal atinente às
atividades exercidas em países que não a residência fiscal dos contribuintes ou
se somente ampliaremos as discussões que hoje permeiam o conceito de PE.
Palavras-chave: BEPS – Estabelecimento Permanente – contratos com
agentes e comissionários - países em desenvolvimento.

413
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Abstract
The present article will analyze of the impacts of BEPS Action 7 Plan
proposed changes. The mentioned Plan was prepared under the coordination
of OCDE and the main objective is to amend the Model Tax Convention and
its comments, derived from the changes in then way business has been con-
ducted in the last years, as well as tax planning initiatives. This Plan´s theme
is the concept of Permanent Establishment (PE), such a relevant issue of the
proper taxation of instruments regulated under the Convention Model.
This paper will address the historic evolution of PE concept, doctrinal
construction and country´s authority´s vision, besides the Courts. Still, will be
also put under discussion if the proposed changes will really bring a new taxa-
tion era for the companies´ business rendered around the globe or if the new
proposals will only enhance all actual discussions around PE´s characterization.
KEYWORDS: BEPS – Permanent Establishment – agency and commis-
sionaire agreements – developing countries.

1. A Ação 7 do Plano BEPS e sua Relação


com os Demais Planos de Ação
É importante compreender de forma ampla os objetivos da OCDE na
propositura das mudanças e a evolução histórica e jurídica do conceito de PE.
Necessária se faz, ainda, a leitura dos Planos de Ação do BEPS de forma con-
junta, já que as preocupações e propostas em cada uma delas se inter-relacio-
nam. A ação 1 do Plano BEPS, por exemplo, trata do fenômeno da economia
digital e suas consequências na tributação global das atividades das empresas
multinacionais (Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy).
De acordo com essa Ação, a tributação direta dos negócios digitais pode
ser mais bem distribuída entre fonte e residência pela alteração dos parâme-
tros para a configuração de estabelecimento permanente e da imposição de re-
tenção de imposto de renda sobre pagamentos realizados para não residentes.
Para a OCDE, essa mudança não prescinde da revisão do conceito de Es-
tabelecimento Permanente (PE), por meio de conceitos como “presença digital
significativa” e revisão das denominadas atividades “auxiliares ou preparató-

414
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

rias”, além do papel das pessoas e instalações em cada uma das jurisdições.
Ressalta a necessidade de se rediscutir o nexo e a caracterização de atividades
digitais e outras atividades intangíveis (STEWART, 2015, pp.399-400).
Não se trata de assunto novo trazido pela OCDE somente nos Planos de
Ação do BEPS. Em 1988, a própria OCDE já reconhecia a influência da Eco-
nomia Digital no cenário global285, conforme reporte resultante do encontro
em Ottawa em 1998, com discussões sobre o papel dos Estabelecimentos nessa
perspectiva. O papel da presença física na determinação da tributação, nesse
contexto, é um crescente anacronismo (BRAUNER; BAEZ, 2015, p.4).
Ainda segundo BRAUNER, o contexto econômico atual também acom-
panha as necessidades de revisão do modelo derivadas da economia digital
(BRAUNER, 2014, p.63). Retração econômica dos países ricos e dominantes
da OCDE e crescimento de economias que representam grandes fontes de pa-
gamento também é elemento direcionador dos Planos de Ação.
É nesse contexto de análise das mudanças na atividade econômica e na
rediscussão sobre a distribuição dos recursos que as mudanças devem ser
compreendidas. E na própria Ação 1 do BEPS o conceito de PE já é explorado,
mostrando que é impossível dissociar as mudanças propostas nessa Ação da-
quelas previstas na Ação 7, que trata do novo conceito de PE.

2. O Papel do Conceito de PE na Nova Economia Digital


Embora a propaganda dos Planos de Ações BEPS gravite em torno da
Economia Digital e das novas formas de fazer negócios, é preciso entrar em
seus detalhes para perceber que a finalidade dessas ações não é apenas trazer
estabilidade aos conceitos de Direito Tributário Internacional em vista desse
fenômeno. Há também uma mudança no equilíbrio de forças entre a residên-
cia e a fonte, decorrente de novos papéis exercidos pelas nações e seu mercado.

285 ‘”1. Electronic commerce has the potential to be one of the great economic developments of the 21st
century. The information and communication technologies which underlie this new of doing business
open up opportunities to improve global quality of life and economic well-being. Electronic commerce
has the potential to spur growth and employment in industrialized, emerging and developing
countries.” In A borderless world: realizing the potential of electronic commerce, October 1998.

415
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Nas últimas décadas, não somente as formas de negócio foram alteradas;


mudaram também as organizações, as prioridades e também o papel que cada
um dos países representa nesse jogo. Movimentações no Produto Interno Bruto
de países como Brasil, Índia, China, Rússia, Indonésia e tantos outros mostram
que a origem dos rendimentos cada vez se tornou mais relevante, a ponto de não
ser mais possível enquadrar alguns desses países somente como importadores
de capital e, portanto, de menor relevância no jogo dos interesses globais.
Historicamente, os comentários da OCDE sobre o art. 1º da Convenção
Modelo sempre indicaram que a finalidade dos tratados contra a bitributação
era “promover, por meio da eliminação da dupla tributação internacional, tro-
cas de bens e serviços e a movimentação de capital e pessoas”. Somente a partir
da revisão da Convenção Modelo de 2003 que a prevenção da evasão e elisão
fiscal passou a constar, expressamente, como uma finalidade dos tratados. Em
tal oportunidade, ainda, alteraram-se os comentários da OCDE, desobrigando
os Estados de conceder os benefícios dos tratados, nos casos de situações em que
estivesse configurado o “abuso” (DE BROE; LUTS, 2015, p. 122).
A discussão sobre a qualificação de um máximo aproveitamento das dis-
posições de um Tratado como abuso certamente mereceria um capítulo à par-
te. Não é o objetivo desse estudo. A discussão sobre a existência de abuso na
descaracterização de PE é extremamente complexa e incerta, principalmente
se levarmos em conta a extrema dificuldade de conceituação do que seria uma
PE propriamente dita (JIMENEZ, 2014, p 4).
Nessa nova realidade, apesar das disposições constantes da Ação in-
trodutória do Plano BEPS, é extremamente importante a transformação nas
relações internacionais proposta pela Ação 6 do BEPS, que trata do aprovei-
tamento inapropriado de benefícios decorrentes dos Tratados. Enquanto os
Modelos aprovados pela OCDE tinham como objetivo evitar a indesejada du-
pla tributação de rendimentos em seu preâmbulo, a Ação 6 visa claramente
estabelecer como um compromisso entre os Estados evitar a não-tributação
dos rendimentos. Pode-se discutir a força e efetividade dessa disposição, mas
não se pode negar que se trata de verdadeiro compromisso entre os países que
adotarão o Modelo com essas disposições.
Esse é, portanto, o contexto em que a Ação 7 do BEPS, e, portanto, a re-
visão do conceito de PE, deve ser lida. Os ditames antes estabelecidos podiam
resultar em planejamentos que de fato eliminavam a tributação de certas es-

416
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

truturas. Agora, aos olhos da OCDE, não tributar determinados rendimentos


a partir da criação de estruturas societárias globais será considerado como
abuso, ou, ainda, arranjo artificial.

3. Breve Histórico do Conceito de PE


A evolução do conceito de PE remonta aos meados do século XIX, quan-
do na Prússia surgiram suas primeiras definições. Na Convenção entre o Im-
pério Austro-Húngaro e a Prússia, firmado em 1899, esse conceito aparece
para regular a tributação das atividades realizadas pelos representantes. Pos-
teriormente, em 1927, surge um conceito de PE no Modelo de Convenção cria-
do pela Liga das Nações286.
Os modelos foram sendo revisados nas décadas subsequentes, mas sem
alterações de grande relevo. Momento delicado da história universal, o perío-
do entre as Guerras Mundiais do Século XX certamente desviaram o foco das
discussões globais. Nesse ínterim, reunido na Cidade do México, um subco-
mitê elaborou novo Modelo de Convenção.
Nesse cenário, mudanças relevantes na caracterização do PE foram rea-
lizadas, mas não foram consideradas como referência na evolução do conceito
(CALIENDO, 2005, p. 63). Alterações relevantes, de fato, foram produzidas
pela OCDE na elaboração de seus Modelos a partir dos anos 1960, deriva-
dos dos pilares conceituais estabelecidos ao final da década anterior. Nesse
Modelo, destacou-se a manutenção do conceito de PE como um lugar fixo de
negócios e a existência de uma lista “negativa” de caracterização. Nesse mes-
mo contexto, surge uma nova definição de agente dependente, com ênfase na
capacidade de conclusão de contratos (SKAAR, 1991).
Nos modelos mais recentes, a OCDE estabeleceu uma regra básica para
caracterização de um PE, apresentando como requisitos (i) a existência de uma
empresa, (ii) realização de negócios, (iii) existência de sede fixa, (iv) exercício
de atividades, ainda que parcial. Além disso, há uma enumeração de locais
naturalmente caracterizados como PEs e regras de exclusão de determinadas
situações. Na visão de García Prats (1996.pp. 397, 398), corroborada por grade

286 “(…) The real centre of management, affiliated companies, branches, factories, agencies, warehouses,
offices, depots, shall be regarded as permanent establishments”

417
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

parte da doutrina (TORRES, 2001, p.217) (VOGEL, 1991, pp. 199-200), o con-
ceito de PE atua como limitação e condição para exercício do poder tributante
de determinado Estado.
A partir das mudanças promovidas aos Comentários em 1994 e 2002,
os contornos das discussões atuais enfrentadas pelos Planos do BEPS foram
estabelecidos: o threshold de 12 meses, noção de autoridade para conclusão de
contratos, dentre outros. Em conjunto com essa evolução, temos também as
mudanças no panorama dos negócios, especialmente trazidos pelos ventos da
tecnologia da informação. Os conceitos de participação nas conclusões de ne-
gócios também foram alterados e impactaram de forma relevante o trabalho
realizado pelos especialistas na matéria (CALIENDO, 2005, p. 567).
Essas mudanças devem ser consideradas também com a noção de territo-
rialidade, tão relevante para a tributação, especialmente na determinação dos
limites do poder tributante. A noção de território também se ampliou e, embora
pouco explorada no Plano de Ação 7, como veremos mais adiante, é um dos ali-
cerces para essa discussão. A relativização do conceito de território, inclusive, já
havia sido apontada por e carregou consigo novas discussões sobre tributação e
soberania, como apontou LUIS EDUARDO SCHOUERI (2005, p. 336).
Fato é, entretanto, que não é possível construir um conceito fechado de
PE. Não há nos Modelos trabalhados pela Liga das Nações ou OCDE um con-
ceito unívoco, fechado, do que é um PE. Essa regra, limitadora da competên-
cia impositiva ao país fonte dos rendimentos, é naturalmente influenciada pe-
los conceitos de direito interno e pela interpretação jurisprudencial do tema.
Para CALIENDO e TÖRRES, a regra básica veio perigosamente sendo
ampliada ao longo do tempo, como quando da inclusão de filiais e sucursais no
conceito de PE. Tal amplitude, porém, não pode ser atribuída somente às dele-
gações que, convocadas pela OCDE parra esses fins, revisam os critérios. Como
mencionado, a jurisprudência acerca do tema acaba por resultar na ampliação
do conceito. Alguns casos relevantes, como os mencionados abaixo, mostram a
evolução do tema (CALIENDO, 2005, p. 231) (TÖRRES, 2001, p. 248).

418
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4. Histórico do Conceito de PE na Jurisprudência Global


A evolução do conceito de PE na jurisprudência possui exemplos de ca-
sos bastante interessantes. Especialmente no âmbito europeu. Desde as dis-
cussões sobre casos como um de um circo itinerante na Holanda, em 1954,
(PIJL, 2002, p. 555), até casos mais recentes e emblemáticos, como DELL.
O Caso DELL287 foi um processo apreciado pelo tribunal administrativo
espanhol. Nesse caso, a DELL Irlanda era responsável pela comercialização de
computadores em toda a Europa e utilizava 17 subsidiárias-comissárias, es-
tabelecidas em diversos países, inclusive a Espanha. Nessa estrutura, embora
as comissárias firmassem contratos em nome próprio, houve transferência de
todos os riscos à matriz irlandesa (inventário, clientes, garantia). Particulari-
dade do caso, ainda, era que grandes clientes espanhóis eram atendidos pela
subsidiária espanhola, enquanto aqueles de menor porte contratavam com
call center provido por subsidiária francesa e com comunicação com a DELL
Irlanda via rede mundial de computadores.
Esse caso, em particular, foi extremamente relevante pelo fato da empre-
sa irlandesa não ser vinculada contratualmente aos negócios celebrados pela
espanhola. Não era possível simplesmente caracterizar como Agency (e con-
sequentemente, um PE), além da plena ausência de presença física da DELL
Irlanda e França na Espanha para atendimento aos clientes.
A Corte espanhola entendeu, contudo, que a subsidiária espanhola se
enquadrava como PE na medida em que não era possível segregar quais ati-
vidades eram desempenhadas pela Dell Irlanda ou Espanha e que a matriz
irlandesa se aproveitava da estrutura da subsidiária espanhola para desenvol-
vimento de sua atividade-fim. O website utilizado caracterizaria um PE, ain-
da que virtual, o que era corroborado pelas atividades da DELL francesa na
Espanha. Por fim, entendeu-se ser a subsidiária espanhola um agente depen-
dente, na medida em que sua negociação vincularia a matriz irlandesa, que
detinha a propriedade dos equipamentos e ditava a política global de vendas.
Numa crítica ao conceito de abuso normalmente adotado pela OCDE e
utilizando o caso DELL como ilustrativo, JIMÉNEZ reforça a opinião aqui já
mencionada de que é necessário primeiramente esclarecer o conceito de PE e

287 Acessível em http://serviciosweb.meh.es/apps/doctrinateac/detalle.asp?button1=00/2107/2007

419
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

depois determinar quais atitudes podem ser enquadradas como efetivamente


abusivas (JIMENEZ, 2014, p. 3). O que vemos, nesse caso, é uma expansão do
conceito de PE, considerando a Dell Espanha como um verdadeiro estabeleci-
mento ainda que totalmente subordinado aos negócios fechados em outra juris-
dição. Nesse caso, um website, per si, foi caracterizado como um verdadeiro PE,
por sua função complementar aos comandos de negócios vindos do exterior.
Como contraponto ao caso DELL, podemos mencionar o caso DOW-
NING, julgado pela Suprema Corte Sul Africana. In casu, um não-residente
estabeleceu um vínculo com um corretor sul africano. O corretor contratado
teria como única recomendação a maximização de rendimentos, com total
liberdade para adotar a estratégia necessária para esses fins. A Suprema Cor-
te decidiu que o não-residente não possuía qualquer ingerência ou gestão na
forma de atuação do corretor e sua presença temporal bastante curta seriam
suficientes para descaracterizar a PE.
É importante notar que, nesse caso, o fato do corretor concluir os negó-
cios por conta do não residente não foi suficiente para caracterização de PE
naquele país. Tendo liberdade de agir a seu modo, o corretor não seria um PE
da empresa estrangeira. Os aspectos culturais das partes e das formas de fazer
negócio também são relevantes e devem ser considerados nesses julgamentos.
(VOGEL, 1991, p. 345).
Finalmente, outro exemplo importante é trazido TORRES (2001, p. 226),
julgado pela Corte Constitucional alemã. No caso PIPELINE, não foi considerado
relevante o formato da disponibilidade sobre as instalações do estabelecimento,
seja propriedade, locação, comodato, etc. Mesmo se localizado dentro de espaço
detido por outra empresa e cuidado por ela. De acordo com a Corte, em decisão
de 30.10.1996, a existência de um oleoduto de uma sociedade estrangeira em seu
território, mesmo que monitorado à distância, caracteriza um PE.
Ressalte-se, ainda, que os próprios países, em suas decisões internas, diver-
gem sobre o tema. Podemos aqui utilizar o exemplo da Itália, que no caso PHILIP
MORRIS288, julgado em 2002 pela Corte Suprema e que concluiu pela existência
de PE efetivo em seu território e posteriormente, em 2012, reviu seus conceitos

288 Processo 10925, julgado pela Corte Suprema da Itália e que concluiu pela existência de uma PE da
empresa na Itália independente do preenchimento dos requisitos constantes do Art. 5º do Tratado
EUA-Itália, nos moldes do Modelo OCDE

420
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

no caso “BS SPA”. Nesse caso, a prova de que a empresa estabelecida na Itália (BS
S.p.a) tinha independência para fechar contratos de forma independente da em-
presa holandesa (BS B.V.) foi suficiente para descaracterizar a existência de PE em
território italiano, critério não adotado em julgamentos anteriores289.
O que se percebe, nas decisões da Corte Suprema Italiana, é que a ine-
xistência de um PE em casos de total independência foi somente reconhecida
muitos anos depois de outros países, demonstrando a dificuldade de transfor-
mação de conceitos a partir da experiência de outros países.
As situações e decisões acima descritas mostram as diversas interpre-
tações sobre o conceito de PE e que independem das disposições constantes
dos Modelos OCDE ou ONU. Cabe à Organização reconhecer tais decisões e
procurar adaptar suas disposições às discussões, decisões e avanços que im-
pactam o conceito de PE adotado pelos países.

5. Análise das Alterações Sugeridas


ao Modele OCDE na Ação 7
Analisaremos, a partir desse ponto, as sugestões de mudanças propostas
pelo Projeto BEPS ao modelo-padrão da OCDE comumente adotado pelos
países (com adaptações) quando da assinatura de suas Convenções. As mu-
danças propostas na redação do artigo 5º do Modelo são relativamente sim-
ples, especialmente se comparadas às extensas mudanças propostas para os
Comentários que acompanham cada um dos artigos.
É importante ter em mente o contexto anteriormente descrito no pre-
sente artigo para melhor compreender as mudanças sugeridas pelo Relatório.
No background da proposta, explícita está a finalidade de se adaptar às novas
formas de prática de negócios ao redor do mundo290 (OECD, 2015, p.13). Con-

289 Maiores detalhes sobre essa mudança de paradigma estão na página da euitalianinternationaltax.
com. Acesso em http://www.euitalianinternationaltax.com/2012/11/articles/international-
taxation/italian-supreme-court-reverses-course-on-permanent-establishment-issue/
290 “(...) nowadays it is possible to be heavily involved in the economic life of another country, e.g. by doing
business with customers located in that country via the internet, without having a taxable presence
therein (such as substantial physical presence or a dependent agent). In an era where non-resident
taxpayers can derive substantial profits from transactions with customers located in another country,

421
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tudo, o que se perceberá da análise detalhada dos novos Parágrafos, é que a


Ação 7 do BEPS visa muito mais coibir supostos abusos na utilização e inter-
pretação das limitações à caracterização do PE.
Os padrões adotados pela OCDE até hoje limitam a caracterização do PE
para fins de atribuição de lucros e consequente tributação em países que deveriam
ser considerados apenas como “fonte” e não “residência”. É a proteção conferi-
da às pessoas e empresas globais de que a realização de um simples negócio em
determinada jurisdição não caracterizará um Estabelecimento ali, com todas as
consequências legais derivadas desse fato. Para TÖRRES (2001, p. 216), a definição
de Estabelecimento Permanente é uma noção jurídica de atribuição de residência.
O que vemos agora é uma tendência diferente. E também um pouco obs-
cura e contraditória. Isso porque no atual Modelo OCDE, as limitações ao
conceito de PE são claras e as exceções ao conceito visam confirmar a regra, já
que partem de situações mais evidentes. As novas propostas representam uma
tentativa de se limitar o alcance das exceções, especialmente quando trata-
mos da figura do agente e dos comissionários. Limitar o alcance das exceções
significa ampliar a regra. Portanto, podemos afirmar de forma natural que a
caracterização de PEs restará facilitada.
Para o CFE Fiscal Commitee, a revisão programada deveria proporcionar
aos contribuintes maior certeza sobre os conceitos do Parágrafo 5º do Modelo
OCDE e permitir também que as autoridades fiscais não se utilizem do Plano
de Ação para multiplicar a caracterização de unidades de negócios como Es-
tabelecimentos Permanentes291. Ressalta os custos de compliance e o impacto
das incertezas nos investimentos estrangeiros, especialmente em locais onde
o mercado consumidor é relevante.
Ademais, os novos comentários propostos encontram-se recheados de
exemplos. Exemplificar exaustivamente o significado de cada parágrafo não
resulta, necessariamente, no esgotamento das dúvidas que certamente resul-
tarão da aplicação do novo Modelo. Curioso notar que muitas das mudanças

questions are being raised as to whether the current rules ensure a fair allocation of taxing rights on
business profits, especially where the profits from such transactions go untaxed anywhere.”
291 A revisão do conceito de Estabelecimento Permanente deveria trazer mais certeza acerca do
conceito, e não abrir o conceito de forma que as incertezas aumentem. Essa é a mensagem do
Boletim Joint AOTCA/CFE Opinion Statement FC 1/2015 on the OECD 2014 Public Discussion Draft
on Preventing the Artificial Avoidance of PE Status (BEPS Action 7), p.1

422
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

propostas, de forma repetitiva, possuem objetivo semelhante: redefinir con-


ceitos tradicionais utilizados como “atividades acessórias”, “capacidade”, os
conceitos de independência e comércio. E também relativizar a importância
dos documentos em comparação às situações fato.
Essa constatação poderá ser comprovada a partir de uma análise mais
aprofundada das propostas para cada um dos parágrafos do art. 5º do Modelo
OCDE. Em cada um dos subcapítulos que se seguem, comentaremos a reda-
ção atual do Art. 5º, seus parágrafos e comentários, e as mudanças propostas.

5.1 Manutenção do Conceito Básico


de PE no Atual Modelo OCDE
Um primeiro sinal relevante e contraditório dado pelo Plano de Ação 7 é
a inexistência de qualquer proposta de mudança para os primeiros parágrafos
do art. 5º do Modelo OCDE. Ou seja, o conceito de PE, que se encontra na
parte inicial dos Comentários ao Art. 5º292, não precisaria ter sua redação alte-
rada, mas apenas corretamente interpretado em seus detalhes e exceções. Vale
ressaltar que a própria OCDE reconhece que o conceito de Estabelecimento
Permanente deveria ser alterado em nome do Projeto BEPS293.
Tal conclusão decorre, primordialmente, da continuidade da necessidade de
um local fixo para condução de negócios – Art. 5º (1) - e da regra dos 12 meses
constantes do Art. 5º (3) para projetos de construção e/ou instalação. Obviamente,
esse fato não deve levar à conclusão apressada de que o conceito de PE não mu-
dou. Os demais parágrafos mostrarão, certamente, que há uma nova realidade em
jogo. Todavia, para atender aos anseios da Economia Digital e das novas formas
de praticar negócios (PE de serviços, por exemplo) certamente a OCDE poderia
trabalhar em um novo conceito para substituir as disposições do Art. 5º (1).

292 1. For the purposes of this Convention, the term “permanent establishment” means a fixed place of
business through which the business of an enterprise is wholly or partly carried on. (…)
3. A building site or construction or installation project constitutes a permanent establishment only if
it lasts more than twelve months.
293 3. The BEPS Report and the BEPS Action Plan recognize that the current definition of permanent
establishment must be changed in order to address BEPS strategies. OECD/G20 BASE EROSION
AND PROFIT SHIFTING PROJECT, ACTION 7, 2015 FINAL REPORT, P. 14

423
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Esse posicionamento é corroborado por BRAUNER (2014, p. 72), em sua


condensada análise sobre o Projeto BEPS. As mudanças não são elásticas o su-
ficiente para promover novos conceitos. As mudanças efetivamente propostas
pelo plano de ação estão focadas nos seguintes itens: (i) atividades preparató-
rias e/ou auxiliares, (ii) norma anti-fragmentação e (iii) limitação ao conceito
de agente e comissário. Uma análise das mudanças propostas nos artigos 5º
(4), 5º (5) e 5º (6) mostrará o alcance limitado do BEPS quanto ao tema.
O artigo 5º (4) se refere às exceções ao conceito posto de PE e o 5º (4.1)
traz uma regra antifragmentação, ou seja, a desconsideração de atividades in-
dividualizadas de Estabelecimentos para se verificar o resultado final dessas
atividades sob determinada jurisdição. Já os Art. 5º (5) e 5º (6) trazem maior
amplitude na caracterização de PE a partir das atividades desenvolvidas por
Comissionários e Agentes, ampliando o conceito de dependência e, dessa for-
ma, ampliando a caracterização do Estabelecimento Permanente.

5.2. As Exceções ao Conceito de PE


e a Regra Antifragmentação
De acordo com o Plano de Ação, é importante que se altere o Art. 5º (4)
do Modelo OCDE, que dispõe sobre as exceções ao conceito de PE, ainda que
a regra antifragmentação, e que será analisada na sequência, venha a suprir de
forma bastante detalhada algumas lacunas interpretativas derivadas de algu-
mas estruturas organizacionais.
O parágrafo em análise visa excluir do conceito de PE as atividades ditas
“acessórias”, ou seja, aquelas que não estão vinculadas à atividade principal
da empresa. Nesse conceito, estão abarcadas estruturas fixas criadas apenas
manutenção de estoque, demonstração, coleta de dados, terceirização de ma-
nufatura, entre outros. Ressalta, ainda, que a atividade daquela empresa em
sua plenitude deve manter o caráter acessório determinado.
Segundo a OCDE, o grupo de trabalho que foi convocado para análise
desse artigo concluiu que a redação não era suficiente para esclarecer que a fi-
nalidade, seja do estabelecimento ou do conjunto de estabelecimentos, deveria
ser apenas para atividades ditas auxiliares ou preparatórias.

424
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A mudança prevista no subparágrafo “f)” é que traz esse reforço concei-


tual, determinando que toda a atividade desenvolvida por determinada pes-
soa no mesmo Estado Contratante seja levada em consideração, e não cada
instalação per si, para se ter a garantia de que a totalidade da atividade possa
continuar sendo classificada como de caráter preparatório ou auxiliar294.
Os parágrafos 21 a 24 dos Comentários ao art. 5º do Modelo OCDE de
2010 detalham a interpretação a ser dada ao Art. 5º (4) desse Artigo, que dis-
ciplina as exceções ao conceito de PE. Há um reforço na determinação de que
a exceção abrange única e exclusivamente os estabelecimentos que exercem
atividades consideradas como auxiliar ou preparatória.
Uma leitura dessas propostas de alteração demonstra que não se está ino-
vando no conceito, mas apenas trazendo à tona sua interpretação. Seria de fato
necessária toda essa movimentação em torno dos Planos de Ação apenas para
esclarecer o que já estava ali descrito? Certamente uma boa interpretação, funda-
mentada em claro objetivo a ser atingido pela OCDE, traria o mesmo resultado.
Já os novos subparágrafos 21.1 (originado do antigo 24) e 21.2, reforçam
as dificuldades conceituais e trazem parâmetros e exemplos para melhor en-
tendimento dessa excepcionalidade. A tentativa de clarificar esses conceitos
foi reforçada pela utilização de exemplos práticos, como no caso do treina-
mento, mencionado no subparágrafo 21.2295.

294 Como no caso do parágrafo 4.1, que esclarece a necessidade de análise conjunta das atividades
desenvolvidas por um ou mais estabelecimentos (b) the overall activity resulting from the combination
of the activities carried on by the two enterprises at the same place, or by the same enterprise or closely
related enterprises at the two places, is not of a preparatory or auxiliary character, provided that the
business activities carried on by the two enterprises at the same place, or by the same enterprise or
closely related enterprises at the two places, constitute complementary functions that are part of a
cohesive business operation.) Ob. Cit., p. 33
295 Podemos perceber, na revisão dos parágrafos, a inclusão de exemplos cotidianos para tentar explicitar
os conceitos. A depender do destinatário da mensagem, os exmplos podem server não apenas para
explicitar, mas também para criar conceitos cerrados do que a regra geral procurou atingir. Assim
menciona a nova redação do Comentário 21.2: (…) Where, for example, a construction enterprise
trains its employees at one place before these employees are sent to work at remote work sites located in
other countries, the training that takes place at the first location constitutes a preparatory activity for
that enterprise. An activity that has an auxiliary character, on the other hand, generally corresponds
to an activity that is carried on to support, without being part of, the essential and significant part
of the activity of the enterprise as a whole. It is unlikely that an activity that requires a significant
proportion of the assets or employees of the enterprise could be considered as having an auxiliary
character. Ob. Cit., p. 26

425
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O parágrafo 22296, a seu turno, cria a possibilidade de caracterização de


PE para um estabelecimento utilizado apenas para estoque de mercadorias,
e que estaria excluído do conceito de PE por conta do subparágrafo a do art.
5º (4) do Modelo OCDE. Ou seja, um simples armazém ou mesmo um equi-
pamento de informática, como um servidor, a depender de sua atividade e
relevância, poderia ser caracterizado como um PE.
A mesma leitura crítica deve ser feita a partir da análise parágrafo 22.5297.
De acordo com o Modelo, uma entidade meramente compradora de bens e
serviços não seria caracterizada como PE, por força da exceção prevista na
alínea “d)” do Art. 5º (4) do Modelo. O novo Comentário proposto ressalva a
situação em que a empresa realiza negócios com os mesmos bens que foram
adquiridos nesse Estabelecimento.
Disposições semelhantes podem ser encontradas ao longo dos demais
parágrafos (Pár. 23, p.e.), e reforçam o conceito do que deve ser considerado
como atividade auxiliar ou preparatória. E ressalta também que as atividades
mencionadas devem ser consideradas como parte de uma lista exemplificati-
va e não taxativa, abrindo dessa forma a possibilidade de enquadramento de
novas atividades nas exceções mencionadas. Esse fato é bastante interessante
e pode auxiliar o contribuinte a se defender de indevidas tentativas de carac-
terização de PE pelos Estados.
Como mencionado anteriormente, um das mudanças propostas pelo Plano
de Ação é a inclusão do novo Art. 5º(4.1) do Modelo OCDE, criando um novo
formato para o dispositivo denominado “regra antifragmentação”. Trata-se da ex-
pansão da regra de caracterização de PE para estabelecimentos pertencentes a em-
presas com raízes societárias semelhantes. Podem as empresas tentar fragmentar

296 Vejamos o exemplo específico do armazém mencionado no parágrafo 22: Where, for example,
an enterprise of State R maintains in State S a very large warehouse in which a significant number
of employees work for the main purpose of storing and delivering goods owned by the enterprise that
the enterprise sells online to customers in State S, paragraph 4 will not apply to that warehouse since
the storage and delivery activities that are performed through that warehouse, which represents an
important asset and requires a number of employees, constitute an essential part of the enterprise’s sale/
distribution business and do not have, therefore, a preparatory or auxiliary character. Ob. Cit, p. 26 e 27
297 22.5 The first part of subparagraph d) relates to the case where premises are used solely for the purpose of
purchasing goods or merchandise for the enterprise. Since this exception only applies if that activity has
a preparatory or auxiliary character, it will typically not apply in the case of a fixed place of business used
for the purchase of goods or merchandise where the overall activity of the enterprise consists in selling
these goods and where purchasing is a core function in the business of the enterprise (…) Ob.Cit., p. 28

426
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

suas atividades para escapar da caracterização de um PE e esse Parágrafo deixa


claro que essa tentativa deveria ser considerada infrutífera298.
Na questão de fragmentação de atividades para evitar a caracterização de
PE, é importante que a OCDE demonstre cada vez maior preocupação com a ma-
téria, especialmente por conta do constante crescimento das atividades especia-
lizadas. JIMENEZ (2014, p. 7) também expressa sua preocupação com a matéria,
que mesmo colocada em discussão desde o Modelo-Convenção de 1977, ainda
representa fonte relevante de planejamento tributário com efeitos adversos.

5.3. Propostas do Plano para os casos de Abusos na


Utilização de Agentes e Comissionários
Nesse quesito, a redação do art. 5º da Convenção Modelo da OCDE não
se modificou desde 1977. Expressamente, há uma exceção específica do status
de PE ao “broker, general commission agent or any other agent of an indepen-
dent status”. Percebe-se que o dispositivo exclui o “comissário geral” da con-
dição de PE, pressupondo seu caráter independente, embora os comentários
da OCDE deem a entender que o comissário precisasse passar por um teste de
independência legal e econômica (atual parágrafo 37).
As empresas, em suas relações internacionais, exercem suas atividades
no estrangeiro normalmente se utilizando de mandatários (agem em nome
e por conta do contratante), comissionários (que agem apenas por conta da

298 A nova regra antifragmentação traz esclarecimento sobre a caracterização de PE no caso de mais
de um estabelecimento associado ao mesmo grupo econômico. Esclarece que tal caracterização
somente se efetivaria caso fique comprovada que as atividades, mesmo conjugadas, não são
meramente auxiliaries ou preparatórias:
30.2 The purpose of paragraph 4.1 is to prevent an enterprise or a group of closely related enterprises
from fragmenting a cohesive business operation into several small operations in order to argue that
each is merely engaged in a preparatory or auxiliary activity. Under paragraph 4.1, the exceptions
provided for by paragraph 4 do not apply to a place of business that would otherwise constitute a
permanent establishment where the activities carried on at that place and other activities of the same
enterprise or of closely related enterprises exercised at that place or at another place in the same State
constitute complementary functions that are part of a cohesive business operation. For paragraph
4.1 to apply, however, at least one of the places where these activities are exercised must constitute a
permanent establishment or, if that is not the case, the overall activity resulting from the combination
of the relevant activities must go beyond what is merely preparatory or auxiliary.(…)
Ob. Cit., p. 34

427
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

contratante) ou por meio de agentes (que não atuam em nome próprio, apenas
angariam negócios para seu contratante).
De acordo com o conceito adotado pela OCDE, um comissionário pode
ser definido como um arranjo em que uma pessoa vende produtos em nome
próprio, mas por conta de uma empresa estrangeira titular dos direitos sobre
aquele produto. A interpretação das regras relativas ao PE permite que contra-
tos para venda de mercadorias pertencentes a uma empresa estrangeira sejam
negociados e concluídos em um país sem que os lucros dessa transação sejam
tributados da mesma forma caso a venda tivesse ocorrido por meio de um dis-
tribuidor. Os contratos de comissionários permitem assim a transferência do
lucro do país em que o contrato é celebrado para o país da empresa estrangeira.
Esse conceito foi sendo construído a partir das revisões da OCDE e da
jurisprudência bastante relevante sobre o tema. No caso Zimmer, empresa de
produtos ortopédicos originária do Reino Unido e que comercializava seus pro-
dutos no mercado francês através de uma empresa distribuidora (Zimmer Sas).
Em 1996, a Zimmer Sas foi convertida em um agente comissionado da Zimmer
Ltd, o que foi considerado abusivo pelas autoridades fiscais francesas, caracteri-
zando tal estabelecimento como PE. Essa decisão está em compasso com as con-
siderações da OCDE nas propostas de mudança constantes do Plano de Ação 7.
Conforme poderá ser verificado dos novos parágrafos 5 e 6 propostos, o
Plano de Ação BEPS “informaliza” a relação jurídica do Comissionário para
atribuir capacidade ampliada mesmo àqueles que, do ponto de vista jurídico,
não estão legitimados a agir como verdadeiros representantes legais da empre-
sa estrangeira no país.
Em outras palavras, há substituição de expressões como “authority to
conclude contracts” e “so called dependent agents” por outras como “habitually
concludes contracts” e “act on behalf of the enterprise”. Não há nada de sutil
nessa proposta; há uma profunda mudança de status da pessoa que realiza a
negociação de contratos. De mero agente, passa a ser verdadeiro representante
da empresa estrangeira299.

299 A redação proposta para o novo Art. 5º retira parte da formalidade antes aplicada para a
caracterização do PE a partir da figura do agente e comissionário, como podemos ver no seguinte
trecho: “5.(…) in doing so, habitually concludes contracts, or habitually plays the principal role
leading to the conclusion of contracts that are routinely concluded without material modification by
the enterprise, and these contracts are a) in the name of the enterprise, or

428
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Já os Comentários ao Art. 5º (5) esclarecem que qualquer pessoa rea-


lizando negócios em nome de determinada empresa estrangeira poderia ser
caracterizado como um PE. Aqui podemos dizer que de fato a OCDE deu uma
larga passada, trazendo bastante insegurança para as empresas multinacio-
nais. SCHWARZ (2015) compartilha essa preocupação e traz também o ques-
tionamento sobre como atribuir lucro para PE nessa situação, mencionando
que em certas situações a negociação e assinatura do contrato assumem tama-
nha relevância que a maior parte do lucro advinda dessa negociação deveria
ser atribuída ao agente que garantiu tal situação. E que não seria razoável.
É importante mencionar que a preocupante abertura mencionada anterior-
mente, ao longo dos parágrafos seguintes, vai sendo mitigada, embora com dificul-
dade conceitual. No caso do conceito de “habitualidade”, por exemplo, os Comentá-
rios continuam repetindo a expressão mais do que meramente transitório300.
Por fim, é importante também ressaltar as propostas de mudança do art.
5º (6), que passou por relevante formulação para se tornar um complemento
do art. 5º (5) e complementar as regras de caracterização de PE. Resumida-
mente, o ponto mais importante é o que esclarece que não se tratam de agen-
tes independentes pessoas com relação próxima ou participação societária,
ainda que indireta, desde que superior a 50%.
PLEIJSIER (2015, p. 148) defende a inclusão, no texto proposto pela OCDE,
de um requisito adicional para que haja a caracterização de um estabelecimento

b) for the transfer of the ownership of, or for the granting of the right to use, property owned by that
enterprise or that the enterprise has the right to use, or
c) for the provision of services by that enterprise, (…)
Ob. Cit., p. 15
300 Senão vejamos, na nova redação proposta para o Parágrafo 33.1 dos Comentários ao art. 5º:
33.1 The requirement that an agent must “habitually” exercise an authority to conclude contracts or
play the principal role leading to the conclusion of contracts that are routinely concluded
without material modification by the enterprise reflects the underlying principle in Article 5 that
the presence which an enterprise maintains in a Contracting State should be more than merely
transitory if the enterprise is to be regarded as maintaining a permanent establishment, and thus
a taxable presence, in that State. The extent and frequency of activity necessary to conclude that
the agent is “habitually exercising” concluding contracts or playing the principal role leading to
the conclusion of contracts that are routinely concluded without material modification by the
enterprise contracting authority will depend on the nature of the contracts and the business of
the principal. It is not possible to lay down a precise frequency test. Nonetheless, the same sorts of
factors considered in paragraph 6 would be relevant in making that determination. Ob. Cit., p. 19

429
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

permanente no caso concreto: trata-se de um teste de propósito negocial (explo-


rado em maiores detalhes no Plano 6 da Ação BEPS) cuja finalidade é aferir se a
implementação do acordo mediante a intermediação de um agente foi orientada
por um propósito puramente tributário ou não. Havendo outras razões para a
intermediação do contrato através de um agente, não seria possível a caracteri-
zação de um estabelecimento permanente no caso concreto.

5.4. Outras Questões do Plano de Ação 7 do BEPS


O Plano de Ação 7 do BEPS endereça preocupações que não se encon-
tram devidamente esclarecidas nos Parágrafos no Art. 5º do Modelo OCDE. A
primeira delas se refere ao fenômeno denominado “splitting-up of contracts”.
Não há uma expressão simplificada em português para tanto, mas podemos
dizer que se trataria de um “fatiamento” artificial de contratos. Em suma,
estamos aqui tratando de divisão de contratos em períodos menores que 12
meses para evitar a caracterização de PE nos termos do Art. 5º (3) do Modelo
OCDE, especificamente para os casos de construção civil.
De acordo com a Seção C do Plano de Ação, a introdução de regras PPT
(Principal Purpose Test) a ser trazida ao Modelo pela Ação 6 do BEPS poderá re-
solver a questão. Ainda assim, mais uma vez, propõe a OCDE a adição de um
exemplo aos conceitos expostos no Parágrafo. 18 dos Comentários ao Art. 5º (3)
301
, buscando exemplificar uma situação em que a divisão de determinado ato ju-
rídico continuado em diversos instrumentos não descaracteriza um PE. O critério
a ser adotado no teste é o de conexão dos diferentes contratos ou, nos próprios
termos utilizados pela OCDE, the concept of “closely related enterprises”.
Finalmente, o Plano de Ação não prevê quaisquer mudanças no Art. 5º
(7) do Modelo OCDE302, parágrafo esse que controle societário não é condição

301 Essa proposta visa demonstrar que situações como a existência de diversos contraltos para
uma determinada empreitada, ainda que limitadas a menos de 12 meses, não devem ser assim
consideradas se forem atividades conexas e realizadas por empresas relacionadas, São expressões
como “connected activities” e “closely related enterprises” amplamente utilizadas nesses parágrafos
e que demonstram tal relativização
302 The fact that a company which is a resident of a Contracting State controls or is controlled by a
company which is a resident of the other Contracting State, or which carries on business in that other
State (whether through a permanent establishment or otherwise), shall not of itself constitute either
company a permanent establishment of the other.

430
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

automática de caracterização de uma entidade como PE da outra em um dos


Estados Contratantes. A manutenção desse parágrafo não é relevante para
fins de discussão das propostas endereçadas pelo Plano de Ação 7.

6. O Plano de Ação 7 e os Países em Desenvolvimento


As mudanças propostas pelo Plano de Ação impactam de forma decisiva
os países em desenvolvimento. Isso porque a possibilidade de caracterização
de um PE em países onde somente algumas atividades empresariais são de-
senvolvidas restaria ampliada. E os países em desenvolvimento costumeira-
mente são aqueles em essa parte das atividades é desenvolvida, sem que um
PE seja caracterizado de acordo com as regras atuais.
Verificamos também que as mudanças propostas resultam em uma tri-
butação maior na fonte dos rendimentos, condição essa naturalmente preen-
chida pelos países em desenvolvimento quando do pagamento de royalties ou
outras modalidades de remuneração em favor dos países em que as matrizes
estão localizadas, normalmente as nações consideradas desenvolvidas. Para
os países em desenvolvimento, para fins de arrecadação, a medida é interes-
sante enquanto tais países não são exportadores de capital.
Por essa razão, é importante que o Plano de Ação 7 surta tais efeitos em
concomitância com a aplicação de mecanismos para evitar a dupla tributação
de rendimentos. A experiência demonstra que os países em desenvolvimento
ainda são muito incipientes e resistentes na aplicação de regras para evitar
dupla tributação, nos casos em que precisam abrir mão de sua própria arre-
cadação em nome de uma relação tributária internacional justa e equilibrada.
Da forma como as mudanças são apresentadas, sem condicionar a aplicação
dos novos conceitos propostos para PE com a adoção de outros mecanismos
de limitação à tributação, o efeito imediato será uma maior arrecadação tri-
butária nos países em desenvolvimento e a consequente oneração dos preços,
o que é muito ruim para a economia desses mesmos países.
Algumas economias em desenvolvimento, como no caso da China e da
Índia, passaram a ditar as condições comerciais de exportação de produtos
manufaturados e serviços de baixo valor agregado. São dois casos extrema-
mente interessantes. Enquanto apresentam altos índices de exportação de

431
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

suas especialidades, possuem um mercado consumidor tão relevante que se


tornam extremamente dependentes de suas importações. Nesse cenário, a ex-
plosão de caracterização de PEs pode representar um grande impacto econô-
mico para essas nações e, por conseguinte, no cenário global.
Nas discussões da OCDE, embora os países em desenvolvimento te-
nham participado das rodadas e reuniões, o Relatório final não adentra tais
questionamentos. Parece resolver questões pontuais e imediatas que interes-
sam aos países em desenvolvimento, sem levar em consideração impactos de
longo prazo e efeitos econômicos de uma maior tributação nesses países, sem
que os mecanismos de compensação de tais impactos estejam devidamente
estabelecidos e compromissados entre os países.

7. Conclusão: Objetivo do Plano de


Ação 7 do BEPS Será Atingido?
Por sua característica de novidade, o Plano de Ação 7 ainda não foi objeto
de profunda análise doutrinária. Tal situação não é diversa daquela enfrentada
pelos demais planos de ação do BEPS. Segundo BRAUNER (2014, p. 96), di-
versas questões deixaram de ser analisadas pelo Plano de Ação, que sequer foi
capaz de reformular de fato conceitos como o de agente independente. Para o
autor, ainda, é nítida a intenção de gerar resultados para as economias em de-
senvolvimento, considerando que haverá maior amplitude no conceito de PE.
Pode-se afirmar, sem dúvida, que a abordagem proposta pela Action 7
não apresenta soluções efetivas para a international tax avoidance, e não são
enfrentados de maneira completa e satisfatória os desafios postos de maneira
mais ampla pelos debates de fonte x residência, que perpassam a questão da
definição de PE e seu lucro tributável. Se entendermos que o objetivo do Plano
de Ação BEPS é evitar a dupla não-tributação, conforme já explorado nesse
trabalho, as recomendações do Plano de Ação podem trazer tal resultado, na
medida em que a caracterização de PE e consequente tributação no estado da
fonte seriam ampliados.
Verificamos também que alguns países, membros ou não da OCDE, já
começam a se movimentar para adequação de suas disposições internas aos
Planos de Ação do BEPS. Podemos mencionar a recente alteração promovida

432
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

pela Colômbia303, conforme relatado pela Consultoria DELOITTE e divulgado


ao mercado em Novembro de 2015. São sinais de que o Plano de Ação pode, de
fato, promover mudanças.
Há questões postas sobre a mesa e que precisam ser enfrentadas. Abuso
dos Estados na caracterização de PEs, conciliação do conceito de comissionai-
re arrangements, especialmente. Uma nova rodada de discussão será inevitá-
vel, sob pena de se colocar em risco a adoção de tais princípios e a assinatura
de um tratado multilateral envolvendo países de todos os portes econômicos.
A questão que aqui se coloca é sobre a natureza e dosagem do remédio
que a OCDE quer implementar. Sob pretexto de evitar a dupla não-tributação,
os critérios estabelecidos terminarão por acarretar dupla tributação em di-
versas situações, especialmente por conta da irracionalidade das autoridades
fiscais dos países em desenvolvimento. Para outros assuntos, como economia
digital, mercado e caracterização de PE na prestação de serviços, o remédio
pode não passar de mero placebo, a depender da reação dos Estados. É o que
nos aguarda em um futuro pouco distante.

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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435
15. O Plano de Ação 13 do BEPS:
Reflexões sobre o seu Conteúdo e
Aplicação à Realidade Brasileira

Vinicius Bentolila304
Francisco Lisboa Moreira305

1. Introdução
O tema central desta obra é a análise do projeto Base Erosion and Profit
Shifting, ou Erosão das Bases Tributárias e Transferência de Lucros. Trata-se
de projeto de escopo altamente amplo, que teve início após uma demanda
dos membros306 da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimen-
to Econômico) e, posteriormente, foi ampliado com o ingresso dos países do
G-20307, e que objetivava fornecer as diretrizes para um combate coordenado
aos planejamentos tributários tidos como abusivos.

304 Advogado. Bacharel em Direito pela UFRJ. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Professor
do IBET. Gerente Tributário Sênior para a América Latina do Departamento Corporativo da
thyssenkrupp Brasil.
305 Advogado. LLM em Tributação Internacional pela NYU. Mestrando em Direito Econômico,
Financeiro e Tributário na Universidade de São Paulo. Sócio de Bocater, Camargo, Costa e Silva,
Rodrigues Advogados.
306 Atualmente são 34 países membros: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canada, Chile, Coréia do
Sul, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Eslovênia, Finlândia, França, Grécia, Holanda,
Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Noruega,
Polônia, Portugal, República Checa, República Eslovaca, Reino Unido, Suécia, Suíça e Turquia.
307 A página do Banco Central do Brasil traz as seguintes informações acerca do G-20: “O G-20 é um
fórum informal que promove debate aberto e construtivo entre países industrializados e emergentes
sobre assuntos-chave relacionados à estabilidade econômica global. O G-20 apoia o crescimento e
o desenvolvimento mundial por meio do fortalecimento da arquitetura financeira internacional e
via oportunidades de diálogo sobre políticas nacionais, cooperação internacional e instituições
econômico-financeiras internacionais.
Criado em resposta às crises financeiras do final dos anos 90, o G-20 reflete mais adequadamente a
diversidade de interesses das economias industrializadas e emergentes, possuindo assim maior
representatividade e legitimidade. O Grupo conta com a participação de Chefes de Estado, Ministros
de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais de 19 países: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita,

437
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Existe uma noção de que os diversos regimes internacionais tributários,


dos países, funcionando em conjunto308 evitariam a ocorrência da bitributa-
ção através da celebração de acordos. Uma empresa realizando negócios em
outro país poderia vir a ser tributada na origem dos pagamentos – na fonte dos
pagamentos, ao passo que o país onde a companhia está localizada também
poderia vir a impor sua tributação – a residência. Os acordos internacionais,
sejam os que seguem os modelos da OCDE ou da ONU, sempre fazem uma
divisão de competências para o exercício da competência tributária entre o
país da fonte e o país da residência.
O sistema sempre permitiu uma convivência harmônica entre os paí-
ses soberanos e uma arrecadação em níveis adequados, até o momento em
que novas tecnologias modificaram a maneira e a forma de se fazer negó-
cios. Empresas “.com”, que não existem fisicamente, realizam seus negócios
de tal forma que os conceitos de fonte e residência acabam em segundo plano.
Além disso, algumas brechas no conteúdo e alcance dos acordos para evitar
a bitributação permitem que alguns contribuintes, mesmo que não sejam do
segmento de alta tecnologia, também consigam retirar de alguns países seu
lucro, para que sejam protegidos em alguma outra jurisdição sem ou com bai-
xa tributação efetiva. O texto final do Plano de Ação 13 do BEPS (que será
detalhado mais adiante), afirma que “fraquezas nas regras atualmente exis-
tentes criaram oportunidades para a erosão da base tributária e transferência
de lucros (BEPS), demandando ações firmes dos legisladores para restaurar a
confiança no sistema e assegurar que lucros sejam tributados o local onde as

Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia,
Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia. A União Europeia também faz parte do Grupo,
representada pela presidência rotativa do Conselho da União Europeia e pelo Banco Central Europeu.
Ainda, para garantir o trabalho simultâneo com instituições internacionais, o Diretor-Gerente do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Presidente do Banco Mundial também participam das reuniões.
Desde o advento da última crise, o G-20 passou também a trabalhar em iniciativas diversas com outros
organismos, países convidados e fóruns internacionais, como o BIS, FSB, OCDE, dentre outros. Ainda,
a ocasião trouxe a separação da pauta do G-20 em duas trilhas: financeira, a cargo dos ministérios
das finanças e bancos centrais dos países-membros; e de desenvolvimento, sob a responsabilidade dos
ministérios de relações exteriores.” (http://www.bcb.gov.br/?G20, acesso em 14/02/2016).
308 Existe uma discussão doutrinária importante acerca da existência de um ˜sistema tributário
internacional” ou um “regime tributário internacional”. Para o Professor Yariv Brauner, a melhor
terminologia seria um “regime tributário mundial”, por melhor refletir a função de uma cooperação
internacional entre diversos sistemas domésticos internacionais. BRAUNER, Yariv. An International
Tax Regime in Crystallization. Tax Law Review, New York, n. 56, pp. 259-328. p. 261. 2003.

438
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

atividades econômicas ocorram e onde o valor é efetivamente criado”. Com


tal afirmativa ficava claro o objetivo do projeto BEPS.
Assim, após cerca de dois anos de trabalho, foram emitidos os relatórios
finais para os 15 planos de ação do projeto309. Diante de tudo isso, pode-se
afirmar que: i) o produto (relatório) dos planos de ação é a principal medida
de política internacional tributária desde o padrão internacional introduzido
pela Liga das Nações (precursor do padrão adotado pela Convenção-Modelo
da OCDE310; ii) a partir do momento que as novas medidas venham a ser im-
plementadas, espera-se que os lucros sejam oferecidos à tributação no local
onde as atividades econômicas que os geraram sejam realizadas e onde o va-
lor é efetivamente criado311; e iii) as estratégias de erosão da base tributária e
transferência de lucros baseadas em regras antiquadas ou em legislações do-
mésticas pouco ou sem coordenação se tornarão ineficazes312.

309 Os planos de ação do BEPS são os seguintes: Plano de ação 01: “Endereçando os desafios da economia
digital” (Address the tax challenges of the digital economy); Plano de ação 02: “Neutralizando os
efeitos de instrumentos híbridos” (Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arrangements); Plano
de ação 03: “Fortalecimento das regras CFC” (Strengthening CFC Rules): Recomendações aos países
para o fortalecimento e maior eficácia das normas de tributação dos lucros auferidos no exterior; Plano
de ação 04: “Limitação da erosão da base tributável através da deduções de juros e outros pagamentos
financeiros” (Limit base erosion via interest deductions and other financial payments); Plano de
ação 05: “Combatendo práticas tributárias abusivas, levando em consideração a transparência e a
substância” (Countering Harmful Tax Practices More Effectively, Taking into Account Transparency
and Substance); Plano de ação 06: “´Prevenção ao abuso dos acordos” (Preventing Treaty Abuse); Plano
de ação 07: “Prevenção à exclusão artificiosa do status de Estabelecimento Permanente” (Prevent the
artificial avoidance of PE status); Planos de ação 08, 09 e 10: “Assegurar que os resultados de preços de
transferência estejam em linha com o local da criação de valor” (Assure that transfer pricing outcomes
are in line with value creation: Intangibles, Risk and Capital e Other high-risk transactions); Plano de
ação 11: “Estabelecer uma metodologia para a coleta e análise de dados sobre BEPS e os resultados das
ações para combatê-lo” (Establish methodologies to collect and analyse data on BEPS and the actions
to address it); Plano de ação 12: “Requerer aos contribuintes que divulguem os seus planejamentos
tributários agressivos” (Require taxpayers to disclose their aggressive tax planning arrangements);
Plano de ação 13: “Reexaminar a documentação de preços de transferência” (Re-examine transfer
pricing documentation); Plano de ação 14: “Tornar os mecanismos de resolução de disputas mais
efetivos” (Make dispute resolution mechanisms more effective); e Plano de ação 15: “Desenvolvimento
de um Instrumento Multilateral para modificar os acordos bilaterais” (Developing a Multilateral
Instrument to Modify Bilateral Tax Treaties).
310 OECD (2015), Transfer Pricing Documentation and Country-by-Country Reporting, Action 13 –
2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project, OECD Publishing, Paris.
http://dx.doi.org/10.1787/9789264241480-en, pg. 3
311 OECD (2015), Op. Cit., Pg. 3
312 OECD (2015), Op. Cit., Pg. 3.

439
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Logo, temos uma fundação bastante sólida (os relatórios e recomenda-


ções do BEPS), uma expectativa bastante elevada, que é a tributação dos lucros
no local onde ocorre a atividade econômica e a criação de valor, e um objetivo
final a ser atingido, que é o cerramento das brechas legislativas (loopholes) que
permitem a execução de tais planejamentos.
O prefácio ao relatório final do plano de ação 13 traz uma premissa bási-
ca a todo o projeto: a implementação das medidas e recomendações é crucial
para o seu sucesso, mas também para evitar todo o colapso do sistema tribu-
tário internacional.

2. O Plano de Ação 13 do projeto BEPS


O relatório final do plano de ação 13 tem por objetivo oferecer orienta-
ção de política tributária aos legisladores nacionais, para que seja exigida a
informação necessária a determinar, de modo efetivo, a carga tributária das
empresas, levando em consideração todos os princípios e práticas introduzi-
dos nos demais planos de ação e também evitando criar uma carga excessiva
de obrigações acessórias (compliance costs).
As recomendações se dividem, basicamente, em três níveis de documen-
tação, que podem ser delimitados da seguinte maneira:
1. O Master File: um arquivo geral, preparado no país-sede do grupo
multinacional, que tem como principal objetivo fornecer informações
gerais sobre as suas operações, práticas tributárias e de preços de trans-
ferência, e que deve estar disponível para as administrações tributárias
que o requisitarem;
2. O Local File: que é o arquivo com maior detalhamento e entregue em
cada localidade. Pode-se afirmar que o local file, no Brasil, seria algo
semelhante às informações prestadas nas antigas fichas 29 a 33 da DIPJ
e, atualmente, de forma eletrônica no SPED. O local file também deve
ser preparado de maneira transacional, ou seja, apresentando as tran-
sações realizadas pela companhia;
3. Por fim, foi criada a figura do Country-by-country Report, (CbCR), que
será entregue à jurisdição de origem do grupo multinacional (citado no
relatório como Multi-National Enterprise, ou MNE) e conterá informa-

440
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ções diversas, como quantidade de ativos, empregados, lucro e fatura-


mento por cada entidade do grupo. Analisado em conjunto, será pos-
sível observar se a relação entre alocação de risco e retorno dos ativos é
proporcional. Será fornecido mediante solicitação das administrações
tributárias os países ao fisco do país de origem do grupo.

Existe uma preocupação “em balancear as necessidades de informação


por parte das autoridades tributárias, preocupação com o uso inapropria-
do da informação e os custos e esforço com a conformidade impostos sobre o
negócio”313 Tal preocupação foi expressa em diversos trechos do relatório, em
que pese a posição de países emergentes, como a Africa do Sul, Argentina,
Brasil, China, Colombia, India e Mexico, que poderão exigir informações adi-
cionais acerca de pagamentos de juros, royalties e determinados serviços in-
tragrupo, sob a justificativa de avaliação de riscos para fins de direcionamento
de fiscalização, principalmente quando julgam difícil obter tais informações
através de outros mecanismos314.
Em linhas gerais, o Local File e o Master File deverão ser entregues in-
dividualmente a cada jurisdição de residência. O CbCR será entregue sempre
ao país de residência da matriz do grupo (ultimate parente entity), que será
disponibilizado para as demais administrações tributárias interessadas atra-
vés de instrumentos como a Convenção Multilateral de Assistência Adminis-
trativa Mútua para Assuntos Tributários (Multilateral Convention on Mutual
Administrative Assistance in Tax Matters), acordos para evitar a bitributação
ou acordos para intercambio de informações tributárias (Tax Information and
Exchange Agreements – TIEA). Neste aspecto, o relatório final do plano de
ação 13 reconhece a necessidade de um mecanismo mais efetivo para resolu-
ção de disputas “como resultado de uma capacidade ampliada para avaliação
de riscos como resultado da adoção do CbCR”315 Também é importante ob-
servar a materialidade exigida para fins de entrega do CbCR, que será de 750
milhões de Euros (recomendação).

313 OECD (2015), Op. Cit., pg. 10


314 OECD (2015), Op. Cit., pg. 10
315 OECD (2015), Op. Cit.,, pg. 10.

441
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Será necessário manter um monitoramento contínuo acerca da efetivi-


dade de tais mecanismos e utilização das informações. Em 2020, a OCDE
promoverá uma avaliação geral e uma revisão, caso necessário., para rever as
formas e instrumentos criados através do plano de ação 13 do BEPS.

3. A novo capítulo V dos Transfer Pricing Guidelines


Como resultado das sugestões e modificações em termos de política tri-
butária para coleta de dados, a OCDE optou pela revogação e substituição
integral do capítulo V das Transfer Pricing Guidelines (TP Guidelines). A re-
dação anterior das TP Guidelines, no seu capítulo V, não era tão clara nos
documentos a serem exigidos, uma vez que partia de um senso comum que as
exigências deveriam permitir a avaliação das operações pelo Fisco, mas tam-
bém não poderiam impor custos de conformidade desproporcionais. Desde
então, uma disputa interminável passou a ser travada entre o Fisco e os con-
tribuintes, sempre focada nas reclamações decorrentes do excesso de obriga-
ções acessórias (problema não exclusivo do Brasil) e a insuficiência de dados
disponibilizados ao Fisco. Passaremos a abordar os principais pontos do novo
capítulo V das TP Guidelines a seguir.

3.1 Objetivos da documentação de preços de transferência


Partindo desta premissa, o novo capítulo V expôs os três objetivos da
documentação de preços de transferência316: i) assegurar que a devida atenção
será dispensada a declaração (reporting) de lucros em operações com partes
relacionadas; ii) fornecer às administrações tributárias as informações neces-
sárias à avaliação da carga tributária; e iii) disponibilizar dados úteis para
auditoria das práticas de preços de transferência, ainda que seja necessário
solicitar mais dados conforme a fiscalização avance.
Tais objetivos são linhas mestras para que os Fiscos de cada país possam
formular as obrigações acessórias a serem exigidas. Os contribuintes também

316 OECD (2015), Op. Cit.,. Pg. 12.

442
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

deverão avaliar suas posições cuidadosamente, de modo que possam incluir


informações claras e suficientes para que o Fisco possa efetuar suas revisões.

3.2 Avaliação espontânea de conformidade


com o padrão arm´s lenght
A nova redação do capítulo V das TP Guidelines também coloca como
um objetivo a avaliação “espontânea” de conformidade (compliance) com o
padrão arm´s lenght. É irônico, mas a quantidade e qualidade das informações
prestadas às autoridades fiscais, por diversas vezes em mais de uma jurisdição,
também obrigará os contribuintes a efetuarem uma auto avaliação acerca da
integridade das informações. Tal rotina reduzirá a quantidade de questiona-
mentos por parte do Fisco, principalmente por que a “documentação bem pre-
parada irá assegurar às autoridades fiscais que o contribuinte analisou as po-
sições que ele declara, levou em consideração os comparáveis disponíveis e con-
cluiu com segurança acerca dos seus resultados de preços de transferência”317
Uma outra maneira para atingir tal objetivo é ao se introduzir regimes
punitivos de preços de transferência que premiem a entrega pontual e correta
das declarações de renda e documentação correspondente, quando aplicável.
Não se pode esquecer, também, da razoabilidade esperada por parte das auto-
ridades fiscais ao exigir as suas obrigações acessórias318.

3.3 A avaliação de risco em preços de transferência


É fundamental que uma identificação dos riscos e correta avaliação se-
jam realizados como uma das primeiras etapas na seleção de casos de preços
de transferência e questionamentos, bem como para direcionar as atenções
do Fisco aos pontos mais importantes. Trata-se de um problema mundial – a
limitação de recursos e pessoal disponível para realizar as fiscalizações, fazen-
do com que uma correta seleção dos contribuintes e casos a serem revisados se
realize de maneira efetiva.

317 OECD (2015), Op. Cit.,, pg. 12


318 OECD (2015), Op. Cit., Pg. 13

443
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3.4 A fiscalização de preços de transferência


O terceiro objetivo da documentação de preços de transferência é a dis-
ponibilização de informações que permitam uma avaliação de risco e plane-
jamento das suas fiscalizações. Aqui está presente a obrigação, por parte do
contribuinte, em prover as informações necessárias para que o Fisco possua
um entendimento adequando das suas operações e informações.
No entanto, um alerta importante é feito e isso poderia ser perfeitamente
aplicado ao Brasil: seria extremamente custoso tentar antecipar todas os da-
dos relativos às operações sujeitos à controle, como tenta fazer, por exemplo,
o Fisco brasileiro. Muitas vezes, documentos necessários estarão localizados
fora da jurisdição em análise (casos do PIC e do CPL no Brasil), e a adminis-
tração tributária deveria estar apta a obter, seja através de intercâmbio de in-
formações ou diretamente, aqueles dados que estejam além das fronteiras de
sua jurisdição. A razoabilidade é fundamental. Deve-se sopesar a necessidade
da informação para as autoridades fiscais, vis a vis os custos de conformidade
que irão recair sobre os contribuintes.

4. Os três “níveis” de informação de preços de


transferência recomendados
Como mencionado, a nova redação do capítulo V das TP Guidelines in-
troduz três níveis principais de informações relativas aos preços de transfe-
rência, a serem elaboradas e desenvolvidas pelas empresas: i) o local file; ii) o
master file e o iii) Country-by-Country Report. Analisados em conjunto, tal
documentação permitirá a análise da “alocação global de ganhos e impostos
pagos, bem como os indicadores dos níveis de atividade econômica”319. Passa-
remos a analisá-los um a um.

319 OECD (2015), Op. Cit., pg. 14

444
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4.1 O Master File


O Master File é o relatório, arquivo ou documento mais detalhado e que
permite um entendimento correto do negócio do contribuinte. Ali são for-
necidas informações acerca do negócio, linhas de atuação, margens de lucro,
retorno sobre ativos, etc. Uma análise correta de preços de transferência não
pode ser efetuada sem tais variáveis, principalmente se levarmos em conside-
ração que a maior parte do resultado de uma operação deve pertencer a quem
suportou o maior risco. Com isso, seria possível às autoridades fiscais compre-
ender as políticas tributárias do grupo multinacional.
Existe uma preocupação a ser considerada: a confidencialidade das in-
formações. Diante disso, uma informação pode ser omitida se e caso ela não
afete a integridade ou consistência do relatório para fins de avaliação de pre-
ços de transferência.
A apresentação das informações pode ser feita com base em linhas de negó-
cio, principalmente se existirem linhas que operem independentes (mas que estejam
dentro da estrutura corporativa) ou que tenham sido adquiridas recentemente.
É importante mencionar que o Brasil não exige nenhum tipo de Master File.

4.2 O Local file


O Local file, ou arquivo local, tem a finalidade de suprir com informa-
ções mais detalhadas da entidade ao fisco da localidade onde opera – e focada
em operações intercompany específicas. Exige-se que o local file contenha in-
formações de maior natureza transacional, principalmente que sejam materiais
dentro do contexto daquela jurisdição (ainda que não sejam materiais para o
grupo como um todo). A informação deve conter os aspectos financeiros, de
comparabilidade e o método escolhido para teste da operação. Aqui, quando
um “requerimento do local file seja satisfeito integralmente por uma informação
já contida no master file, uma referência àquela informação já será suficiente.”320
Apesar de o Brasil não exigir formalmente o Local File, as informações
produzidas localmente para apresentação na Escrituração Contábil-Fiscal

320 OECD (2015), Op. Cit., pg. 15.

445
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(ECF), de maneira transacional, são as informações mais próximas daquelas


exigidas num Local File segundo os padrões da OCDE.

4.3 O Country-by-Country Report


Como já mencionado, este é o relatório que representa a maior inovação
com relação ao padrão de documentação que vinha sido exigido pela média
dos países. Será exigida informação que permita analisar a estrutura financei-
ra, operacional e societária dos grupos, de maneira a determinar se a alocação
global da renda está compatível com o nível de atividade econômica realizado
pelas diversas entidades de um determinado grupo multinacional. A sua uti-
lização permitirá uma análise global por parte das autoridades fiscais de um
determinado país que venha a requisitar tais informações.
No que compete a sua utilização, o Country-by-Country Report jamais
poderá servir como um dado ou informação a basear uma autuação fiscal,
tampouco substituir uma fiscalização regular de preços de transferência.
Uma preocupação do novo capítulo V é frisar que nenhum ajuste de
preços de transferência poderá ser proposto baseado num formulary appor-
tionment que leve em consideração os dados do CbCR. Ele deve servir como
ferramenta a direcionar os esforços de fiscalização. O formulary apportion-
ment passou a ser visto, por muitos, como uma consequência natural após a
introdução do CbCR, pelo simples fato que a renda de determinada entida-
de é vista de uma única maneira e não fracionada pelas diversas jurisdições
onde possua desdobramentos. Com isso, será possível alocar o lucro com base
numa fórmula simples que daria peso a alocação de ativos, força de trabalho,
assunção de riscos e atividade econômica – evitando assim que lucros de de-
terminada operação fiquem alocados numa empresa de gaveta ou com poucos
funcionários e sem função relevante em determinado grupo multinacional321.
Com o projeto BEPS e, especificamente, as informações que serão requi-
sitadas pelo CbCR, a discussão em torno da “Common Consolidated Corpora-

321 Sobre o assunto, vide Avi-Yonah, Reuven S. e Benshalom, Ilan “Formulary Apportionment: Myths
and Prospects - Promoting Better International Policy and Utilizing the Misunderstood and Under-
Theorized Formulary Alternative.” World Tax J. 3, no. 3 (2011). Pg 371-98.

446
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

te Tax Base” 322(CCCTB) voltou à tona. A CCCTB é um conjunto de regras que


as companhias que operem dentro da Comunidade Europeia deverão obser-
var ao calcular seu lucro tributável. Em teoria, deveriam submeter-se a apenas
uma legislação tributária e entregariam apenas uma Declaração de Renda.
Os lucros consolidados do grupo seriam distribuídos entre os países
seguindo a uma fórmula (na linha do formulary approach), que levaria em
consideração o volume de ativos, participação das entidades de cada país na
geração dos lucros, número total de empregados, etc. Em junho de 2015 a Co-
missão Taxation and Customs Union da União Europeia decidiu relançar os
esforços para colocar tal medida em prática.

5. A confidencialidade dos dados


do Country-by-Country Report
Uma recomendação importante fornecida pela nova redação do capítulo V
diz respeito à confidencialidade dos dados. Devem ser prestadas garantias, por
exemplo, a respeito da destinação e utilização das informações. Como garantir
que as informações de natureza tributária não serão transmitidas às autoridades
judiciarias do país de destino, para satisfazer uma requisição de uma disputa cí-
vel-contratual? O que dizer de segredos comerciais e fórmulas, cujo vazamento
também poderia prejudicar uma concorrência entre dois grupos competidores.
O relatório ao capítulo V também recomenda que as administrações tributá-
rias, caso as informações venham a ser solicitadas em procedimentos judiciais,
enveredar os maiores esforços para que a confidencialidade seja protegida e a
informação revelada apenas na medida do necessário.
Ao tratar das etapas de sua implementação, o relatório também reforça
“a necessidade de cada administração tributária colocar em prática as respec-
tivas medidas protetivas, de tal forma que a confidencialidade do Country-
-by-Country Report seja, no mínimo, equivalente às proteções aplicáveis caso
tal informação tivesse sido obtida através de uma Convenção Multilateral de
Assistência Administrativa Mútua em Assuntos Tributários, um Acordo para
Intercâmbio de Informações Tributárias (Tax Information Exchange Agree-

322 Para maiores detalhes, vide: http://ec.europa.eu/taxation_customs/taxation/company_tax/common_


tax_base/index_en.htm Acesso em 14/02/2016.

447
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ment – TIEA) ou um Acordo para Evitar a Dupla Tributação que atenda aos
padrões internacionais de requisição de informações revisados pelo Fórum Glo-
bal de Transparência e Intercâmbio de Informações em Matéria Tributária.”323
Nesse sentido, é importante notar que o Brasil foi considerado como lar-
gely compliant, nos termos em que definidos pelo Fórum Global de Intercâmbio
de Informações da OECD324, tendo sido a menor nota do país atribuída para o
item “Rights and Safeguards” (direitos e salvaguardas), onde o país foi considerado
“Partially Compliant” (parcialmente em conformidade). Reforçando as razões de
direito constitucional pelas quais, provavelmente, o Brasil recebeu tal avaliação,
vale citar as palavras do Professor Luís Eduardo Schoueri, onde afirmou que “the
Supreme Court may confirm its approach that bank secrecy is constitutionally pro-
tected and a breach of secrecy forbidden is without a judicial writ”325.
Em paralelo, no que compete à aplicação da convenção-modelo para tro-
ca de informações da OCDE, o parágrafo primeiro do seu art. 21 determina
que “nada nesta Convenção afetará os direitos e as salvaguardas garantidas a
pessoas pelas leis ou pelas práticas administrativas do Estado solicitado”326.
Sobre o tema, também compartilhamos com a opinião do professor Sérgio
André Rocha que, baseado no art. 199 do Código Tributário Nacional, no
seu parágrafo 1o,327 concluiu que “os tratados bilaterais celebrados pelo Brasil

323 OECD (2015), Op. Cit., pg. 22.


324 Com base no relatório emitido em 2014, onde mais de 150 per reviews foram realizadas, no
âmbito do Fórum Global, e os seguintes critérios foram avaliados: A – Availability of Information
(Disponibilidade da informação); B – Access to Information (acesso a informação) e C – Exchange
of Information (intercâmbio de informações), com subitens específicos de avaliação que incluíam
o acesso ao controle, qualidade da legislação bancária e até tempo de resposta de algum pedido
específico de informação. OECD, Global Forum on Transparency and Exchange of Information for
Tax Purposes, Tax Transparency for Tax Purposes: Report on Progress (2014). Disponível em http://
www.oecd.org/tax/transparency/GFannualreport2014.pdf. Pg. 28.
325 SCHOUERI, Luis Eduardo. Chapter 4 – Brazil, In BRAUNER, Yariv e PISTONE, Pasquale. BRICS
and the emergence of International Tax Coordination. Pg. 71-72
326 ROCHA, Sérgio André. Troca de Informações Internacionais para fins Fiscais. Quartier Latin, São
Paulo. P. 117.
327 “Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de
informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Parágrafo único. A Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou
convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no interesse da arrecadação e
da fiscalização de tributos.”

448
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

deveriam ser modificados para prever, de forma automática, tal modalidade de


troca de informações.”328 Logo, dos acordos para evitar a bitributação da ren-
da firmados pelos Brasil até a presente data, apenas o acordo Brasil – Portugal
permite tal intercâmbio automático de informações329.
Vale observar que no dia 27 de janeiro de 2016, foi firmada a Conven-
ção Multilateral de Assistência Administrativa Mútua para Assuntos Tribu-
tários (Multilateral Convention on Mutual Administrative Assistance in Tax
Matters). Foram 31 países signatários: Alemanha, África do Sul, Austrália,
Áustria, Bélgica, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estônia, Eslovênia,
Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Japão, Liechtenstein, Lu-
xemburgo, Malásia, México, Nigéria, Noruega, Polônia, Portugal, República
Checa, República Eslovaca, Reino Unido, Suécia e a Suíça330.
Posteriormente, em 28 de dezembro de 2016, foi publicada a Instrução
Normativa n. 1681, que instituiu a “Declaração País a País” (DPP), que inter-
nalizou no rol de deveres acessórios pátrios o Country by Country Report. Em
que pese a declaração estar alinhada331 com o padrão introduzido pelo Plano
de Ação 13 do BEPS, algumas situações merecem destaque e reflexão, a saber:
a. Falha sistêmica: conceito introduzido pela DPP Brasileira que torna
obrigatória a sua apresentação às autoridades fiscais brasileiras em caso
de suspensão da troca por razões diversas das referidas na Convenção
Multilateral ou por razões de falha persistente no fornecimento auto-
mático ao brasil de DPP de grupos que contenham pelo menos uma
entidade brasileira (IN 1681/16, art. 2º, inciso XIII).
b. Entidade declarante, para o Brasil, pode ser a mesma entidade integrante
responsável pela entrega do CbCR na sua jurisdição de origem, podendo

328 ROCHA, Sérgio André. Op. cit., pg 224.


329 ROCHA, Sérgio André. Op. cit., pg 224. Vale observar que o Tax Information and Exchange
Agreement (TIEA), firmado entre o Brasil e os Estados Unidos em 23 de setembro de 2014 e
promulgado pelo Decreto n. 8506, de 24 de agosto de 2015, também permite o intercâmbio
automático de informações.
330 Para maiores detalhes, vide http://www.oecd.org/newsroom/a-boost-to-transparency-in-international-
tax-matters-31-countries-sign-tax-co-operation-agreement.htm. Acesso em 14 de fevereiro de 2016.
331 BORGES, Alexandre Siciliano e TAKANO, Caio Augusto. Preços de Transferência na Era Pós-BEPS:
a Ação 13 do Plano de Ação da OCDE e o uso impróprio da Declaração País-a-País in CASTRO,
Leonardo Freitas de Moraes e MOREIRA, Francisco Lisboa. Manual de Preços de Transferência:
Brasil, OCDE e BEPS. Vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, p. 376.

449
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ser o controlador final, a entidade substituta ou a entidade integrante do


grupo que seja residente no Brasil (IN 1681/16, art. 2º, inciso V).

A primeira entrega da DPP correspondeu ao ano-calendário de 2016, en-


tregue na ECF de 2017.
Com relação à falha sistêmica, a IN 1681/16, no seu art. 10, parágrafo 2º,
indicou que a RFB publicaria em seu sítio a lista de jurisdições que falharam na
entrega das respectivas CbCR. Até a data de atualização deste artigo não se tem
conhecimento de alguma jurisdição que tenha sido objeto da falha sistêmica.
Outra observação bastante importante, conforme colocado por BORGES
e TAKANO332, é o preenchimento do campo “IR pago”. Em teoria, baseado no
Ato Executivo Cofis n. 101/2016, deve ser informado todo imposto de renda
pago pela entidade, e aí surgem dúvidas se ali deve constar o imposto retido
na fonte (que em outros campos da ECF se tornaram IR pago no Brasil via
compensação, ou até o IR pago em outra jurisdição e objeto de compensação
no Brasil em função das regras de consolidação (Tributação em bases univer-
sais) previstas na Lei n. 12.973/14.
Outra observação a se fazer é a de como as jurisdições estrangeiras re-
ceberão as informações oriundas das multinacionais brasileiras, uma vez que
preenchidas com base nas normas e critérios contábeis brasileiros e que poderão
divergir dos critérios contábeis internacionais. Tal diferença de critério poderia
dificultar uma leitura adequada das informações das multinacionais brasileiras.

332 BORGES, Alexandre Siciliano e TAKANO, Caio Augusto. Op. Cit., p. 380.

450
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

6. Possível aproximação entre o Plano de Ação 13 e a


disciplina brasileira de preços de transferência

6.1 O estreitamento do conceito de “documentação


de preços de transferência” em decorrência
do distanciamento entre a legislação brasileira
e as diretrizes da OCDE
Embora o legislador brasileiro tenha buscado inspiração nos pronuncia-
mentos exarados pela OCDE para introduzir, no ordenamento jurídico nacio-
nal, os métodos de controle dos preços de transferência333, há que se esclarecer,
que, da maneira como fora positivada, nossa legislação não está alinhada a
tais padrões internacionais. Isso porque, segundo os TP Guidelines da OCDE,
o parâmetro basilar para o exercício do controle dos preços de transferência
está no Princípio Arm´s Length334, o qual indica que a investigação de even-
tual transferência de lucros através de operações de importação e exportação
deve levar em consideração uma série de circunstâncias de ordem econômica
e política, que venha a dar lastro às operações avaliadas335. No entanto, a Lei

333 Conforme é possível verificar no item 12 da exposição de motivos da Lei 9.430/96, nos seguintes
termos: “12. As normas contidas nos arts. 18 a 24 representam significativo avanço da legislação
nacional face ao ingente processo de globalização experimentado pelas economias contemporâneas.
No caso específico, em conformidade com regras adotadas nos países integrantes da OCDE, são
propostas normas que possibilitam o controle dos denominados ‘Preços de Transferência’, de
forma a evitar a prática, lesiva aos interesses nacionais, de transferência de recursos para o exterior,
mediante a manipulação dos preços pactuados nas importações ou exportações de bens, serviços ou
direitos, em operações com pessoas vinculadas, residentes ou domiciliadas no exterior”.
334 A OCDE apresenta, no glossário dos seus TP Guidelines, a seguinte definição para o verbete Arm’s
length principle: “The international standard that OECD Member countries have agreed should
be used for determining transfer prices for tax purposes. It is set forth in Article 9 of the OECD
Model Tax Convention as follows: ‘conditions are made or imposed between the two enterprises
in their commercial or financial relations which differ from those which would be made between
independent enterprises, then any profits which would, but for those conditions, have accrued to
one of the enterprises, but, by any reason of those conditions, have not so accrued, may be included
in the profits of that enterprise and taxed accordingly’” (Cf. OCDE. Transfer Pricing Guidelines for
Multinational Enterprises and Tax Administrations. Paris: OCDE, 2017).
335 Em seus TP Guidelines, a OCDE apresenta uma série de circunstâncias que devem ser consideradas
para a aplicação arm’s length, quais sejam: (i) indetificação das relações comerciais e financeiras
sob análise; (ii) identificação das reais operações realizadas, que quer significar que, em regra,

451
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

9.430/96 e demais normas auxiliares que regulamentam o tema em nosso país


parecem não conferir tanto valor às circunstâncias que determinam a preci-
ficação das atividades econômicas e financeiras entre empresa localizada no
exterior e contribuintes brasileiros. A primeira e mais grave constatação dessa
característica da legislação nacional está na determinação de um rol taxativo
de métodos de controle, não conferindo ao contribuinte a liberdade probató-
ria para demonstrar que pratica operações intercompany sem favorecimento.
Além de tal restrição probatória, outra circunstância que deflagra o divórcio
entre nossa lei e as diretrizes da OCDE consiste na adoção, pela norma bra-
sileira, de margens pré-determinadas para as hipóteses de aplicação dos mé-
todos de revenda e de custo, sem apresentar, contudo, qualquer critério que
justifique o porquê de tais margens. Não há, também, em nosso ordenamento,
previsão para análise dos riscos e funções das empresas submetidas ao contro-
le dos preços de transferência, consideração esta de grande relevância para a
determinação dos preços de transferência no cenário internacional.
Um desdobramento desse modelo adotado no Brasil é a reduzida signifi-
cação que a expressão “documentação de preços de transferência” tem por aqui.
Isto é, dispondo sobre uma lista exaustiva dos critérios de que podem se valer
os contribuintes para comprovar a correspondência entre suas atividades e os
padrões estabelecidos pelo mercado; e mais, estabelecendo margens fixas para
tal aferição, a legislação brasileira limita o contribuinte à utilização de cinco ou
seis hipóteses, diante de uma realidade que norteia as transações comerciais e
financeiras internacionais consideravelmente dinâmica, seja sob circunstâncias
micro ou macroeconômicas, seja tendo-se em vista diversas outras variáveis que
interferem na valoração de quaisquer atividades, intercompany ou não.
Por outro lado, em um ambiente que preconiza o princípio Arm´s Length,
e que, portanto, confere aos contribuintes a possibilidade de levar em conta os

operações com a mesma configuração/estrutura devem ser comparadas; (iii) análise das perdas
nas operações, justificada pela presunção de que sucessivas perdas podem indicar práticas não
desejáveis no contexto arm’s length; (iv) efeito das políticas governamentais, tendo em vista a
significativa interferência que o Estado pode ter na economia; (v) utilização da valoração aduaneira,
recomendando a cooperação entre as autoridades fiscais e aduaneiras; (vi) características
pertinentes à localização geográfica da operação; (vii) características da mão de obra utilizada
na operação; (viii) sinergias inerentes aos conglomerados multinacionais analisados. (Cf. OCDE.
Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations. Paris: OCDE,
2017 (parágrafos 1.33 a 1.73).

452
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mais variados elementos que venham a interferir na formação dos preços por
eles praticados (tais como, as funções e os riscos assumidos por cada unidade
do Grupo, ou ainda um pacote de propostas econômicas apresentadas pelos
governos das jurisdições pelas quais se desdobram as atividades analisadas,
como também o comportamento do mercado consumidor, em cada região a
ser considerada), todos estes sendo merecedores de comprovação, suscitam a
elaboração de um arcabouço documental robusto. Daí a amplitude semântica
do tema documentação, quando estamos diante de estudos de preços de trans-
ferência pautados pelas diretrizes da OCDE.

6.2 Os documentos normalmente aceitos para


a comprovação dos preços de transferência no
Brasil frente ao modelo em três níveis proposto
pelo Plano de Ação 13 do BEPS
Se agruparmos em classes os chamados métodos de preços de transfe-
rência veiculados pela Lei 9.430/96, tomando por base o critério de compara-
bilidade eleito pelo legislador para a construção de cada parâmetro, podemos
apresentá-los de acordo com o seguinte arranjo: i. métodos de comparação
direta de preços: Método dos Preços Independentes Comparados – PIC, e
Método do Preço de Venda nas Exportações – PVEx; ii. métodos de preços
de revenda menos lucro: Método do Preço de Revenda menos Lucro – PRL,
Método do Preço de Venda por Atacado no País de Destino, Diminuído do
Lucro – PVA, e Método do Preço de Venda a Varejo no País de Destino, Dimi-
nuído do Lucro – PVV; iii. métodos de custo mais lucro: Método do Custo de
Produção mais Lucro – CPL, e Método do Custo de Aquisição ou de Produ-
ção mais Tributos e Lucro – CAP; e iv. métodos de cotação de commodities:
Método do Preço sob Cotação na Importação – PCI, e Método do Preço sob
Cotação na Exportação – PECEX.
Pois bem, acerca dos métodos de comparação direta de preços, podemos
afirmar que, em regra, os documentos tidos como necessários à determinação
dos preço-parâmetro são aqueles que instrumentalizam operações de compra
e venda, tanto em transações internas, quanto em operações internacionais

453
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

(importações e exportações). É dizer, tratam-se de invoices, faturas, notas fis-


cais e declarações de importação e exportação.
Para os métodos de preços de revenda menos lucro, da mesma forma, a do-
cumentação básica consiste nos extratos de compra e (re)venda. Contudo, es-
pecialmente, par o caso do Método do Preço de Revenda menos Lucro - PRL,
aplicável às operações de importação, além dos documentos acima menciona-
dos, hão de ser considerados também aqueles atinentes à determinação do custo
de produção, uma vez que para a elaboração desse modelo é necessário que se
calcule o percentual de participação dos bens, direitos ou serviços importados
em relação ao custo total do bem, direito ou serviço vendido (logo a seguir, ao
tratarmos do métodos de custo mais lucro, que documentos seriam estes).
Os métodos de custo mais lucro suscitam, basicamente, a comprovação
dos respectivos custos dos bens, serviços e direitos transacionados. A Instru-
ção Normativa RFB 1.312/12, ao dispor sobre o CAP não apresenta maiores de-
talhes acerca daqueles dispêndios que poderiam ser classificamos como custo;
mas isto não acontece nas disposições sobre o CPL, vez que no § 5º do art. 15
da citada normativa, está disposto que as seguintes ocorrências poderão inte-
grar o custo: (i) aquisição das matérias-primas, dos produtos intermediários e
dos materiais de embalagem utilizados na produção do bem, serviço ou direi-
to; (ii) quaisquer outros bens, serviços ou direitos aplicados ou consumidos na
produção; (iii) pessoal, aplicado na produção, inclusive de supervisão direta,
manutenção e guarda das instalações de produção e os respectivos encargos
sociais incorridos, exigidos ou admitidos pela legislação do país de origem;
(iv) locação, manutenção e reparo e os encargos de depreciação, amortização
ou exaustão dos bens, serviços ou direitos aplicados na produção; (v) valores
das quebras e perdas razoáveis, ocorridas no processo produtivo, admitidas
pela legislação fiscal do país de origem do bem, serviço ou direito.
No caso do CPL, a legislação336 prevê a possiblidade utilização de dados
de outras pessoas jurídicas produtoras, localizadas no país de origem do bem,
serviço ou direito, o que, em termos práticos, só tem aplicabilidade no caso
de outra empresa do mesmo grupo produzir bem similar, pois havemos de
considerar ser quase impossível que uma pessoa jurídica brasileira obtenha

336 Conforme o § 4º , do art. 15 da IN SRF 1.312/12: § 4º Poderão ser utilizados dados da própria
unidade fornecedora ou de unidades produtoras de outras pessoas jurídicas, localizadas no país de
origem do bem, serviço ou direito.

454
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

as informações de composição do custo de produção de empresa concorrente.


Essa regra nos parece, contudo, ser eficaz para a administração tributária, que
por política de troca de informações poderia conseguir tais dados medicante
solicitação às autoridades daqueles países com os quais o Brasil possua convê-
nio para troca de informações.
Ainda sobre a documentação apta a lastrear o custo de produção, temos
que o Código Civil apresenta, nos arts. 1.179 a 1.195, as normas basilares sobre
a escrituração empresarial, dispondo no artigo inaugural sobre a obrigação
do empresário e da sociedade de seguir um sistema contábil, com base na es-
crituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação
respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado
econômico. O Regulamento do Imposto de Renda, a seu turno, também dis-
põe sobre a documentação dos registros contábeis e comerciais337.
Por fim, para os métodos de cotação de commodities, a documentação de-
terminante de sua comprovação está nos extratos e informes produzidos pelas
bolsas de mercadorias e futuros internacionalmente reconhecidas. E, como não
apenas bens transacionados em bolsa são suscetíveis de aplicação do PCI e do
PECEX, ao lados das respectivas cotações, são aptas a comprovar a elaboração
de tais métodos, (i) as fontes de dados independentes fornecidas por instituições
de pesquisa setoriais internacionalmente reconhecidas; e (ii) os preços definidos
por agências ou órgãos reguladores e publicados no Diário Oficial da União.
Confirmado, portanto, está o que dissemos acima sobre o estreitamento
do conceito de “documentação de preços de transferência”, que à luz da legis-
lação brasileira, está limitada aos documentos de compra e venda, tais como
invoices, notas fiscais, faturas; além do livros contábeis e fiscais que venham a
comprovar o custo de produção dos itens avaliados; como também os infor-
mes de bolsa de valores, de instituições de pesquisa internacionalmente reco-
nhecidas, e de agências ou órgãos reguladores, desde que publicados no DOU.
Com isso, é possível concluir que o suporte documental sugerido pela OCDE
no Plano de Ação 13 do BEPS, baseado nos três níveis, Master File, Local File
e Country-by-Country Report é de pouca aplicação à realidade normativa bra-
sileira.. Em outras palavras, sugere a OCDE que seja elaborado um suporte
documental estruturado no three-tiered approach, que, como mencionado an-

337 Conforme Decreto n. 9.580/18, arts. 262 a 286.

455
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

teriormente, aponta para a elaboração de um banco de dados sobremaneira


robusto, indicando, dentre outros aspectos detalhes sobre cadeira produtiva
do grupo, os riscos e funções atribuídos a cada etapa de tal cadeira, além dos
valores pagos a título de tributação sobre a renda nos países onde se situam
as respectivas unidades operacionais. Nenhuma dessas informações é deter-
minante para o cálculo dos preços-parâmetro no Brasil, isso porque nossa lei
quase que ignora as todas essas circunstâncias econômicas, assumindo uma
postura de abrangência reduzida, onde tem relevância somente cada uma das
operações, isoladamente consideradas.

7. Os elementos complementares de prova como possível


ponto de aproximação do Plano de Ação 13 do BEPS à
legislação brasileira de preços de transferência
Mesmo diante do notório distanciamento entre a legislação brasileira
de preços de transferência a as diretrizes da OCDE, e consequentemente, na
quase que total inaplicabilidade daquilo que propõe a Ação 13 dos BEPS em
termos de documentação, entendemos ser possível a construção de uma pon-
te, de uma via de acesso, entre as mencionadas propostas do Action Plan aqui
estudado e a disciplina nacional, que residiria na aplicação dos chamados ele-
mentos complementares de prova.
Com efeito, a partir da leitura conjugada do art. 21 da Lei 9.430/96 com o
art. 43 da IN 1.312/12, vemos que a legislação brasileira permite que, além dos
documentos emitidos normalmente pelas pessoas jurídicas, nas operações de
compra e venda, a comprovação da elaboração dos preços-parâmetro também
pode ser efetuada com base em:
I. Publicações ou relatórios oficiais do governo do país do comprador ou
vendedor ou declaração da autoridade fiscal desse mesmo país, quando
com ele o Brasil mantiver acordo para evitar a bitributação ou para
intercâmbio de informações; e
II. Pesquisas efetuadas por pessoa jurídica ou instituição de notório conhe-
cimento técnico ou publicações técnicas, onde se especifique o setor, o
período, as pessoas jurídicas pesquisadas e a margem encontrada, bem
assim identifique, por pessoa jurídica, os dados coletados e trabalhados.

456
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Isto quer dizer que os contribuintes, no processo de construção dos pre-


ços-parâmetro, podem utilizar não apenas os documentos já referidos acima
(invoices, faturas, notas fiscais, declarações de importação e exportação, escri-
turação comercial e fiscal etc), como também um outro suporte documental
para a determinação dos seus preços de transferência. É dizer, a lei apresenta
duas alternativas aos contribuintes para a elaboração do suporte documental
apto à demonstração dos preços de transferência, a saber: (i) documentos nor-
malmente emitidos e os (ii) elementos complementares de prova.
Ocorre que, se por um lado, abre-se a possibilidade de um suporte docu-
mental adicional (complementar), que poderia ser compreendido como uma
certa amplitude das alternativas conferidas ao contribuinte para o cálculo dos
preços-parâmetro; por outro, o legislador impõe restrições fortíssimas à utili-
zação dos elementos complementares de prova. A primeira delas está na hipó-
tese do inciso I, do art. 21 da Lei 9.430/96, ao somente admitir as declarações
de autoridades fiscais de países com os quais o Brasil tenha tratado para evitar
a bitributação ou para intercâmbio de informações. No inciso seguinte, con-
tudo, é que reside o maior dos obstáculos à aplicação da referida metodologia
de comprovação, uma vez que há a exigência de que as pesquisas e as publi-
cações técnicas devam especificar: o setor; o período; as empresas pesquisa-
das; a margem encontrada; discriminando, ainda, por empresa pesquisada, os
dados coletados e trabalhados. Esse exagerado detalhamento de informações,
inclusive, não fugiu à seguinte crítica de Schoueri:
“O excesso de zelo do legislador pode levar à inaplicabilidade prática de
tal permissivo, já que, no mais das vezes, as publicações apenas apresentam
os resultados das pesquisas levadas a feito, raramente chegando ao ponto de
fornecer as informações obtidas, por empresa”338

338 Nas palavras do professor: “Tratando-se de publicações técnicas, por outro lado, devem elas atender
os requisitos do inciso II in fine do artigo 21 da Lei no 9.430/96: é necessário que se especifique o setor,
o período, as empresas pesquisadas e a margem encontrada, bem assim identifique, por empresa,
os dados coletados e trabalhados. O excesso de zelo do legislador pode levar à inaplicabilidade
prática de tal permissivo, já que, no mais das vezes, as publicações apenas apresentam os resultados
das pesquisas levadas a feito, raramente chegando ao ponto de fornecer as informações obtidas,
por empresa. Por essa ser uma exigência legal, outrossim, não há como dispensar o requisito, não
valendo de prova de custos e preços médios as publicações que não desçam a tais detalhes” (Preços
de Transferência no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2013, p. 136).

457
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No entanto, uma questão também disposta pela norma brasileira no to-


cante aos elementos complementares merece atenção. Segundo o § 1º, do art.
21, da Lei nº 9.430/96, as publicações, as pesquisas e os relatórios oficiais so-
mente serão admitidos como meio de prova se houverem sido realizados com
observância de critérios de avaliação internacionalmente aceitos (...). E, acerca
desse requisito disposto em lei, esclareceu a RFB, por meio do art. 43, §2º, da
Instrução Normativa 1.312/12, que as publicações de preços decorrentes de
pesquisas efetuadas sob a responsabilidade de organismos, tais quais a OCDE
e a OMC, são adequadas à comprovação de preços de transferência.
Pois bem, é justamente a partir da análise desse ato interpretativo exarado
pela Receita Federal do Brasil que vemos a possibilidade de aproximação do
Plano de Ação 13 do BEPS à disciplina brasileira de preços de transferência. Isso
porque, se o legislador permite que pesquisas e publicações desenvolvidas sob a
chancela da OCDE sejam aceitas para fins de determinação dos preços-parâme-
tro, por meio dos chamados elementos complementares de prova, por que não
estender essa possibilidade também aos demais meios probatórios, de maneira
que as informações servíveis para fins de elaboração do Master File, do Local
File e do Country-by-Country Report sejam, da mesma forma, aceitas entre nós?
Com efeito, conforme repetido várias vezes ao longo da breve análise
aqui apresentada, a normativa brasileira em muito se afasta dos TP Guidelines
que norteiam a aplicação do controle dos preços de transferência no cenário
internacional, sendo muito poucos os pontos de congruência. E, no contexto
da determinação dos preços-parâmetro pela via alternativa prevista em lei, e
portanto posta no mesmo nível dos documentos normalmente emitidos pe-
las pessoas jurídicas, tendo em vista que publicações de preços decorrentes
de pesquisas efetuadas sob a responsabilidade da OCDE consubstanciam-se
como meios adequados de prova, entendemos haver bons argumentos para
que as informações coletadas em conformidade com os ditames do Plano de
Ação 13 do BEPS possam vir a ser aceitas para fins de determinação dos pre-
ços de transferência no Brasil.

458
16. Desafios à implementação global
das regras de mandatory disclosure

Stéphanie Samaha
Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela
Universidade de São Paulo (USP).
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de
Direito Tributário (IBDT).
Advogada em São Paulo.

Resumo: O presente artigo pretende analisar o regime de declaração


obrigatória (mandatory disclosure rules) de planejamentos tributários agressi-
vos trazido pela Ação n° 12 do Projeto BEPS. O estudo será realizado a partir
dos debates sobre moralidade em matéria tributária, da noção de planejamen-
to tributário agressivo e das discussões sobre transparência fiscal internacio-
nal, tanto sob a perspectiva da relação entre fisco e contribuinte, quanto da
relação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Palavras-chave: regime de declaração obrigatória, Ação n° 12 do Projeto
BEPS, planejamento tributário, moralidade em matéria tributária, transpa-
rência fiscal internacional.
Abstract: This article aims to analyze the mandatory disclosure rules for
aggressive tax planning introduced by BEPS Action Plan 12. The study will
take into consideration the debates on tax morality, the concept of aggressive
tax planning and the discussions regarding international fiscal transparency,
from the perspective of relationship between tax authorities and taxpayers, on
the one hand, and between developed and developing countries, on the other.
Keywords: mandatory disclosure rules, BEPS Action Plan 12, tax plan-
ning, tax morality, international fiscal transparency.

459
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar o Plano de Ação n° 12 do
Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que versa sobre o regime de
declaração obrigatória (mandatory disclosure rules) de planejamentos tribu-
tários. Para tanto, serão examinadas, em primeiro lugar, as recomendações
finais apresentadas pela OCDE em outubro de 2015 sobre os objetivos e carac-
terísticas das regras de mandatory disclosure que tenham como alvo os plane-
jamentos tributários internacionais.
Com base no referencial acima, serão examinadas as razões pelas quais
existe uma insegurança jurídica conceitual em matéria de planejamento tri-
butário e, para tanto, serão trazidas questões que envolvem a atual influência
dos debates sobre a moralidade em matéria tributária e a necessidade de se
discutir a noção de planejamento tributário agressivo.
Por fim, será questionado se a abordagem da OCDE em relação às regras
de mandatory disclosure e aos debates de transparência fiscal a ela inerentes
são de fato holísticas, não só sob perspectiva da relação entre fisco e contri-
buinte, mas também sob a perspectiva da relação entre os países desenvolvi-
dos e em desenvolvimento.

1. Plano de Ação 12 do Projeto BEPS: Aspectos gerais

1.1 Uma questão de transparência


A noção de transparência fiscal internacional tem ganhado cada vez mais
espaço nos debates internacionais, especialmente após a elaboração, no âmbito do
Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações Tributárias da OCDE,
do “internationally agreed tax standard”. Com esse novo padrão, pretende-se que
um contribuinte cujas transações o tornem sujeito a mais de uma jurisdição não
possa se valer de um dos ordenamentos envolvidos como “escudo” apto a protegê-
-lo de suas obrigações tributárias junto aos outros Estados (SCHOUERI; BARBO-
SA, 2013a, p. 497-498). É nesse contexto que serão travadas as discussões envol-
vendo as propostas trazidas pelo Plano de Ação n° 12.

460
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A transparência fiscal é um dos três pilares do Projeto BEPS e, nesse sentido,


uma série de medidas foram propostas ao longo dos planos de ação para garantir
que informações relevantes no combate à erosão da base tributável e à transferên-
cia de lucros sejam compartilhadas entre os Estados (OCDE, 2015a, p. 11).
Assim, de acordo com a OCDE, a falta de informações tempestivas,
abrangentes, relevantes e precisas sobre esquemas de planejamento tributário
agressivo é um dos principais desafios a serem enfrentados pelas autorida-
des fiscais. O Plano de Ação n° 12 do Projeto BEPS, baseado nos preceitos de
transparência fiscal, reconhece que as ferramentas desenhadas para ampliar o
fluxo de informações sobre os riscos tributários, dentre as quais se encontram
as regras de declaração obrigatória (mandatory disclosure rules), permitem
respostas rápidas por parte das autoridades fiscais na gestão de riscos, na rea-
lização de auditorias e na implementação de mudanças legislativas necessárias
ao combate dos planejamentos fiscais (OCDE, 2015a, p. 9).
Dentre tais ferramentas, o regime de mandatory disclosure tem como
objetivo obter antecipadamente informações sobre esquemas que permitam
a estruturação de planejamentos tributários potencialmente agressivos ou
abusivos, bem como sobre os seus idealizadores e os contribuintes que fazem
uso de tais estrutura (OCDE, 2015a, p. 18). Ressalte-se que os idealizadores
dos planejamentos tributários, tais como advogados e contadores, possuem
maior conhecimento sobre os detalhes da estrutura montada para minimizar
a tributação. Por essa razão, as regras de mandatory disclosure tendem a focar
também naqueles que desenvolvem tais planejamentos e não exclusivamen-
te nos contribuintes que os utilizam, sendo, por isso, mais efetivas (OCDE,
2015a, p. 59). Assim, a intenção da OCDE com tais medidas não se resume
apenas a desencorajar a utilização de planejamentos tributários agressivos,
mas também a sua comercialização.

1.2 Necessidade de uma regra de mandatory disclosure


Importante mencionar que as regras de mandatory disclosure comple-
mentam e se diferenciam das demais formas de disclosure, tais como processos
de consulta (rulings) e programas de co-operative compliance. De uma forma
geral, as iniciativas de disclosure, em maior ou menor extensão, incentivam ou
exigem que o contribuinte forneça informações, antecipadamente e de forma

461
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mais detalhada, sobre as suas transações, o que permite que as autoridades


fiscais avaliem com mais qualidade o comportamento do contribuinte e suas
consequências. O foco dessas inciativas não é necessariamente identificar
planejamentos tributários potencialmente agressivos ou abusivos e sim apre-
sentar ao contribuinte de forma antecipada, a partir dos fatos apresentados,
inclusive aqueles que ensejariam risco de autuação fiscal, a repercussão tribu-
tária decorrente das operações pretendidas.
Interessante notar que as regras de mandatory disclosure ora analisadas
são compulsórias, diferentemente do que ocorre, por exemplo, no procedimen-
to de consulta fiscal ou nos programas de co-operative compliance. A consulta
fiscal é o instrumento que permite que o contribuinte, ao se deparar com uma
dúvida na interpretação da legislação tributária, acesse a autoridade fiscal e in-
dague formalmente qual seria, na visão do órgão, a interpretação correta do
dispositivo diante dos fatos apresentados. A autoridade fiscal, ao responder à
consulta, decide, à luz do caso concreto, quais serão os critérios jurídicos em-
pregados no momento da aplicação do direito, produzindo efeitos ao consulente
e à própria administração tributária (SAMAHA, 2018, p. 44). Nos programas
de co-operative compliance, por sua vez, o contribuinte participante informa de
maneira integral os detalhes de suas operações, inclusive aquelas envolvendo
questões com risco de autuação fiscal e o fisco, no que lhe diz respeito, esclarece
sua interpretação sobre a repercussão tributária dos fatos apresentados. Nota-se
que os exemplos de disclosure mencionados são voluntários, diferentemente das
regras de mandatory disclosure, que são compulsórias.
Dessa forma, percebe-se que os mecanismos voluntários de disclosure
acima citados não foram desenvolvidos para identificar planejamentos tribu-
tários potencialmente agressivos. Na realidade, são iniciativas estruturadas
para garantir a segurança jurídica do contribuinte em cenários de complexi-
dade e de incerteza da aplicação da lei tributária. Daí a necessidade apontada
pela OCDE de criar instrumentos que tenham como foco exclusivo a identifi-
cação de planejamentos tributários agressivos em âmbito internacional.

1.3 Características das regras de mandatory disclosure


Uma vez esclarecida a necessidade de medidas específicas de combate a
esquemas agressivos de planejamento tributário, é preciso analisar as princi-

462
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

pais características das regras de declaração obrigatória. Nos termos propostos


pelo Plano de Ação nº 12, os países, tendo em vista as suas particularidades,
são livres para dispor sobre a abordagem das suas regras de mandatory disclo-
sure. No entanto, alguns princípios gerais e norteadores devem ser observados
na introdução de tais medidas, justamente para garantir que os objetivos da
regra sejam de fato atendidos (OCDE, 2015a, p. 19-20).
O primeiro requisito trazido pela OCDE é de que as regras de mandatory
disclosure devem ser claras e de fácil compreensão para que os contribuintes te-
nham certeza em relação ao que está sendo exigido pelo regime. A falta de clareza
e a consequente insuficiência de segurança jurídica pode inviabilizar o sucesso da
regra. Além disso, a falta de clareza pode fazer com que as administrações tribu-
tárias recebam informações de pouca qualidade e, portanto, irrelevantes para a
identificação de planejamentos tributários potencialmente agressivos ou abusivos.
Ainda, os regimes de mandatory disclosure devem procurar o equilíbrio
entre os custos de conformidade impostos ao contribuinte para informar de-
talhes suas transações e as vantagens obtidas pelas administrações tributárias
com tais informações. De acordo com a OCDE, o recebimento de informações
de qualidade pelo fisco fará com que os seus recursos possam ser usados de
forma mais eficiente, bem como permitirá que o foco de suas ações seja con-
centrado em contribuintes que de fato representem riscos. Para que esse equi-
líbrio seja assegurado, os regimes de mandatory disclosure não podem ter um
escopo excessivamente amplo, já que solicitações desnecessárias aumentam os
custos dos contribuintes, ao passo que diminuem a capacidade de a adminis-
tração tributária examinar e utilizar de forma satisfatória os dados obtidos.
Também é necessário observar que o objetivo do regime ora analisado
é obter, de forma antecipada, informações sobre os esquemas que permitam
a estruturação de planejamentos tributários potencialmente agressivos ou
abusivos, bem como sobre seus idealizadores e os contribuintes que fazem
uso de tais estruturas. Dessa forma, as regras de mandatory disclosure devem
ser estruturadas de modo a capturar essas informações. Em outras palavras,
tais regras não podem buscar capturar toda e qualquer transação estruturada
para minimizar a carga tributária, sendo necessário que se identifique quais
as principais áreas de risco do país e que se torne essas áreas o foco do regime.
Por fim, a OCDE ressalta que as regras de mandatory disclosure apenas
fazem sentido se as informações obtidas por meio delas forem utilizadas de

463
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

forma eficiente e tempestiva. Assim, as autoridades fiscais precisam desenvol-


ver procedimentos adequados para que as informações sejam corretamente
analisadas e compreendidas. Sem essas medidas, mesmo que sejam obtidas as
informações, os planejamentos tributários potencialmente agressivos ou abu-
sivos não serão propriamente identificados e combatidos.
Nesse contexto, uma norma de declaração obrigatória de planejamentos
fiscais seria formada pelos seguintes elementos: (i) abrangência da regra; (ii)
quem é obrigado a declarar; (iii) o que deve ser declarado; (iv) os detalhes do
esquema de planejamento; (v) o procedimento a ser seguido para se realizar a
declaração; e (vi) medidas para garantir o cumprimento da regra e penalidades.
As regras de mandatory disclosure são desenhadas para identificar espe-
cificamente planejamentos tributários potencialmente agressivos ou abusivos
que exploram as vulnerabilidades dos sistemas tributários e, justamente por
conta desse objetivo, são estruturadas de uma forma que permitam que a ad-
ministração tributária tenha flexibilidade para escolher os filtros que serão
utilizados para identificar as transações que são o alvo da política de combate.
Uma das abordagens possíveis é o single-step approach, através do qual são
identificados parâmetros genéricos (generic hallmarks) e os parâmetros especí-
ficos (specific hallmarks) para determinar as transações reportáveis. Dentre os
parâmetros genéricos, a OCDE indica a previsão de confidencialidade do esque-
ma; o pagamento de prêmio ou “êxito”; a proteção contratual contra riscos e es-
quemas de prateleira, montados e comercializados em massa. Já os parâmetros
específicos podem ser exemplos de transações que a autoridades fiscais compre-
endem como facilitadoras de abuso, tais como a geração de prejuízos, esquemas
com arrendamento, conversão de renda em capital ou doação, entre outros.
No multi-step approach, por sua vez, aplicam-se primeiramente testes
para excluir certas operações do escopo da regra (main benefit test ou de-mini-
mis test, por exemplo) e, em seguida, aos esquemas selecionados são aplicados
os parâmetros genéricos e específicos.
A escolha dos filtros, nos termos apontados acima, é fundamental para
a correta identificação das operações que devem ser reportadas. Isso porque,
conforme a OCDE (2015a, p. 38-49) reitera ao longo do Plano de Ação 12,
a delimitação de critérios por parte da legislação é crucial para que de fato
sejam objeto das regras de mandatory disclosure estruturas que ponham a
arrecadação em risco.

464
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

1.4 Regras de mandatory disclosure e o


planejamento tributário internacional
É preciso mencionar que, diferentemente dos regimes de mandatory
disclosure existentes, que são regras fundamentalmente domésticas, como o
DOTA (Disclosure of Tax Avoidance Schemes) (BAKER, 2015, p. 87-88) adota-
do pelo Reino Unido, a proposta da OCDE trazida no Plano de Ação n° 12 tem
como foco os planejamentos tributários internacionais, o que traz uma série
de particularidades que devem ser consideradas no desenho de tais normas.
Isso porque, os planejamentos tributários internacionais normalmente
geram múltiplos benefícios para diferentes partes e em diferentes países. Des-
sa forma, as regras de disclosure que focam exclusivamente em consequências
fiscais em âmbito nacional, sem considerar os aspectos globais das transações,
muito provavelmente não conseguem identificar significativos esquemas de pla-
nejamento tributário internacional (OCDE, 2015a, p. 68). Consequentemente,
os países, ao desenharem as regras de mandatory disclosure, devem, entre outras
medidas, estabelecer parâmetros identificadores de planejamento tributário fo-
cados nos riscos trazidos pela erosão da base tributável e pela transferência de
lucros, tais como o uso de estruturas e instrumentos híbridos, de forma a captu-
raras diferentes e inovadoras técnicas de planejamento tributário internacional.
De acordo com o Plano de Ação nº 12, as regras de disclosure devem ser
desenhadas parar garantir que sejam reportados quaisquer esquemas que en-
volvam contribuintes nacionais sempre que o esquema trouxer consequências
tributárias que extrapolem os limites do país. O contribuinte terá a obrigação
de informar ao fisco detalhes da transação, ainda que ele não esteja direta-
mente ligado às consequências tributárias verificadas no outro país. Se o dis-
closure fosse exigido apenas de contribuintes ligados diretamente às consequ-
ências no exterior, o regime poderia ser facilmente burlado pela interposição
de intermediários, fazendo com que a regra perdesse o seu objetivo (OCDE,
2015a, p. 72). Do mesmo modo, o disclosure não pode ser exigido se o esquema
não apresentar quaisquer riscos tributários àquele país.
Nesse sentido, a OCDE propõe que as regras de mandatory disclosure
sejam amplas o suficiente para capturar qualquer esquema, plano ou entendi-
mento dos contribuintes, todas as etapas e transações do planejamento, bem
como todas as partes envolvidas ou afetadas pelo esquema. No contexto de

465
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

um financiamento intra grupo baseado em estruturas e instrumentos híbri-


dos, por exemplo, o planejamento engloba tanto a transação inicial que intro-
duziu o capital no grupo, quanto as operações subsequentes que explicam o
caminho percorrido pelo capital entre as empresas do grupo.
Importante mencionar que já é possível identificar inciativas que visam
implementar as recomendações da OCDE no âmbito do Plano de Ação n° 12
do Projeto BEPS.
Sob a justificativa de ter sido inspirada no Public Discussion Draft da
Ação nº 12 do Plano BEPS da OCDE , o governo brasileiro editou a Medida
Provisória nº 685, de 21 de julho de 2015, que estabeleceu a obrigação do con-
tribuinte informar à Receita Federal do Brasil os atos ou negócios jurídicos
que acarretassem a supressão, a redução ou o diferimento de tributos. Não
obstante, quando da conversão da referida Medida Provisória, os arts. 7° a
12, que versavam sobre a obrigação de informar as operações relevantes de
planejamento tributário, foram excluídos.
Por sua vez, em 25 de maio de 2018, o Conselho da União Europeia editou
a Diretiva 2018/822, que introduziu regras de mandatory disclosure nos Esta-
dos-Membros. Tal diretiva impõe aos consultores, bancos, advogados e outros
intermediários o dever de comunicar às autoridades fiscais sobre a implemen-
tação de planejamentos tributários potencialmente agressivos ou abusivos. Os
países da União Europeia deverão adaptar a legislação interna para refletir as
orientações da Diretiva 2018/822 até 31 de dezembro de 2019. Cada país po-
derá estabelecer as penalidades para a inobservância das regras de mandatory
disclosure, sendo que a Diretiva estabelece apenas que tais penalidades sejam
efetivas, proporcionais e dissuasivas. É importante mencionar que a Diretiva
2018/822 amplia o escopo do Plano de Ação nº 12 ao prever a troca automática
das informações obtidas por meio da declaração obrigatória entre os Estados-
-Membros da União Europeia. De acordo com o preâmbulo da supracitada
Diretiva, como a maioria dos mecanismos de planeamento fiscal potencial-
mente agressivos abrange mais do que uma jurisdição, a troca de informações
traria resultados positivos adicionais ao combate a tais estruturas
Destaca-se, ainda, que as recomendações do Plano de Ação nº 12 foram
utilizadas pela própria OCDE na elaboração do “Model Mandatory Disclosu-
re Rules for Addressing CRS Avoidance Arrangements and Opaque Offshore
Structures”, que tem como objetivo identificar estruturas montadas para bur-

466
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

lar as regras de troca automática de informações sobre ativos financeiros de-


tidos por não residentes ou que visem proporcionar a proteção de estruturas
não transparentes aos beneficiários efetivos (OCDE, 2018, p.4).

2. Planejamento tributário: moralidade,


legalidade e segurança jurídica

2.1 Planejamento Tributário: moralidade vs. legalidade


Muito se fala atualmente sobre o tema de planejamento tributário. A
doutrina e a jurisprudência, há algum tempo, ocupam-se da discussão so-
bre a definição do fenômeno e de seus limites, procurando tornar “pretas” ou
“brancas” situações que, em um primeiro momento, tendem a se encontrar
em uma zona cinzenta (ESSERS, 2014, p. 49). O tema do planejamento tribu-
tário se encontra em uma situação não apenas de insegurança jurídica, mas
também de insegurança conceitual.
De acordo com Schoueri (2010, p. 345-346), dificilmente se encontra-
rá quem questione o direito do contribuinte à economia de opção, ou seja,
aqueles casos em que o contribuinte, valendo-se das opções oferecidas pela
lei tributária, escolhe a menos onerosa. Em contextos constitucionais em que
vigoram a livre iniciativa e a economia de mercado, não é objeto de controvér-
sia o direito de pessoas físicas e jurídicas buscarem reduzir as suas obrigações
tributárias, desde que o façam nos termos do ordenamento jurídico vigente.
Tampouco parece questionável que o ordenamento deva condenar as práticas
ilícitas, ou seja, aquelas em que, apesar de o tributo ser devido, o contribuinte
busca tentar evadir, minimizar ou retardar a tributação.
O planejamento tributário não se encontra em nenhuma das hipóteses an-
teriores. Isso porque, no planejamento tributário, o particular se vale de lacunas,
textos mal redigidos ou práticas inusitadas como forma de reduzir a tributação.
Todos os comportamentos considerados como planejamentos tributários têm
em comum a recusa do contribuinte, de um lado, de descumprir a legislação,
mas de outro, de dobrar-se à tributação que, de outro modo, seria exigível.
A dificuldade aqui reside em definir quais são os limites do planejamen-
to tributário lícito. Entre os extremos de permissão total e de proibição abso-

467
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

luta, o ordenamento jurídico de cada país busca um ponto de equilíbrio, que,


ressalte-se, não é o mesmo para todos os países (SCHOUERI, 2010, p.346).
A crise econômica mundial, que atingiu especialmente os países da Eu-
ropa, fez com que os governos locais adotassem duras medidas de austerida-
de fiscal e, na tentativa de ampliar a arrecadação, voltassem as atenções aos
planejamentos tributários das multinacionais, que permitiam que grandes
empresas se desviassem de suas obrigações tributárias, recorrendo, dentro de
uma pretensa legalidade e com o apoio técnico de assessores especializados, a
esquemas negociais artificiosos, que manipulam e distorcem normas jurídicas
em busca de vantagens econômicas indevidas.
Aqui merece destaque o papel desempenhado pelas Organizações Não-
-Governamentais (ONGs), tais como a “Tax Justice Network” e a “Oxfam
International”, que iniciaram os debates sobre a necessidade de as multina-
cionais pagarem “porção justa” de tributos nos países em que elas realmente
desenvolvam suas atividades econômicas, independentemente de este valor
ser ou não correspondente à carga tributária legalmente exigida. Na maioria
das vezes, as discussões lideradas pelas ONGs e pela própria mídia sobre os
limites dos planejamentos tributários não levam em consideração as diferen-
ças existentes entre economia de opção, elisão e evasão fiscal, o que faz com
que qualquer economia tributária, independentemente de sua legalidade ou
ilegalidade, seja incluída no campo da imoralidade.
Nesse contexto, as autoridades fiscais, estimuladas por ONGs e pela mí-
dia, passaram a adotar práticas conhecidas por “naming and shaming”. Na
tentativa de incentivar o cumprimento das obrigações tributárias, as autorida-
des fiscais começaram a elaborar listas com todos os contribuintes envolvidos
em planejamentos tributários, notificar tais contribuintes e “convidá-los” a
abrir os seus planejamentos tributários e a regularizar a sua situação fiscal.
Caso os contribuintes não sigam esse procedimento, tal lista é divulgada jus-
tamente com o propósito de expô-los e constrangê-los. Em outras palavras, ao
não cumprir as recomendações das autoridades fiscais, o contribuinte assume
o risco de ter a sua reputação manchada por conta de ter o seu nome divulga-
do no rol de contribuintes que adotam práticas fiscais elisivas (“risk reputatio-
nal damage”) (ESSERS, 2014, p. 65). Ressalte-se que o objetivo dessa prática
é mostrar para a sociedade a forma imoral através da qual multinacionais

468
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

alocam os seus lucros, ainda que, muitas vezes, não se esteja diante de práticas
ilegais (WEEGHEL; EMMERINK, 2013, p. 435).
Tal medida merece críticas, uma vez que grande parte das estratégias de pla-
nejamento tributário internacional é baseada em práticas antigas e de total conhe-
cimento das autoridades fiscais. Ao invés de revisitarem as bases que elas mesmas
endossaram por quase um século, implementarem alterações na legislação domésti-
ca para coibir os planejamentos tributário ou desenvolverem outros mecanismos de
compliance, as autoridades fiscais optaram por constranger o contribuinte.
Retira-se, com tal prática, o debate do planejamento tributário do cam-
po jurídico – que lhe é pertinente por essência – imprimindo-lhe um teor
ético ou relacionado à suposta moralidade das empresas que, certamente, não
contribui para seu aperfeiçoamento. Não se trata, portanto, de uma medida
adequada, porquanto a questão do planejamento tributário deve ser analisada
e enfrentada, se for o caso, no campo das alterações legislativas, da intensifi-
cação da transparência (mútua) entre fisco e contribuinte, do estabelecimento
de um clima de cooperação entre administração e administrado e, eventu-
almente, das adaptações jurisprudenciais; e não através de boicotes e danos
reputacionais (ESSERS, 2014, p. 65).
Nesse ponto, as propostas apresentadas pela OCDE no Plano de Ação nº
12 merecem elogios na medida em que se distanciam de práticas de “naming
and shaming” e concentram esforços em coibir a práticas de planejamentos
tributários através de mudanças legislativas necessárias para minimizar as-
simetrias entre legislações tributárias, fechar as brechas encontradas pelo
contribuinte, acabar com dúvidas interpretativas, entre outras medidas. No
entanto, como será demostrado abaixo, a OCDE erra ao não trazer uma defi-
nição de planejamento tributário agressivo, reforçando a insegurança concei-
tual em matéria tributária.

2.2 Os contornos do planejamento tributário agressivo.


A OCDE, através do Plano de Ação 12, do Projeto BEPS, ao propor o dis-
closure de planejamentos tributários agressivos sem, no entanto, trazer uma
definição de agressividade, vai além do combate à erosão da base tributável e
à transferência de lucros.

469
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A noção de planejamento tributário agressivo surgiu pela primeira vez


com os trabalhos do Fórum sobre Administração Tributária, promovido pela
OCDE em julho de 2002, do qual participaram as principais autoridades tribu-
tárias de países membros e não-membros da OCDE (BAKER, 2015, p.85). Nessa
esteira, a Declaração de Seoul, apresentada em 2006, mencionou o desenvolvi-
mento de um diretório sobre planejamento tributário agressivo, bem como des-
tacou a necessidade de se estudar o papel dos intermediários, entendidos como
consultores tributários advogados e contadores, na idealização e execução de es-
truturas que permitem a minimização da carga tributária de forma inaceitável.
O resultado do referido estudo, apresentado em 2006 e atualizado em
2008, é relevante para a presente análise, pois traz em seu glossário (OCDE,
2008, p. 87) uma definição de planejamento tributário agressivo. De acordo
com o referido documento, a noção de planejamento tributário agressivo se
relaciona com duas esferas de preocupação por parte das autoridades fiscais.
A primeira delas refere-se a posições fiscais adotadas pelo contribuinte
que, apesar de legalmente sustentáveis, apresentam consequências tributárias
inusitadas e inesperadas. Em tais casos, a preocupação das autoridades fiscais
se relaciona com os riscos do uso reiterado de esquemas tributários que al-
cancem resultados não previstos pelos legisladores. Esses riscos são potencia-
lizados pelo tempo transcorrido entre o momento em que os planejamentos
são idealizados e o momento em que as autoridades fiscais descobrem tais
estruturas e tomam as medidas cabíveis para combatê-las.
A segunda esfera, por sua vez, relaciona-se aos planejamentos baseados na
adoção de posições aparentemente favoráveis ao contribuinte em um cenário de
incerteza na interpretação e na aplicação da legislação tributária. Diante disso, a
preocupação das administrações tributárias é de que os contribuintes não infor-
mem que o planejamento é fundamentado em uma interpretação incerta da lei.
A partir da análise das definições acima apresentadas, é possível inferir
que o foco de atenção da OCDE, no que se refere ao planejamento tributário
agressivo, são as estruturas que alcançam resultados não previstos pelos legisla-
dores ou que se baseiam em interpretações incertas das legislações tributárias.
Contudo, os pontos levantados no estudo não são suficientes para identifi-
car, com clareza, quais seriam os contornos do chamado planejamento tributá-
rio agressivo. Isso porque, em primeiro lugar, nem sempre é possível identificar
de forma nítida quais os objetivos e resultados pretendidos pelo legislador tri-

470
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

butário. E, em segundo lugar, o referido estudo não aponta qual seria o grau de
incerteza na aplicação da legislação tributária necessário para que determinada
operação que se valha de tal imprecisão caracterize um planejamento abusivo.
Como sugere Baker (2015, p. 86), suspeita-se que, na realidade, ao im-
plementar regimes de mandatory disclosure, as autoridades fiscais pretendem
combater aqueles arranjos comercializados em massa que, pelo seu volume,
trazem um impacto relevante na arrecadação dos Estados, bem como aqueles
que, apesar de não serem comercializados em massa, resultam em uma redu-
ção individual expressiva na carga tributária devida pelo contribuinte.
O Plano de Ação nº 12 perpetua a referida indefinição ao não estabelecer
um conceito de planejamento tributário agressivo. Como já mencionado, a
OCDE recomenda que as regras de mandatory disclosure sejam estruturadas
de forma a permitir que a administração tributária tenha flexibilidade para
escolher os filtros que serão utilizados para identificar as transações alvo da
sua política de combate. Ao exemplificar quais seriam considerados bons fil-
tros – a previsão de confidencialidade do esquema; o pagamento de prêmio ou
“êxito”; a proteção contratual contra riscos de esquemas de prateleira, monta-
dos e comercializados em massa – é possível notar a intenção da OCDE de coi-
bir a comercialização de planejamentos tributários, sem discutir, no entanto, a
materialidade dos planejamentos tributários a serem combatidos.
Essa postura da OCDE confere às autoridades fiscais uma enorme discri-
cionariedade para definir os contornos do que seria planejamento tributário
e potencializa a insegurança jurídica do sistema (ESSERS, 2014, p. 57). Isso
porque a segurança jurídica não é garantida pela existência de leis per se, não
sendo algo inerente ao Direito, mas algo a ser buscado pelo Direito. De acordo
com a teoria desenvolvida por Ávila (2012, p. 327), a segurança jurídica cor-
responde à soma de três noções parciais, a saber, cognoscibilidade, confiabili-
dade e calculabilidade. Pela sua exigência de cognoscibilidade, o princípio da
segurança jurídica tem como objetivo servir de instrumento de orientação ao
contribuinte, de modo a impedir que este, baseando suas ações na legislação
vigente, se engane em relação ao que faz. Já o ideal de confiabilidade se destina
a garantir a estabilidade do Direito, preservando o passado no presente e evi-
tando que o contribuinte seja frustrado em relação ao que já fez. A calculabili-
dade, por sua vez, favorece a continuidade do Direito, resguardando o futuro
no presente e impedindo que o contribuinte seja surpreendido em relação ao

471
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

que está fazendo e ao que está por fazer. Se, conforme aponta Ávila, a segu-
rança jurídica, ao afastar o engano, a frustração e a surpresa, corporifica a res-
peitabilidade do contribuinte, a discricionariedade aponta em sentido oposto.
Nesse sentido, a insegurança conceitual em matéria de planejamento tri-
butário, reforçada pela OCDE, permite que os países tentem aprovar medidas
confusas e imprecisas de combate a tais esquemas. Nesse contexto, é possível
mencionar a Medida Provisória n° 685, de 21 de julho de 2015. O art. 7º da
supracitada Medida Provisória estabeleceu a obrigação do contribuinte de in-
formar à Receita Federal sobre atos ou negócios jurídicos que acarretem su-
pressão, redução ou diferimento de tributo, sempre que tais atos ou negócios
jurídicos (i) “não possuam razões extratributárias relevantes”; ou (ii) quando
“a forma adotada não for usual” ou utilizem-se de “negócio jurídico indireto”
ou contenham “cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de
um contrato típico”; ou, por fim, (iii) tratem-se de “atos ou negócios jurídicos
específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil”.
A Medida Provisória nº 685/15 se valeu de termos genéricos, sem defini-
ção na atual legislação tributária brasileira, tais como “razões extratributárias
relevantes” e “formas não usuais”, sem uma definição objetiva de quais ope-
rações e/ou atos ou negócios jurídicos deveriam ou não ser obrigatoriamente
informados ao fisco. Ainda que os dispositivos da referida medida provisória
que dispunham sobre a declaração obrigatória tenham sido vetados, é preciso
ressaltar que ela representa, em âmbito nacional, a tendência de manutenção
do padrão de insegurança jurídica em matéria de planejamento tributário.
Dessa forma, conclui-se que, se por um lado, práticas como as de “na-
ming and shaming” não endereçam corretamente os problemas decorrentes
dos planejamentos tributários, pois são baseadas em critérios de moralidade
em detrimento da legalidade, as medidas propostas pela OCDE através do
Plano de Ação nº 12 conferem às autoridades fiscais uma enorme discricio-
nariedade para definir os contornos do que considerariam planejamento tri-
butário e potencializam a insegurança jurídica vivida pelo contribuinte, tam-
bém se afastando da legalidade e, sobretudo, da segurança jurídica.

472
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3. transparência fiscal internacional: a necessidade de uma


discussão verdadeiramente holística

3.1.Transparência Fiscal Internacional:


uma questão de reciprocidade
Em que pese a transparência por parte do contribuinte estar tomando a
pauta internacional a partir dos trabalhos da OCDE (2010, p. 3), não sobram
dúvidas sobre o fato de que a – muito menos discutida – transparência do
Estado é um elemento fundamental não só para o impulso das relações eco-
nômicas em âmbito mundial, mas também para a construção de uma relação
de confiança entre fisco e contribuinte.
Atualmente, há, no âmbito dos sistemas tributários, intensas discussões
sobre o afastamento do sigilo fiscal do contribuinte, mas, em contrapartida,
muito pouco se vê de discussão sobre o papel da transparência estatal en-
quanto medida de clareza, simplicidade e confiabilidade do sistema tributário
(SCHOUERI; BARBOSA, 2013a, p. 522).
Do ponto de vista internacional, pretende-se, com os mecanismos de
transparência, tais como a troca de informações, que um contribuinte cujas
transações o tornem sujeito a mais de uma jurisdição não possa se valer de um
dos ordenamentos envolvidos como “escudo” apto a protegê-lo de suas obriga-
ções tributárias junto aos outros Estados. Nesse sentido, a troca de informações,
enquanto uma expressão da transparência fiscal internacional, tem o potencial
de fazer com que uma jurisdição tenha condições de “enxergar” as atividades
do contribuinte em um outro Estado (SCHOUERI; BARBOSA, 2013a, p. 498).
Mais de um plano de ação do Projeto BEPS defende a necessidade de
aperfeiçoar a transparência fiscal internacional e a troca de informações. O
Plano de Ação nº 5 (Counter Harmful Tax Practices More Effectively, Taking
into Account Transparency and Substance), por exemplo, recomenda a troca
obrigatória de informações entre países acerca de operações sujeitas a pro-
cessos de consulta que poderiam dar origem ao BEPS caso não houvesse a
referida troca. O Plano de Ação nº 13 (Re-examine Transfer Pricing Documen-
tation), por sua vez, requer que as multinacionais forneçam às autoridades

473
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

fiscais um alto nível de informações sobre as suas operações globais e sobre as


suas políticas de preços de transferência.
De acordo com a OCDE, apesar de ser evidente que as multinacionais se
valem de lacunas e assimetrias entre as legislações domésticas dos países para
fundamentar os seus planejamentos tributários, ainda não é possível, devido
à falta de informações, se dimensionar o impacto do BEPS nas receitas dos
Estados (OCDE, 2015c, p. 15). Dessa forma, faz-se necessário que os países
desenvolvam e aprimorem as suas análises de dados e troca de informações,
levando-se sempre em consideração a necessidade de se proteger a confiden-
cialidade dos contribuintes.
A troca rápida de informações sobre planejamentos tributários agressi-
vos seria importante não só para dar uma resposta antecipada ao risco de per-
da de receitas tributárias gerado por planejamentos tributários internacionais,
mas também para aprimorar a cooperação e a colaboração entre autoridades
fiscais. Justamente por conta disso, o Plano de Ação nº 12 ressalta a necessi-
dade de incluir nessa troca entre as autoridades fiscais as informações obtidas
através de programas de mandatory disclosure (OCDE, 2015a, p. 81).
Se não há dúvidas de que o contribuinte deve ser transparente em suas
transações, de modo que os comportamentos ilícitos e danosos ocultos sejam
combatidos, o debate global sobre a transparência fiscal, da forma proposta pela
OCDE, parece ser orientado em uma direção única, visto que se foca exclusiva-
mente na perspectiva da administração tributária. Em outras palavras, a noção
de transparência fiscal, tal como posta hoje, está ligada à ideia de acesso das
autoridades fiscais aos dados do contribuinte. É interessante notar, nesse ponto,
que, apesar de a OCDE propor, ao longo do projeto BEPS, uma abordagem mais
holística, a análise dos relatórios fiscais do projeto indica que, segundo os novos
padrões, o contribuinte é o único que terá que ser transparente.
Neste ponto, deve-se dar particular destaque ao fato de que a transparên-
cia unilateral permite que as autoridades fiscais tenham uma visão clara dos
negócios e transações realizados pelos contribuintes nos mais diversos países,
ao mesmo tempo em que o contribuinte frequentemente enfrenta no seu país
legislações tributárias extensas e complexas (SCHOUERI; BARBOSA, 2013b,
p. 667). A alta complexidade do sistema tributário faz com que o contribuinte
tenha pouca compreensão das informações tributárias disponíveis e dificulta
o cumprimento correto de suas obrigações, levando assim a um grande au-

474
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

mento nos seus custos de conformidade. O esforço que o contribuinte faz para
interpretar e aplicar a lei representa uma “insegurança jurídica fantasiada de
legalidade” (SANTI et al., 2012, p. 1).
Interessante notar que o Plano de Ação n° 12 reconhece que a obtenção
de informações tempestivas, abrangentes, relevantes e precisas sobre esque-
mas de planejamento tributário deve ser seguida de medidas que garantam
segurança jurídica e previsibilidade para os negócios. No entanto, a análise do
referido plano leva à conclusão de que os principais esforços da OCDE foram
direcionados quase que exclusivamente para a primeira parte da proposta, em
detrimento da segunda.
Assim sendo, é preciso reiterar que a noção de transparência nas rela-
ções entre fisco e contribuinte não se limita à discussão acerca do sigilo de
dados do contribuinte, uma vez que também exige reciprocidade, referindo-se
ao próprio Estado e ao sistema tributário que o sustenta (SCHOUERI; GA-
LENDI JUNIOR, 2015, p. 248-249). O combate ao planejamento tributário
agressivo passa por uma série de discussões, tais como os limites do planeja-
mento tributário lícito, competição fiscal danosa, alta complexidade dos sis-
temas tributários, pressão social, sigilo bancário, troca de informações, apri-
moramento da relação entre os Estados, proteção aos direitos fundamentais
dos contribuintes, existência de regras gerais antielisivas (GAARs) e regras
específicas antielisivas (SAARs), abuso de tratados, entre outras (WEEGHEL;
EMMERINK, 2013, p. 428).
Sob essa perspectiva, se as discussões sobre planejamento tributário par-
tirem da premissa de que os problemas de erosão da base tributável e de trans-
ferência de lucros são gerados exclusivamente pelo fato de que os contribuin-
tes distorcem as regras do sistema para escapar de suas obrigações tributárias,
a situação não será corretamente endereçada. É preciso incluir na pauta de
discussões a necessidade de reduzir a complexidade dos sistemas tributários,
repensar o número excessivo de leis e de deveres instrumentais; aprimorar a
acessibilidade do contribuinte às autoridades fiscais e incrementar a clareza
e consistência das interpretações sobre a legislação tributária, permitindo-se
uma ampla divulgação de tais interpretações e de autos de infração. Apenas
assim estaríamos diante de uma abordagem realmente holística.

475
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3.2Transparência Fiscal Internacional:


equilíbrio de forças entre as nações
Da mesma forma que é possível identificar um desequilíbrio entre os
interesses dos contribuintes e das autoridades fiscais, também é possível veri-
ficar uma contraposição dos interesses de países desenvolvidos e de países em
desenvolvimento no que diz respeito às regras de mandatory disclosure, nos
termos propostos pela OCDE.
Primeiramente, é preciso destacar a assimetria existente entre países desen-
volvidos e países em desenvolvimento no que se refere à demanda por informa-
ções fiscais, especialmente em relação a planejamentos tributários internacionais.
Os países desenvolvidos têm uma necessidade muito maior de obter in-
formações de países com baixa tributação, tais como paraísos fiscais, do que
o inverso (STEWART, 2012, p. 177-178). Trata-se de um fluxo praticamente
unilateral de informações, conveniência quase que exclusiva dos países desen-
volvidos, maiores prejudicados pelas estratégias das multinacionais de erosão
da base tributável e transferência de lucros. Em outras palavras, questiona-se
em que medida uma regra de mandatory disclosure para planejamentos tribu-
tários internacionais e a troca de informações inerentes ao procedimento são
de fato relevantes para os países em desenvolvimento.
A segunda questão que pode ser levantada está relacionada aos suposta-
mente altos custos que devem ser suportados pelo Estado que levar a cabo um
sistema eficaz de mandatory disclosure rules nos termos propostos pela OCDE.
Apesar de a imposição de regras de mandatory disclosure aumentar os custos de
conformidade dos contribuintes, é inegável que a sua adoção também acarreta
custos significativos para os Estados, tendo em vista que não basta implementar
a regra, é preciso desenvolver procedimentos para que as informações sejam
corretamente analisadas e compreendidas. Sem a adoção dessas medidas, ape-
sar da obtenção das informações, os planejamentos tributários potencialmente
agressivos ou abusivos não serão propriamente identificados e combatidos.
É preciso ter em mente que nos países em desenvolvimento pode haver
uma falta de recursos humanos para implementar um programa de manda-
tory disclosure de forma eficiente. Nesse sentido, boa parte dos países em de-
senvolvimento conta com uma única equipe responsável por todas as ques-

476
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tões envolvendo tributação internacional. Consequentemente, o combate ao


planejamento tributário internacional não será necessariamente a prioridade
para a administração tributária ou tampouco os casos complexos serão dire-
cionados a setores especializados. A ausência de estrutura para lidar com esse
tipo de questão pode impedir que a matéria seja analisada de forma célere
e eficiente, o que é um dos pressupostos da proposta da OCDE no Plano de
Ação 12. Também se faz necessário ressaltar que os países em desenvolvimen-
to possuem prioridades mais urgentes e recursos mais escassos, o que faz com
que não necessariamente verbas sejam destinadas para garantir que o progra-
ma de mandatory disclosure seja realizado de forma eficiente.
Ainda, é preciso mencionar que a adoção de regras de mandatory disclo-
sure em âmbito global fará com que a OCDE tenha conhecimento das estra-
tégias adotadas pelos contribuintes e possa liderar as mudanças legislativas
necessárias ao combate dos planejamentos fiscais agressivos, bem como esta-
belecer parâmetros interpretativos sobre o que é aceitável ou não em matéria
de planejamento tributário (BAKER, 2015, p. 89). Desse modo, é fundamental
avaliar se seria interessante para os países em desenvolvimento que a OCDE
exercesse qualquer influência ou pressão no processo legislativo interno, ten-
do em vista que nem sempre o interesse dos países, especialmente daqueles em
desenvolvimento, coincidirá com os interesses da OCDE.
Como já dito, boa parte dos planejamentos tributários internacionais se
aproveitam de assimetrias nas legislações domésticas. Nesse contexto, a im-
plementação de uma regra de mandatory disclosure pode ajudar as autorida-
des fiscais a identificar tais assimetrias com mais rapidez, permitindo que,
através de um mecanismo de troca de informações, haja a comunicação do
esquema aos demais países envolvidos e, assim, surjam as consequentes mu-
danças legislativas necessárias ao combate dos planejamentos fiscais.
Logo, os países em desenvolvimento, antes de implementarem programas de
mandatory disclosure em seu ordenamento, nos termos propostos pela OCDE, de-
vem avaliar se de fato os custos envolvidos em tal implementação seriam compen-
sados pelo retorno arrecadatório decorrente do combate ao planejamento interna-
cional em seu território. Além disso, devem analisar se os impactos positivos de sua
implementação não seriam, na realidade, verificados em outros países, normalmen-
te desenvolvidos, onde os planejamentos tributários internacionais são idealizados

477
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

e comercializados, bem como onde os impactos da erosão da base tributável e da


transferência de lucros são mais intensos.
Diante desse cenário e levando em consideração que a atração de investimen-
tos é crucial para países em desenvolvimento e que muitas vezes esta atração se dá
por meio de vantagens tributárias, é preciso conjecturar a possibilidade de o Plano
de Ação n° 12 não ter a adesão esperada por parte da OCDE, do mesmo modo que
ocorreu em 2011, quando foi apresentado o Report on Disclosure Initiatives.
Sendo assim, é necessário reiterar que a noção de transparência fiscal inter-
nacional não envolve apenas a contraposição de interesses entre o fisco e o contri-
buinte, mas também dos interesses entre os Estados envolvidos. Da mesma forma
que a OCDE conduz os debates sobre transparência sob a perspectiva do fisco, as
necessidades dos países em desenvolvimento também são preteridas, o que faz com
que o resultado apresentado pelo Plano de Ação 12 seja incompleto e parcial.

Conclusões
Em razão da grande notoriedade que adquiriram os esquemas de pla-
nejamento tributário relacionados a multinacionais, especialmente após a
exposição de tais estruturas pela mídia, o G20 incumbiu a OCDE de desen-
volver uma política de realinhamento das práticas fiscais internacionais com
o objetivo de coibir a utilização de estruturas que tenham como propósito a
erosão da base tributável e a transferência de lucros, bem como de restaurar a
confiança no sistema tributário internacional.
Ocorre que a confiança no sistema tributário internacional, principalmen-
te no que diz respeito ao combate aos planejamentos tributários agressivos, não
será restaurada enquanto não houver um diálogo verdadeiro entre autoridades
ficais e contribuintes e entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Os debates sobre planejamento tributário pertencem ao campo jurídico.
Conferir-lhes um teor ético ou relacionado à suposta moralidade das empresas
certamente não contribui para o aperfeiçoamento do sistema. A questão do pla-
nejamento tributário deve ser analisada e enfrentada, se for o caso, no campo
das alterações legislativas, como bem propõe o Plano de Ação nº 12, assim como
através da intensificação da transparência (mútua) entre fisco e contribuinte e
do estabelecimento de um clima de cooperação entre administração e adminis-

478
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

trado, e não através de boicotes e danos reputacionais. No entanto, a ausência


de uma definição sobre planejamento tributário agressivo leva as discussões em
sentido oposto, pois gera insegurança jurídica e faz com que o contribuinte pos-
sa apresentar resistência às regras de mandatory disclosure.
No que diz respeito à noção de transparência fiscal internacional, as dis-
cussões apresentadas no Plano de Ação n° 12 do Projeto BEPS continuam sen-
do unilaterais, com foco exclusivo nas necessidades das administrações tribu-
tárias, deixando as demandas dos contribuintes à margem. Se as discussões
sobre planejamento tributário partirem da premissa de que os problemas de
erosão da base tributável e de transferência de lucros são culpa exclusiva dos
contribuintes e de suas más intenções em escapar de suas obrigações tributá-
rias e por isso devem ser os únicos a serem transparentes, os problemas não
serão devidamente corrigidos. É preciso que se inclua na pauta de discussões
a necessidade de reduzir a complexidade dos sistemas tributários, repensar o
número excessivo de leis e de deveres instrumentais, melhorar a acessibilida-
de do contribuinte às autoridades fiscais e incrementar a clareza e a consistên-
cia das interpretações sobre a legislação tributária.
Do mesmo modo, a OCDE, ao desenvolver as ações relacionadas ao Pro-
jeto BEPS, não levou em consideração que países desenvolvidos e em desen-
volvimento muito provavelmente apresentam interesses distintos no combate
ao planejamento tributário. Nesse ponto, merece destaque a assimetria exis-
tente entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento no que se re-
fere à demanda por informações fiscais, especialmente sobre planejamentos
tributários internacionais. Dessa forma, os últimos devem avaliar se de fato
a implementação de regras de mandatory disclosure, nos termos propostos
pela OCDE, converge com os objetivos de política fiscal do país, levando-se
em consideração os custos de implementação, a possibilidade de redução na
capacidade de atrair investimentos e os benefícios trazidos pela regra.

479
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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482
17. O Plano de Ação n° 12 do BEPS e seus
Reflexos na Política Fiscal Brasileira

Fernando Daniel de Moura Fonseca


Residência Pós-Doutoral em Direito Tributário na Universi-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Mestre e Doutor em Direito Tributário pela Universidade de
São Paulo (USP)
Master of Laws (LL.M.) pela New York University (NYU)
Especialista em Direito Tributário pela Fundação
Getúlio Vargas (FGV)
Advogado e Contador

Júlia Furst Nóbrega de Oliveira


Bacharel em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG)
Advogada

Sumário: Introdução. 1. O Projeto BEPS e o Plano de Ação nº 12. 1.1.


Principais Recomendações do Plano de Ação n° 12. 1.2. Críticas ao Plano de
Ação nº 12. 2. O Plano de Ação nº 12 sob a Perspectiva Interna. 2.1. O Plane-
jamento Tributário. 2.2. Críticas à tentativa brasileira: a Medida Provisória nº
685/2015. 3. Conclusão. Bibliografia.
Resumo: O Plano de Ação n° 12 do BEPS desenvolve recomendações
para a introdução de um modelo de divulgação compulsória de informações
sobre planejamentos tributários abusivos ou agressivos, em linha com o ob-
jetivo da OCDE/G20 de incrementar o fluxo de dados entre contribuintes e
o Fisco. No entanto, tal iniciativa apresenta potenciais problemas relativos a
sigilo e confidencialidade, bem como à criação de assimetrias desta obrigação
acessória no plano internacional. Ademais, a tentativa precipitada de sua im-
plementação no Brasil, o que ocorreu por meio da MP n° 685/2015, revela con-
trovérsias tanto em relação à própria Ação n° 12 quanto à legislação brasileira.

483
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Palavras-chave: Planejamento tributário agressivo. Divulgação compul-


sória de informações. Sigilo e Confidencialidade.
Abstract: BEPS Action Plan 12 develops recommendations regarding the
design of mandatory disclosure rules for aggressive or abusive transactions, in
accordance with OECD/G20’s goal of improving information sharing between
taxpayers and tax administrations. However, such device raises potential issues
about non-disclosure and confidentiality, as well as asymmetry pursuant to this
obligation from a global perspective. In addition to that, the attempt to introdu-
ce it in Brazil, by means of the MP n. 685/2015, brings forward controversies in
relation to the Action 12 itself and to the domestic legislation.
Keywords: Aggressive or abusive transactions. Compulsory information
sharing. Non-disclosure and confidentiality.

Introdução
O Projeto BEPS - Base Erosion Profit Shifting Action Plan339 foi lançado
em 2013 pela OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico e é fruto da preocupação dos países membros do G-20 em comba-
ter a erosão das bases tributárias e a transferência de lucros entre jurisdições.
Dentre os vários assuntos abordados pelo Projeto, encontra-se o da criação de
regimes de divulgação compulsória de operações de planejamento tributário,
dispostos no Plano de Ação n° 12. Aparentemente, o principal objetivo busca-
do com a introdução desse tipo de legislação é o aumento da transparência nas
relações entre contribuintes e autoridades fiscais, permitindo a estas o acesso
tempestivo às informações relacionadas a arranjos tributários potencialmente
agressivos ou abusivos (OECD, 2015a, p. 33).
Muito embora se trate de finalidade inegavelmente louvável, a sua implan-
tação pode levar a resultados que contrariam os objetivos gerais do próprio Pro-
jeto BEPS, de modo que os seus diversos aspectos devem ser cuidadosamente
avaliados. De antemão, é preciso alertar que não se deve ignorar o risco de que
as recomendações propostas pela Ação n° 12 elevem o grau de assimetria entre
os sistemas tributários, ao invés de aumentar a sua harmonização.

339 Em tradução livre, “plano de ações sobre erosão da base e transferência de lucros”.

484
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No que tange à tentativa de introdução no Brasil de legislação supos-


tamente alinhada às recomendações do Plano de Ação n° 12, o que se deu
por meio da Medida Provisória n° 685/2015,340 verifica-se uma série de con-
tradições, tanto em relação a disposições do ordenamento jurídico nacional,
quanto ao que o próprio Relatório Final da Ação n° 12 recomenda, tornando
indevida a sua invocação como fundamento de validade para as mudanças
pretendidas. É preciso que se tenha cautela para que o BEPS não seja trata-
do, do ponto de vista do discurso político, como uma justificativa universal
às alterações ocorridas no plano doméstico, sobretudo àquelas que venham
impactar a liberdade com a qual os contribuintes conduzem suas operações.
Nessa perspectiva, cotejando as recomendações dispostas no menciona-
do Plano de Ação com as determinações da MP nº 685/2015, o trabalho bus-
cou evidenciar as falhas atreladas à autoincriminação advinda da presunção
de dolo, fraude e sonegação, e a ausência, no âmbito nacional, de regras claras
e seguras à concretização de um modelo de compartilhamento de informa-
ções. Também são objeto de crítica a ausência de dispositivos destinados ao
combate à elisão fiscal internacional, e a incompatibilidade das demais deter-
minações com os princípios basilares de um Estado Democrático de Direito.

1. O Projeto BEPS e o Plano de Ação n° 12

1.1 Principais Recomendações do Plano de Ação n° 12


O Projeto BEPS busca desenvolver um abrangente conjunto de estudos
e medidas acerca do tema da erosão das bases tributáveis e da transferência
de lucros, possibilitando o monitoramento específico de certas operações e
o fortalecimento da transparência. A iniciativa prevê a atuação coordenada
entre países, seja por meio de modificações em suas respectivas legislações
domésticas ou mediante a elaboração de tratados internacionais, compreen-
dendo uma resposta à atuação global341 das multinacionais em um ambiente

340 As observações aqui formuladas não estão vinculadas exclusivamente ao texto da MP n° 685/2015,
sendo aplicáveis a qualquer legislação que siga linha semelhante.
341 “A facilitação da circulação de pessoas e capitais, entretanto, surpreende como novo limite às
pretensões tributárias dos Estados nacionais. O incremento na gama de possibilidades para a
estruturação dos modelos operacionais das empresas, sobretudo, das multinacionais implica

485
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

demarcado pela economia digital,342 no qual ativos intangíveis vêm assumin-


do relevante papel na definição dos fluxos comerciais (ROCHA, 2017, p. 62). O
objetivo geral do programa, portanto, é combater planejamentos tributários
agressivos, atacando suas causas, estimulando a criação de um ambiente in-
ternacional de negócios em que o fator tributário é minimizado por ocasião
da tomada de decisões de investimento.
Nessa perspectiva, dentre outras propostas, o Projeto contempla o Pla-
no de Ação n° 12, que desenvolve recomendações para a adoção de regras
que obriguem contribuintes a declarar operações de planejamento tributário
consideradas abusivas ou agressivas. Para tanto, sugere-se a criação de uma
estrutura modular que permita uma máxima consistência, mas que, ao mes-
mo tempo, apresente certa flexibilização em razão das necessidades e riscos
específicos de cada país (OLIVEIRA, 2018, p. 118), considerando, sobretudo,
os custos operacionais para as administrações fazendárias e empresas. Nes-
sa disposição, um dos focos são os arranjos tributários internacionais, com
a utilização de uma definição abrangente de ‘benefício fiscal’, de modo a al-
cançar tais transações. Por fim, a Ação n° 12 também envolve a estruturação
e a adoção de modelos aprimorados de troca de informações sobre operações
internacionais entre Fiscos (OECD, 2013, p. 22). Como se vê, muito embora as
pretensões denotem uma “amplitude esmagadora” (BRAUNER, 2014, p. 111),
a maior parte do trabalho se refere à elaboração de uma ferramenta de cará-
ter essencialmente doméstico, e, portanto, com elevado potencial de conflitar
com disposições internas343.

também os modelos operacionais próprios de cada país cederem lugar a modelos globais, cujas
estruturas são baseadas em escala regional e mundial (OCDE, 2013, p. 7)” (SCHOUERI, 2016, p. 29).
342 “Neste sentido, explica o relatório de apresentação do Projeto BEPS (OCDE, 2013, pp.7-8), o intenso
crescimento da economia digital, além de permitir que os negócios tenham várias atividades
produtivas longe da localização de seus clientes, também teria contribuído para que especialistas
explorassem os limites do planejamento tributário, proporcionando às multinacionais mais confiança
na tomada de posições fiscais audaciosas (não supreendentemente, identificadas pelo Alto Comando
como ‘agressivas’). Consequentemente, as multinacionais conseguem reduzir de forma significativa a
sua carga tributária o que, segundo o relatório, teria gerado tensão social relativa a questões de justiça
tributária. Resultado: a erosão da base tributária e a transferência de lucros (BEPS) acabariam por
prejudicar os governos, os contribuintes e os negócios” (SCHOUERI, 2016, p. 31).
343 “Importante registrar que a inquietação do Projeto BEPS da OCDE/G20 com o compartilhamento
de informações sobre arranjos, transações e estruturas de minimização tributária entre as
administrações fiscais não se restringiu aos planejamentos tributários internacionais. Uma das

486
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O Plano de Ação n° 12 assume importância no momento em que a OCDE


identifica a falta de transparência e coordenação entre administrações fazen-
dárias ao redor do globo como uma das principais causas da erosão das bases
tributárias e da transferência de lucros. Assim, o desenvolvimento eficaz da
ferramenta proposta seria capaz de incrementar a quantidade de informações
disponíveis às autoridades fazendárias, de modo a possibilitar respostas mais
céleres a operações de planejamento tributário consideradas indesejáveis. A
OCDE entende que um fluxo maior de informações dos contribuintes para as
autoridades permite que medidas sejam tomadas de forma mais veloz e dire-
cionada às áreas de maior risco.
Em outras palavras, “o objetivo principal das regras de declaração obri-
gatória é fornecer informações tempestivas sobre arranjos de planejamento
tributário potencialmente agressivos ou abusivos e identificar os promotores e
utilizadores desses sistemas. A detecção precoce a partir da obtenção de infor-
mações rápidas e relevantes aumenta a eficácia das autoridades fiscais em suas
atividades de compliance. Como resultado, alguns dos recursos que de outra
forma seriam dedicados à detecção da evasão fiscal, por exemplo, através da
auditoria, poderiam ser reutilizados para rever e responder às divulgações do
esquema. Além disso, a informação antecipada pode permitir que as admi-
nistrações fiscais respondam rapidamente a mudanças no comportamento
dos contribuintes através de políticas operacionais, alterações legislativas ou
regulamentares” (OECD, 2015c, p. 18).
As regras de declaração, nessa perspectiva, deverão ser claras e compre-
ensíveis, buscando um equilíbrio entres os custos adicionais a serem incorri-
dos pelos contribuintes com os benefícios auferidos pelas autoridades fiscais.
Necessário que sejam também eficazes na consecução dos objetivos políticos
almejados pelo Projeto BEPS, identificando com precisão os esquemas consi-
derados relevantes, o que permite que as informações, ao fim, sejam coletadas
de maneira eficiente (ROCHA, 2017, p. 277).
Para além de sua finalidade informativa, as regras de divulgação obriga-
tória objetivam dissuadir a promoção e utilização dos planejamentos tribu-
tários considerados agressivos. Ao se exigir a publicização de tais estruturas,

explicações seria a preocupação de que planejamentos tributários domésticos implementados com


êxito em um país fossem exportados para outros países” (OLIVEIRA, 2018, p. 131).

487
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

pressiona-se o mercado, reduzindo a possibilidade no emprego de tais opera-


ções. Afinal, ao redor dos planejamentos listados pelas autoridades adminis-
trativas como abusivos, é criado um certo estigma, fazendo com que algumas
companhias adotem uma postura mais conservadora na condução de seus
negócios (OLIVEIRA, 2018, p. 114).
Diante desses objetivos, os principais elementos básicos são os seguintes:
(i) quem deve declarar: as regras podem requerer a realização da declara-
ção pelo usuário do arranjo tributário ou pelo seu idealizador, ou até mesmo
por ambos; (ii) o que deve ser declarado: ponto que pode ser subdividido em
dois: (ii.1) primeiramente, as administrações fazendárias devem decidir quais
tipos de arranjos representam o alvo do regime, definindo quais deles são de-
claráveis, com as ressalvas de que o fato de uma operação ser declarável não
acarreta necessariamente a sua caracterização como elisão ou evasão fiscal, e
de que é provável que o regime não alcance todas as situações abusivas, de-
vendo ser direcionado às áreas de maior risco; (ii.2) é preciso definir, também,
quais informações devem ser declaradas, assegurando-se concomitantemente
que elas sejam claras e úteis e que não ocasionem um custo de conformidade
adicional indevido ou desnecessário aos contribuintes; (iii) quando a infor-
mação deve ser declarada: considerando que o propósito do regime é o for-
necimento de informações antecipadas acerca de operações de planejamento
tributário, este ponto se mostra essencial à eficácia do que se pretende com a
declaração; (iv) quais as consequências da ausência de conformidade: o que
geralmente se faz com a imposição de sanções, como, por exemplo, pena pe-
cuniária pela não declaração de um regime, pelo não fornecimento ou manu-
tenção de lista de clientes e multa pela não indicação de número de referência
do regime e do esquema de dada transação (ROCHA, 2017, p. 277); e (v) quais
as consequências da divulgação: o que deve ser feito de maneira muito clara,
principalmente em relação ao fato de que efetivar a declaração não implica a
sua validade ou aceitação (OECD, 2015c, pp. 18-19)
Ademais, como adiantado, o Relatório Final também desenvolve recomen-
dações específicas que fazem com que o regime de divulgação compulsória possa
alcançar operações de planejamento tributário internacionais. Conforme identi-
ficado pela OCDE, existe uma série de diferenças entre os arranjos domésticos e
os internacionais que tornam estes últimos mais difíceis de serem alcançados por
intermédio de regimes de divulgação obrigatória (OECD, 2015a, p. 34).

488
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

De maneira geral, tal dificuldade surge do fato de que estas operações


geram múltiplos benefícios fiscais em diferentes jurisdições, de forma que as
benesses auferidas em um país podem passar despercebidas quando vislum-
bradas de forma isolada. Assim, regimes que focam exclusivamente em resul-
tados domésticos obtidos por contribuintes, sem que se visualize a imagem
completa e global, podem deixar de capturar muitos tipos de planejamentos
tributários plurilocalizados (OECD, 2015c, p. 68).
Nessa seara, o plano recomenda a adição de identificadores no ponto (ii)
acima (o que deve ser declarado) direcionados a operações que causem efeitos
transfronteiriços, mas apenas em relação àquelas cujas repercussões fiscais se-
jam materialmente identificáveis na jurisdição em que se requer a divulgação
e nas quais o contribuinte doméstico esteja ciente – ou, ao menos, se espere
razoavelmente que tivesse o dever de estar ciente – dos seus efeitos.
Os identificadores devem ser tanto específicos, selecionando operações
que representam riscos materiais à jurisdição de divulgação das informações,
quanto genéricos, fazendo referência aos efeitos fiscais das operações, de modo
a alcançá-las independentemente de como o arranjo tenha sido estruturado.
A combinação de ambos tem o condão de direcionar os esforços para áreas
identificadas como de maior risco, ao mesmo tempo em que alcança arranjos
inovadores (OECD, 2015c, p. 71).
Conjuntamente, o Relatório Final recomenda a adoção de uma lista de ar-
ranjos cuja divulgação não é necessária, sob os indicadores internacionais, com
o objetivo de evitar a publicização de operações cuja existência não apresenta
riscos às políticas tributárias. Note-se que, ao tecer recomendações do regime de
divulgação compulsória, a OCDE nunca afasta a preocupação de se criar custos
de conformidade excessivos ou desnecessários para os contribuintes.
Adicionalmente, o Plano propõe que contribuintes que efetuem transa-
ções dentro do mesmo grupo econômico – que tenham consequências mate-
riais na jurisdição que requer a divulgação da informação – devam ser obri-
gados a fazer indagações razoáveis se os efeitos internacionais que as referidas
transações tenham são especificamente identificados como declaráveis no
âmbito de suas jurisdições de residência (OECD, 2015, p. 35).
Por fim, as últimas recomendações do Plano de Ação n° 12 focam na co-
operação e na troca de informações entre autoridades tributárias de diferentes
países, o que seria feito sob a tutela da Joint International Tax Shelter Informa-

489
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tion and Collaboration Network (JITSIC Network), uma plataforma aberta e


de adesão voluntária. Seus membros serão encorajados a compartilhar espon-
taneamente, no âmbito das convenções internacionais e dos acordos de tro-
cas de informação, dados relativos a riscos tributários emergentes, de modo a
aprimorar as relações bilaterais e multilaterais entre os países.
Assim, a plataforma também funcionará como um fórum de discussão
dos problemas oriundos das informações coletadas sob os regimes de divul-
gação obrigatória, tais como os que são objeto do Plano de Ação n° 2 (Hybrid
Mismatch Arrangements) e n° 6 (Treaty Abuse). A plataforma também deverá
operar como uma ferramenta que fornece oportunidades aos países para cola-
borar com outros membros da JITSIC para garantir que multinacionais sejam
tributadas nas jurisdições apropriadas e sob os valores corretos de receitas e
ganhos (OECD, 2015c, p. 82).
Finalmente, cumpre ressaltar que as recomendações acima descritas, sejam
as que traçam regras gerais de divulgação compulsória de informações no plano
doméstico e internacional, sejam aquelas voltadas ao desenvolvimento de uma
estrutura de compartilhamento entre as autoridades fiscais, não representam pa-
drões mínimos de observação obrigatória. Ao contrário, tratam-se, como já dito,
de recomendações que, à luz de experiências verificadas em outros países, con-
sistem em um compilado de “melhores práticas”, que serão ou não aplicáveis a
depender de um juízo de conveniência de cada país (OLIVEIRA, 2018, p. 134).

1.2 Críticas ao Plano de Ação n° 12


Não obstante o Plano de Ação n° 12 objetive incrementar a transparência
e o fluxo de informações entre contribuintes e autoridades fiscais – e entre
fiscalizações fazendárias de diferentes países –, sua implementação oferece
riscos que talvez não suplantem os seus potenciais benefícios.
De início, chama-se atenção ao conceito344 atribuído aos planejamentos
tributários considerados “agressivos” e/ou “abusivos”, operações estas sujeitas

344 “O conceito utilizado para este termo consta em relatórios anteriores da OCDE. Em um
relatório datado de 2008, por exemplo, sobre o papel dos intermediários (Study into the Role of
Tax Intermediaries), a definição proposta abrangia duas situações distintas: (i) planejamentos
envolvendo posições tributárias sustentáveis mas geradoras de receitas tributárias não intencionais
e inesperadas; e (ii) planejamentos nos quais se assume uma posição fiscal que é favorável ao

490
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

às regras de divulgação disciplinadas pelo Plano de Ação nº 12. Muito embo-


ra transações dessa natureza não sejam necessariamente correlatas, ao traçar
suas recomendações, a OCDE as aproxima, indicando que ambas devam se
submeter a um suposto dever de transparência fiscal. Todavia, ainda que a pu-
blicização seja o objetivo primordial, a iniciativa não expõe com clareza quais
atividades incorreriam nessa obrigação. Traça-se uma definição abrangente
para o planejamento tributário tido como agressivo, o que, de certo modo, já
inviabiliza a própria concretização do Plano de Ação.
Como apontado por LEÃO, “a falta de clareza com relação à definição da
expressão ‘planejamento tributário agressivo’ mostra que se trata de um ´con-
ceito guarda-chuva´(umbrela concept), com a intenção de abranger não apenas
aquilo que seria doutrinariamente chamado de planejamento tributário abu-
sivo ou evasão tributária, como também o planejamento tributário lícito ou a
elisão tributária [...] O problema não é o termo em si, mas a abrangência cada
vez mais ilimitada que lhe é fornecida pela própria OCDE e pelas autoridades
fiscais que se veem influenciadas em sua atuação” (2018, pp. 285-286).
Como visto previamente, as diretrizes aduzidas no Plano de Ação nº 12
não denotam caráter vinculante. Dessa maneira, uma condenação meramente
política do que seria um planejamento tributário agressivo ou abusivo não
tem o condão de, por si só, transformá-lo em uma “atividade ilícita do ponto
de vista normativo” (LEÃO, 2018, p. 286). Ainda assim, sob uma perspectiva
prática, o que se percebe é que a designação atribuída a esse tipo de operação
– agressiva ou abusiva – naturalmente traz consigo um caráter pejorativo que
muito influencia as decisões administrativas e judiciais sobre o tema. Nesse
contexto, a indeterminação e a equivocidade do termo se tornam mais preju-
diciais, pois não se sabe ao certo qual transação específica se enquadraria nas
recomendações da Ação nº 12, mas, inevitavelmente, a ela já seria atribuída
uma conotação negativa apenas por se tratar de um planejamento tributá-
rio. Tais circunstâncias violam a segurança jurídica necessária à condução de

contribuinte sem revelar abertamente que há insegurança sobre questões relevantes de acordo
com a lei, ou seja, que há aproveitamento de ‘áreas cinzentas’ da lei. Em suas perguntas e respostas
sobre o BEPS, a OCDE menciona a adoção de ‘estratégias de planejamento tributário que exploram
lacunas e desajustes nas regras tributárias para fazer os lucros desaparecerem para fins tributários
ou que enviam lucros para locações onde há pouca ou nenhuma atividade real, mas a tributação é
menor’” (LEÃO, 2018, p. 285).

491
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

todo e qualquer negócio, impondo ao contribuinte uma censura automática,


que, na maior parte dos casos, é desprovida de qualquer substrato normativo.
Para além da insegurança que permeia o Plano de Ação nº 12, destaca-se,
também, que a iniciativa representa um risco aos direitos à privacidade e con-
fidencialidade. Afinal, criar-se uma obrigação para que os promoters345 de
estruturas declarem este tipo de informação representa uma violação desses
direitos, que apenas deveria se justificar em razão do interesse público supe-
rior (BAKER, 2015, p. 90).
Na seção destinada a tecer recomendações sobre quem deva efetuar a
declaração, o Relatório Final indica dois modelos básicos a serem seguidos: (i)
tanto o consultor tributário quanto o contribuinte devem declarar; ou (ii) o
consultor tributário ou o contribuinte devem declarar. Em qualquer um dos
casos, quando a obrigação repousa sobre o consultor tributário, recomenda-se
que este forneça números de referência para classificar arranjos tributários ou
até mesmo listas de clientes que colocaram em prática os referidos arranjos.
Certamente, esse modelo não é compatível com ordenamentos jurídi-
cos nos quais advogados e consultores jurídicos têm o dever de manter sigilo
profissional e nos quais o direito à privacidade é constitucionalmente assegu-
rado346. Ademais, mesmo nos países em que o sigilo não é obrigatório, criar-
-se-ia um ambiente em que os contribuintes teriam medo de tomar opiniões
legais e colocá-las em prática, sob pena de terem suas operações divulgadas.
Denota-se, com base nessas determinações, uma certa unilateralidade
no dever de divulgação. Apesar de se recomendar a criação de uma estrutura
para compartilhamento entre administrações fazendárias de diferentes paí-
ses (JITSIC Network), as exigências, ao fim, recaem majoritariamente sobre a
figura do contribuinte ou mesmo de seu consultor, retratando “uma adoção
apenas parcial do conceito de ‘transparência fiscal” (LEÃO, 2018, p. 289), que

345 Promoters são os agentes que estruturam as operações de planejamento tributário, em oposição aos
customers, que são os usuários dos arranjos. Na realidade brasileira, os promoters assumem a figura
dos consultores tributários, enquanto que os customers representam as empresas que colocam em
prática as operações.
346 Esta questão ganha contornos ainda mais relevantes quando o acesso e divulgação de dados se opera
entre países distintos. Em tais circunstâncias, para além da quebra de sigilo em si, questiona-se a
própria noção de soberania, refletida no exercício da jurisdição (SCHOUERI, 2013, p. 516).

492
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

também deveria alcançar as autoridades fiscais e o próprio Estado para uma


maior eficiência do Sistema Tributário.347
Necessário ressaltar que vincular imposições apenas à figura do contri-
buinte significa imputar-lhe toda a responsabilidade pela prática de um plane-
jamento tido por abusivo, desconsiderando que, por vezes, estas práticas têm
origem em comportamentos estatais complexos, porém pouco eficientes, que
acentuam, ainda mais, a polarização da relação fiscal348.
Neste ponto, cabe destacar que a Ação nº 12, mesmo que indiretamente,
pode fomentar o estigma do conflito. Fazendo-se valer da indeterminação acima
indicada, o Projeto BEPS pretende combater tanto a atuação ilícita, quanto a de
empresas que, nos limites da lei, otimizam sua carga tributária. Tal pretensão faz
com o que os contribuintes, lastreados na legalidade de suas operações, saiam em
defesa de suas condutas, podendo gerar, em contrapartida, alterações legislativas
prejudiciais ao próprio empreendedorismo (SCHOUERI, 2016, p. 49).
Trata-se de cenário absolutamente desfavorável, considerando, sobretudo,
que Estado e contribuintes se encontram em clara relação de interdependência.
O contexto, portanto, demanda efetiva cooperação e a reciprocidade na colabo-
ração requer transparência, atributo que, certamente, não se concretiza de for-

347 “É dizer, ao invés de ocupar-se tão somente com o polêmico disclosure das transações e dados
particulares dos contribuintes, a noção de transparência deveria ser estendida ao próprio Estado e
dizer respeito ao sistema tributário como um todo. Esse ponto é bem observado por Ricardo Lobo
Torres, cuja ampla noção de transparência fiscal, dirigida ‘ao Estado com à sociedade’, indica que
‘a atividade financeira deve se desenvolver segundo os ditames da clareza, abertura e simplicidade’,
de modo a superar os ‘riscos fiscais derivados do descontrole orçamentário, da gestão irresponsável
de recursos públicos, da corrupção dos agentes do Estado’, entre outros [...] A transparência fiscal,
entretanto, vai além de seu relevantíssimo efeito político; ela é condição para a eficiência do sistema
tributário. Especialmente em economias abertas, nas quais os investidores se encontram livres
para decidir onde depositar suas economias, importa assegurar-lhes amplo conhecimento da carga
tributária a que estarão sujeitos” (SCHOUERI; BARBOSA, 2013, pp. 520-521).
348 “A constrição da base tributária é fenômeno que se explica pela conjunção de diversos fatores. A
responsabilidade dos próprios Estados não pode ser negada, pois em muitos casos os contribuintes
nada mais fazem, senão valerem-se de alternativas que os ordenamentos tributários apresentam,
seja de modo explícito (incentivos fiscais os mais variados), seja em virtude de falhas e lacunas,
paradoxalmente surgidas em virtude do excessivo detalhamento das legislações. Ademais, não se
pode perder de vista terem os Estados deixado de lado os objetivos de transparência da política
tributária, afastando o clima de previsibilidade e segurança jurídica, requisitos indispensáveis
para a atuação sadia da iniciativa provada (SCHOUERI e BARBOSA, 2013). Desestimulada
esta, a consequência imediata é a ainda menor base econômica para a tributação. Some-se, por
fim, a opacidade dos gastos públicos, e ter-se-á criado um clima de antagonismo entre Estado e
contribuinte, tornando improvável qualquer cooperação entre ambos” (SCHOUERI, 2016, p. 30).

493
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ma unilateral. Para além das informações disponibilizadas pelos contribuintes,


é preciso que os Estados se comprometam com uma política de transparência
fiscal, o que envolve não apenas os contribuintes em si, mas demais países.
Por fim, outro risco associado ao Plano de Ação nº 12 diz respeito à dis-
sonância naturalmente existente entre as diversas jurisdições tributárias. A
assimetria de obrigações acessórias – no caso, a criação de mais uma declara-
ção – poderá incluir outro elemento de natureza tributária nas decisões dos
contribuintes, o que coloca a iniciativa em clara contradição com os objetivos
gerais do Projeto BEPS. Como as recomendações do Relatório Final são muito
abertas, é provável que diferentes países instituam regimes com diferenças
muito marcantes – mesmo que todos estejam alinhados às recomendações –,
com diferentes níveis de obrigações e de sucesso na sua implantação (BRAU-
NER, 2014, p. 109). Assim, o próprio regime introduz mais um elemento de
caráter tributário nas decisões acerca de investimentos, ampliando a assime-
tria ao invés da harmonização pretendida pela OCDE.
Muito embora se reconheça o aumento dos custos de conformidade atre-
lados à divulgação de informações e admita se tratar de um elemento preocu-
pante, a Ação nº 12 não traça diretrizes aptas à verificação de como esse fator
influencia ou não na adoção de determinadas operações. Trata-se de questão
que precisará ser avaliada sob uma perspectiva local, em consonância com as
demais obrigações acessórias preexistentes (OLIVEIRA, 2018, p. 241), contra-
riando, novamente, as finalidades perquiridas pelo Projeto BEPS.
Diante dessa possível incompatibilidade, o enfoque do Plano de Ação n°
12 deveria ser a troca de informações entre administrações fazendárias de di-
ferentes países. Isto porque, uma vez que um modelo de planejamento tributá-
rio doméstico seja exitosamente implantado em um país, é possível – às vezes
provável – que ele se alastre para outras jurisdições após o seu fechamento no
país em que foi originalmente concebido.
Esta abordagem daria suporte ao combate às estratégias de planeja-
mento tributário domésticas anteriormente à sua “exportação”. No caso de
estratégias fiscais internacionais, o aprimoramento da troca de informações
permitiria uma visualização mais fácil sobre como as multinacionais obtêm
supressão, redução ou diferimento de tributos por meio do aproveitamento da
assimetria informacional entre diferentes ordenamentos jurídicos. A tarefa se
torna mais árdua quando se tem acesso apenas a informações de operações
realizadas no plano doméstico.
494
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

2. O Plano de Ação nº 12 sob a Perspectiva Interna

2.1. O planejamento tributário


Para que se possa verificar a aplicabilidade das recomendações do Plano
de Ação n° 12 ao Direito Tributário brasileiro, não se pode deixar de lado
a análise dos conceitos abordados, sobretudo sob uma perspectiva interna.
Isto porque, como já afirmado, o referido Plano recomenda a adoção de uma
ferramenta de caráter doméstico, o que eleva o seu potencial de conflito com
a ordem jurídica nacional. Dessa forma, serão traçadas considerações gerais
acerca do conceito de planejamento tributário no ordenamento jurídico na-
cional e internacional.
Este tema vem sendo objeto de diversas discussões doutrinárias e juris-
prudenciais, principalmente após a introdução do parágrafo único no art.
116 no Código Tributário Nacional (CTN), o que ocorreu por meio da Lei
Complementar n° 104/2001349. Para alguns autores, por exemplo, o referido
dispositivo representaria o ingresso de uma norma geral antielisiva350 no Sis-
tema Tributário brasileiro (BARRETO, 2016, p. 173). Para outros, todavia, o
parágrafo único em questão, para além de inconstitucional, estaria limitado
aos casos de dissimulação, padecendo, ainda, de regulamentação específica
para uma eventual aplicação (BOZZA, 2015, pp. 293-297).

349 “É possível, ainda, notar a abissal distância entre as principais correntes que se digladiam sobre o
tema. Tal fato decorre, em grande parte, dos principais pontos de partida das correntes doutrinárias
apresentadas. Há, também, distintas visões sobre os efeitos das normas de direito privado sobre o
Direito Tributário. Verifica-se, sobretudo, um importante descompasso no sopesamento de valores
constitucionalmente plasmados. Valores que apontam em sentidos diversos e que são considerados,
com maior ou menor ênfase, por uma ou outra correntes, produzem propostas interpretativas
radicalmente díspares. Qual a melhor? A quem assiste razão? Com quem estão os melhores
argumentos?” (BARRETO, 2016, p. 175).
350 Para ilustrar, cita-se a seguinte passagem: “[n]esse tocante, temos, para nós, que o art. 116,
parágrafo único do CTN inseriu norma gera tributária antiabuso no Direito Tributário pátrio,
nos moldes semelhantes a uma combinação das doutrinas estrangeiras do substance over form
(prevalência da substância sobre a forma) e da step transaction doctrine, com o intuito de coibir
a prática de atos e negócios jurídicos sequenciais, por parte do contribuinte que, apesar de lícitos
na esfera do Direito Privado, estejam desprovidos de causa e, cumulativamente, visem obter
vantagem ou economia fiscal de forma indireta e, portanto abusiva exclusivamente sobre a ótica
tributária” (CASTRO, 2015, p. 315).

495
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

De todo modo, apesar das divergências, sob um viés econômico, o pla-


nejamento tributário tornou-se elemento competitivo de alta relevância entre
as empresas, na medida em que o fator fiscal, por óbvio, repercute nos preços
praticados pelos contribuintes. Afinal, o tributo representa um efetivo custo
operacional, repassado, posteriormente, ao consumidor final.
A importância deste elemento é impulsionada pelo cenário de interna-
cionalização das empresas, no qual se buscam novos mercados consumidores,
criam-se centros de distribuição locais, desloca-se a produção para países nos
quais os gastos serão menores. Enfim, a globalização, associada a uma eco-
nomia cada vez mais digital, possibilita que corporações atuem em diferentes
jurisdições tributárias, fato que as sujeitam a ônus tributários distintos, tanto
em relação às obrigações principais quanto às acessórias.
Neste ponto, ao menos sob a ótica do direito interno, a busca pelo incre-
mento na eficiência das atividades empresariais é um direito baseado nas ga-
rantias do livre exercício da atividade econômica e da livre iniciativa, valores
incrustados na ordem constitucional vigente. Essa é a linha seguida por HUCK,
que postula o direito do particular de organizar o seu negócio em função dos
seus próprios interesses, o que leva à busca, no contexto empresarial, pelo de-
senvolvimento e aumento da eficiência das suas atividades (1997, p. 149).
Corroborando com tal entendimento, LEÃO aponta que “[...] a insistên-
cia da Constituição com relação às liberdades demonstra que esta ordem tem
como regra geral a liberdade, tanto em seu aspecto de direito individual (com
uma série de garantias processuais vinculadas à liberdade pessoal) como em seu
aspecto patrimonial (com a repetição firme do direito de propriedade (com a re-
petição firme do direito de propriedade como garantia fundamental) e também
em seu aspecto empresarial (com uma ordem econômica fundada na regra geral
de liberdade de exercício de atividade econômica, livre iniciativa e livre concor-
rência) [...] A Constituição consagra um modelo geral de economia aberta, livre
e competitiva – economia de mercado – e o Estado tem como missão ordenar e
proteger seu funcionamento normal” (2018, pp. 82-83).
Daí se extrai a conclusão lógica de que o contribuinte, no momento de
planejar a execução de uma operação que tenha o potencial de se subsumir ao
fato gerador de um determinado tributo, possui o direito de optar pelo cami-
nho menos oneroso (COÊLHO, 2001, p. 283). Em outras palavras, ao contri-
buinte não é imposta a obrigação de maximizar a incidência tributária sobre

496
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

as atividades por ele exercidas, podendo ele lançar mão de estruturas jurídicas
que tenham o condão de minorar, ou até mesmo de suprimir, a incidência do
tributo, desde que por meio lícitos.
Pautando-se na própria concepção do Estado de Direito, o dever de in-
correr em despesas estatais por meio da tributação só pode decorrer de pre-
visão legal, respeitando-se a estrutura de segurança jurídica e previsibiidade
concebidas constitucionalmente. A estipulação de contornos rígidos às regras
de competência tributária e a imposição de limitações ao poder de tributar
associados às garantias de liberdade asseguradas aos contribuintes permitem
afirmar que a Constituição bem reconhece a existência de um direito funda-
mental à economia de tributos, o que, por certo, já viabiliza a prática de plane-
jamentos lícitos, cuja finalidade seja a redução do ônus tributário351.
Apesar de o direito ao planejamento tributário encontrar abrigo incon-
troverso no texto constitucional, ainda assim o Fisco tem feito oposição fer-
renha a sua utilização sob a alegada existência de um dever fundamental de
pagar tributos calcado em noções como solidariedade, isonomia e capacidade
contributiva e na alegada supremacia do interesse público.352 A tese largamen-
te utilizada pelas autoridades administrativas sustenta que um planejamento
tributário válido deve ter uma finalidade/motivação não tributária – o que se

351 “O reconhecimento deste direito assegurado pela Constituição torna inconstitucional qualquer
legislação que o viole. Isso significa dizer que a lei não tem o poder de tornar ilícita a atuação
econômica por motivação tributária. Seria um contrassenso reconhecer funções extrafiscais políticas,
sociais e econômicas aos tributos, mas, ao mesmo tempo, desconsiderar a sua influência como fator
a ser considerado nas decisões econômicas. A motivação tributária é natural de uma sociedade de
mercado e não se confunde, necessariamente, com uma conduta abusiva. Assim, embora seja evidente
que elas possam em determinada situação andar juntas, a falta de uma motivação extratributária não
implica automaticamente uma situação abusiva ou fraudulenta” (LEÃO, 2018, p. 307).
352 “Boa parte dessas ideias no Brasil decorre também da aplicação da doutrina, cunhada por
Nabais, acerca do dever fundamental de pagar impostos. Conforme já referido, para o autor, o
pagamento de impostos (e tributo em geral) seria verdadeiro dever fundamental, o que excluiria,
consequentemente, qualquer direito de não pagar impostos. Vale referir que antes dele a ideia de
dever de contribuir como um dever fundamental, vinculado à solidariedade, foi desenvolvida na
Espanha por Escribano. Para o autor, o dever de contribuir seria um princípio fundamental de base
não individualista que a Constituição protegeria e ampararia: uma específica concreção do dever
de solidariedade que marcaria o quadro jurídico promocional da Constituição na medida em que
constituiria um dos elementos fundamentais para sua realização. Daí a defesa de que o interesse
fiscal não seria um interesse da Administração estatal, mas, sim, um interesse particularmente
diferenciado que, atendendo ao regular funcionamento dos serviços necessários à vida em
comunidade, condicionaria a sua própria existência” (LEÃO, 2018, p. 169).

497
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

convencionou chamar de teste do propósito negocial (business purpose). Nesta


teoria, o efeito tributrário, de supressão ou de redução dos tributos, não pode
ser a principal motivação do sujeito passivo para a execução de uma dada
operação, demandando-se a existência de uma esfera demarcada por exclusi-
vo conteúdo econômico, que possa ser dissociada do pagamento de quaisquer
exações tributárias (BARRETO, 2016, p. 209).
Tal posicionamento tem em GRECO o seu maior defensor. O autor de-
fende uma suposta interpretação sistemática da Constituição, de modo que as
normas constitucionais tributárias sejam interpretadas de acordo com o res-
tante do documento, sendo necessária “a demonstração ou a materialização,
neste segmento da realidade, dos conceitos, princípios, objetivos e valores que a
parte geral da Constituição consagra” (2011, p. 50). GRECO chega ainda a afir-
mar que “[o] fundamento do tributo é o dever social ou cívico de solidariedade
que se atende pelo ato de contribuir para as despesas públicas de acordo com a
capacidade contributiva manifestada” (2009, p. 174). A julgar pela doutrina do
autor, o peso conferido ao dever de solidariedade e ao princípio da capacidade
contributiva, já mencionados, são aptos a dar ensejo à tributação, como se a ca-
pacidade contributiva fosse condição suficiente, e não apenas necessária, para a
incidência de uma regra de tributação (GRECO, 2011, pp. 52-53).
Contudo, a ideia de que a mera manifestação de capacidade contributiva,
por si só, possa dar ensejo à incidência tributária não coaduna com a ordem
constitucional vigente e representa uma flagrante afrontra aos pilares funda-
mentais do Estado Democrático de Direito. Ao se pretender fazer uma análise
da Constituição como um todo, tal exercício não pode se prestar à desconsi-
deração do princípio da legalidade. ÁVILA é claro ao trazer raciocínio oposto,
defendendo a ideia de que não seria possível fazer incidir a tributação unica-
mente com base nos princípios da igualdade e da solidariedade (2012, p. 174).
Ressalta-se que tais princípios associados, ainda, à capacidade contribu-
tiva sequer são passíveis de ponderação com os princípios da legalidade, da
liberdade e da segurança jurídica. Isto porque, a Constituição a eles atribuiu
funções absolutamente diversas, o que de plano já afasta eventual confinto. As
noções retratadas não estão em concorrência horizontal, na medida em que se
submetem a relações hierárquicas diversas. A segurança e a legalidade, atre-
ladas à garantia da liberade, representam a fundamentação da pópria ordem
jurídica, cristalizando a previsibilidade e os valores essenciais a toda a comu-

498
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nidade. Definidos, também, como limitações ao poder de tributar, não po-


dem ser desvirtuados para a persecução de finalidade diametralmente oposta
(LEÃO, 2018, pp. 305-306).
De forma mais clara, a aplicação pelo Fisco do princípio da capacida-
de contributiva, com a finalidade de maximizar a tributação, ao arrepio da
separação de poderes, não pode ser tolerada. A legalidade, além de conferir
legitimidade à exação, proporciona um ambiente de segurança jurídica aos
contribuintes, na medida em que o tributo deve ser disciplinado detalhada-
mente por diploma emanado do Poder Legislativo (BALEEIRO, 2013, p. 77).
Não fosse intenção do Poder Constituinte conferir segurança jurídica à nova
ordem constitucional, não teria sido a legalidade incorporada ao art. 5°, II,
da Constituição, muito menos teria sido ela reiterada no art. 150, I, do mes-
mo documento, que trata das limitações constitucionais ao poder de tributar.
Ignorar preceitos tão claros do texto constitucional é incondizente com uma
interpretação que privilegia a sistematização institucional do ordenamento
jurídico, privilegiando apenas entendimentos compartimentalizados.
Destarte, considerando que a nossa ordem constitucional dispõe que o
Brasil é um Estado Democrático de Direito, no qual todo poder emana do
povo, não se pode tolerar que o Executivo possa determinar – quando a lei
expressamente não o faz – quais situações são passíveis de serem tributadas
ou não (CANTO, 1988, p. 19). Nesse sentido, é preciso ressaltar que a Consti-
tuição estabelece que o pressuposto da incidência é a existência de lei prévia
sobre ela dispondo (DÓRIA, 1977, pp. 68-69).
Sob o ângulo internacional, a mesma conclusão deveria se manter. Em
virtude da assimetria de cargas tributárias353, o contribuinte organiza os seus
negócios de maneira a se submeter a um regime de tributação menos oneroso
– do ponto de vista global – dentro da sua esfera de liberdade de ação (XA-
VIER, 2005, p. 310).

353 “Com relação ao planejamento tributário internacional, a problemática fiscal na esfera internacional
surge de forma natural, com as diferenças de filosofia entre cada país, nomeadamente em relação
à identificação dos sujeitos passivos dos tributos, ao tipo de tributo (direto, sobretudo imposto
sobre a renda, ou indireto) e ao quantum debeatur (aspecto quantitativo). Esta diferenciação na
interpretação e aplicação de sistemas tributários distintos, por Estados soberanos, tem como
resultado que empresas competidoras possam vir a ser tratadas de forma substancialmente
diferente, resultando em carga tributária desigual entre elas” (CASTRO, 2015, p. 312).

499
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Afinal, todo e qualquer planejamento tributário decorre dos princípios da


autonomia da vontade e da liberdade de organização. Todavia, também inter-
nacionalmente, operações dessa natureza têm assumido acepção desfavorável,
passando a ser vistas, geralmente, como inescrupulosas estratagemas utilizadas
por empresas multinacionais com vistas a majorar lucros mediante o sacrifício
da arrecadação tributária de determinados Estados (CASTRO, 2015, p. 247).
As estruturas internacionais voltadas à diminuição da carga tributária
seriam possibilitadas pela existência de descompassos e lacunas presentes em
diferentes ordenamentos jurídicos (OECD, 2015, p. 5) e de países que não tri-
butam a renda ou o fazem em patamares mínimos, o que acaba por provocar
a erosão das bases tributáveis e a transferência de lucros.
Não obstante, em que pese a intenção de combate aos planejamentos tri-
butários agressivos, parece haver mais uma razão subjacente à concepção do
Projeto BEPS, esta de caráter eminentemente econômico. É que a iniciativa
possui como um dos seus objetivos gerais a introdução de mudanças no Direi-
to Tributário internacional que direcionem a tributação para o local onde as
atividades são efetivamente exercidas (OECD, 2015b, p. 5), em reforço ao crité-
rio da fonte como elemento de conexão. Este posicionamento fica evidenciado,
por exemplo, no Plano de Ação n° 5 (OECD, 2015a, p. 19), que busca comba-
ter práticas fiscais danosas por meio do alinhamento da tributação ao local
de criação de valor da atividade (BRAUNER, 2014, pp. 55-115). O paradigma
adotado pela OCDE anteriormente ao Projeto – e que guia os acordos interna-
cionais em matéria fiscal – era o de tributação com fundamento no critério da
residência, o que se justificaria pelo direito de o país de origem do capital tri-
butar a renda, condição experimentada, em regra, por países desenvolvidos.
No entanto, com o forte desenvolvimento da economia de países como
Índia e China, houve a migração da arrecadação para países nos quais não
estão situados os fatores de produção, o mercado consumidor, ou que não
representam a origem do capital investido na atividade empresarial. Como
consequência, começou a se questionar também a importância do critério da
residência face à relevância do mercado consumidor na formação da riqueza e
diante de uma economia cada vez mais digital (OECD, 2015a, p. 5).
Veja-se que a mudança nas premissas – residência para fonte, local de
origem do capital para local onde a riqueza é gerada – está também ligada ao
fato de que os membros da OCDE e do G20 passaram a experimentar uma

500
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

maior condição de “fonte”, com uma consequente diminuição do volume de


tributação em seus territórios.
Por isso, o fenômeno identificado Projeto BEPS pode assumir um aspec-
to, de certa forma, falacioso. A erosão está corroendo as bases tributárias dos
próprios países que pretendem a mudança, membros da OCDE e do G20, de
forma que as recomendações do Projeto assumem um caráter de defesa da
arrecadação destes países. A nova estrutura de regras pretende conferir mais
importância ao mercado consumidor, mas esta importância não representa
um elemento novo, já que o referido mercado sempre representou aspecto
substancial para a geração de riqueza. A pergunta que fica é o porquê de o
reconhecimento desta importância estar ocorrendo apenas agora.
Portanto, questiona-se se o planejamento tributário realizado a nível in-
ternacional deve ser encarado como tendo “conotação pejorativa e preconcei-
tuosa, passando a ser presumidamente uma forma de ‘sonegação’ ou ‘evasão
fiscal” (CASTRO, 2015, p. 247). Necessário apontar a ressalva de que não se
está aqui a realizar a defesa de toda e qualquer operação de planejamento tri-
butário, mas a criticar a concepção de que quaisquer operações sejam consi-
deradas, de plano, ilícitas ou indesejáveis.

2.2. Críticas à tentativa brasileira:


a Medida Provisória n° 685/2015
A Medida Provisória n° 685, de 21 de julho de 2015, foi editada para
instituir o Programa de Redução de Litígios Tributários (PRORELIT), auto-
rizar o Poder Executivo federal a atualizar monetariamente o valor de deter-
minadas taxas e, no ponto que interessa a este trabalho, criar a obrigação de
declarar à Receita Federal do Brasil o conjunto de operações de planejamento
tributário realizadas pelo contribuinte no ano-calendário, ato pretensamente
alinhado às recomendações do Plano de Ação n° 12 do BEPS, como se afirmou
na Exposição de Motivos do ato normativo.354

354 A Exposição de Motivos da MP° 685/2015 assim estipulou: “[n]esta linha, o Plano de Ação sobre
Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), projeto
desenvolvido no âmbito da OCDE/G20 e que conta com a participação do Brasil, reconheceu,
com base na experiência de diversos países (EUA, Reino Unido, Portugal, África do Sul, Canadá

501
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em síntese, a mencionada Medida Provisória pretendeu instituir uma


obrigação acessória que deveria ser satisfeita toda vez que o contribuinte rea-
lizasse operações que acarretassem supressão, redução ou diferimento de tri-
buto, notadamente quando: (i) tais atos ou negócios jurídicos não possuíssem
razões tributárias relevantes; ou (ii) a forma adotada não fosse usual, utilizan-
do-se de negócio jurídico indireto ou contivesse cláusula que desnaturasse,
ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou (iii) na hipótese
de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da
Receita Federal do Brasil.
Caso a operação não fosse reconhecida pela administração fazendária, o
contribuinte seria intimado a recolher o tributo suprimido, reduzido ou dife-
rido indevidamente, acrescido de juros de mora. Ademais, a MP n° 685/2015
dispunha que a ausência de entrega da declaração, nos casos exigíveis, ou
ocorrida qualquer das hipóteses do art. 11,355 caracterizaria omissão dolosa
do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude, sendo que além, dos
tributos devidos e da multa de mora, seria cobrada multa punitiva.
Todavia, apesar de a Exposição de Motivos ter sido expressa ao mencio-
nar o Plano de Ação nº 12 como referência à obrigatoriedade na divulgação
de certas transações, as normas contidas na Medida Provisória contradizem
diversas recomendações traçadas na referida Ação, dissociando, também, de
uma série de disposições do ordenamento jurídico nacional.
A primeira violação perpetrada é de caráter formal: não há que se falar
em urgência da matéria que justifique a edição de medida provisória, como
exige o art. 62 da CF/88 – culminado com o requisito de relevância. Ressalta-
-se que a ferramenta possui como objetivo “instruir a administração tributá-
ria com informação tempestiva a respeito de planejamento tributário, além de
conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação”356 e o requisito

e Irlanda), os benefícios das regras de revelação obrigatória a administrações tributárias. Assim,


no âmbito do BEPS, há recomendações relacionadas com a elaboração de tais regras quanto a
operações, arranjos ou estruturas agressivos ou abusivos”.
355 “Art. 11 . A declaração de que trata o art. 7º, inclusive a retificadora ou a complementar, será ineficaz
quando: I - apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias eventualmente
resultantes das operações referentes aos atos ou negócios jurídicos declarados; II - omissa em
relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico; III - contiver hipótese de
falsidade material ou ideológica; e IV - envolver interposição fraudulenta de pessoas.”
356 Vide Exposição de Motivos da Medida Provisória n° 685/ 2015.

502
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de urgência faz referência a um critério temporal: a medida deve ser tomada


imediatamente, não podendo ser adiada. Ora, a instituição da referida decla-
ração não se impõe de imediato, podendo ser introduzida por intermédio do
processo legislativo ordinário.
Em segundo lugar, tem-se que a Medida Provisória em específico ten-
tou criar uma presunção de dolo, fraude e sonegação independentemente de
prova. Ao incluir tal disposição, o documento equiparou o simples descum-
primento de uma obrigação acessória à sonegação fiscal, crime tipificado na
Lei n° 4.729/1965, bem como à prática de fraude, violando os princípios da
razoabilidade e da presunção de inocência. Ademais, a MP n° 685/2015 tratou
de matéria penal, o que é vedado pela própria Constituição.357
Em relação a este dispositivo, a Medida Provisória violou, ainda, reco-
mendação expressa do Relatório Final da Ação n° 12, segundo a qual a elisão
fiscal em potencial e as operações de planejamento tributário divulgadas sob
regimes de divulgação compulsória não deveriam dar origem a maiores pre-
ocupações sobre autoincriminação. Afinal, o fato de uma transação ser re-
portável não implica no reconhecimento de práticas consideradas agressivos
ou abusivos. Todavia, na iniciativa brasileira, qualquer descumprimento do
dever de publicização significava a caracterização de fraude fiscal, o que muito
amplia os preceitos aduzidos pela OCDE (ROCHA, 2017, p. 280).
Ademais, afirma o documento que os tipos de transações almejadas para
divulgação geralmente não serão os tipos de transações que darão ensejo à res-
ponsabilização criminal (OECD, 2015, pp. 56-57). No entanto, o que a versão na-
cional pretendeu realizar foi o oposto: vincular a falha na entrega da declaração
– ou a sua entrega caracterizada pelas hipóteses do art. 11 – à prática criminosa.
Ademais, o vocabulário utilizado pela Medida permitiria que a fiscaliza-
ção atuasse com base em critérios indefinidos e subjetivos. O uso de expressões
vagas como “razões extratributárias relevantes” e “forma adotada não usual”
causa um cenário de insegurança jurídica, posto não ser dado ao contribuin-
te a chance de ter conhecimento do contorno exato destes conceitos. Partindo

357 “Art. 62. [...]; § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: [...]; b) direito
penal, processual penal e processual civil.”

503
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

apenas destas expressões, chega-se a uma zona cinzenta acerca de quais planeja-
mentos tributários eram considerados abusivos e quais eram lícitos358.
Aqui também se verifica mais uma contradição em relação ao Relatório
Final da Ação n° 12. Um dos princípios que guiam o regime proposto dita que
as regras de divulgação compulsória devem ser o mais claras e fáceis de se en-
tender possíveis, permitindo que o contribuinte saiba com certeza o que é re-
querido pela legislação. Sabe-se que tais diretrizes não foram observadas pelo
próprio Projeto. Ainda assim, a ausência destas características pode acarretar
a falha inadvertida em divulgar – e a consequente imposição de penalidades
–, o que pode levar ao incremento da resistência em relação às regras por parte
dos contribuintes ou à entrega de informações de baixa qualidade ou irrele-
vantes (OECD, 2015, p. 19).
Por fim, como já mencionado, o planejamento fiscal é inerente à livre
iniciativa e à livre concorrência. Tais normas violariam esses princípios, na
medida em que não permitiriam aos contribuintes estruturar seus próprios
negócios da forma mais eficiente. A conduta adotada para a economia exclu-
siva de tributos é tão negocial quanto qualquer outra, e se insere no âmbito da
liberdade econômica e no direito de se diferenciar de concorrentes na busca
por maior eficiência. Em verdade, é dever do empresário e do administrador
gerir os negócios de forma diligente, com zelo e eficiência, o que implica to-
mar todas as medidas não vedadas pela lei, para maximizar os lucros, satisfei-
tas as exigências do bem público e da função social da empresa359.
De toda maneira, o problema reside, justamente, na utilização do teste
do propósito negocial sem que haja uma definição de “abuso” na legislação
tributária brasileira e, portanto, sem que haja uma cláusula geral antielisiva,
a qual a doutrina internacional denomina GAAR (general anti-antiavoidance
rule) (UTUMI, 2015). Desta forma, o próprio teste do propósito negocial não
possui respaldo normativo.

358 “A regra não era muito clara sobre situações onde a divulgação completa seria necessária. Por
conseguinte, não parece adequado caracterizar todas as situações em que o contribuinte não comunicou
uma transação ou uma estrutura como uma forma de fraude fiscal” (ROCHA, 2017, p. 280).
359 Trata-se do denominado business judgment rule, concebido como um padrão de atuação de
administradores, o que envolve agir com boa-fé, de acordo com o melhor interesse da corporação,
de modo objetivo e impessoal, sem ocasionar dilapidação patrimonial.

504
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Como apontado por COÊLHO, existem duas técnicas empregadas para


combater a elisão ilícita: a da colmatação legislativa, presente em países em
que a utilização da analogia é proibida, ficando a cargo do legislador o dever
de fechar as brechas na tributação; e a da desqualificação administrativa, na
qual a presença da norma geral antielisiva permite a desqualificação e a requa-
lificação de negócios jurídicos atípicos, apoiada em teses como a do propósito
negocial e da desconsideração da pessoa jurídica (2014, p. 173).
O texto constitucional, repisa-se, designa um sistema de segurança de-
marcado pela previsibilidade. Prevalece uma rigidez em sua sistematização,
baseada na repartição de competências, o que retira qualquer possibilidade
de que suas normas sejam interpretadas como sugestões (BARRETO, 2001, p.
65) ou como um protocolo de boas intenções (MOSQUERA, 1996, pp. 72-77).
Trata-se, na verdade, de decisão firme no sentido de bem delimitar a incidên-
cia tributária, que não poderá ser desconsiderada pelo intérprete.
Para tanto, o constituinte se encarregou de fornecer, por meio de concei-
tos , todos os elementos aptos ao exercício da competência tributária361. O for-
360

malismo em questão inviabiliza que o legislador infraconstitucional ou mesmo


o intérprete e aplicador do Direito ponderem (ÁVILA, 2010, pp. 164-165). Por
mais que a existência da capacidade econômica seja condição necessária à inci-
dência do tributo, ela não é suficiente, dada a necessidade de prévia autorização
constitucional, o que se expressa por meio das regras de competência.
Portanto, não sem propósito, a seção destinada às limitações ao poder de
tributar é bem detalhada, já que tem o intuito de proteger os contribuintes dos
exacerbados interesses arrecadatórios do Estado, promovendo a segurança ju-
rídica, tão essencial ao arranjo constitucional. Por isso, o método da desqua-
lificação administrativa se mostra inadequado à realidade jurídica brasileira,

360 “De outro lado, observamos os conceitos fechados que se caracterizam por denotar o objeto através
de notas irrenunciáveis, fixas e rígidas, determinantes de uma forma de pensar seccionadora da
realidade, para a qual é básica a relação de exclusão ‘ou ... ou’ [...] O conceito determinado e fechado
(tipo no sentido impróprio), ao contrário, significa um reforço à segurança jurídica, à primazia da
lei, à uniformidade no tratamento dos casos isolados, em prejuízo da igualdade, da funcionalidade
e adaptação da estrutura normativa às mutações socioeconômicas” (DERZI, 2018, p. 106).
361 “Os termos constitucionais exprimem significados, sendo as definições a mera explicitação desses
significados, com a finalidade de torná-los mais precisos, mas nunca exatos. Desse modo, o fato
de a Constituição ter atribuído à lei complementar a função de definir tributos, suas espécies e
seus elementos não quer dizer que eles não tenham sido conceituados nem definidos, expressa ou
implicitamente, direta ou indiretamente, pela própria Constituição” (ÁVILA, 2018, p. 10).

505
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

dado que possui como único objetivo considerar inoponível ao Fisco o esque-
ma negocial lícito urdido com fins exclusivamente fiscais.
Adicionalmente, é possível verificar que a Medida Provisória n° 685/2015
desconsiderou completamente as recomendações insculpidas no Capítulo 3 do
Relatório Final, concernentes a planejamentos tributários internacionais. Por
exemplo, é recomendada a adoção de indicadores específicos endereçados a
identificar operações com efeitos transfronteiriços, (OECD, 2015c, p. 71) tais
como os pagamentos dedutíveis feitos a membros do mesmo grupo econômi-
co que estejam situados em jurisdições que não tributam determinado tipo de
rendimento ou arranjos que provocam conflitos de propriedade de um ativo,
que tem como resultado contribuintes em diferentes jurisdições reivindicando
abatimento fiscal em razão da depreciação ou amortização de um mesmo ativo
ou isenção de dupla tributação em relação a um mesmo item de receita. Contu-
do, não havia nada na Medida que buscasse alcançar operações internacionais.
Outra recomendação sumariamente ignorada pela iniciativa brasileira
foi o uso de uma definição de arranjo suficientemente abrangente e robusta
para capturar operações internacionais (OECD, 2015c, p. 72). Por exemplo, no
contexto de financiamento (ou refinanciamento) dentro de um mesmo grupo
econômico, a definição de arranjo declarável deveria incluir todos os passos
do fluxo financeiro, desde a introdução do capital novo, além das transações
intragrupo subsequentes, até o resultado final da sua distribuição nas empre-
sas situadas em diferentes jurisdições tributárias. No entanto, repise-se, a MP
n° 685/2015 não adotou sequer uma recomendação deste ponto tão essencial
ao Plano de Ação n° 12.
Portanto, a primeira tentativa brasileira não se coaduna com o objetivo
principal da Ação n° 12, que é o de encurtar o tempo entre a colocação em prá-
tica de uma operação de planejamento tributário e o seu conhecimento pelas
autoridades. De modo oposto, a Medida Provisória sob análise pareceu focar
na imposição de penalidades, seja como simples medida de ampliação da ar-
recadação, seja como método de intimidação dos contribuintes. Ainda que a
previsão de declaração compulsória constante no art. 7º, da MP nº 685/2015
não tenha sido convertida em lei, e que, até o presente momento, não haja
notícias de tentativas a ela similares, o estudo de seus possíveis impactos na
política fiscal brasileira se revela essencial, pois aponta para graves violações

506
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de cunho constitucional362 e indica que eventual nova medida de publicização


de planejamentos tributários deverá ser reconcebida363.
Ao contrário da iniciativa nacional, a experiência britânica (OECD,
2015c, pp. 25-26) mostra que, embora penalidades sejam eventualmente apli-
cadas a contribuintes que colocam em prática planejamentos tributários abu-
sivos, o foco da divulgação obrigatória não está na imposição de penalidades
– de forma a recuperar o tributo elidido. De outro modo, o enfoque está na
obtenção de informações para que outras operações similares não sejam rea-
lizadas no futuro (BAKER, 2015, p. 88).
Em outras palavras, a exigência da declaração obrigatória serve como
instrumento para identificação mais célere dos elementos que caracterizam
determinada operação. Assim, seria possível diminuir a lacuna existente entre
a colocação em prática da conduta elisiva considerada indesejada e a introdu-
ção de legislação que coíba a sua prática futura. Note-se que a diminuição des-
ta discrepância faz com que a arrecadação perdida perdure por menos tempo.
Trata-se, finalmente, da lógica do monitoramento eficiente, que permite
às autoridades um conhecimento mais amplo e mais rápido das condutas dos
contribuintes e, consequentemente, uma tomada mais ágil de ações. Por isso,
a declaração, quando assim concebida, pode ser um instrumento extrema-
mente útil em jurisdições nas quais o método de solução de lacunas seja o da
colmatação legislativa.

362 Tão logo a Medida Provisória nº 685/2015 fora publicada, o Partido Socialista Brasileiro propôs a
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.366, questionando a constitucionalidade da divulgação
obrigatória de planejamentos tributários, disciplinada pelo art. 7º e seguintes do mencionado
diploma. Um dos principais argumentos aduzidos foi a impossibilidade de medidas provisórias
versarem sobre direito penal. Posteriormente, a MP nº 685/2015 foi convertida na Lei nº
13.202/2015. No entanto, como os dispositivos contestados não foram convertidos, a ADI perdeu
seu objeto. Ainda assim, a sua propositura apenas retrata a incompatibilidade destas normas com o
ordenamento jurídico vigente.
363 “Finalmente, as discussões durante o trâmite legislativo da Medida Provisória nº 685/2015, a
propositura de ações judiciais para questionar a legalidade e/ou constitucionalidade de seus
dispositivos, bem como as várias críticas efetuadas pela doutrina evidenciam que, na hipótese de
eventual nova legislação sobre o assunto, o regime anteriormente adotado deve ser modificado.
Senão vários argumentos jurídicos suscitados, ao menos para que essa legislação seja aprovada
com maior facilidade (ou melhor, sem tantas dificuldades), de maneira a que o instrumento possa,
em breve, ser utilizado no combate aos planejamentos tributários [verdadeiramente] ‘agressivos’”
(OLIVEIRA, 2018, p. 414).

507
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

3. Conclusão.
O Projeto BEPS representa a reação de países membros da OCDE e do
G20 contra a perda de arrecadação tributária, em virtude da erosão das bases
tributárias e da transferência de lucros. Portanto, consiste também em uma
tentativa de modernizar as regras de Direito Tributário internacional para
melhor responder à atuação cada vez mais global das empresas.
Uma vez estabelecidos os objetivos gerais norteadores, é preciso que to-
dos os Planos de Ação contribuam para o seu alcance, estabelecendo uma
coerência básica para a mudança pretendida. Neste cenário, denota-se que o
Plano de Ação n° 12 oferece risco de contrariar os próprios objetivos do Proje-
to, pois, para além de sua indeterminação e unilateralidade, incluiria mais um
elemento de assimetria nas diferentes jurisdições tributárias ao redor do glo-
bo. Ademais, entendemos que pouco foco foi dado ao terceiro pilar da Ação n°
12, relativo ao desenvolvimento de uma plataforma de cooperação para troca
de informações entre diferentes autoridades fiscais.
Embora o Plano de Ação n° 12 seja criticável em alguns pontos, fato é que a
sua tentativa de implementação no Brasil, por intermédio da MP n° 685/2015, des-
respeitou várias das recomendações da Ação, bem como do próprio ordenamento
jurídico nacional. A principal violação é negativa ao direito do contribuinte à li-
berdade de ação, desde que respeitados os limites da licitude. A utilização do teste
de propósito negocial não possui previsão legal e, portanto, não pode ser aceita
como fundamento apto à censura e descaracterização de planejamentos tributá-
rios que não violem a legislação. A motivação tributária não pode ser desconside-
rada como causa legítima à consecução de determinada operação.

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511
18. Os Problemas Relacionados à Ação
nº 11 para o Combate ao BEPS

Luiz Felipe de Toledo Pieroni


Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Es-
tudos Tributários. Especialista em Direito Tributário Internacional pelo
Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Advogado em São Paulo.

Resumo: O presente artigo pretende tratar dos problemas relativos ao tema


da transparência, especialmente das questões concernentes ao Plano de Ação nº
11 da OCDE que tem por objetivo “Estabelecer metodologias para a coleta e análi-
se dos dados sobre o BEPS e as ações para o seu combate”. Para tanto, trataremos
do escopo do plano de Ação nº 11, bem como as inconsistências que se apresentam
nesta ousada proposta da OCDE, considerando o árduo trabalho de cooperação
e harmonização das informações, em especial atenção aos princípios tributários
relacionados, que, destaque-se, orientam e limitam a atividade arrecadatória.
Dentro de uma abordagem objetiva, trataremos da ação sobre os aspectos quanto
à coordenação entre os países, da praticabilidade, dos custos de conformidade e
quanto ao sigilo das informações dos contribuintes.
Palavras-chave BEPS, Transparência, Cooperação, Coordenação, Harmo-
nização, Princípios Tributários, Praticabilidade, Custos de Conformidade, Sigilo.
Abstract: The present article intends to deal with the problems relating
to the theme of transparency, especially on issues related to the plan of Action
nº 11 of the OECD which aims to “Establish methodologies to collect and
analyze data on BEPS and the actions to address it”. To do so, we will deal
with the scope of the plan of Action nº 11, as well as the inconsistencies that
appear in this daring proposal of OECD, considering the hard work of coo-
peration and harmonization of information, in particular attention to related
tax principles, which featured, guide and limit the levying of taxes activity. In
an objective approach, we’ll discuss the action on aspects as the coordination
between the countries, feasibility, compliance costs and how the confidentia-
lity of taxpayer information.

513
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Keywords: BEPS, Transparency, cooperation, coordination, Harmoni-


zation, Tax Principles, Practicality, costs of compliance, confidentiality.

Introdução
É difícil de imaginar o mundo sem países, vivendo em paz, sem ganância
ou fome, vivendo como um só e de maneira compartilhada (Música. Imagine.
Álbum. Imagine, John Lennon, 1971), como preconiza John Lennon em sua
famosa canção “Imagine”. Entretanto podemos dizer que, sob certos aspectos,
podemos imaginar que a ideia de compartilhamento do mundo é cada vez
mais presente, corolário do processo de globalização.
E é dentro deste mundo globalizado que se procurou “compartilhar” o
tema da erosão da base tributária e do deslocamento do lucro – Base Ero-
sion and Profit Shifiting (BEPS) – matéria sensível a todas as nações, já que
se relaciona com a eficiência da arrecadação tributária, motivo de especial
preocupação do grupo formado pelos ministros de finanças e chefes de bancos
centrais das dezenove maiores economias do mundo mais a União Europeia
– G 20 – o que ensejou o pedido à Organização para a Cooperação e Desen-
volvimento Econômico (doravante apenas OCDE) que elaborasse um plano
de ações para enfrentar este problema.
Com esta missão, a OCDE elaborou um plano de 15 ações, divididos
em quatros temas-chave para abordar o BEPS, na tentativa de evitá-lo, quais
sejam: (i) estabelecer a coerência internacional em relação ao imposto de ren-
da das pessoas jurídicas; (ii) restaurar plenamente os efeitos e benefícios dos
padrões internacionais – quanto à substância; (iii) assegurar a transparência
promovendo simultaneamente maior segurança e previsibilidade; e, (iv) de
estabelecer políticas aprovadas à legislação tributária: a necessidade de uma
rápida implementação das medidas – no que se refere à necessidade de criação
de um instrumento multilateral.
O presente trabalho pretende tratar dos problemas relativos ao tema da
transparência, especialmente das questões concernentes ao Plano de Ação nº
11 que tem por objetivo “Estabelecer metodologias para a coleta e análise dos
dados sobre o BEPS e as ações para o seu combate”.

514
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Assim, considerando as conhecidas condições de aparecimento o sur-


gimento do BEPS, destaque-se, que este estudo deixou de abordar para tra-
zer maior assertividade ao presente trabalho, trataremos do escopo do plano
de Ação nº 11, bem como as inconsistências que se apresentam nesta ousada
proposta da OCDE para o combate da erosão tributária e transferência dos
lucros, considerando o árduo trabalho de cooperação e harmonização das in-
formações, em especial atenção aos princípios tributários relacionados, que,
destaque-se, orientam e limitam a atividade arrecadatória.

1. O objetivo do plano de Ação nº 11


A Ação nº 11 está enquadrada dentro do plano de combate à erosão da base
tributária e a transferência dos lucros da OCDE na parte relativa à transparência.
Esta ação possui o objetivo de estabelecer metodologias para coletar e
analisar dados sobre BEPS, com o propósito de enfrentá-lo. Ou seja, preten-
de a mencionada ação elaborar recomendações relativas aos indicadores de
impacto econômico do BEPS, além de certificar quais ferramentas estão dis-
poníveis para acompanhar e avaliar a eficácia, como o impacto econômico
das medidas tomadas para se evitar o BEPS de forma contínua (OCDE, 2015)
(conforme livre tradução364).
Sob esta ótica de trabalho, sustenta a OCDE que a coleta de informações
propiciará o desenvolvimento de uma análise econômica da escala e impacto
do BEPS em todas as jurisdições, para que, assim, seja possível influenciar
políticas fiscais, seja dos governos, seja das empresas.
O trabalho menciona a avaliação de uma variedade de fontes de dados
existentes, identificando novos tipos de elementos que devem ser coletados,

364 “Establish methodologies to collect and analyze data on BEPS and the actions to address it. Specifically
to: Develop recommendations regarding indicators of the scale and economic impact of BEPS and
ensure that tools are available to monitor and evaluate the effectiveness and economic impact of the
actions taken to address BEPS on an ongoing basis. This will involve developing an economic analysis
of the scale and impact of BEPS (including spillover effects across countries) and actions to address
it. The work will also involve assessing a range of existing data sources, identifying new types of data
that should be collected, and developing methodologies based on both aggregate (e.g. FDI and balance
of payments data) and micro-level data (e.g. from financial statements and tax returns), taking
into consideration the need to respect taxpayer confidentiality and the administrative costs for tax
administrations and businesses.”

515
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

como também para desenvolver metodologias baseadas em conjunto e capta-


ção de dados em nível regional (por exemplo, as demonstrações financeiras e
os dados de imposto de renda, declarações etc.).
Em outras palavras, assinala a Ação nº 11 que algumas das limitações de
dados existentes podem ser superadas, exigindo a coleta de dados adicionais,
garantindo a melhor utilização dos dados já coletados ou através da identifica-
ção de melhores práticas, além de desenvolver recomendações que podem ser
adotadas pelos países de forma coordenada.
O plano desta ação também menciona que o Comitê dos Assuntos Fis-
cais (CFA) examinou uma série de análises econômicas e empíricas sobre
BEPS para apresentar a avaliação inicial dos dados atualmente disponíveis,
bem como uma série de questões sobre os dados necessários para análise de
BEPS, quais sejam:
- Quais são os dados atualmente disponíveis para analisar BEPS e me-
didas contra o BEPS?
- Quais são as melhores práticas de governos coletando e disponibili-
zando dados disponíveis para de pesquisa?
- Questiona se existem indicadores adicionais de BEPS que podem ser
fornecidos.
- Questiona se os indicadores propostos poderiam ter seus alertas re-
forçados
- Questiona se existem análises empíricas adicionais de BEPS e medidas
para serem evitadas, particularmente nos países em desenvolvimento.
- Questiona se existem abordagens alternativas ou refinamentos das
duas propostas possibilita estimar a dimensão do BEPS.

Sustenta ainda a Ação nº 11, que enquanto nenhum indicador único é


capaz de fornecer um quadro completo da existência e a escala do BEPS, uma
coleção de indicadores ou de um “painel de indicadores” pode ser construída
para ajudar a fornecer “insights” sobre a escala e o impacto econômico do
BEPS, além de prestar assistência aos formuladores de políticas no monitora-
mento de mudanças do BEPS ao longo do tempo.
Conforme relatório desta Ação nº 11, a própria OCDE reconhece que já
existe uma série de dados disponíveis, mas que seria necessária uma análise

516
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

desta disponibilidade e utilidade destes dados existentes, motivo que justifica-


ria o escopo da Ação 11, em suma, na pretensão de organizá-los.
Em síntese, a Ação nº 11, basicamente, sustenta-se na ideia de que haveria
benefícios na criação e divulgação de dados específicos para apuração e análi-
se do BEPS, inclusive confirmados por outros exemplos empíricos.
O plano de ação ainda destaca que para sua elaboração e execução deve
ser ressaltada a necessidade de respeitar a confidencialidade dos contribuin-
tes e dos custos administrativos para as administrações fiscais e empresas.

2. Da coordenação entre os países


Conforme se verifica do plano de ações para se evitar a erosão da base
tributária e do deslocamento do lucro proposto pela OCDE, algumas marcas
estão presentes em todas as ações propostas, sendo que a mais relevante é a
coordenação, como não poderia ser diferente, considerando que todos os pro-
blemas que envolvam mais de uma jurisdição ficam mitigados se resolvidos de
maneira doméstica, posto que o problema não é só regional.
Isso porque se no combate da erosão da base tributária e do deslocamen-
to do lucro venham ser adotadas respostas unilaterais e descoordenadas, além
de eventualmente não resolver o problema, pior, poderá ocasionar a dupla tri-
butação, o que seria um retrocesso, considerando os conhecidos esforços para
se formar a rede atualmente existente de três mil tratados celebrados exata-
mente para este fim.
Uma das preocupações antigas desta falta de harmonização no campo do
direito tributário internacional é a dupla tributação, assunto que não é novo,
vide Resolução nº 11 do Congresso Inaugural da Câmara do Comércio Inter-
nacional (CCI) que exigiu da Liga das Nações a adoção de medidas em relação
aos efeitos negativos deste fenômeno (SILVEIRA, 2009), considerando que,
ressalte-se, a dupla tributação cria desequilíbrios, além de trazer malefícios,
dificultando os fluxos de capitais e as transferências de tecnologia e, ainda, a
expansão das economias nacionais, problemas que estão sendo repaginados
no contexto atual do BEPS.
Vale lembrar que desde os anos vinte do século passado, vários países vêm
trabalhando para eliminar ou reduzir a dupla tributação com vistas a fomentar

517
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

o crescimento econômico sustentável. Tais preocupações ensejaram os estudos


produzidos após a primeira guerra mundial, que inclusive trataram dos princí-
pios fundantes da tributação internacional, especialmente sobre o princípio da
residência e o princípio da fonte, privilegiando o primeiro em relação ao segundo.
Nesta tentativa da criação de uma primeira harmonização foram cele-
brados e assinados modelos de diversos acordos para se evitar a dupla tribu-
tação, conforme já mencionado, entretanto, mesmo com todos os esforços,
considerando as inúmeras jurisdições que compõe o planeta, é evidente que
ainda assim permaneceram e permanecem “lacunas e atritos”.
Assim, essa busca de harmonização, destaque-se, que não é nova, res-
taria justificada para a obtenção da compatibilização do cenário tributário
internacional, com o escopo de solucionar as assimetrias existentes. Vale des-
tacar que já foram produzidos diversos trabalhos sobre o tema da harmoniza-
ção considerando o cenário econômico resultante do processo de globalização
(SILVA, 2003, pp. 8-11; CARVALHO (org.), 1998, pp. 6-9; CAMPOS (coord.),
1998, pp. 302-307; CANO, 1996, pp. 26-27; VICCHI, 2004, pp. 3-4; HREHO-
ROVSKA, 2006, pp. 158-166).
Neste sentido, para que as quinze ações propostas, assim como a Ação nº
11, possam prosperar no cenário internacional, e mais, sejam realmente efi-
cientes, todas deverão contemplar com grande aceitação e assinatura (países
dentro e fora do G20, OCDE), pois sem a coleta de dados em um maior cená-
rio possível, a própria premissa e benefícios que justificaram a transparência
restarão comprometidos.
E cada vez mais assente a necessidade de se acessar o caminho da coope-
ração tributária universal, ainda que sob o argumento moral. A cooperação
internacional, conforme observa Mauro Silva, em referência a Arjun Sengup-
ta, converteu-se em:
“[...] algo mais que obrigação moral, devendo esta fundada no conceito
de solidariedade e justiça econômica distributiva [...]. Os Estados têm
o dever de cooperar mutuamente para alcançar o desenvolvimento e
eliminar os obstáculos ao desenvolvimento, devendo cumprir os seus
deveres de modo a promover uma nova ordem econômica internacio-
nal baseada na igualdade soberana, na interdependência e no interesse
comum”. (SILVA, 2005, p. 185)

518
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Entretanto, acreditamos que a cooperação somente é alcançada de manei-


ra mais célere dentro um cenário em que possa contar com países em situações
econômicas semelhantes, ressalte-se, o que raramente se verifica na prática.
Dessa forma, se levarmos em consideração o cenário mundial, onde é
possível encontrar países com economias de todos os tamanhos e relevâncias,
mesmo dentro de grupos ou blocos formados sob a perspectiva geográfica ou
geopolítica, ainda sim será possível encontrar diferenças que notadamente in-
fluenciarão nesta coordenação.
Arriscamos a dizer que mesmo dentro do grupo de países desenvolvidos
ou mesmo dentro do grupo de países em desenvolvimento haverá evidentes
interesses e momentos econômicos, ou mesmo momentos políticos, que irão
atuar nesta pretendida coordenação.
Até porque todos os países elaboram suas políticas econômicas e fiscais
baseados em características próprias, que dependem do momento e condi-
ção para sua elaboração. Impende mencionar, outrossim, que tais cenários
são mutantes, vide política de juros dos países que podem ser menos ou mais
agressivos com o objetivo de fomentar e ampliar o investimento internacional.
Assim, mesmo que os defensores da tese de que houve uma perda da
soberania dos Estados para temas relativos à tributação internacional (MAR-
TINS, 2005, p. 17), como uma maior pressão política na padronização de con-
ceitos, é certo que para a assinatura de uma das ações do plano para combater
a erosão da base e a transferência dos lucros (como é o caso da Ação nº 11)
capaz de possibilitar esta coordenação, demandará um árduo trabalho, até
porque o atual regime fiscal internacional tende a resistir à cooperação e à
coordenação das políticas fiscais, conforme destacou Yariv Brauner (2014, p.
61), ou seja, mitigando a própria sorte do projeto da OCDE.
Em outras palavras sem esta coordenação e adesão de diversos países, o
caminho para o sucesso da Ação nº 11 estará seriamente comprometido.
Mas não é só isso.

3. Da praticabilidade tributária
A própria OCDE reconhece ao tratar desta mencionada ação que a sim-
ples troca ou divulgação de informações não solucionaria ou conduziria a efe-

519
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tiva redução da erosão da base tributária e a transferência dos lucros, que é


uma questão muito mais complexa, já que lida com fatores e valores que foram
considerados para a criação de todos os sistemas fiscais.
A troca e geração de informações proposta pela OCDE, pelo que nos
parece, pode até conferir maior transparência, mas não ataca efetivamente os
problemas que produzem o BEPS, podendo, dessa forma, macular os argu-
mentos apresentados para sua ampla adesão.
Conforme é possível verificar da Ação nº 11, será necessário um expe-
diente para o processamento dos dados existentes, como também para a cria-
ção de novas ferramentas que forneçam os eventuais dados adicionais, nos
termos do que menciona este plano de trabalho.
Por outro lado, considerando as especificidades de cada regime tributá-
rio, ante as qualificações tributárias próprias ou mesmo estruturas particula-
res de cada país (trust, por exemplo, já que não é comum a todas as jurisdi-
ções), além da questão da geração e captação dos dados, outro problema que se
apresenta é a própria parametrização e harmonização das informações.
Dessa forma, dependendo do esforço que se exija, especialmente se con-
siderarmos que esta ação também se relaciona com as trocas de informações,
será grande o dispêndio para atendimento do proposto pela a ação em análise.
Neste toar, ainda que sejam louváveis os trabalhos da OCDE em justi-
ficar a transparência, como também a pertinência da Ação 11, é claro que a
exigência de dispendiosos esforços de conformidade acabará por inviabilizar
a implementação desta ação em muitos países, como o caso do Brasil.
Na medida em que se pretenda inclusive sugerir a criação de dados adi-
cionais, surge a preocupação se estariam todos estes trabalhos em consonância
ao princípio da praticabilidade tributária, preocupação assente do direito tri-
butário internacional, conforme o pensamento vanguardista do direito alemão
representado em diversos trabalhos pioneiros na doutrina alemã de Eberhard
Wennrich, Josef Isensee, Hans Arndt, que refletiu nos sistemas tributários e na
produção científica de toda a Europa, principalmente em Portugal e Espanha.
Dessa forma, a criação de grande quantidade de informações, processa-
mento e a divulgação sugere redobrada cautela, sob pena de além de se tornar
inexequível, mais também imprestável, ante ao objetivo de combater a erosão
da base e transferência de lucros.

520
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vale relembrar que o princípio da praticabilidade deve orientar as políti-


cas fiscais (AVI-YONAH, 2008) e as Administrações Tributárias como destaca
Fritz Neumark em suas lições, princípio este orientador dos Estados na elabo-
ração de seus sistemas já que:
“[...] cuanto más eficiente se el trabajo de los funcionarios tanto más
bajos podrán ser ceteris paribus los tipos impositivos y tanto más justa
será la aplicación de las normas del derecho fiscal, cosa que, como ya se
ha mencionado, repercute a su vez en la mentalidad e en la moral tribu-
taria de los sujetos pasivos” (NEUMARK, 1974, pp. 384-385).

No mesmo caminho, Regina Helena Costa ressalta a nítida influência e


aplicação do princípio da praticabilidade no domínio da Administração Tri-
butária, notadamente sobre o aparelhamento burocrático mantido pelos entes
que são autorizados e competentes a tributar, destacando que o trabalho da ad-
ministração deve se pautar sempre nos cortes de custos (COSTA, 2007, p. 99).
Dessa forma, considerando que a praticabilidade tributária é dos pro-
pósitos basilares dos fiscos em todo o mundo, reforce-se, preocupação antiga
dos países desenvolvidos como também, ao longo do tempo, dos países em
desenvolvimento, mostra-se preocupante a geração e a captação de dados que
possam aumentar as formalidades que recaem sobre os contribuintes, poden-
do, inclusive, piorar a relação entre estes a Administração Tributária.
Em outras palavras, mesmo que a aferição e divulgações de informações
possam trazer melhoramentos no combate de práticas fiscais danosas como
é a erosão da base tributária e a transferência dos lucros, é questionável que a
relação entre a criação de novas metodologias e a geração de dados adicionais
possa levar à resolução do problema, capaz de justificar o empenho dos países
em assinar os termos da Ação nº 11.

4. Dos custos de conformidade


Ainda que o plano de Ação nº 11 expressamente destaque que todo o
esforço a ser realizado para implementar esta ação deve ser pautado em res-
peitar os custos de conformidade, parece-nos que tal objetivo não será alçado,
conforme inclusive se extrai do corpo da mencionada ação.

521
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

E pelo que nos parece, o respeito aos devidos custos de conformidade é


preocupação apenas teórica da mencionada ação, considerando que todas as
ações relativas ao tema de transparência sugerem a criação de novas decla-
rações, que, atualmente, especialmente no caso do Brasil, já não são poucas.
Vale mencionar que Adam Smith (SMITH, 1983) já destacava tal preocu-
pação com os gastos excessivos dos contribuintes, como também do Estado, já
que toda a máquina administrativa é financiada pelos tributos.
Este autor assinalou que há diversos meios pelos quais o sujeito passivo
tributário paga ou desembolsa muito mais do que é recolhido aos cofres pú-
blicos, ou seja, tributos indiretos cobrados da sociedade.
O referido autor indica ainda que é possível que a arrecadação exija um
grande número de funcionários, cujos salários podem devorar a maior parte
do montante do tributo, impondo ao povo outro imposto adicional.
Por outro lado, também se preocupa Smith ao afirmar que é possível que a
arrecadação impeça o trabalho do povo, desencorajando-o de investir em certos
ramos de atividade que poderiam dar sustento e emprego a muitos. Ao mesmo
tempo em que obriga as pessoas a pagar, pode assim diminuir, ou talvez ani-
quilar, alguns dos fundos que lhes permitiriam fazer isso com mais facilidade.
E continua o autor dizendo que ao sujeitar as pessoas às frequentes visitas
e a odiosa inspeção dos coletores, a arrecadação pode expô-las a incômodos,
vexações e opressão excessivamente desnecessários, como seria o caso de entre-
ga de muitos documentos fiscais, nos termos pretendido da Ação nº 11, mesmo
que tal a vexação não seja um custo, no sentido estrito da palavra, certamente
equivale a um custo em que todo homem estaria disposto a evitar praticar.
É por um ou por outro desses diferentes meios que os tributos ou mesmo
os deveres instrumentais (obrigações acessórias) frequentemente se tornam
muito mais pesados ao contribuinte do que ajudam o Estado no trabalho de
arrecadação e monitoramento, como nos parece em relação à Ação nº 11, tra-
zendo mais incômodos do que a resolução da matéria.
Ora, considerando que todas as ações de transparência visam eventual-
mente exigir do contribuinte a entrega de mais informações por meio de no-
vas declarações, sendo que muitas destas informações já estão em poder dos
fiscos, parece-nos que tais medidas não respeitam o princípio da economia,

522
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

que para Fritz Neumark, é um princípio de “Eficacia operativa o tecnica”, ou


seja, de eficácia operacional ou técnica.
O mencionado autor inclusive elabora um quadro resumo dos princípios
tributários que devem nortear todo sistema tributário que se pretenda justo,
sendo que tal princípio ficou sintetizado ou “formulado” como:
“La estructura del Sistema Tributario y la composición de sus elemen-
tos deben realizarse de tal forma que los gastos que ocasione a la Admi-
nistración o a los contribuyentes la gestión, recaudación e inspección
no sobrepasen el mínimo imprescindible para alcanzar los principios
político-económicos y político-sociales de la imposición” (NEUMA-
RK, 1974, p. 436-446).

E continua Neumark ao trazer quais seriam os custos de imposição que deve


se incluir neste conceito, que seriam três, quais sejam: (i) custos de gestão do im-
posto da administração fiscal; (ii) os custos do contribuinte para o cumprimento
das suas obrigações principal e “acessória”/deveres instrumentais; e, finalmente, (ii)
custos que enfrenta o contribuinte (pessoa física e jurídica) em favor do fisco, para
o cumprimento as obrigações de terceiros. Para o indicado autor alemão os dois
últimos poderiam ser considerados um “tributo para pagar tributo” ou um tipo de
“exação indireta”, nos termos do que já tratava Adam Smith.
Neste sentido, as ações de transparência podem enfrentar limitações, repita-
-se, sendo que em alguns casos, muitas das informações já foram prestadas pelo
contribuinte, o que não se justificaria o aumento dos custos de conformidade, es-
pecialmente para o atendimento da Ação nº 11, expediente que deveria ser evitado.
No caso brasileiro, Caio Augusto Takano (TAKANO, 2015) também se preo-
cupou em enfrentar este tema, especialmente se tais custos não forem distribuídos
com a capacidade econômica de cada contribuinte, sendo que para este auto:
“a otimização da administração tributária é uma finalidade legítima que
deve ser buscada pelo Poder Público, ainda que implique restrições a di-
reitos dos contribuintes. Restrições (e não violações) são aceitáveis se fo-
rem necessárias para manter a eficiência do controle fiscal. Não obstante,
a busca por maior eficiência da arrecadação e da fiscalização dos tributos
deve obedecer às balizas constitucionais e às regras positivadas em nor-
mas gerais de direito tributário que impõem freios à atividade estatal.”

523
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vale lembrar que no Brasil, o princípio da eficiência foi inserido na Cons-


tituição de 1988, conforme artigo 37, com o objetivo de transformar o modelo
de administração burocrática em administração gerencial.
Por outro lado, Claudio Sachetto (SACCHETTO, 2008, p. 94.) menciona que
há um secundário aspecto que também deva ser levado em conta, relativo aos
custos para as trocas de informações. Dessa forma caso os planos de ação preten-
dam realizar a troca destes dados para o combate ao “BEPS”, tal aspecto merece
atenção. Destaca este autor em relação às trocas de informações que a Convenção
Modelo da OCDE e a Convenção Modelo dos EUA, preveem uma cláusula cujo
modelo prevê: “allow the Contracting Parties to agree upon rules regarding the costs
of obtaining and providing information in response to a request”. Ou seja, também
este custo deve ser levado em conta para o sucesso dos objetivos da Ação nº11.
Portanto, acreditamos que a Ação nº 11 para o combate da erosão da
base tributária e transferência dos lucros não atende ao conceito trazido pelo
princípio da economia, no sentido que irá aumentar os custos de conformida-
de, sem efetivamente tratar do foco do problema que causa a erosão da base
tributária e a transferência dos lucros, especialmente se for o caso de criação
de novos relatórios que deverão ser entregue pelos contribuintes, como a men-
cionada ação sugere.

4. Do sigilo quanto às informações do contribuinte


Outra questão fundamental que pode atrapalhar o sucesso da Ação nº 11
quanto ao acesso e manejo de informações é o sigilo fiscal.
Destarte, ainda que a própria Ação nº 11 mencione como objetivo a ne-
cessidade de respeitar a confidencialidade dos contribuintes, acreditamos que
o plano de ação relativo à transparência inevitavelmente encontrará barreiras
na proteção do sigilo fiscal.
A questão de sigilo fiscal também não é nova, lembra Alexandre de Morais a
história de que em 1824, Lorde Chatam foi ao Parlamento Inglês e exclamou que:
“O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa,
sua cabana pode ser frágil, o teto pode tremer, o vento pode soprar
entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei
da Inglaterra não pode nela entrar.” (MORAES, 2007, p. 49).

524
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Dessa forma, a Ação nº 11 na busca de elaborar indicadores de impacto


econômico do BEPS poderá eventualmente encontrar problemas relativos à
questão do sigilo nas legislações internas de cada país, já que o poder de fis-
calização não é absoluto, não é ilimitado, e convive, ou ainda, rende-se aos
preceitos legais e garantias individuais do contribuinte.
A proteção do contribuinte e os limites da fiscalização tributária é questão
que mereceu trabalhos em diversas nações, conforme estudos produzidos na
Itália por Baldassarre Satamaria (SANTAMARIA, 2000, p. 15.) que destacou:
“(...) La libertà personale consiste nel diritto di disporre liberamente
della própria persona e si estrinseca nel potere di disporne non solo
senza coercizioni, ma anche senza oblligui che sottopongano, anche
mediante uma menomazione della libertà morale, all´altrui potere.”

No mesmo caminho, merece destaque o trabalho da espanhola Ana Ma-


ria Juan Lozano (LOZANO, 1993, p. 35), ao sustentar que:
“El primero de ellos atenderá a legitimar o no el estabelecimiento por
parte del legislador de aquellas potestades cuyo ejercicio pueda supo-
ner una fricción de mayor o menor intensidad con otros bienes consti-
tucionalmente protegidos.”

Vale mencionar aqui no Brasil o trabalho de Norberto Bobbio trouxe o


alerta que:
“Não se trata de saber quais e quantos esse direitos, qual é a sua natu-
reza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos
ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para
impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente
violados” (BOBBIO, 2004, p. 25).

Neste diapasão, é possível identificar que cada nação considera tal pro-
teção ao sigilo ao seu próprio modo, entretanto é possível afirmar, conforme
reconhece o relatório da Ação nº 11, o acesso completo aos dados detalhados
fiscais das empresas é geralmente restrito às autoridades, disponibilizados
muitas vezes com pedido específico, sendo certo que alguns países tais dados
permanecem em condições de estrita confidencialidade.

525
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em relação ao tema de troca de informações que envolve o estado brasileiro,


segundo informações divulgadas pela OCDE em 2013, há pelo menos 40 acordos
internacionais em matéria tributária que contemplam a troca internacional de
informações, dos quais alguns aguardam a ratificação pelo congresso brasileiro.
Destacam-se os específicos para troca de informações como o exemplo do “Fo-
reign Account Tax Compliance Act” (FATCA) que vige nos Estados Unidos desde
março de 2010 e que já conta com adesão do Brasil (Decreto nº 8.506/15).
Ademais, outros já foram assinados mais estão aguardando medidas le-
gislativas para produção de seus efeitos, como é o caso do celebrado com Ber-
muda, Guernsey, Ilhas Cayman, Jersey Reino Unido e Uruguai.
Entretanto, a suprema corte brasileira assegurou que os poderes de fis-
calização exigem respeito aos direitos e garantias individuais constitucional-
mente protegidos, como é o caso do sigilo (STF, HC nº 93.050/RJ, 2ª Turma,
Relator Ministro Celso de Mello, Dje 142, de 1º.8.2008, p. 700).
Neste sentido, asseverou a suprema corte nacional que a autorização a
quebra ao sigilo fiscal é medida excepcional com o preenchimento de requisi-
tos quanto a idoneidade do fundamento, a pertinência temática e a necessida-
de da medida considerando “que o resultado não possa advir de nenhum outro
meio ou fonte lícita de prova” e “existência de limitação temporal do objeto da
medida, enquanto predeterminação formal do período”.
Por outro lado, ainda que alguns autores destaquem a nova tendência de
transparência fiscal, como assinala Ricardo Mariz de Oliveira ao dizer que
“em todo mundo sopram novos ventos em favor da facilitação do acesso dos
governos às informações bancária [...]” (OLIVEIRA, 2011, p. 311-312), mesmo
assim é possível que tais práticas possam causar demandas judiciais em rela-
ção aos estritos limites do sigilo e proteção do contribuinte.
Considerando o ditado de que “as palavras comovem, mas os exemplos
arrastam” insta mencionar que mesmo os Estados Unidos vem lidando como
os limites da questão do sigilo conforme o episódio de divulgação indevida de
informações do conhecido caso de Aloe Vera Inc. vs. Estados Unidos, que se
tornou famoso por conta das informações fiscais indevidamente divulgados
pelo fisco japonês durante o curso de uma investigação conjunta com os EUA.
O caso veio à tona por conta de um inquérito de auditoria conjunta entre o fis-
co federal americano (IRS) e a administração japonesa do imposto nacional (NTA),

526
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

no qual foram compartilhadas informações fiscais nos termos do acordo de evasão


fiscal em matéria de dupla tributação celebrado pelos Estados Unidos e o Japão, em
razão da fiscalização sobre o correto pagamento de comissões e royalties.
Em outras palavras, considerando o cenário vigente, quanto a proteção
do sigilo fiscal, ainda que em constante mudança, novamente o sucesso da
Ação nº 11 quanto ao acesso e manejo de informações especialmente sobre o
aspecto da divulgação parece não ter vida fácil.
Outro ponto que pode ser um limitador do plano de Ação nº 11 são os
próprios acordos celebrados para se evitar a dupla tributação, especialmente
nos termos da Convenção Modelo da OCDE, que contempla em seu artigo 26
a proteção dos sigilos comercial, societário e industrial.
Nos termos dos comentários do Modelo de Convenção da OCDE365, os
fatos de importância econômica e que podem ser explorados de maneira prá-
tica estariam protegidos pelo sigilo.
Desta forma, parece-nos claro que modelos comerciais e planejamentos
financeiros que venham a ser divulgados poderão causar danos ao contri-
buinte, como bem lembrou Juciléia Lima, ao tratar da troca de informações
entre os Estados (LIMA, 2015, p. 217-235).
No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal inclusive assegurou que os
poderes de fiscalização exigem respeito aos direitos e garantias individuais consti-
tucionalmente protegidos, como é o caso do sigilo (STF, ADI 2390/2016.).
Atento a tais realidades, também Luis Eduardo Schoueri (SCHOUERI, 2016,
pag. 395) critica com veemência, a falta de observância da proporcionalidade, no
cenário nacional, tanto no que diz respeito aos dados bancários dos cidadãos,
quanto as novas obrigações a respeito da troca automática de informações:
Um exemplo de violação da proporcionalidade é fornecido pela atual
legislação aplicada pelo Art. 6º da Lei Complementar nº 105/01, ao con-
ceder o poder das autoridades fiscais dos Municípios, dos Estados e da
União, de examinarem as informações bancárias do contribuinte du-
rante uma avaliação tributária. Não há mais nenhum requisito para tal
violação ao sigilo bancário. O mero acontecimento da imposição fiscal
é suficiente para que a autoridade fiscal restrinja o direito dos devedo-
res ao sigilo bancário, a seu próprio critério. [...] O contribuinte está

365 Ver Comentários 19 e 19.2 ao artigo 26 do Modelo de Convenção Modelo da OCDE, versão 2014.

527
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

agora sobrecarregado com múltiplas obrigações, e o Estado equipou-se


com vários registros e bancos de dados, sem mais preocupação com
a transparência das informações nele incluídas. A construção de tais
bases de dados ocorreu às custas da esfera privada dos indivíduos, sob
múltiplos discursos, sendo a necessidade de medidas anti abuso atu-
almente o argumento mais frequente. A transparência do Estado, por
outro lado, foi rejeitada por motivos inaceitáveis, sujeita à conveniência
das autoridades do Estado. (livre tradução nossa)

Como pode ser visualizado nas palavras do acima mencionado autor, com-
preende-se que o futuro relacionado com o manejo de informações fiscais e os
embates entre fisco e contribuinte, principalmente na área judicial, serão campo
fértil para a análise da aplicação da proporcionalidade em matéria fiscal no ce-
nário nacional, considerando que não se mostra adequada, já que o fisco dispõe
de outros meios que não violem os direitos fundamentais do contribuinte.
Dessa maneira, por todos os ângulos que se aborde a questão da divul-
gação das informações relativas ao combate da erosão da base tributária e
transferência dos lucros é possível encontrar empecilhos em relação à pro-
teção da confidencialidade dos dados do contribuinte – sigilo fiscal – dentro
das legislações nacionais, como também os exemplos de vazamentos de dados
indesejados, o que, novamente, dificulta o sucesso da Ação nº 11.

Conclusões
Frente a todas estas considerações, conclui-se que a Ação nº 11 da OCDE,
relativa à transparência, leia-se, que pretende estabelecer metodologias para
a coleta e análise dos dados sobre a erosão da base tributária e transferência
de lucros, bem como fomentar ações para o seu combate, padece de diversas
inconsistências que poderão representar obstáculos ao resultado pretendido,
ou seja, o combate efetivo ao BEPS.
As razões expostas no presente trabalho demonstram que assim como
o plano de 15 ações, a Ação nº 11 necessita de grande aceitação e assinatura
dos países dos G 20 e também dos membros da OCDE, como ainda de outras
jurisdições, pois sem uma adesão geral e massiva, a própria premissa e os be-
nefícios que justificaram a transparência ficarão comprometidos.

528
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

E único caminho existente para que haja grande aceitação e assinatura


das ações contra o BEPS pelos países é a coordenação. Ocorre que como se
demonstrou, mesmo dentro de um bloco econômico as políticas fiscais são
distintas, especialmente se considerarmos o cenário econômico e político de
cada país, leia-se, em constante alteração, é difícil encontrar um consenso.
Outrossim, como o tema é global, cada alteração unilateral ou mesmo de
apenas um grupo de países ou região, poderá significar um retrocesso, acarre-
tando inclusive a indesejada dupla tributação ou mesmo a falta de tributação,
efeitos que são desde há muito tempo as grandes preocupações das nações em
termos de circulação de riqueza e tributação internacional.
E mais, considerando as razões da própria Ação nº 11, a OCDE reconhe-
ce que a simples troca ou divulgação de informações não resolveria o combate
ao BEPS, tema muito mais complexo, já que lida com fatores e valores que
foram considerados na criação de todos os sistemas fiscais, o que, dessa forma,
nos termos do trabalho proposto, estaria por violar o primado do princípio da
praticabilidade tributária, presente em diversas jurisdições do planeta.
Além disso, conforme demonstrado, a Ação nº 11 para o combate da ero-
são da base tributária e transferência dos lucros também estaria violando um
dos princípios universais da tributação, qual seja, o principio da economia, na
medida em que inevitavelmente aumentará o custo de conformidade, nota-
damente se for o caso de criação de novos relatórios que deverão ser entregue
pelos contribuintes, conforme menciona a Ação nº 11.
Ademais, considerando a proteção do contribuinte e os limites da fiscali-
zação tributária estariam pasmados em proteger o sigilo das informações fis-
cais e comerciais dos contribuintes, ainda que as razões da Ação nº 11 sugere
tal proteção, não vislumbramos garantias que tal medida possa ser adotada,
evitando conflitar com este conteúdo, quase que sagrado, conforme exemplos
que o mundo vem enfrentando.
Portanto, ainda que todos os esforços da OCDE sejam louváveis para a
divulgação e o combate da erosão da base tributária como é o objetivo da Ação
nº 11, relativa ao tema-chave da transparência, acreditamos que tal proposta
encontrará diversos obstáculos, conforme acima exposto, comprometendo o
resultado pretendido. Esperamos não se tratar de apenas mais um esforço e
energia desperdiçados.

529
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

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534
19. O Conflito de Competência entre o ISS
e o ICMS à Luz do RE 688223/PR - BEPS

Maurine Morgan Pimentel Feitosa

1. Introdução
O conflito de competência entre o ISS e o ICMS consiste em um dos
temas mais relevantes do Direito Tributário, ao menos nos últimos cinquenta
anos. Fonte inesgotável de artigos de doutrina e de produção jurisprudencial,
a controvérsia ainda se mostra longe do fim. Classicamente solucionada atra-
vés da dicotomia entre obrigações de fazer e de dar, à luz do Direito Romano,
o tradicional critério de resolução de controvérsias não parece suficiente para
esgotar o tema, especialmente diante dos bens intangíveis.
A tributação da Internet representa uma nova fronteira no Direito Tributá-
rio. Com leis, via de regra, produzidas de forma lenta e que não têm se mostrado
suficiente para gerar estabilidade institucional, as questões referentes à economia
digital deverão ser decididas, em cada caso concreto, pelo Poder Judiciário.
Nesse contexto, insere-se o RE 688223/PR, cuja repercussão geral foi re-
conhecida, em que se discute qual imposto incide sobre o licenciamento ou
cessão de direito de programa de computador (software), em serviço perso-
nalizado366. Paralelamente a esse recurso extraordinário, existem ações dire-
tas de inconstitucionalidade especificas sobre a matéria, quais sejam, as ADIs
1945/MT, 5576/SP, 5659/MG e 5958/DF.
A Constituição Federal de 1988 conferiu à lei complementar um papel de
destaque, prevendo que cabe a ela dispor sobre conflitos de competência, assim
como definir as hipóteses tributárias e bases de cálculo (SCHOUERI, 2015, p.
275). No âmbito da tributação sobre o consumo, não há uma lei complementar

366 Destaque-se que o chamado software livre, que é usualmente distribuído por meio de uma licença
de software livre, de modo a tornar o código fonte do programa disponível, não será objeto deste
trabalho. Disponível em: <http://www.softwarelivre.gov.br/tire-suas-duvidas/o-que-e-software-
livre>. Acesso em: 27 set. 2015.

535
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

específica, com critérios precisos para dirimir os conflitos de competência entre


o ISS e o ICMS. Em verdade, há apenas uma lei complementar para cada tributo,
o que, se por um lado, permite a sistematização das espécies tributárias, por ou-
tro, fragiliza o potencial conferido pelo constituinte à legislação complementar.
Nesse cenário, avulta a importância da atividade do aplicador, na propo-
sição de parâmetros eficazes à solução de controvérsias. Embora o substrato
da atividade interpretativa seja a lei, interpretar implica, em alguma medi-
da, na criação do próprio Direito. Ou seja, embora a interpretação tenha a lei
como ponto de partida, ela transborda os seus limites.
De outro lado, a economia digital tem sido objeto de especial atenção no
Direito Tributário Internacional, notadamente através da Action Plan 1 do
BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), elaborada em parceria entre o G20
(20 maiores economias do mundo, de que o Brasil é parte) e a OCDE (Organi-
zação de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico). Ainda que o Brasil
não faça formalmente parte da OCDE, mostra-se inequívoco que os critérios
elaborados no contexto da tributação internacional podem lançar luzes sobre
o sistema tributário brasileiro.
Nesse sentido, o estudo acerca de qual imposto deverá incidir sobre a
cessão de direito de programa de computador deverá partir das premissas an-
teriormente fixadas. Se, de um lado, sobressai o papel da lei complementar
no conflito de competência entre os entes federativos, de outro, novos para-
digmas interpretativos, para além da dicotomia entre as obrigações de dar e
de fazer, têm sobressaído na doutrina e, ainda que timidamente, na própria
jurisprudência dos Tribunais Superiores. Paralelamente, os planos de ação da
OCDE podem inspirar o direito interno. É o que se passa a expor.

1.1 Breve relatório do RE 688223/PR


Trata-se, na origem, de mandado de segurança preventivo impetrado
por empresa de telefonia móvel celular contra ato a ser praticado pelo Dire-
tor do Departamento de Rendas Mobiliárias do Município de Curitiba, no
sentido de cobrar ISS quanto à importação, pela impetrante, de contratos de
licença de uso de programas de computador para planejamento de redes de
telecomunicações celulares.

536
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Aduz a impetrante que o item 1.05 da lista anexa à LC 116/2003 seria in-
constitucional, visto que a hipótese traduzir-se-ia em mera obrigação de dar,
violando a noção de serviço. Segundo sustenta, o conceito constitucional de
serviço pressuporia a existência de obrigação de fazer, submetida a um regime
de direito privado, embora não trabalhista, e prestada em caráter negocial.
Dentro dessa ordem de ideias, enfatiza que há prestação de serviço ape-
nas na elaboração de jogos de computador, conforme previsão do item 1.04 da
lista anexa à LC 116/2003. Contudo, exaurida esta etapa, há a mera autoriza-
ção para a utilização do programa de computador, pelo que invoca a necessá-
ria aplicação, por analogia, do regime jurídico dos contratos de locação, que,
conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, não gera a incidência de
ISS367. Salienta que a Lei 9609/98, por meio de seu art. 9º, previu que o uso de
programas de computador, no Brasil, será objeto de contrato de licença, o que
afastaria a configuração de um serviço.
Defende, outrossim, que não seria admissível a incidência do ISS sobre
os contratos referidos, pois eles seriam provenientes do exterior. Assevera que
o art. 1º, § 1º da LC 116/03 seria inconstitucional, visto que, à exceção do IPI,
todos os tributos que recaem sobre a importação o fazem segundo expressa
previsão constitucional.
Ademais, ressalta que a cessão e o licenciamento de programas de com-
putador inserem-se na seara das telecomunicações, em que o art. 150, § 3º,
CRFB ressalvou que apenas seriam admissíveis a incidência do ICMS, do im-
posto de importação (II) e do imposto de exportação (IE).
No entanto, embora defenda que a hipótese é de operação de telecomuni-
cação, e, em princípio, passível de tributação pelo ICMS, entende que os con-
tratos de cessão e licenciamento de programas de computador consubstancia-
ram atividades-meio de telecomunicações. Com esta afirmação, a impetrante
parece sugerir que tampouco o ICMS poderia onerar os contratos de licença e
cessão de programas de computador que, segundo esta linha, estariam inseri-
dos na competência residual da União, decorrente do art. 154, I, CRFB.

367 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 31. É inconstitucional a incidência do
Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1286>.
Acesso em: 23 set. 2015.

537
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Como a competência residual da União não foi exercida, a consequência


inarredável da tese desenvolvida pela impetrante é a de que os contratos em
comento não estariam sujeitos a qualquer imposição tributária. Portanto, re-
quereu a impetrante a concessão de medida liminar, inaudita altera pars, para
que houvesse a suspensão da exigibilidade do crédito tributário referente ao ISS.
Em primeira instância, a liminar foi deferida, entendendo o MM. Juízo a
quo que os contratos de cessão e licenciamento de programas de computador
não consistiriam em obrigações de fazer, mas de dar, de modo que não haveria
prestação de serviço apta a ensejar a incidência do ISS. No entanto, quando
do julgamento de mérito, a segurança foi denegada, cassando-se a liminar
anteriormente concedida, para se entender que o fornecimento de programas
de computador de forma personalizada leva à incidência do ISS, consoante a
jurisprudência do STJ.
A sentença foi confirmada em sede recursal, tendo o acórdão de apela-
ção decidido que o licenciamento em tela é pessoal (personalizado). Portanto,
concluiu que a hipótese não era a de programas de computador de prateleira,
amoldando-se à incidência do ISS. Finalmente, o acórdão afastou a tese de que
o contrato em comento representasse atividade-meio do serviço de telecomu-
nicações, destacando que o impetrante seria mero responsável tributário.
Posteriormente, foram interpostos recursos especial e extraordinário.
Em sede de recurso especial, alegou-se violação ao art. 110, CTN, sob o fun-
damento de que o item 1.05 LC 116/03 vulneraria o conceito de direito privado
de contrato de licença de programas de computador, insculpido no art. 9º,
Lei 9609/98. Em acréscimo, sustentou-se a impossibilidade de incidência do
ISS na importação, defendendo-se a aplicação do princípio da territorialidade,
que decorreria do art. 12, DL 406/68.
No recurso extraordinário, enfatizou-se a violação ao art. 156, III, CRFB,
fundada no argumento central de que a cessão de uso e a licença de programas
de computador não representam serviços. Ademais, destacou-se a ausência de
previsão, na Carta Magna, de que o ISS incidisse na importação, discorrendo-
-se, assim como no recurso especial, sobre o princípio da territorialidade da
tributação. Finalmente, defendeu-se a violação ao art. 155, § 3º, CRFB, visto
que os únicos tributos que poderiam, em tese, incidir sobre as telecomunica-
ções seriam o ICMS, o II e o IE.

538
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Sustentou-se que se estaria diante de inquestionável operação de teleco-


municações, de modo que se torna “inconcebível, desde a época do surgimen-
to da telefonia móvel celular, a possibilidade de se prestar a atividade-fim sem
a interligação e gerenciamento de antenas de receptação de sinais emitidos
pelos telefones móveis celular – o que é feito pelo software em questão – que
fazem a interconexão entre os aparelhos envolvidos na ligação”. Dessa forma,
concluiu no sentido de que, caso houvesse a incidência de alguma espécie tri-
butária, necessariamente seria o ICMS.
Em sede de em recurso especial, decidiu o Superior Tribunal de Justiça
que programas de computador desenvolvidos de forma personalizada, para
clientes, geram a incidência do ISS. Já com relação à alegada violação ao prin-
cípio da territorialidade (art. 1º, LC 116/03), aplicou a Súmula 283, do STF, en-
tendendo que o recurso especial não havia impugnado todos os fundamentos
suficientes a manterem a decisão atacada. Dessa forma, o recurso especial foi
conhecido, mas, no mérito, foi-lhe negado provimento.
O recurso extraordinário, por sua vez, foi distribuído ao Ministro Luiz
Fux, de modo que ainda não houve o início do julgamento. Contudo, tendo
em vista que foram ajuizadas novas ações acerca da tributação do software e,
mais especificamente, se a hipótese enseja a incidência de ICMS ou ISS, em-
bora o objeto do presente artigo seja o RE 688223/PR, a expectativa é a de que
haja o julgamento conjunto das referidas ações.

1.2 O conflito de competência entre o ISS e o ICMS


Feitas as considerações anteriores, observa-se que o critério tradicional-
mente utilizado para distinguir as hipóteses de incidência do ICMS e do ISS
consiste em extrair diretamente do Texto Constitucional a interpretação de
que o ICMS seria devido quando se estivesse diante de obrigação de dar, ao
passo que o ISS pressuporia obrigação de fazer.
A referida distinção parte de classificação usualmente adotada no Di-
reito Civil, com base em critérios que remontam ao Direito Romano. Em ver-
dade, à luz do disposto no art. 110, CTN, a doutrina amplamente majoritária
no Direito Tributário defende que os conceitos utilizados pela Constituição
Federal devem ser interpretados segundo o alcance que lhes dá o Direito Civil.

539
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Nesse sentido, cumpre transcrever as lições de Aires Barreto, para quem


o conceito constitucional de serviço abrange:
as obrigações de fazer – e nenhuma outra;
os serviços submetidos ao regime de direito privado – não incluindo, por­
tanto, o serviço público (porque este, além de sujeito ao regime de direito
pú­blico, é imune a imposto, conforme o art. 150, VI, a, da Constituição);
que revelem conteúdo econômico, realizados em caráter negocial – o
que afasta, desde logo, aqueles prestados a si mesmo, ou em regime
familiar ou de­sinteressadamente (afetivo, caritativo, etc.);
prestados sem relação de emprego – como definida pela legislação própria
– ex­cluído, pois, o trabalho efetuado em regime de subordinação (funcional
ou empregatício) por não estar in commercio; (BARRETO, 1994, p. 220).

Ademais, destaca o autor que a competência tributária é regulada de


forma rígida pela Constituição Federal, só podendo ser modificada por via
de emenda constitucional. Por conseguinte, a lei complementar nacional não
poderia alterar o conceito de serviços estabelecido pela Constituição, sob pena
de inconstitucionalidade.
O referido entendimento, além de preponderante no âmbito da doutrina
do Direito Tributário, tem sido agasalhado pela jurisprudência dos Tribunais
Superiores, tanto do STF como do STJ, embora tenha sido recentemente miti-
gado pelo STF no julgamento do RE 651.703/PR, sobre planos de saúde.
No caso específico do STF, historicamente, há alguns acórdãos paradig-
máticos sobre a questão, em que a Corte Suprema posicionou-se, simultanea-
mente, no sentido de que o conceito de serviços adotado pela Constituição é
aquele decorrente do Direito Civil e que este pressupõe, necessariamente, uma
obrigação de fazer.
Diante do quanto se expôs, cabe transcrever a ementa do RE 44600 AgR/
PR, em que o STF afastou a incidência do ISS sobre a locação de veículos, por
não vislumbrar na hipótese uma obrigação de fazer, o que decorreria do art.
110, CTN368, verbis:

368 Observe-se que o entendimento reiterado do STF quanto à matéria deu ensejo à edição da Súmula
Vinculante 31, conforme já destacado, o que, entretanto, vem sendo parcialmente revisto pela
Corte, como será exposto à frente.

540
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS) - LOCAÇÃO DE VEÍCULO


AUTOMOTOR - INADMISSIBILIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DA
INCIDÊNCIA DESSE TRIBUTO MUNICIPAL - DISTINÇÃO NE-
CESSÁRIA ENTRE LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS (OBRIGAÇÃO
DE DAR OU DE ENTREGAR) E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS (OBRI-
GAÇÃO DE FAZER) - IMPOSSIBILIDADE DE A LEGISLAÇÃO TRI-
BUTÁRIA MUNICIPAL ALTERAR A DEFINIÇÃO E O ALCANCE
DE CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO (CTN, ART. 110) - IN-
CONSTITUCIONALIDADE DO ITEM 79 DA ANTIGA LISTA DE
SERVIÇOS ANEXA AO DECRETO-LEI Nº 406/68 - PRECEDENTES
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - RECURSO IMPROVIDO.
- Não se revela tributável, mediante ISS, a locação de veículos automo-
tores (que consubstancia obrigação de dar ou de entregar), eis que esse
tributo municipal somente pode incidir sobre obrigações de fazer, a
cuja matriz conceitual não se ajusta a figura contratual da locação de
bens móveis. Precedentes (STF). Doutrina. (STF - RE 446003 AgR/
PR, Segunda Turma, Relator Min. CELSO DE MELLO, Julgamento:
30/05/2006, DJ 04-08-2006).

Regulando especificamente o conflito de competência entre o ICMS e o ISS,


na hipótese de serviço de composição gráfica com fornecimento de mercadorias,
entendeu o STF que, ainda que a composição gráfica esteja prevista na lista anexa
à LC 116/2003 (item 13.05), haveria a incidência de ICMS, diante de o serviço ter
natureza acessória em relação à mercadoria369, preponderando a obrigação de dar,
e não a de fazer. É o que se depreende da ementa que segue, verbis:
Agravo regimental no recurso extraordinário. Serviço de composição
gráfica com fornecimento de mercadoria. Conflito de incidências entre
o ICMS e o ISSQN. Serviços de composição gráfica e customização de
embalagens meramente acessórias à mercadoria. Obrigação de dar
manifestamente preponderante sobre a obrigação de fazer, o que leva
à conclusão de que o ICMS deve incidir na espécie. 1. Em precedente
da Corte consubstanciado na ADI nº 4.389/DF-MC, restou definida
a incidência de ICMS “sobre operações de industrialização por enco-
menda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em
processo subsequente de industrialização ou de circulação de merca-
doria”. 2. A verificação da incidência nas hipóteses de industrialização

369 Este posicionamento do STF, que já havia sido veiculado na ADI 4389 MC/DF, parece superar
a tradicional jurisprudência do STJ, materializada na Súmula 156: “A prestação de serviço
de composição gráfica, personalizada e sob encomenda, ainda que envolva fornecimento de
mercadorias, está sujeita, apenas, ao ISS”.

541
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

por encomenda deve obedecer dois critérios básicos: (i) verificar se a


venda opera-se a quem promoverá nova circulação do bem e (ii) caso o
adquirente seja consumidor final, avaliar a preponderância entre o dar
e o fazer mediante a averiguação de elementos de industrialização. 4. À
luz dos critérios propostos, só haverá incidência do ISS nas situações
em que a resposta ao primeiro item for negativa e se no segundo item
o fazer preponderar sobre o dar. 5. A hipótese dos autos não revela a
preponderância da obrigação de fazer em detrimento da obrigação de
dar. Pelo contrário. A fabricação de embalagens é a atividade econô-
mica específica explorada pela agravante. Prepondera o fornecimen-
to dos bens em face da composição gráfica, que se afigura meramente
acessória. Não há como conceber a prevalência da customização sobre
a entrega do próprio bem. 6. Agravo regimental não provido. [Grifos
nossos]. (STF - AI 803296 AgR/SP, Primeira Turma, Relator: Min.
DIAS TOFFOLI, Julgamento: 09/04/2013, DJe 07/06/2013).

Contudo, de forma mais recente e utilizando-se de argumentação simi-


lar ao quanto já exposto na primeira edição deste artigo, o STF relativizou a
dicotomia entre obrigações de dar e de fazer ao apreciar o RE 651.703/PR, em
que se discutia a viabilidade de incidência de ISS sobre planos de saúde. Nesse
precedente, preponderou o voto do relator, Min. Luiz Fux, que assinalou que
o Direito Tributário pode ter conceitos próprios, não havendo que se falar
em primado do Direito privado. Dentro dessa ordem de ideias, prevaleceu a
posição de que a locução “serviço” designa uma utilidade dirigida a outrem.
O STJ, por sua vez, a partir dos precedentes encontrados370, tem reiterado
o entendimento de que o conceito de serviço, para fins de incidência do ISS,
pressupõe um facere, o que se verifica em inúmeros precedentes sobre o tema,
como nos julgamentos sobre o contrato de franquia371, a industrialização por
encomenda372, a guarda e estacionamento de veículos373, a locação374, os medi-

370 Pesquisa realizada aos 01 jun. 2019.


371 AgRg no REsp 953840/RJ, rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, Julgamento 20/08/2009, DJe
14/09/2009.
372 AgRg no Ag 1362310/RS, rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Turma, Julgamento
01/09/2011, DJe 06/09/2011.
373 AgRg no AREsp 94885/RS, rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Turma, Julgamento
21/03/2013, DJe 02/04/2013.
374 REsp 878509/MT, Rel. Min. ELIANA CALMON, Segunda Turma, Julgamento 03/12/2009, DJe
14/12/2009.

542
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

camentos realizados em farmácia de manipulação375 e as atividades desenvol-


vidas por operadores de planos de saúde376.
Cumpre destacar, exemplificativamente, de forma a ilustrar o raciocínio
que vem sendo desenvolvido por aquela Egrégia Corte, trecho de acórdão em
que se discute a incidência de ISS sobre o arrendamento mercantil. Assim
como em outros acórdãos, o STJ informa que a competência para delimitar o
conceito de serviço cabe ao STF, de modo que, na atual conjuntura constitu-
cional, o ISS pressuporia a existência de obrigação de fazer, verbis:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL.
ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER.
CONCEITO PRESSUPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988. AMPLIAÇÃO DO CONCEITO QUE EXTRAVASA O ÂMBI-
TO DA VIOLAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
PARA INFIRMAR A PRÓPRIA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
CONSTITUCIONAL. ACÓRDÃO CALCADO EM FUNDAMENTO
SUBSTANCIALMENTE CONSTITUCIONAL. INCOMPETÊNCIA
DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. TEMA DIVERSO DO EN-
SEJADOR DA SÚMULA 138 DO STJ.
1. O ISS na sua configuração constitucional incide sobre uma presta-
ção de serviço, cujo conceito pressuposto pela Carta Magna eclipsa
ad substantia obligatio in faciendo, inconfundível com a denomina-
da obrigação de dar.
2. A Constituição utiliza os conceitos de direito no seu sentido pró-
prio, com que implícita a norma do artigo 110, do CTN, que interdi-
ta a alteração da categorização dos institutos.
3. Consectariamente, qualificar como serviço a atividade que não os-
tenta essa categoria jurídica implica em violação bifronte ao preceito
constitucional, porquanto o texto maior a utiliza não só no sentido
próprio, como também o faz para o fim de repartição tributária-cons-
titucional (RE 116121/SP).
4. A regra do artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988 é imposi-
tiva, verbis: “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão ‘inter vivos’,
a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou aces-

375 AgRg no REsp 1447225/GO, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, Julgamento
24/02/2015, DJe 07/05/2015.
376 REsp 1041127/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, Julgamento 04/12/2008, DJe 17/12/2008.

543
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

são física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem


como cessão de direitos a sua aquisição; III - serviços de qualquer natu-
reza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)”. [...]
5. A dicção constitucional, como evidente, não autoriza que a lei
complementar inclua no seu bojo atividade que não represente ser-
viço e, a fortiori, obrigação de fazer, porque a isso corresponderia
franquear a modificação de competência tributária por lei comple-
mentar, com violação do pacto federativo, inalterável sequer pelo
poder constituinte, posto blindado por cláusula pétrea.
6. O conceito pressuposto pela Constituição Federal de serviço e de
obrigação de fazer corresponde aquele emprestado pela teoria geral
do direito, segundo o qual o objeto da prestação é uma conduta do
obrigado, que em nada se assemelha ao dare, cujo antecedente neces-
sário é o repasse a outrem de um bem preexistente, a qualquer título,
consoante a homogeneidade da doutrina nacional e alienígena, quer de
Direito Privado, quer de Direito Público.
7. Envolvendo a atividade, bens e serviços, a realidade econômica que
interessa ao Direito Tributário impõe aferir o desígnio final pretendi-
do pelo sujeito passivo tributário, distinguindo-se a atividade meio, da
atividade fim, esta última o substrato da hipótese de incidência.
8. “A adulteração dos conceitos incorporados pelo Constituinte na criação
da regra-matriz de incidência de cada exação fiscal é matéria constitucio-
nal, visto que viola as regras de repartição constitucional da competência
tributária e, por consequência, atenta contra a organização federativa do
Estado, que pressupõe a autonomia legislativa dos entes federados”. (Pare-
cer da lavra de Luiz Rodrigues Wambier, datado de 20.07.2006). [...]
15. As conclusões e premissas de índole notadamente constitucional, sem
as quais não sobreviveria o aresto recorrido impõem timbrar seu funda-
mento constitucional para, na forma da jurisprudência cediça na Corte,
não conhecer do especial (Precedentes: AgRg no Ag 757416/SC, Primei-
ra Turma, DJ de 03.08.2006; AgRg no Ag 748334/SP, Primeira Turma,
DJ de 30.06.2006; REsp 754545/RS Segunda Turma, Segunda Turma DJ
13.03.2006; AgRg no REsp 778173/MG, Primeira Turma, DJ de 06.02.2006;
AgRg no REsp 658392/DF, Primeira Turma, DJ de 21.03.2005).
16. Nesse sentido, restou pacificada a jurisprudência desta Corte por
ocasião do julgamento do Resp 805.317/RS, Relator para acórdão Min.
Luiz Fux, DJ de 21/09/2006.

544
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

17. Agravo regimental desprovido. [Grifos nossos]. (AgRg no REsp


945932/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, Julgamento
05/02/2009, DJe 19/02/2009).

Portanto, a partir do acórdão anteriormente referido, pode-se concluir


que, se de um lado, o STJ tem amplamente adotado o entendimento de que a
configuração de um serviço pressupõe obrigação de fazer – em contraposição
ao ICMS, que demanda prévia obrigação de dar – de outro, aquela Egrégia
Corte tem adotado uma jurisprudência defensiva, de modo a entender que
a competência para a delimitação da hipótese de incidência tributária é de
competência exclusiva do STF.
Dessa forma, caberá ao STF dar a última palavra sobre os conflitos de compe-
tência entre o ISS e o ICMS, assim como julgar isoladamente se as hipóteses colo-
cadas à sua apreciação ensejam a incidência de uma ou outra espécie tributárias377.

2. Dos critérios interpretativos no direito tributário

2.1 Da interpretação dos artigos 109 e 110, CTN


Ainda que a contraposição entre obrigações de dar e de fazer para fins de
dirimir o conflito de competência entre o ISS e o ICMS seja utilizada de forma
majoritária no âmbito do Direito Tributário, à luz do que dispõem os artigos 109
e 110, CTN, novos critérios de interpretação têm progressivamente ganhado es-
paço, permitindo uma releitura do papel conferido aos supracitados dispositivos.
Ricardo Lobo Torres (2006, p. 136-139), ao analisar os referidos artigos, que
cuidam da relação entre o Direito Civil e o Direito Tributário, entende que os mes-
mos são ambíguos e contraditórios, mostrando-se de difícil conciliação.
O art. 109, CTN indica, consoante afirmava a Comissão Especial do CTN,
que, enquanto o Direito Privado regula a validade jurídica dos atos, o Direito

377 Observa-se, pois, diante do caráter defensivo da jurisprudência do STJ, que, além da repercussão
geral que ora se estuda neste trabalho, outras também estão pendentes de apreciação pelo STF, como
a referente à tributação dos remédios de manipulação (RE 605552 RG/RS), das operações de rádio-
chamada (RE 660970 RG/RJ) e dos contratos de franquia (RE 603136 RG/RJ).

545
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Tributário investiga o seu conteúdo econômico378. Entende o professor, em con-


tundente crítica ao dispositivo, que ele recomenda a interpretação teleológica
– ou seja, aquela voltada à finalidade e ao objetivo da norma – ao menos para os
conceitos tributários não imbricados na Constituição (TORRES, 2006, p. 145).
De outro lado, o art. 110, CTN designa que, no caso de interpretação
de normas constitucionais, a lei tributária não poderá alterar o conteúdo e o
alcance dos conceitos de Direito Civil, para definir ou limitar competências
tributárias. Ou seja, enquanto o art. 109, CTN deu prevalência ao método te-
leológico, o art. 110, CTN enfatizou o método sistemático – aquele pelo qual
os conceitos do sistema do Direito Privado empregados no Direito Tributário
conservam o seu sentido originário (TORRES, 2006, p. 138). Dessa forma, o
CTN houve por bem dividir os métodos de interpretação, a depender de os
conceitos tributários terem ou não estatura constitucional.
Ao analisar o art. 110, CTN379, pondera Ricardo Lobo Torres (2006, p. 172)
que o CTN, que tem status de lei complementar, não poderia estabelecer normas
sobre a interpretação da Constituição, sob pena de restar vulnerado o princípio
da sua supremacia. Ademais, reportando-se às lições de Walter Leisner, assinala
que a Constituição é pobre de conceitos verdadeiramente constitucionais, pelo
que o princípio da interpretação da lei conforme a Constituição poderia ganhar
cores de uma interpretação da Constituição conforme a lei.

378 A interpretação do art. 109, CTN, consoante o exposto neste trabalho, não é unânime na doutrina.
A este propósito, a fim de mostrar outros possíveis entendimentos, seguem as lições do professor
Luciano Amaro, para quem: “O preceito refere-se a situações nas quais a norma tributária
utiliza um instituto, um conceito ou uma forma jurídica pertinente ao direito privado e, a partir
desse enunciado, estatui certos efeitos tributários. [...] Em suma, o instituto de direito privado
é ‘importado’ pelo direito tributário com a mesma conformação que lhe dá o direito privado,
sem deformações, nem transfigurações. [...] Não obstante tais princípios comandem a definição
dos efeitos jurídicos privados, as consequências tributárias (efeitos jurídicos tributários) são
determinadas sem submissão àqueles princípios”. (AMARO, 2008, p. 217-219).
379 Em contraponto ao posicionamento doutrinário que ora se expõe, cumpre transcrever as lições do
professor Paulo de Barros Carvalho, que defende que o art. 110, CTN consiste em imposição lógica da
hierarquia do sistema jurídico. Consoante leciona: “O empenho do constituinte cairia em solo estéril
se a lei infraconstitucional pudesse ampliar, modificar ou restringir os conceitos utilizados naqueles
diplomas para desenhar as faixas de competências oferecidas às pessoas políticas. A rígida discriminação
de campos materiais para o exercício da atividade legislativa dos entes tributantes, tendo estatura
constitucional, por si só já determina essa inalterabilidade”. (CARVALHO, 2009, p. 106).

546
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

No entanto, a referida assertiva não significa que os conceitos constitu-


cionais serão necessariamente aqueles encontrados na lei ordinária (TORRES,
2006, p. 176), mas sim que existe uma relação de interdependência entre ambos.
Consoante leciona Luís Roberto Barroso, a interpretação da Constitui-
ção conforme a lei encontra-se em relação de simetria com a interpretação da
lei conforme a Constituição, diante da constatação de que o legislador tam-
bém interpreta rotineiramente a Carta Constitucional. Segundo sustenta:
Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades interpreta-
tivas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade,
endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal
deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a vonta-
de cristalina emanada do Texto Constitucional. [Grifo nosso]. (BAR-
ROSO, 2009, p. 201).

Conforme se depreende do seu magistério, embora se deva conferir defe-


rência à interpretação adotada pelo legislador ordinário, reputando-se válida
a chamada interpretação da Constituição conforme a lei, a mesma não dispõe
de caráter absoluto, devendo cessar nas zonas onde não houver certeza quanto
ao real alcance do Texto Constitucional.
Dentro dessa ordem de ideias, destaca Ricardo Lobo Torres que a Consti-
tuição Tributária deve ser interpretada de acordo com o pluralismo metodológi-
co, abrindo-se para a interpretação segundo variados métodos, que vão desde o
literal até o sistemático e teleológico. Segundo destaca, os conceitos constitucio-
nais tributários não são fechados e unívocos, devendo-se recorrer também aos
aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a ciência das finanças, a
economia e a política, o que será desenvolvido no item seguinte.
Por fim, defende o professor que a interpretação isolada do art. 110, CTN
conduz à prevalência do método literal, dando aos conceitos de direito priva-
do a primazia hermenêutica na ordem jurídica. Da leitura conjugada entre os
artigos 109 e 110, CTN, ao contrário, avultam em importância, de um lado, o
método sistemático – quando estiverem em jogo institutos e conceitos utiliza-
dos pela Constituição – e, de outro, o método teleológico – quando não haja a
constitucionalização dos conceitos (TORRES, 2006, p. 137, 179-180).
Diante do exposto, pode-se concluir que, embora os conceitos de Direito
Civil exerçam um papel importante na interpretação dos conceitos constitu-

547
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

cionais tributários, eles não esgotam a atividade interpretativa. Nesse sentido,


cabe transcrever relevante decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha,
de 27/12/1991, referida pelo professor Ricardo Lobo Torres (2006, p. 161-162),
que bem sintetiza o quanto se expôs:
Direito Tributário e Direito Civil são ramos jurídicos da mesma esta-
tura, regrados um ao lado do outro, que à mesma situação de fato se
aplicam sob outra perspectiva e sob outros pontos de vista valorativos.

Cumpre salientar, como brevemente pontuado no item anterior do pre-


sente, que a presente linha interpretativa, capitaneada por Ricardo Lobo Tor-
res, foi acolhida no âmbito do RE 651.703/PR.

2.2. A interação entre o Direito Tributário e a Economia


Estudado o alcance dos artigos 109 e 110, CTN, que pretenderam cuidar
das relações entre o Direito Tributário e o Direito Civil, passa-se, neste momen-
to, a analisar o possível influxo entre critérios econômicos e a interpretação em
matéria tributária, assim como a delimitar as hipóteses em que os conceitos
tributários realmente se identificam com os conceitos do Direito Privado.
A este propósito, devem ser transcritas as lições de Ricardo Lodi Ribei-
ro (2014, p. 49-51) que, seguindo os ensinamentos de Heinrich Beisse, defende
que a interpretação dos conceitos de Direito Tributário segue três princípios. O
primeiro deles indica que conceitos econômicos de Direito Tributário, que te-
nham sido criados pelo legislador tributário ou por ele convertidos para os seus
objetivos, devem ser interpretados segundo critério econômico. Para tanto, cita
como exemplo a expressão “renda e proventos de qualquer natureza”, que não é
encontrada no Direito Civil, sendo delineada pelo legislador tributário.
O segundo princípio informa que conceitos de Direito Civil devem ser
interpretados economicamente – embora respeitado o sentido literal possível
das palavras – quando o objetivo da lei tributária imponha, de forma objeti-
vamente justificada, um desvio do conteúdo de Direito Privado, em nome do
princípio da igualdade. O exemplo trazido pelo autor é o da expressão “empre-
gadores”, utilizada no art. 195, CRFB, para definir os contribuintes das contri-
buições da seguridade social, que não tem o sentido do Direito do Trabalho,
abarcando empresas que não mantêm empregados próprios.

548
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O terceiro princípio, por sua vez, é o de que os conceitos de Direito Tri-


butário devem ser interpretados de acordo com a definição dada pela legis-
lação civil quando, conforme o sentido e o objetivo da lei tributária, existe
certeza de que o legislador cogitou exatamente do conceito de Direito Privado
ou, alternativamente, quando o sentido literal possível da norma tributária
não confere outra possibilidade interpretativa. Nesse sentido, tem-se como
exemplo o fato gerador do ITR, pelo qual a tributação circunscreve-se à pro-
priedade imóvel por natureza, não alcançando os imóveis por acessão.
Em conclusão, arremata Ricardo Lodi Ribeiro que as premissas anterior-
mente desenvolvidas não podem ser infirmadas pelo princípio da unidade da
ordem jurídica, uma vez que esta unidade não é realizada pelo primado do
Direito Civil, mas sim através do plano axiológico380.
Cabe aqui, uma vez mais, rememorar as lições de Ricardo Lobo Torres,
para quem, ultrapassado o contexto histórico da jurisprudência dos interesses
e dos conceitos, e na atual quadra da jurisprudência dos valores, prepondera o
pluralismo metodológico na interpretação do Direito Tributário. Entretanto,
o referido pluralismo não impede que haja a preponderância de determinados
métodos, a depender do tributo de que se cuide.
No caso específico dos tributos sobre o consumo, de que são exemplos
o ISS e o ICMS, defende o professor que os mesmos se abrem à interpretação
econômica, porque baseados em conceitos elaborados pelo próprio Direito
Tributário ou em conceitos tecnológicos.
Nesse ponto, faz-se importante remarcar que a consideração do critério
econômico não se confunde com a vetusta teoria da interpretação econômica
do fato gerador, consagrada no Código Alemão de 1919381, mas sim em reco-
nhecimento da interação entre o Direito e a Economia, em substituição ao

380 Destaque-se a posição de Marcus Lívio Gomes, para quem a unidade do ordenamento jurídico é
conferida pela própria Constituição. (GOMES, 2010, p. 56).
381 Uma das mais contundentes críticas à interpretação econômica do fato gerador é feita pelo professor
Luciano Amaro, nos seguintes termos: “Alfredo Augusto Becker faz severa crítica a essa doutrina,
porque, entre outras razões, destrói a certeza e a praticabilidade do direito, negando ao direito
tributário exatamente o que ele tem de jurídico. Para refutar a alegação de que duas situações com
igual capacidade contributiva devem ambas ser tributadas, ainda que apenas uma esteja prevista
na lei, Becker cita o exemplo dado por Berliri: se instituído um tributo sobre cães, a interpretação
econômica levaria a tributar também os gatos, dada a circunstância de, em ambas as situações,
demonstrar-se análoga capacidade contributiva”. (AMARO, 2008, p. 225).

549
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

formalismo jurídico. Consoante leciona Ricardo Lobo Torres (2006, p. 162-


164), a interpretação é simultaneamente jurídico-econômica, pois a finalidade
econômica vive sub specie juris, ainda que, para a formação dos conceitos tri-
butários, os dados econômicos passem pelo filtro jurídico.

3. O papel da lei complementar nos conflitos de


competência em matéria tributária
Conforme anteriormente assinalado, o constituinte conferiu à lei com-
plementar, através do seu art. 146, I, a prerrogativa para solucionar conflitos
de competência em matéria tributária. Entretanto, o efetivo papel desempe-
nhado pela lei complementar mostra-se envolto em grande dissenso doutri-
nário e jurisprudencial.
Importantes são as vozes que advogam que, em princípio, não caberia
falar em conflitos de competência tributária, diante da rigidez e da rigorosa
segregação do sistema, com impostos privativos de cada ente e taxas e contri-
buições de melhoria atribuídas diante da competência político-administrativa
das pessoas federativas (COÊLHO, 2006, p. 86-88).
Em verdade, haveria mero conflito aparente de competência, que, con-
soante à sistematização de Roque Antonio Carrazza (2005, p. 881-882), po-
deria ser provocado por leis tributárias inconstitucionais, por uma pretensão
administrativa ilegal (ou inconstitucional) da pessoa tributante ou por uma
insurgência do sujeito passivo.
Seguindo essa linha de raciocínio, como os conflitos de competência re-
feridos pelo art. 146, I, CRFB seriam potenciais, hipotéticos e abstratos, cabe-
ria à lei complementar apenas reforçar o perfil constitucional já traçado para
cada tributo. Portanto, os conflitos de competência, depois de efetivamente
ocorridos, deveriam ser dirimidos pelo Poder Judiciário, de sorte que “a lei
complementar que veicula normas gerais em matéria de legislação tributária
de pouca coisa pode ocupar-se” (CARRAZZA, 2005, p. 883).
Entretanto, cabe ponderar que, efetivamente, não é papel do legislador
resolver conflitos concretos, uma vez que a lide deve ser dirimida num proces-
so judicial subjetivo, cuja palavra final seja do julgador, com a autoridade da
imutabilidade da coisa julgada. Porém, o Judiciário não detém o monopólio

550
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

da palavra final sobre a interpretação constitucional, que é um patrimônio de


todos os Poderes e da sociedade (NASCIMENTO, 2014, p. 278).
Nesse sentido, ressoam também outras vozes que reconhecem que a lei
complementar não apenas reforça o Texto Constitucional, mas, efetivamente,
inova no mundo jurídico. De fato, diante do princípio democrático, a prima-
zia para a realização da ponderação entre valores constitucionais é conferida
ao Poder Legislativo, que dispõe de uma margem de escolha para realizar essa
ponderação, pois não é um mero executor de decisões já integralmente conti-
das na Constituição (SARMENTO, 2013, p. 514).
Observe-se que, segundo leciona Luís Eduardo Schoueri (SCHOUERI,
2015, p. 270 e 275), a Constituição, ao dividir competências tributárias, valeu-se
eminentemente de tipos, e não de conceitos. A diferença entre tipos e concei-
tos radica essencialmente na doutrina germânica, cabendo citar, por todos, os
ensinamentos de Karl Larenz, para quem, enquanto o conceito pressupõe uma
definição clara, com a indicação exaustiva de todas as notas que o compõem,
o tipo não se define, mas se descreve. Transcrevem-se, a seguir, as suas lições:
Um conceito está fixado por meio da sua definição, de tal modo que haja
de aplicar-se a um evento concreto ou situação de fato ‘só quando e sem-
pre que’ se possam nele encontrar o conjunto das notas características da
definição. Esta proposição não vale para o tipo. As notas característi-
cas indicadas na descrição do tipo não precisam, pelo menos algumas
delas, estar todas presentes; podem nomeadamente ocorrer em medi-
da diversa. São com frequência passíveis de gradação e até certo ponto
comutáveis entre si382. [Grifo nosso]. (LARENZ, 1997, p. 306-307).

Transportando-se para o campo tributário o quanto antes se expôs,


defende Luís Eduardo Schoueri que os elencos dos artigos 153, 155 e 156 da
Constituição consistem em tipos, pois, do contrário, seria despiciendo o em-
prego de lei complementar para dirimir conflitos de competência, consoante
a previsão do art. 146, I, CRFB.
Portanto, segundo sustenta, os conflitos de competência surgem justa-
mente da potencial fluidez dos tipos, o que, conjugado com o art. 146, III, a,

382 Destaque-se que, ainda no que concerne à diferença entre conceito e tipo, Larenz ressalta que os
conceitos permitem a aplicação do método subsuntivo, ao passo que os tipos, pela sua própria
abertura, estão voltados à concretização de valores.

551
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

CRFB – pelo qual foi conferido à lei complementar o papel de definir os fatos
geradores, bases de cálculo e contribuintes – demonstra que o constituinte
tinha consciência de que ele próprio não conceituara os elementos essenciais
dos impostos previstos383 (SCHOUERI, 2015, p. 276).
No entanto, o reconhecimento de que a Constituição valeu-se de lingua-
gem tipológica e potencialmente aberta não conduz a que a lei complementar
possa dispor livremente sobre os impostos previstos na Constituição. Nesta li-
nha, conforme vem reconhecendo a doutrina, o legislador fica vinculado aos
sentidos mínimos que são extraídos das locuções empregadas pelo Texto Cons-
titucional na definição da competência tributária (OLIVEIRA, G., 2014, p. 199).
Dentro dessa ordem de ideias, o professor Gustavo da Gama Vital de
Oliveira defende que, muito embora a materialidade dos impostos pressupo-
nha o reconhecimento de conceitos mínimos, o processo de definição de qual
imposto deverá incidir no caso concreto384 deve tomar como ponto de partida
a solução oferecida pela lei complementar, nos seguintes termos:
A nosso ver, o processo de definição precisa começar pelo exame da
solução oferecida pela lei complementar, instrumento eleito pela CF
para “demarcação das fronteiras” de cada um dos impostos men-
cionados na CF. É evidente que a solução oferecida pela lei comple-
mentar não pode ser soberana, insindicável à apreciação da jurisdição
constitucional. Todavia, a superação do critério adotado pela lei com-
plementar deve exigir ônus argumentativo reforçado, capaz de com-
provar o manifesto descompasso do critério adotado pelo Legislador e
a materialidade econômica indicada na CF. A lei complementar tribu-
tária que disciplina conflito de competência deve desfrutar de uma
espécie de dupla presunção de constitucionalidade. [Grifos nossos].
(OLIVEIRA, G., 2014, p. 199-200).

Por conseguinte, o papel da lei complementar não é meramente acessó-


rio, mas tem o caráter potencial de inovação no mundo jurídico, desde que
respeitados os conteúdos mínimos estabelecidos pela Constituição, fora dos
quais estará sujeita ao controle de constitucionalidade.

383 Dentro dessa ordem de ideias, Luís Eduardo Schoueri defende a evolução dos tipos, que acompanha
a evolução dos fenômenos econômicos.
384 Observe-se que, no ponto, o professor Gustavo da Gama tratava especificamente sobre possíveis
conflitos de competência envolvendo o IPI, o ICMS e o ISS.

552
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4. Os planos de ação da ocde e a action 1


Embora a determinação pura e simples do tributo a ser devido no caso
do contrato de licenciamento ou cessão de uso de software pudesse ser alcan-
çada meramente à luz do ordenamento interno, o advento dos planos de ação
BEPS/OCDE e, notadamente, do plano de Ação 1 – que cuida da economia di-
gital – impõe sejam analisados os possíveis influxos sobre o direito brasileiro.
De outro lado, a despeito de possíveis falhas que possam ser imputadas
ao projeto BEPS, e que serão gradualmente expostas, entende-se que as críti-
cas formuladas devem servir para o aprimoramento do próprio sistema, e não
para o seu esvaziamento. É o que se passa a expor.
Preliminarmente, cumpre destacar que a OCDE consiste em uma or-
ganização internacional formada pela Convenção de Paris, de 14 de dezem-
bro de 1960, que teve como antecessora a Organização para a Cooperação
Econômica Europeia (OECE)385. Tem como finalidade precípua a promoção
da prosperidade e do fortalecimento econômicos de seus membros através da
comunhão de esforços entre eles.
Ademais, a Convenção de Paris assinala que os objetivos da OCDE de-
vem ser voltados a promover políticas de desenvolvimento econômico susten-
tável, de estabilidade financeira, expansão econômica de seus membros e não
membros, assim como do comércio multilateral internacional, por meio de
bases não discriminatórias386.

385 Convenção da OCDE, de 14 de dezembro de 1960: “Os governos signatários acordaram com as
seguintes cláusulas para a reconstituição da Organização para a Cooperação Econômica Europeia como
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico”. [Tradução nossa]. Texto original:
“Have therefore agreed on the following provisions for the reconstitution of the Organisation for European
Economic Co­operation as the Organisation for Economic Cooperation and Development”.
386 Artigo 1. Os objetivos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
(de agora em diante chamada de “Organização”) deve ser a de promover as políticas designadas:
(a) Para atingir o mais alto crescimento econômico e desenvolvimento sustentável e um crescente
padrão de vida nos países membros, ao mesmo tempo em que se mantém a estabilidade financeira.
Por conseguinte, busca-se contribuir com o desenvolvimento da economia mundial;
(b) Para contribuir com a expansão econômica nos países membros e não membros no processo de
desenvolvimento econômico e
(c) Para contribuir com a expansão do comércio mundial em uma base multilateral e não-
discriminatória, de acordo com as obrigações internacionais. [Tradução nossa]. Texto original:

553
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Originalmente, a OCDE era formada por 18 países europeus, pelos Esta-


dos Unidos e Canadá. Atualmente, a OCDE conta com 36 Estados-membros
espalhados ao redor do mundo e abarcando países desenvolvidos e emergen-
tes, como o México, o Chile e a Turquia. Ainda que o Brasil não faça parte
formalmente da OCDE, este organismo multilateral tem trabalhado em par-
ceria com economias em desenvolvimento, que incluem tanto o Brasil, como
China, Índia e países da Ásia, África, América Latina e Caribe387.
A atuação da OCDE se volta para diversas áreas da economia. Entre-
tanto, no âmbito específico da tributação, para além de medidas como a in-
tensificação de troca de informações, o grupo do G20, em conjunto com a
OCDE, lançou o BEPS, que consiste em um conjunto de 15 ações para evitar a
chamada erosão da base tributária e o deslocamento de lucros. Ou, em outras
palavras, o objetivo passou a ser o de evitar, no plano internacional, o fenôme-
no conhecido como dupla não tributação ou a tributação reduzida.
Segundo Luís Eduardo Schoueri, a premissa do BEPS é a de que, em um
cenário de falta de recursos e de crise mundial, os contribuintes seriam os
culpados, eis que as empresas estariam erodindo a base tributária ou mesmo
fugindo da tributação, através de mecanismos como a transferência dos seus
lucros para países com baixa tributação388.
A partir dessa constatação, em 2012, os países do G20 convidam a OCDE
a desenvolver um plano de ação contra o planejamento fiscal agressivo. Pos-

Article 1. “The aims of the Organisation for Economic Co­operation and Development (hereinafter
called the “Organisation”) shall be to promote policies designed:
(a) to achieve the highest sustainable economic growth and employment and a rising standard of living
in Member countries, while maintaining financial stability, and thus to contribute to the development
of the world economy;
(b) to contribute to sound economic expansion in Member as well as non­member countries in the
process of economic development; and
(c) to contribute to the expansion of world trade on a multilateral, non­discriminatory basis in
accordance with international obligations”.
387 Cf. os atuais países membros da OCDE. Disponível em: <http://www.oecd.org/about/membersandpartners>.
Acesso em: 01 jun. 2019.
388 Cf. a palestra do professor Luís Eduardo Schoueri, ministrada no II Seminário de Direito Tributário,
em 2014, organizado pela OAB/MG, em que o professor Schoueri critica esta visão da OCDE. Em
acréscimo, ele propõe seja editado um décimo sexto plano de ação, que seria a transparência do
Estado, e não apenas a transparência do contribuinte. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=6nn2lRTA8YY>. Acesso em: 01 jun. 2019.

554
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

teriormente, em julho de 2013, o conjunto de 15 ações que integram o BEPS


já estava pronto, sendo estruturado em torno de três pilares básicos, quais
sejam, a coerência, a transparência e a substância nos padrões internacionais
existentes389. Em prosseguimento na evolução histórica, já no mês de outubro
de 2015, foram publicados os relatórios finais das citadas ações, incluindo as
diretrizes para a implementação das recomendações390.
Conforme se observa, houve uma sensível mudança de paradigma no
âmbito do Direito Tributário Internacional. Se, historicamente, os tratados
voltaram-se a evitar os fenômenos da dupla tributação ou mesmo da pluritri-
butação, num cenário de dicotomia entre a tributação da fonte e da residência,
mais recentemente a preocupação tornou-se inversa. Num contexto de globa-
lização em que os países são simultaneamente importadores e exportadores de
capital, o alvo a ser combatido passou a ser a dupla não tributação (MOREIRA
FILHO, 2013, p. 11-17) e a imposição tributária de forma inferior à ordinária.
As palavras de ordem tornaram-se o multilateralismo e o consenso, pois,
para garantir a soberania tributária dos países, a economia global passou a re-
querer a cooperação em matéria tributária. Ademais, os novos padrões devem
garantir a coerência na tributação, evitando a persistência de lacunas ou dis-
crepâncias na interação de legislações tributárias de cada país, características
de um modelo baseado em instrumentos bilaterais, mas carente de mecanis-
mos multilaterais (OCDE, 2013, p. 11).
Por conseguinte, a adequada consolidação do BEPS requer sejam toma-
das medidas tanto em âmbito interno como na esfera internacional. O chama-
do “pacote BEPS” pressupõe mudanças na legislação e nas práticas domésti-
cas, além de alterações nos tratados e a celebração de um instrumento multi-
lateral (OCDE, 2015, p. 3).
Nesse contexto, a economia digital representou o primeiro plano de ação
da OCDE, tendo em vista a crescente utilização de intangíveis, o uso maciço de
dados, incluindo informações pessoais, a expressiva existência de modelos de

389 Cf. maiores informações no site da OCDE. Disponível em: <http://www.oecd.org/g20/topics/


taxation>. Acesso em: 01 jun. 2019.
390 No encerramento do ciclo de palestras do BEPS, ministrado em parceria entre a UERJ e a Vale,
ocorrida em 27 nov. 2015, destacou o professor Schoueri que não houve tempo de maturação suficiente
em relação ao BEPS, pois as medidas foram tomadas de modo extremamente rápido. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=EhVx50u7fPI&feature=youtu.be>. Acesso em: 01 jun. 2019.

555
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

negócios multilaterais e a dificuldade em determinar a jurisdição na qual o ne-


gócio é criado. Enfim, a economia digital representa a primeira grande fronteira
no Direito Tributário Internacional, notadamente em tempos de globalização e
crescimento tecnológico (OCDE, 2014b, p. 10). Vale dizer, que a cessão de sof-
tware, a ser pormenorizada adiante, insere-se inequivocamente nesse cenário.

4.1 Os desafios da Economia Digital –


notas essenciais da Action 1
A Ação 1 do BEPS teve sua primeira minuta para discussão publicada
em março de 2014 e o seu relatório publicado em setembro do mesmo ano. A
OCDE buscou, através dos referidos instrumentos, identificar as peculiarida-
des da economia digital, que podem ser sintetizadas nas seguintes caracterís-
ticas: a mobilidade, a dependência de dados, os efeitos em rede, a utilização
de modelos empresariais de múltiplos lados (multi-sided business model), a
tendência ao monopólio e ao oligopólio, assim como a volatilidade391.
A mobilidade pode ser verificada em diferentes campos. Em primeiro lu-
gar, designa o próprio caráter móvel dos intangíveis, especialmente os softwares,
que são ferramentas essenciais para as empresas. Em segundo lugar, pode ser
identificada com os usuários, uma vez que um indivíduo pode residir em um
país, efetuar uma compra em outro e usar o aplicativo em um terceiro Estado.
Em último lugar, a mobilidade indica que as funções empresariais são exerci-
das de forma descentralizada, de forma que, enquanto as atividades centrais
concentram-se em dada localidade, a sua execução ocorre em ambiente diverso.
Em síntese, o caráter móvel da economia digital guarda íntimo parale-
lo com a desterritorialização, indicando que novos modelos negociais estão
sendo geridos a partir de múltiplas bases territoriais, o que permite, paralela-
mente, que as empresas mudem os locais das suas atividades com relativa fa-
cilidade. Em igual sentido, os consumidores e os bens postos à sua disposição
podem estar vinculados a diferentes localidades.

391 Cf. documento na íntegra. Disponível em: <http://www.oecd.org/ctp/tax-challenges-digital-


economy-discussion-draft-march-2014.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2019.

556
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Outra característica fundamental da economia digital é a dependência


de dados, que indica que as empresas que atuam na área vêm progressivamen-
te coletando informações sobre os seus consumidores e fornecedores, assim
como sobre as suas operações. Os referidos dados podem ser tanto personali-
zados como não personalizados e a sua obtenção dá-se de forma direta, através
do questionamento formulado ao receptor, ou indireta, quando a informação
é inferida a partir da conjugação com outros dados disponíveis.
Um terceiro aspecto a ser analisado é o dos efeitos em rede, que se refere
ao fato de que as decisões de um usuário podem gerar impactos nos benefí-
cios recebidos por outros usuários. Portanto, as decisões devem ser pensadas a
partir dos seus efeitos macro, considerando, ainda, as externalidades positivas
e negativas que podem advir do caráter de rede da economia digital.
A OCDE destacou, outrossim, o que chamou de modelo empresarial de
múltiplos lados (multi-sided business model), que é baseado em um mercado
no qual grupos de pessoas distintas interagem através de um intermediário ou
de uma plataforma e as decisões de cada grupo de pessoas afeta os resultados
de outro grupo de pessoas, por meio de externalidades positivas e negativas.
O relatório da OCDE apontou duas características essenciais do multi-sided
business model, quais sejam, a flexibilidade e a extensão. Enquanto a primeira de-
signa a própria natureza da informação digital e da infraestrutura de Internet, em
que recursos, como as informações pessoais, podem ser armazenados bastante
tempo depois de obtidos, a segunda assinala que a economia digital permite que
partes integrantes de um mesmo negócio localizem-se em países diferentes. O
exemplo citado pela OCDE é o dos instrumentos necessários à coleta de dados
pessoais, que devem estar perto dos usuários, enquanto a infraestrutura necessá-
ria para a venda desses mesmos dados pode situar-se em outro lugar.
Verificou-se, outrossim, que a economia digital apresenta uma tendência
ao monopólio e ao oligopólio, vez que poucas empresas dominam o cená-
rio econômico. De outro lado, a última particularidade da economia digital
consiste na sua volatilidade, que se singulariza pelo fomento à inovação e ao
desenvolvimento de novos modelos de negócios, com a constante produção de
produtos com características inovadoras.
Ademais, a OCDE identificou como princípios norteadores da economia
digital, na linha do que já fora assinalado na Conferência de Ottawa, de 1998,
a neutralidade, a eficiência, a simplicidade, a efetividade e a flexibilidade. Con-

557
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

jugado com estes princípios, foi remarcado o papel da equidade, seja no plano
horizontal, a designar que contribuintes em situação semelhante devem arcar
com análoga carga tributária, seja no plano vertical, que se relaciona com o
conceito de capacidade contributiva (OCDE, 2015, p. 20).
A equidade também se aplica através do princípio da equidade entre nações,
que regula a alocação de perdas e ganhos no contexto internacional, bem como a
distribuição da receita tributária nas referidas transações. Defende a OCDE seja
adotado, no contexto de repartição de receitas entre os países de origem e de des-
tino, o princípio do país de destino, conforme será descrito no item seguinte.
Ademais, deve-se destacar que a OCDE adotou o entendimento de que a
economia digital não deve ser compreendida de forma apartada do restante da
economia, considerando, inclusive, o atual fenômeno de intensa digitalização
das atividades tradicionais. Ressalte-se que este entendimento já havia sido
previamente adotado no cenário internacional, através da referida Conferên-
cia de Ottawa, de 1998.
Finalmente, cumpre observar que, através do Interim Report, de 2018392, a
OCDE identificou que, desde a publicação da Ação 1, novas tecnologias emergi-
ram, como a Internet das Coisas, as criptomoedas, a economia compartilhada,
a impressão 3 D, a robótica avançada e as informações governamentais abertas.
Esse relatório intermediário descreve diversas diferenças de opinião entre
países, que são apresentadas com o intuito de identificar pontos de divergência
e estabelecer bases para futuros trabalhos, com o objetivo de se chegar a uma
solução consensual no Relatório Final de 2020 (ROCHA, CASTRO, 2018, p. 27).
Entretanto, o reconhecimento de que a economia digital se insere no
quadro geral da economia não afasta a identificação das suas peculiaridades,
como demonstrado anteriormente. Feitos os esclarecimentos anteriores, mos-
tra-se importante estudar as relações entre a Action 1 e a tributação indireta.

392 Cf. documento na íntegra. Disponível em: <http://www.oecd.org/ctp/tax-challenges-arising-from-


digitalisation-interim-report-9789264293083-en.htm>. Acesso em: 02 jun. 2019.

558
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

4.2 O BEPS e a previsão de um imposto sobre o valor


agregado – a PEC 45/2019
A OCDE defende a existência de um tributo sobre o valor agregado co-
nhecido como VAT (value added tax) ou, em português, IVA (imposto sobre
valor agregado). Embora amplamente utilizado em diversas jurisdições, o IVA
não encontra abrigo no ordenamento positivo brasileiro, embora tramite no
Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 45/2019393, que
propõe a criação de um imposto sobre bens e serviços (IBS), unificando a tri-
butação do ICMS, ISS, PIS, COFINS e do IPI nessa nova figura tributária, que
se assemelha a um IVA (SANTIN, 2019, em linha).
Nesse cenário de discussões sobre um possível modelo de reforma tributária
para o país, mostra-se importante o estudo dos contornos que a OCDE propõe
para o IVA, diante do seu nítido predomínio no cenário internacional, do forta-
lecimento crescente do Direito Tributário Internacional e da defesa de que haja
algum modelo de IVA no cenário brasileiro (PIRES, 2014, p. 368-370)394, inclusive
como mecanismo de maior eficiência tributária (ALMEIDA FILHO, 2014, p. 320).
A OCDE (2014a, p. 41) remarca que o VAT vem sendo utilizado em di-
versas jurisdições, ainda que por meio de nomenclaturas diferentes. Nesse
sentido, países como Austrália, Canadá, Índia, Nova Zelândia e Cingapura
utilizam-se de um VAT conhecido como goods and services tax (GST).
Embora não haja uniformidade de tratamento na sua regulação, a carac-
terística comum do VAT é a de que ele é cobrado através de um processo, de
uma cadeia, através da qual o valor pago nas operações anteriores é deduzido
para efeito de cálculo do imposto a ser pago. Ou seja, por meio dele passou-se
a adotar o princípio da não-cumulatividade (PIRES, 2014, p. 365-366). Nesse

393 Cf. a tramitação da PEC 45/2019. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fic


hadetramitacao?idProposicao=2196833> Acesso em: 2 jun. 2019.
394 Destaque-se que, no referido trabalho, o autor defende a criação do IVA como meio de combate à
guerra fiscal e de harmonização da legislação tributária brasileira, para fins de maior integração do
país ao Mercosul. Propõe-se, outrossim, que, diante da concentração da arrecadação do IVA nas mãos
da União, caberia a esta repartir a receita arrecadada com Estados e Municípios, como mecanismo
compensatório pela perda da competência com o ICMS e o ISS, respectivamente. No entanto, cumpre
remarcar que esse artigo é anterior à PEC 45/2019 e, portanto, deve-se destacar que o modelo proposto
pelo autor é o de um IVA em tese, não tendo havido manifestação do autor quanto ao IBS.

559
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

aspecto, o VAT difere de um retail sales tax (imposto sobre a venda) que onera
o consumo em uma única etapa, normalmente ao final da venda.
No caso da incidência internacional do VAT, e não meramente interna,
destaca a OCDE a necessidade de adoção do critério de destino, pelo qual o
imposto seria devido apenas ao Estado ao qual a mercadoria é dirigida. Defen-
de a OCDE, inclusive no Interim Report de 2018, que se trata de mecanismo
que consagra o princípio na neutralidade no comércio internacional, vez que
não haveria vantagem em comprar nem em países com baixa tributação ou
em que haja isenções, nem em países de alta carga tributária.
Ao contrário, caso a tributação fosse feita na origem, cada jurisdição co-
braria o VAT pelo valor vigente nas suas fronteiras, ou seja, os países expor-
tadores tributariam a exportação da mesma forma que o fazem em relação
aos seus produtos domésticos (OCDE, 2014a, p. 41). No entanto, a referida
sistemática sujeita-se a críticas doutrinárias, conforme leciona Alberto Xavier:
Os impostos de consumo sobre as transações são geralmente lançados
no país consumidor, revertendo em benefício dos Estados nos quais
são consumidos os bens sobre que incidem. Precisamente por isso, o
país de origem, isto é, o país no qual o bem foi produzido, procede
normalmente à restituição ou isenção do imposto no momento da ex-
portação; e, por razões simétricas, o país de destino, onde o bem irá ser
consumido, institui um encargo compensatório sobre as mercadorias
importadas, em ordem a colocá-las ao menos em pé de igualdade com
os produtos nacionais.
(...)
Mas se, de um lado, o Estado do destino estabelece tributos compensa-
tórios mais gravosos do que os que incidem sobre produtos nacionais, e
se – de outro lado, os Estados de origem conferem, a título de reembol-
so, importâncias superiores aos impostos que oneram as mercadorias
exportadas, falseiam-se do mesmo passo as condições de concorrên-
cia, criando disparidades “artificiais” no comércio internacional.
[Grifo nosso]. (XAVIER, 2007, p. 264-265).

Paralelamente à adoção do princípio do país de destino, outra dificul-


dade enfrentada pela OCDE foi estabelecer qual Estado seria considerado o
destinatário para fins legais, notadamente no caso de serviços: seria o Estado
da residência do consumidor ou do fornecedor dos serviços?

560
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Sustenta a OCDE que, em qualquer das duas hipóteses, a consequência


seria a de que os serviços estariam livres do VAT na origem. No entanto, o
sistema por ela idealizado é o da tributação no Estado de residência do consu-
midor, como mecanismo de concretização do princípio da neutralidade (FEI-
TOSA, 2018, p. 364).
De outro lado, a OCDE (2014a, p. 46) reconhece que, por razões de or-
dem prática, muitos países cobram o VAT no país de residência do fornecedor,
como forma de evitar possíveis fraudes causadas por uma multiplicidade de
consumidores. Contudo, é igualmente assinalado que este sistema pode re-
presentar um estímulo à migração de fornecedores e à venda de serviços para
países de baixo VAT ou em que haja isenções.
Embora a regra geral seja a tributação pelo Estado de residência do con-
sumidor, a própria OCDE estabelece exceções a esta sistemática, como no caso
de serviços que são realizados em um lugar específico, no qual são consumi-
dos. São os chamados on-the-spot supplies, nos quais o serviço é realizado
simultaneamente na presença do seu executor e do beneficiário. Diante desta
peculiaridade, a OCDE (2015, p. 243) recomenda que a tributação seja realiza-
da no lugar da realização do serviço395.
No caso específico de serviços digitais e de intangíveis, que vão desde o
streaming de shows e filmes, até o cloud computing, os games e o download de
softwares, ora objeto deste trabalho, a OCDE tem a preocupação de destacar
que nas hipóteses de o fornecedor se encontrar em uma jurisdição e o consu-
midor em outra, deve-se dar prevalência à tributação na residência do consu-
midor. Ou seja, propõe-se, neste âmbito, a aplicação da regra geral enunciada,
de adoção do critério do Estado de residência do consumidor.
Para tanto, em um primeiro momento, a OCDE (2014a, p. 135) retoma o
conteúdo do E-Commerce Guidelines, de 2003, no qual houve a recomendação
do desenvolvimento de mecanismos para que os fornecedores residentes em
jurisdição diversa do consumidor lancem, arrecadem e façam remissões de
acordo com as regras do Estado em que o consumidor é residente.

395 Os exemplos citados pela OCDE para “on-the-spot supplies” são dos serviços de cabeleireiro,
massagem e psicoterapia.

561
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O Final Report, por sua vez, reforça a ideia anterior, através das chama-
das B2C Guidelines396 (OCDE, 2015, p. 223), propondo que, para que os re-
feridos fornecedores procedam ao lançamento e à arrecadação, os países de
residência dos consumidores se empenhem na simplificação das suas regras
tributárias, como verdadeiro mecanismo de cooperação internacional, para
facilitar a arrecadação dos impostos indiretos (OCDE, 2015, p. 126). Final-
mente, no âmbito do Interim Report, de 2018, a OCDE destaca que mais de
cem estados, jurisdições e organizações internacionais já aprovaram as suas
recomendações, que também servem como referência para que outros países
procedam a mudanças nas suas legislações (OCDE, 2018, p. 91, 102-105).
Diante do exposto, verifica-se que, em tempos em que se discute um mo-
delo de reforma tributária para o Brasil e se passa a vislumbrar a criação de
um IBS, o conjunto de princípios norteadores da economia digital – nomea-
damente a cooperação e a simplificação – devem orientar os debates para uma
possível reformulação da tributação indireta. Contudo, enquanto esses objeti-
vos ainda não são alcançados, analisa-se, no item seguinte, as peculiaridades
da tributação sobre o consumo na tributação do software.

5. Do contrato de cessão e licença de uso de software

5.1 Da configuração do contrato


de cessão de uso de software
Ultrapassadas as premissas teóricas sobre as quais se estrutura este trabalho,
chega-se ao estudo dos contornos jurídicos do contrato de cessão e licença de uso

396 Observe-se, de outro lado, que a OCDE procura distinguir as hipóteses de venda a um consumidor
(B2C) daquelas outras transações, que envolvem relações empresariais (B2B). Enquanto a primeira
destina-se ao consumo final, a segunda pressupõe uma cadeia para, apenas no seu extremo, ser
dirigida ao consumo. Dessa forma, no cenário internacional, a OCDE afirma que a tributação pode
vir a ser diferenciada no caso das operações B2B para as operações B2C, embora haja jurisdições
que não o façam. Segundo defende, o objetivo da tributação nas operações B2B deve ser o de facilitar
o fluxo da carga tributária, de tal forma que o lugar da tributação deve ser o do atual lugar de uso
dos negócios (“the actual place of business use”), o que torna a tributação mais complexa. Ademais,
a OCDE destaca que, no contexto de avança da economia digital, os fluxos de operações entre
consumidores (C2C) vêm ganhando espaço.

562
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de software, sobre o qual versa a repercussão geral ora em análise. Antes, porém,
cumpre esclarecer o tratamento legislativo conferido ao software no Brasil.
Os softwares são “elaborações intelectuais de programas que possibilitam o
funcionamento e a utilização de um equipamento, consistente em um sistema
de rotinas e funções que permite disseminar ideias através do seu suporte físico”
(BARRETO, 2012, p. 412). Enquanto, em sentido estrito, o software coincide com
o programa de computador (corpus mysticum), em sentido amplo, compreende o
suporte magnético, o manual de instruções e a documentação acessória (corpus
mechanicum) (PAESANI, 2014, p. 11-12)397. Contudo, atualmente, os mais recen-
tes decretos legislativos da Europa preferem não definir juridicamente a noção de
software, considerando as constantes evoluções do setor e a progressiva desvincu-
lação do software em relação aos suportes físicos.
Na esteira da legislação de outros países, como França e Japão, que pro-
tegeram o software pelo regime de direito do autor (PAESANI, 2014, p. 53),
o Brasil editou a Lei 9609/98, que, em seu art. 2º, estendeu aos programas
de computador a proteção dos direitos autorais. De outro lado, dispôs que o
uso de programa de computador será objeto de contrato de licença, conforme
previsão em seu art. 9º.
Através do contrato de licença, o titular (licenciador) autoriza a explo-
ração econômica e o uso da obra, nas condições ajustadas, mediante remune-
ração e pelo prazo convencionado (PAESANI, 2014, p. 85). As licenças de uso
de software seriam, pois, espécie contratual pela qual o proprietário de um
programa de computador permite a utilização deste pelo licenciado (usuário)
(MACEDO, 2013, p. 133).
O contrato de licença parece haver sido tratado de forma indiscriminada
em relação ao contrato de cessão de uso, a tal ponto que a LC 116/03 referiu-se
a ambos indistintamente. No entanto, a cessão singulariza-se pela transferên-
cia, total ou parcial, dos direitos decorrentes de sua criação. Nesse caso, ape-
nas os direitos patrimoniais podem vir a ser transferidos, uma vez que o di-
reito moral, de caráter personalíssimo, é inalienável (FRANCO, 2013, p. 438).

397 Conforme destaca a autora, no Computer Soft Act 1980, dos Estados Unidos, software é definido como “um
conjunto de declarações ou instruções a serem usados de forma direta ou indireta em um computador, de
forma a produzirem certo resultado”. [Tradução nossa]. Texto original: “a set of statements or instructions
to be used directly or indirectly in a computer in order to bring about a certain result”.

563
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Por conseguinte, ainda que, pela redação literal do art. 9º, Lei 9609/98, o
software seja comercializado por meio de contrato de licença há, em verdade,
contrato de cessão (SOUTO, 2013, p. 23), abrindo-se ao cessionário a possibi-
lidade de titularidade sobre os direitos patrimoniais, nos termos do art. 49, Lei
9610/98 (ASSUNÇÃO, 2009, p. 19).
Entretanto, independente da caracterização do contrato envolvendo sof-
tware como licença ou cessão, certo é que há inequívoca transferência eletrô-
nica de dados através do mesmo – como, inclusive, já reconheceu o Supremo
Tribunal Federal e será exposto a seguir – permitindo ao adquirente o acesso
e utilização de tecnologias.

5.2 A tributação dos programas de computador:


análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores
No âmbito específico da tributação do software, doutrina e jurisprudên-
cia têm controvertido se a hipótese é de prestação de serviço, apta a ensejar a
incidência do ISS, se há circulação de mercadoria, o que atrairia a incidência
do ICMS ou se, ao contrário, não há serviço ou mercadoria, o que afastaria a
incidência dos impostos sobre consumo.
Ante a ausência de parâmetros precisos estabelecidos em lei, os Tribu-
nais Superiores vêm progressivamente fixando critérios para a tributação do
software, de sorte que, embora seja possível identificar certas tendências ju-
risprudenciais, não se pode ainda cogitar de uma jurisprudência consolidada
quanto à matéria.
Conforme assinala Clélio Chiesa (2003, p. 8), o Superior Tribunal de Jus-
tiça firmou, num momento inicial, o entendimento de que incidia ISS sobre a
exploração econômica de programas de computador, conforme se depreende
do REsp 39.797-9/SP, decidido à unanimidade pela Primeira Turma, no ano
de 1993. Segue a ementa do acórdão:
ICMS – PROGRAMAS DE COMPUTADOR – NÃO INCIDÊNCIA.
A exploração econômica de programas de computador, mediante con-
tratos de licença ou de cessão, está sujeita apenas ao ISS. Referidos pro-
gramas não se confundem com seus suportes físicos, não podendo ser
considerados mercadorias para fins de incidência do ICMS. Recurso

564
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

improvido. (REsp 39797/SP, Rel. Min. GARCIA VIEIRA, Primeira


Turma, Julgamento 15/12/1993, DJU, 21/02/94).

Por meio deste recurso especial, o Estado de São Paulo pretendeu fosse de-
clarada a incidência de ICMS sobre os contratos de licença de uso de programas
de computador, sob o fundamento de que os mesmos são reproduzidos em escala
industrial e colocados à venda em lojas, tornando-se mercadorias circuláveis.
Alegou-se violação à disciplina constante do art. 8º, §§ 1º e 2º, DL 406/68,
uma vez que o referido decreto-lei previa a incidência de ISS apenas sobre serviços,
e os programas de computador não estavam arrolados de forma expressa na sua
lista anexa. De outro lado, entendeu-se que também restariam vulnerados os arts.
1º, 24, 25 e 27 da Lei 7646/87 (diploma normativo que antecedeu a Lei 9609/98),
visto que a legislação previu a possibilidade de comercialização de software.
Todavia, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o programa de compu-
tador consistia em um bem imaterial, o que, na sua visão, afastaria a possibilidade
de ser compreendido como mercadoria. Concluiu, pois, que o programa de com-
putador era um serviço, atraindo a incidência exclusiva do ISS398.
No ano de 1994, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça profe-
riu novo julgamento, em que manteve as conclusões anteriormente firmadas399.
Contudo, a partir do ano de 1996, através do Recurso Ordinário interposto no

398 Destaque-se que no voto condutor do referido julgado, conduzido pelo Min. Garcia Vieira, firmou-se o
entendimento de que, embora a locução “programa de computador” não estivesse expressa na lista anexa
ao DL 406/68, ela poderia ser inferida dos seus itens 22 – este item havia sido vetado – e 24, verbis:
“22. Assessoria ou consultoria de qualquer natureza, não contida em outros incisos desta lista,
organização, programação, planejamento, assessoria, processamento de dados, consultoria técnica,
financeira ou administrativa (vetado); [...]
24. Análises, inclusive de sistemas, exames, pesquisas e informações, coleta e processamento de
dados de qualquer natureza”.
399 TRIBUTÁRIO – ISS – PROGRAMAS DE COMPUTADOR – LEI 7.649, ART. 27 – DECRETO-LEI
406/68, LISTA DE SERVIÇOS – ITEM 24.
1. Os Sistemas de computação, constituídos de programas, exprimem o resultado de atividade
intelectual, de sorte que configuram bem imaterial e não mercadoria, a afastar a hipótese de
incidência do ICMS.
2. A exploração econômica de programas de computador, mediante contratos de licença ou de
cessão, se sujeita à cobrança do ISS (item 24, da Lista de Serviços, Anexa ao Decreto-Lei 406/68).
3. Recurso desprovido. (REsp 39457/SP, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, Primeira
Turma, Julgamento 13/08/1994, DJ 05/09/1994).

565
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Mandado de Segurança nº 5.934/RJ, a Segunda Turma do Superior Tribunal de


Justiça passou a entender que, para fins da tributação dos programas de compu-
tador, há que se diferenciar os programas produzidos em larga escala daqueles
que são feitos para um usuário específico. Enquanto os primeiros seriam tribu-
tados pelo ICMS, os segundos atrairiam a incidência do ISS, verbis:
MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO. TRIBUTÁRIO SOF-
TWARE. PROGRAMAS DE COMPUTADOR. TRIBUTAÇÃO PELO
ISS OU PELO ICMS. ATIVIDADE INTELECTUAL OU MERCADO-
RIA. DISTINÇÃO. INVIABILIDADE NA VIA ESTREITA DO MAN-
DADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. Os programas de compu-
tação, feitos por empresas em larga escala e de maneira uniforme, são
mercadorias, de livre comercialização no mercado, passíveis de inci-
dência do ICMS. Já os programas elaborados especialmente para cer-
to usuário, exprimem verdadeira prestação de serviços, sujeita ao ISS.
Cumpre distinguir as situações, para efeito de tributação, aferindo-se a
atividade da empresa. Não, porém, através de mandado de segurança,
ainda mais de caráter preventivo, obstando qualquer autuação futura.
(RMS 5934/RJ, Rel. Min. HÉLIO MOSIMANN, Segunda Turma, Jul-
gamento 04/03/1996, DJU, 01/04/96).

A Primeira Turma, por sua vez, a partir de 1997, mudou o seu entendi-
mento400, passando a seguir o mesmo posicionamento adotado pela Segunda
Turma, no sentido de distinguir a tributação a partir do tipo de programa de
computador em questão. Desde então, a jurisprudência do STJ tem se firmado

400 TRIBUTÁRIO. ICMS. ISS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE) CIRCULAÇÃO.


1. Se as operações envolvendo a exploração econômica de programa de computadores realizadas
mediante a outorga de contratos de cessão ou licença de uso de determinado ‘software’ fornecido
pelo autor ou detentor dos direitos sobre o mesmo, com fim específico para atender a determinada
necessidade do usuário, tem-se caracterizado o fenômeno tributário denominado prestação de
serviços, portanto, sujeito ao pagamento do ISS (item 24, da Lista de Serviços, anexo ao DL 406/68).
2. Se, porém, tais programas de computação são feitos em larga escala e de maneira uniforme, isto
é, não se destinando ao atendimento de determinadas necessidades do usuário a que para tanto
foram criados, sendo colocados no mercado para aquisição por qualquer um do povo, passam a ser
considerados mercadorias que circulam, gerando vários tipos de negócio jurídico (compra e venda,
troca, cessão, empréstimo, locação etc.), sujeitando-se, portando, ao ICMS.
3. Definido no acórdão de segundo grau que os programas de computação exploradas pelas
empresas recorrentes são uniformes, a exemplo do ‘Word 6, Windows’ etc., colocados à disposição do
mercado, pelo que podem ser adquiridos por qualquer pessoa, não é possível, em sede de mandado
de segurança, a rediscussão dessa temática, por ter sido ela assentada com base no exame das provas
discutidas nos autos.

566
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

em igual direção401, com precedentes recentes402, ainda que a sua Corte Espe-
cial não se tenha manifestado quanto à hipótese.
Já o Supremo Tribunal Federal, embora igualmente distinga a tributação
no caso de software de prateleira e de software por encomenda, utiliza-se de
argumentação ligeiramente diversa. No tocante ao software de prateleira, a
Corte Suprema distingue a ocorrência de dois negócios jurídicos, quais sejam,
a aquisição de um exemplar, de um lado, e a cessão de direito de uso, de ou-
tro, para concluir que no âmbito da cessão não seria possível a incidência do
ICMS. É o que se depreende do aresto que segue:
I. Recurso extraordinário: prequestionamento mediante embargos de
declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não pre-
questionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primiti-
vo sobre o qual “não foram opostos embargos declaratórios”. Mas se,
opostos, o Tribunal a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la
inexistente, nada mais se pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence,
DJ 19.6.98). II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possí-
vel dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo
a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados
para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado
bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode
fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador (“sof-
tware”): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por
objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as opera-
ções de “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de
computador” “ matéria exclusiva da lide “, efetivamente não podem
os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não
resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitu-
cional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares
dos programas de computador produzidos em série e comerciali-

4. Recurso especial improvido. Confirmação do acórdão hostilizado para reconhecer, no caso, a


legitimidade da cobrança do ICMS. (REsp 123022/RS, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, Primeira Turma,
Julgamento 14/08/1997, DJU, 27/10/97).
401 AgRg no AREsp 493251/RS, rel. Min. HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, Julgamento
15/05/2014, DJe 22/05/2014; AgRg no AREsp 79386/RS, rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda
Turma, Julgamento 07/02/2012, DJe 16/02/2012; AgRg no AREsp 32547/PR, rel. Min. HUMBERTO
MARTINS, Segunda Turma, Julgamento 20/10/2011, DJe 27/10/2011.
402 AgInt no REsp 1.553.801/SP, rel. Min. REGINA HELENA COSTA, Primeira Turma, Julgamento
07/08/2018, DJe 14/08/2018, AgInt no AREsp 571.604/PR, rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES,
Segunda Turma, Julgamento 17/05/2018, DJe 14/08/2018.

567
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

zados no varejo - como a do chamado “software de prateleira” (off


the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação
intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.
(RE 176626/SP, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma,
Julgamento 10/11/1998, DJ 11/12/1998).

No voto condutor do julgado, defendeu-se que se estaria diante de um


direito de uso e, portanto, tratar-se-ia de bem incorpóreo, insuscetível de ser
classificado como mercadoria, cuja definição seria a de “bem corpóreo objeto
de atos de comércio ou destinado a sê-lo”. Ademais, o STF, seguindo as lições
do professor português Rui Saavedra, adotou o entendimento de que a correta
compreensão dos negócios jurídicos envolvendo o software de prateleira pres-
suporia a análise dicotômica das relações jurídicas subjacentes.
De acordo com Saavedra, quando o software-standard é licenciado, é
possível verificar a ocorrência de dois contratos, nos termos que seguem:
Há na verdade dois contratos: por um lado, um contrato para que se-
jam fornecidas as manifestações físicas do software; e, por outro, um
contrato para atribuição de uma licença de uso de software. O contrato
pelo qual o cliente é investido na posse do software será um contrato
de compra e venda
ou de doação se a propriedade sobre os meios físicos for transmitida ao
licenciado; se não houver essa transmissão, tratar-se-á de um contra-
to de locação ou, porventura, de comodato. Mas o contrato de licença
subsiste paralelamente, e é importante porque os produtos de software,
após a entrega do exemplar do software, continuam preocupados em
proteger os direitos de propriedade intelectual sobre o software por eles
criado, e em impor restrições ao uso do software entregue. (SAAVE-
DRA, 1998, p. 79-80).

Verifica-se, pois, no voto condutor do STF, ao seguir as ponderações de


Rui Saavedra, que há uma preocupação em distinguir os negócios jurídicos
envolvendo o software propriamente dito dos negócios concernentes ao corpus
mechanicum em que o software se encontra. Nesse sentido, destacou a Corte Su-
prema que, no âmbito do contrato envolvendo o software em si, como se cuidava
de bem incorpóreo, incabível a incidência do ICMS, o que não obstava que o
mesmo fosse devido quando da venda de exemplares por meio de suporte físico.

568
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Embora este entendimento tenha se mantido em outros julgados403, o


STF modificou-o, de forma parcial, quando do julgamento de cautelar na ADI
1945 MT. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade por meio da qual
o PMDB impugna diversos dispositivos da Lei Estadual 7.098/98, do Estado
do Mato Grosso, que consolida normas estaduais sobre o ICMS. Entre outros
artigos questionados, cabe destacar o art. 2º, § 1º, VI, cujo teor é o seguinte:
Art. 2º O imposto incide sobre:
I. operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive forneci-
mento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabeleci-
mentos similares; [...]
§ 1º O imposto incide também: [...]
VI. sobre as operações com programas de computador – software –
ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados.

Ainda que não haja sido julgado o mérito da ADI 1945-MT, quando do
seu julgamento liminar404, entendeu o STF, a partir do voto do Min. Nelson

403 Destaque-se que o acórdão a seguir cuidou da operação de compra e venda de disquetes, nos quais
o software estava incorporado, mas não da cessão de uso de programas de computador. Ou seja,
ainda que implicitamente, adotou-se, uma vez mais, a análise dicotômica proposta pelo professor
Rui Saavedra, verbis:
TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. ICMS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR
(SOFTWARE). COMERCIALIZAÇÃO. No julgamento do RE 176.626, Min. Sepúlveda Pertence,
assentou a Primeira Turma do STF a distinção, para efeitos tributários, entre um exemplar standard
de programa de computador, também chamado “de prateleira”, e o licenciamento ou cessão do
direito de uso de software. A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do
corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou
cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao
ICMS. Recurso conhecido e provido. (RE 199464/SP, rel. Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma,
Julgamento 02/03/1999, DJ 30/04/1999).
No mesmo sentido foi o julgamento do RE 285870 AgR/SP, rel. Min. EROS GRAU, Segunda
Turma, Julgamento 17/06/2008, DJe 01/08/2008, em que o STF se reportou aos precedentes
anteriores, ainda que não tenha conhecido do referido recurso extraordinário.
404 Ação Direta de Inconstitucionalidade. Direito Tributário. ICMS. 2. Lei Estadual 7.098, de 30 de
dezembro de 1998, do Estado de Mato Grosso. Inconstitucionalidade formal. Matéria reservada à
disciplina de lei complementar. Inexistência. Lei complementar federal (não estadual) é a exigida
pela Constituição (arts. 146, III, e 155, § 2º, XII) como elo indispensável entre os princípios nela
contidos e as normas de direito local. 3. Competência do Supremo Tribunal para realizar controle
abstrato de constitucionalidade. Lei que dá efetividade a comando da Constituição Federal pela
disciplina de normas específicas para o Estado-membro. 4. Restituição de valores cobrados em
substituição tributária e fixação de critérios para o cálculo do imposto (arts. 13, § 4º, e 22, par.

569
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Jobim, que é possível a incidência do ICMS sobre a circulação virtual de mer-


cadoria. Destacou o Ministro, no que foi acompanhado pela maioria da Corte,
que a revolução da Internet permitiu que os programas de computador fossem
adquiridos não apenas por meio físico, mas também através de meios digi-
tais, de que é exemplo o download. A aquisição de software por meio digital,
todavia, não impede a incidência do ICMS, sendo irrelevante, para esse fim, a
classificação dos bens em corpóreos e incorpóreos.
Em acréscimo, o Min. Gilmar Mendes assinalou que “a mudança na rea-
lidade afeta, ou pode afetar, a interpretação”, enfatizando que a comercializa-
ção pode ocorrer por via eletrônica, sob pena de “em algumas áreas, desapa-
recer inclusive o objeto de cobrança do ICMS”.
Em contraposição à maioria de votos formada a partir das ponderações
do Min. Nelson Jobim, a posição contrária, capitaneada pelo outrora relator
Min. Octavio Gallotti, reportava-se aos precedentes anteriores, para afirmar
que a incidência do ICMS deveria se restringir às cópias ou exemplares dos
“programas produzidos em série e comercializados no varejo, sem abranger o
licenciamento ou cessão de uso”.
Portanto, verifica-se que, embora não haja uma jurisprudência conso-
lidada acerca da tributação dos contratos de cessão de uso de programa de

Único, da Lei impugnada). Delegação a decreto de matérias albergadas sob o manto da reserva
legal. Existência de fumus boni iuris. 5. Discriminação do pagamento antecipado a determinado
setor produtivo (art. 3º, § 3º, da Lei impugnada). Razoabilidade do critério objetivo em que repousa
a distinção. Inexistência de violação ao princípio da isonomia. 6. Previsão de incidência do ICMS
sobre “prestações onerosas de serviços de comunicações, por qualquer meio” (art. 2º, § 2º, da Lei
impugnada). Dispositivo cuja redação pouco destoa da determinação constitucional (art. 155, II).
Ausência de relevância jurídica na fundamentação para o deferimento da liminar. 7. Previsão de
incidência de ICMS sobre serviço de comunicação “iniciado fora do território mato-grossense” (arts.
16, § 2º, e 2º, § 3º, da Lei impugnada). Inexistência, em juízo preliminar, de interpretação extensiva
a violar o regime constitucional de competências. 8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos
por meio de transferência eletrônica de dados (art. 2º, § 1º, item 6, e art. 6º, § 6º, ambos da Lei
impugnada). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito.
Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas
do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O
apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite
que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes
imprevisíveis. 9. Medida liminar parcialmente deferida, para suspender a expressão “observados os
demais critérios determinados pelo regulamento”, presente no parágrafo 4º do art. 13, assim como
o inteiro teor do parágrafo único do art. 22, ambos da Lei 7.098/98, do Estado de Mato Grosso.
[Grifo nosso]. (ADI 1945 MC/MT - MATO GROSSO, rel. Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno,
Julgamento 26/05/2010, DJe 14/03/2011).

570
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

computador, a ADI 1945 MC/MT representa um importante precedente, uma


vez que nos debates nela travados firmou-se o entendimento de que o simples
fato de o software se tratar de bem incorpóreo não constituía óbice à incidên-
cia de ICMS, o que encontra respaldo em importantes setores doutrinários
(RIBEIRO, 2018, P. 73).
A esta altura, parece possível estabelecer um ponto de contato entre a
posição do STF e Ação 1, nos termos em que idealizada pela OCDE, pois,
ainda que no Brasil a tributação sobre o consumo seja bipartida entre o ISS e
o ICMS, o STF conferiu à economia digital tratamento análogo ao verificado
nos demais ramos da economia.
Ademais, consoante remarcou o Min. Nelson Jobim em seu voto, a ques-
tão central da controvérsia consiste em “saber se o ICMS pode ser cobrado
pelo licenciamento ou cessão do direito de uso de computador”. Ainda que a
ementa do julgado não haja disposto especificamente sobre o contrato de ces-
são, não parece haver obstáculo para a incidência do ICMS na hipótese, diante
da inequívoca constatação de que a transferência eletrônica de dados, a que se
refere o acórdão, traduz o próprio contrato de licenciamento ou cessão de uso
de programa de computador.
A essa altura, cumpre observar que novas ações diretas foram ajuizadas
acerca do tema, tendo em vista que os estados de Minas Gerais e de São Paulo,
na esteira do estado de Mato Grosso, editaram leis e decretos com vistas a dis-
por sobre a incidência de ICMS em operações envolvendo o software, seja por
download, seja nas operações envolvendo o streaming, editando normas que
disciplinaram a base de cálculo das referidas operações. As ações que versam
sobre a questão são as ADIs 5576/SP e 5659/MG, respectivamente, em relação
às quais ainda não foram proferidas decisões de mérito.
De outro lado, foi editado o Convênio CONFAZ 106/2017, por meio do
qual foram disciplinados procedimentos de cobrança do ICMS nas operações
com bens e mercadorias digitais, o que ensejou o ajuizamento da ADI 5958/
DF, pela alegação não só de alegada violação à competência municipal, mas
também sob o fundamento de que foram criadas regras que vulneram a sis-
temática constitucional de recolhimento de ICMS e de responsabilidade tri-
butária. Destaque-se que tampouco houve qualquer julgamento de mérito em
relação a essa ação direta de inconstitucionalidade.

571
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

5.3 O conflito de competência entre


o ICMS e o ISS na Era da Internet

Feitas as considerações anteriores, parece possível concluir que a tribu-


tação sobre o contrato de cessão ou licença de uso de software, diante da ine-
xistência, ao menos por ora, de um IVA nacional (ou de algum tributo equi-
valente, como o IBS), deverá ser feita mediante o estabelecimento de critérios
que permitam delimitar os casos de incidência de ISS e ICMS.
Em primeiro lugar, consoante as premissas metodológicas desenvolvidas
neste trabalho, o item 1.05 da lista anexa à LC 116/03 goza de presunção de
constitucionalidade, tendo em vista que, segundo o entendimento ora defen-
dido, a Constituição não fixou um conceito específico para a locução serviços.
Ao contrário, atribuiu à lei complementar o papel de fazê-lo, como resulta
expressamente do seu art. 156, III.
Caso o intérprete entenda que o referido dispositivo encontra-se inqui-
nado de inconstitucionalidade, deverá desincumbir-se de ônus argumentativo
reforçado para tal intento. Nessa linha, embora seja possível verificar um pre-
domínio na identificação do conceito de serviços com obrigações de fazer, há
também outras vozes que advogam que o conceito econômico de prestação de
serviços não se confunde com o conceito de prestação de serviços de Direito Ci-
vil. A este propósito, confira-se o ensinamento de Bernardo Ribeiro de Moraes:
Serviço, portanto, vem a ser o resultado da atividade humana na criação
de um bem que não se apresenta sob a forma de bem material, v.g., a
atividade do transportador, do locador de bens imóveis, do médico, etc.
O conceito econômico de “prestação de serviço” (fornecimento de bem
imaterial) não se confunde nem se equipara ao conceito de “presta-
ção de serviços” do direito civil, que é conceituado como fornecimento
apenas de trabalho (prestação de serviços é o fornecimento median-
te remuneração, do trabalho a terceiro). O conceito econômico não se
apresenta acanhado, abrange tanto o simples fornecimento de trabalho
(prestação de serviços de direito civil) como outras atividades: v.g.: lo-
cação de bens móveis, transporte, publicidade, hospedagem, diversões
públicas, cessão de direitos, depósito, execução de obrigações de não
fazer, etc. (venda de bens imateriais). (MORAES, 1984, p. 42-43).

572
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Sob esta ótica, o conceito de prestação de serviços não tem por premissa
a configuração dada pelo Direito Civil, estando relacionada ao oferecimento
de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades imate-
riais, prestados com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada
ou não com a entrega de bens ao tomador (OLIVEIRA, A., 2014, p. 95 e 109)405.
Dessa forma, é possível compreender que a cessão de uso de software pre-
vista no item 1.05 da lista anexa à LC 116/2003 é constitucional. Entretanto,
embora o referido dispositivo seja a priori constitucional, há hipóteses em que
a cessão de uso de software não se traduz em prestação de serviço. Explica-se.
Conforme desenvolvido ao longo deste trabalho, os programas de compu-
tador revestem-se da posição de serviços nos casos dos softwares personalizados,
ou seja, aqueles feitos por encomenda ou adaptados ao cliente, em que há ver-
dadeira atividade direcionada ao adquirente. No entanto, no caso do chamado
software de prateleira, não se está diante de um serviço, mas sim de mercadoria.
Com efeito, as mercadorias consistem em bens móveis, materiais ou
imateriais, destinados à atividade mercantil, o que pressupõe necessariamen-
te a habitualidade. De outro lado, embora prepondere no cenário nacional
o entendimento de que, para fins de circulação de mercadoria, deve haver a
transferência de propriedade do bem, não se pode olvidar que a EC 18/65, ao
substituir o antigo imposto sobre vendas e consignações (IVC) pelo imposto
sobre circulação de mercadoria (ICM) deixou de utilizar institutos do direito
privado para caracterizar o fato gerador do imposto (RIBEIRO, 2011, p. 4).
Nessa linha, entende-se que o elemento caracterizador da circulação de
mercadorias consiste na sua circulação econômica, compreendida pela evolu-
ção da mercadoria na cadeia produtiva, da fonte produtora até o consumidor
final (RIBEIRO, 2011, p. 3). Ademais, segundo Ricardo Lobo Torres (2007, p.
244), o fato gerador do ICMS prescinde da realização de negócios de venda ou
consignação, como ocorria no direito anterior, sendo indiferente, que haja, ou
não, a transferência de domínio.
Assim, conforme adverte Ricardo Lodi Ribeiro (2011, p. 4), não importa
o negócio jurídico pelo qual se promova a circulação econômica, mas sim o

405 Embora transborde dos limites deste trabalho, cabe fazer referência, conforme destacado pelo
autor, que o próprio entendimento do STF, veiculado na Súmula Vinculante 31, parece estar
sendo relativizado em julgados posteriores, como o RE nº 592.905/SC, Rel. Min. Eros Grau, Pleno,
Julgamento 02/12/09, DJe 05/03/10.

573
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

impulso que movimenta a mercadoria em cada uma das suas fases econômi-
cas, desde que não se trate de mera saída física do bem.
Portanto, no caso específico da cessão de uso de software de prateleira,
está-se diante de hipótese de circulação de mercadoria, apta a ensejar a inci-
dência do ICMS. Não merece prosperar, pois, o argumento segundo o qual
a ausência da transferência de propriedade sobre o bem imaterial, diante da
regra do art. 37, Lei 9610/98, seria óbice à incidência do imposto.
Conforme amplamente explanado, a cessão de uso de software de pra-
teleira implica inequívoca transferência eletrônica de dados, de modo que a
ocorrência ou não de tradição, nos termos em que delineada pelo Direito Civil
e autorizada pelo art. 49, Lei 9610/98, não constitui o elemento preponderante
para fins de se aferir a ocorrência do fato gerador do imposto.
De outro lado, a assertiva de que a tributação de programas de compu-
tador pressuporia, necessariamente, a existência de suporte físico, tampouco
parece se coadunar com a constante evolução da era virtual, de crescente des-
materialização dos bens (ASSUNÇÃO, 2009, p. 29-31). Dessa forma, entende-
-se que a tributação sobre o consumo prescinde do corpus mechanicum, alcan-
çando diretamente as transferências digitais.
Por conseguinte, conclui-se que no âmbito do RE 688223-PR, em que
houve a cessão de software personalizado para o contribuinte, deverá haver a
incidência do ISS, em face da manifesta prestação de serviço406. Contudo, caso
a mesma importação fosse de software standard, a hipótese seria, em tese, de
incidência do ICMS407.

406 Reitere-se que não se está aqui a cuidar da possibilidade ou não de incidência de ISS sobre a
importação, mas apenas da constitucionalidade, em tese, do item 1.05 da lista anexa à LC 116/2003.
407 Observe-se que o entendimento ora adotado é o de que, na hipótese do RE 688223/PR, não se trata
de tributação sobre telecomunicações, como pretendeu a recorrente, uma vez que a importação do
software não se insere nas etapas do processo comunicacional.

574
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

6. Conclusão
Tendo em vista o exposto ao longo do presente trabalho, é possível ex-
trair as seguintes proposições:
1. O conflito de competência entre o ISS e o ICMS não pode ser equacio-
nado meramente à luz da contraposição entre os critérios de obrigações
de fazer e de dar, sendo necessária a análise de conceitos econômicos,
mormente diante da Era da Informática.
2. A economia digital, na qual se incluem os negócios jurídicos envolvendo o
software, não deve ser estudada de forma apartada do restante da economia.
3. O conceito de mercadoria não está restrito aos bens corpóreos, alcan-
çando, inclusive, bens incorpóreos.
4. A existência ou não de suporte físico para armazenar os bens intangíveis
não pode ser critério determinante para fins de tributação do ICMS.
5. O item 1.05 da LC 116/03, que previu a incidência do ISS sobre o con-
trato de licença ou cessão de uso de software, deve ser interpretado
conforme a Constituição, para que se entenda que, quando estiver em
jogo software personalizado, deverá haver a incidência do ISS. De outro
lado, quando se tratar de software de prateleira (ou standard) deverá
haver a incidência de ICMS.

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580
20. A Ação 12 do BEPS e o
Fracasso da MP nº 685

Ricardo Lodi Ribeiro


Professor Adjunto de Direito Financeiro da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Presidente da Sociedade Brasilei-
ra de Direito Tributário (SBDT) e Advogado.

“O fracasso é a oportunidade de começar de novo


com mais inteligência e redobrada vontade.”
(Henry Ford)

“O diálogo e a busca das verdades que nos levam a construir


um projeto comum, implica em escuta, renúncias de erros, aceita-
ção de nossos fracassos e equívocos.”
(Papa Francisco)

Sumário
Globalização, concorrência tributária internacional e transparência fis-
cal. II) A Ação 12 do Projeto BEPS e as Mandatory Disclosure Rules. III) A
obrigação de comunicar o planejamento fiscal à Receita Federal do Brasil. IV)
O Dever de Informar como Cláusula Antielisiva. V) Conclusão

I) Globalização, concorrência tributária


internacional e transparência fiscal
É inevitável constatar que com a Globalização mostra-se rompida uma das
principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaços delimitados
pelos Estados nacionais. Porém, o que pode ser considerado como a decadência da

581
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

modernidade, pode também marcar o início de uma segunda modernidade, desde


que sejam superadas as ortodoxias que levaram ao esgotamento da primeira.408
Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar
outros problemas sociais e econômicos. Para se proteger da livre atuação das
empresas transnacionais, garantindo os direitos de seus cidadãos, os Estados
nacionais adotam medidas que acabam por afugentar o fluxo de capitais, ge-
rando mais desemprego e miséria. Por outro lado, o desenvolvimento econô-
mico gerado pelos investimentos dos agentes transnacionais não se apresenta
como solução ao crescimento da exclusão social e da concentração de renda,
como destaca Ulrich Beck409:
Empresas transnacionais superam a si próprias com taxas recordes de
lucratividade B e de corte expressivo de postos de trabalho. Em seus
balanços anuais os conselhos das empresas apresentam uma sucessão
de lucros astronômicos enquanto os políticos, que devem justificar o
escândalo do desemprego, voltam à carga com novos aumentos de im-
postos na esperança quase sempre vã de que, da riqueza dos mais ricos,
caiam dos céus alguns postos de trabalho. Cresce, por consequência, a
intensidade do conflito – inclusive dentro do campo econômico – entre
contribuintes virtuais e contribuintes reais. Ao passo que as empresas
transnacionais escapam dos impostos do Estado nacional, as pequenas
e médias empresas, responsáveis pela maior parte da oferta de postos
de trabalho, sangram nas mãos dos novos entraves da burocracia fiscal.
O humor negro da história entra em cena: são justamente os perdedo-
res da Globalização que deverão pagar tudo, o Estado Liberal e o fun-
cionamento democrático, enquanto os vencedores seguem em busca de
lucros astronômicos e se esquivam de suas responsabilidades para com
a democracia do futuro.

Parece assistir razão Dani Rodrik quando afirma que Estado-nação, de-
mocracia e globalização constituem um trio instável no século XXI, devendo
um dos três ceder aos outros dois, pelo menos em parte.410

408 BECK, Ulrich. O que é Globalização? – Equívocos do Globalismo, Reposta à Globalização. Trad.
André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 26 e 46.
409 BECK, Ulrich. O que é Globalização?,p. 46.
410 RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the Worrld Economy. New
York: Norton, 2011, apud: PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Trad. Mônica Baumgarten
de Bolle. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014, p. 633, nota 35.

582
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Daí a dificuldade de estabelecer a tributação da renda por decisões uni-


laterais do Estado nacional, em um ambiente de grande concorrência fiscal
entre os Estados, o que acaba por fazer prevalecer propostas de abandono a
tributação sobre a renda e a sua substituição pela taxação sobre o consumo,
como no século XIX.411
Por outro lado, o conservadorismo jurídico em um ambiente europeu
marcado pela consagração do direito absoluto de livre circulação de pessoas,
bens e capitais acaba por fragilizar os direitos dos Estados de promover o in-
teresse geral, inclusive no que se refere à cobrança de impostos. 412
Se o desenvolvimento econômico escapa do controle do Estado nacio-
nal, as suas consequências, como o desemprego, a pobreza, a imigração, a vio-
lência urbana, têm o seu equacionamento exigido do Estado Social,413 cada vez
mais frágil para atender a essa crescente demanda, o que gera crises políticas
que colocam em risco o futuro da democracia.414
Nesse cenário, surgem no plano internacional e interno regras relativas à
transparência fiscal tendente a tornar claras a movimentação de riquezas em
um mercado globalizado, viabilizando a sua tributação pelos Estados nacionais.
Em nosso país, é princípio constitucional implícito que determina que ativida-
de financeira, seja ela realizada pelo Estado, seja desenvolvida pela Sociedade,
deve ser pautada pela clareza, abertura e simplicidade.415 Para Túlio Rosembuj,
a transparência fiscal internacional se dirige à tributação dos sócios ou controla-
dores de entidades não residentes mediante a inclusão em suas respectivas bases
imponíveis de determinadas rendas obtidas fora do território e que suportaram
uma tributação inferior àquela praticada pelo Estado de residência.416
No âmbito da tributação, a transparência fiscal se dirige contra o planejamen-
to fiscal praticado com abuso de direito, e o combate por meio de cláusulas antielisi-

411 PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 546.


412 PIKETTY. O Capital no Século XXI, p. 551.
413 BECK, Ulrich. O que é Globalização?, p. 36.
414 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar.
São Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179.
415 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores
e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 243.
416 ROSEMBUJ, Túlio. Derecho Fiscal Internacional. Barcelona: El Fisco, 2001, p. 174.

583
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

vas que procuram afastar estratagemas destinadas a evitar ou minorar a tributação


por meio da criação de estruturas societárias opacas, sem atividade operacional,
destinadas a viabilizar a transferência, por meio de operações artificiais, de todo o
lucro auferido em determinado país para outro de tributação favorecida.
É nesse contexto, de medidas de incremento da transparência internacional,
que os países do G-20, grupo integrado pelo Brasil, no Encontro de Los Cabos,
realizado de 18 a 19 de junho de 2012, aprovaram iniciativas de combate à erosão
da base tributária e transferência de lucros para o exterior que se materializou
no intitulado Projeto BEPS (Base Erosion and Profits Shifting). Para implemen-
tar o combate à erosão da base tributária e a transferência artificial dos lucros,
os líderes do G-20 conferiram um mandato à Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE para elaborar um plano de ação que, ini-
ciado em setembro de 2013, contou com a participação de 44 países, integrando os
membros da organização e do G-20, inclusive o Brasil. O Plano de Ação contra o
BEPS envolve 15 propostas que levam a alterações dos tratados para evitar a dupla
tributação e das legislações internas desses Estados, com o objetivo de evitar que
o planejamento fiscal internacional agressivo acarrete a baixa tributação ou a dú-
plice não tributação em operações internacionais.

II) A Ação 12 do Projeto BEPS


e as Mandatory Disclosure Rules
Dentre as principais ações do Plano BEPS, baseadas na transparência
fiscal, está a introdução das Mandatory Disclouse Rules, previstas no Plano de
Ação 12 do projeto, que recomenda aos Estados participantes que estabeleçam
em sua legislação interna a obrigatoriedade de divulgação pelos consultores, e
em alguns casos pelo próprio contribuinte, de mecanismos de planejamento
fiscal agressivo, nos seguintes termos:
AÇÃO 12
Exigir que os contribuintes revelem os seus esquemas de planeja-
mento tributário agressivo
Desenvolver recomendações relativas à elaboração de normas de de-
claração obrigatória de transações, esquemas, ou estruturas de caráter
agressivo, ou abusivo, tendo em consideração os custos administrati-

584
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

vos para as administrações tributárias e o sector privado e com base


na experiência de um número crescente de países que possuem essas
normas. Os trabalhos utilizarão um desenho modular permitindo a
maior coerência possível, mas tendo em conta as necessidades e riscos
específicos de cada país. Os trabalhos serão focados em esquemas tri-
butários internacionais, onde se procurará definir de forma abrangente
do conceito de “benefício tributário”, que possa englobar essas transa-
ções. Os trabalhos serão conduzidos em coordenação com os trabalhos
relativos à disciplina de cooperação e de conformidade. Terão também
por objetivo conceber e por em prática modelos melhorados de parti-
lha de informação, entre administrações tributárias, sobre os esque-
mas tributários internacionais.417

Sendo o Brasil participante do Projeto BEPS, já havia a expectativa de


que nossa legislação interna introduzisse as Mandatory Disclouse Rules, como
medidas de combate à evasão fiscal e ao planejamento abusivo, como já foram
instituídas em países como o Canadá, a Coréia do Sul, os EUA, a Irlanda, Is-
rael, Portugal, Reino Unido e África do Sul.
Para uma maior compreensão dos contornos da Ação 12, a OCDE di-
vulgou, em 11 de maio de 2015, o projeto de consulta pública a respeito das
Mandatory Disclouse Rules, que nos oferecem alguns subsídios para a análi-
se dos mecanismos que estão sendo introduzidos em nossa legislação para o
atingimento dos objetivos do Plano BEPS.418 Em outubro daquele mesmo ano
foi publicado o relatório final419.
No referido projeto, recomenda-se que as legislações internas de cada
país, a partir das singularidades do seu sistema tributário e de seu ordena-
mento jurídico, definam algumas questões relevantes, a fim de garantir que as
ações implementadas possam assegurar a segurança e a previsibilidade para o
setor privado, sem o que, como reconhece o próprio plano de ação da OCDE,
as medidas não serão bem-sucedidas.420

417 OCDE (2014), Plano de ação para o combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros,
OECD Publishing. http://dx.doi.org/10.1787/9789264207790-pt, p. 24.
418 OECD. Public Discussion Draft: Beps Action 12: Mandatory Disclosure Rules. Maio 2015. Acesso em:<
http://www.oecd.org/ctp/aggressive/discussion-draft-action-12-mandatory-disclosure-rules.pdf.>.
419 OECD. Mandatory Disclosure Rules. Final Report. Outubro 2015. Acesso em: <https://www.oecd.
org/tax/mandatory-disclosure-rules-action-12-2015-final-report-9789264241442-en.htm>.
420 OCDE. Plano de ação para o combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros, p. 14.

585
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Dentre tais recomendações à atuação do legislador interno contidas no


projeto sobre a Ação 12, destaca-se a necessidade de o regramento que impo-
nha a obrigatoriedade de comunicação possuir densidade normativa capaz de
responder a algumas questões relevantes:
a) Quem é o destinatário da obrigação de informar? Pode a norma fi-
xar tal obrigação acessória ao próprio contribuinte, que é beneficiário
do mecanismo, ou para o consultor que o elabora. Não é incomum
entre os países que já adotaram o instituto, que a obrigação de infor-
mar recaia originalmente sobre os consultores, sendo subsidiária em
relação ao sujeito passivo da obrigação tributária, como se dá no Reino
Unido e na África do Sul. Outros países, como o Canadá e os EUA, exi-
gem a informação das duas fontes, o que não deixa de elevar os custos
de conformação. Recomenda a OCDE que os países que atribuírem a
obrigação para o consultor, estabeleçam a obrigação subsidiária para o
contribuinte quando aquele estiver domiciliado no exterior, não existir
ou estiver protegido pelo sigilo profissional dos advogados.
b) O que precisa ser reportado? É preciso delimitar de forma clara que
operações devem ser informadas, a fim de garantir um equilíbrio entre
a garantia da informação e os encargos de conformidade gerados para
os contribuintes. Deste modo, duas respostas devem ser respondidas
pela lei: (i) quais os tipos de operações devem ser reportados? (ii) que
informações dessas operações reportáveis devem ser divulgadas?
c) Quando a informação deve ser relatada? É preciso que fique claro quan-
do os contribuintes e consultores devem apresentar tais informações, bem
como se é necessário fornecê-las antes da prática dos atos. Recomenda-se
que, quando o consultor tenha a obrigação de divulgar, a obrigatoriedade
surja quando a estrutura estiver disponível. Quando a obrigação for do
contribuinte, esta surge quando o estratagema puder ser aproveitado.
d) Que outras obrigações derivam da obrigatoriedade? Alguns países
obrigam os consultores a fornecer a sua lista de clientes para a adminis-
tração fiscal, ou que o contribuinte forneça um número de referência
que identifique a operação. Essas obrigações devem ser expressas.
e) Quais as consequências da conformidade ou da desconformidade? A
apresentação da informação sem manifestação da Fazenda Pública não
gera efeito de aceitação estatal do planejamento, o que só ocorre com
a anuência expressa, geradora da proteção à confiança. Em relação à
desconformidade das operações relatadas com o ordenamento jurídi-
co tributário, normalmente os países impõem penalidades, que podem
variar de acordo com a economia fiscal pretendida. O mesmo se dá em
relação ao descumprimento da obrigação de informar. Recomenda-se

586
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

que os países não exijam informações que possam ter repercussões cri-
minais, em atenção ao princípio de vedação da autoincriminação.
f) Como usar as informações coletadas? As normas que exigirem a
comunicação devem determinar que sejam fornecidas relevantes in-
formações sobre esquemas de planejamento abusivo, além de definir o
âmbito de aplicação de tais regras em relação ao seu uso.

Para cumprimento de tal desiderato, o projeto da OCDE421 para o Plano


12 recomenda ainda que as normas que exijam a divulgação dos planejamentos
fiscais cumpram alguns requisitos para que não acabem por se traduzir em viola-
ções aos direitos dos contribuintes e entrave ao exercício da atividade econômica.
De certa forma, tais recomendações apresentam preocupações que estão presen-
tes também em nossa ordem constitucional, como a seguir se demonstrará.
Em atenção ao princípio da segurança jurídica, devem ser redigidas da
forma mais clara possível para fornecer aos contribuintes a certeza sobre o que
é exigido pelo regime. A falta de clareza e de segurança pode levar à falta de
comunicação e à imposição de sanções, o que acaba por aumentar a resistên-
cia a tais regras no âmbito da comunidade empresarial. Além disso, a falta de
clareza pode resultar no recebimento de informações de baixa qualidade pela
administração tributária.
Por outro lado, recomenda-se que, em nome da proporcionalidade, as
regras de divulgação obrigatória devam equilibrar custos adicionais de cum-
primento para os contribuintes com os benefícios obtidos pela administração
fiscal, uma vez que tais exigências, que certamente irão aumentar as despesas
com o adimplemento das obrigações acessórias, só são justificáveis se forem
capazes de dotar a administração fiscal de informações sobre o planejamento
abusivo de forma a tornar mais eficiente a sua atuação. Assim, o alcance e
a extensão de qualquer obrigação de divulgação devem ser examinados sem
perder de vista que requisitos desnecessários acabam por elevar inutilmente
as despesas dos contribuintes e comprometer a capacidade da administração
para utilizar eficazmente os dados fornecidos.

421 Avançando no tema, a OCDE publicou em março de 2018 o “Model Mandatory Disclosure Rules for
CRS Avoidance Arrangements and Opaque Offshore Structures”. Acesso em: <https://www.oecd.
org/tax/beps/model-mandatory-disclosure-rules-for-crs-avoidance-arrangements-and-opaque-
offshore-structures.htm>.

587
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em relação ao princípio da praticabilidade, as regras de divulgação obri-


gatória devem ser aptas para atingir o objetivo fundamental de obtenção de
informações de esquemas abusivos, os seus beneficiários e autores. Como co-
rolário dessa premissa, todas as regras devem ser elaboradas de forma a viabi-
lizar a captura de informações suficientes para coibir os esquemas fiscais que
se pretende combater.
Por fim, em nome do princípio da eficiência, as informações recolhidas
ao abrigo das divulgações obrigatórias devem ser utilizadas de forma eficaz,
a partir de procedimentos capazes de fazer o melhor uso das informações
divulgadas pelos contribuintes. Isso significa a criação de um processo para
revisar as informações declaradas e identificar os impactos das operações na
política fiscal e na arrecadação.
Embora tais medidas possam implicar um incremento do gasto público
na administração tributária, este é compensado pela economia de recursos a
partir da identificação mais rápida e eficiente dos casos de evasão e elusão fiscal.
Procurando introduzir as Mandatory Disclouse Rules em nosso País, a
Medida Provisória nº 685, de 21 de julho de 2015, buscou atender aos objetivos
do Plano BPES, como indica a sua exposição de motivos:
“Nesta linha, o Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transfe-
rência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), projeto desenvol-
vido no âmbito da OCDE/G20 e que conta com a participação do Brasil,
reconheceu, com base na experiência de diversos países (EUA, Reino Uni-
do, Portugal, África do Sul, Canadá e Irlanda), os benefícios das regras
de revelação obrigatória a administrações tributárias. Assim, no âmbito
do BEPS, há recomendações relacionadas com a elaboração de tais regras
quanto a operações, arranjos ou estruturas agressivos ou abusivos.
O principal objetivo dessa medida é instruir a administração tributária
com informação tempestiva a respeito de planejamento tributário, além de
conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação, inclusive com
cobrança apenas do tributo devido e de juros de mora caso a operação não
seja reconhecida, para fins tributários, pela RFB. Ademais, destaca-se que
a medida estimula postura mais cautelosa por parte dos jurisdicionados
antes de fazer uso de planejamentos tributários agressivos.”

Embora os dispositivos da referida medida provisória que trataram do


tema tenham sido rejeitados pela Câmara dos Deputados, vale examinar a sua
adequação com o Plano BPES e com o ordenamento jurídico tributário nacio-

588
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

nal que, por óbvio, não foi alterado por este que não tem sequer a validade de
um tratado internacional, só sendo, por isso, internalizado no direito interno
nos termos e nos limites que devem ser observados pela legislação ordinária
que, sob sua inspiração, é agora introduzida. Tal análise ainda é relevante a
fim de compreender os limites e possibilidades à introdução do instituto das
Mandatory Disclouse Rules no Brasil.

III) A obrigação de comunicar o planejamento fiscal à


Receita Federal do Brasil
O artigo 7º da Medida Provisória nº 685/15422, inspirado no Plano BEPS
Ação 12, dispunha sobre o dever do contribuinte de comunicar à Secretaria da
Receita Federal do Brasil a realização de atos e negócios jurídicos praticados
no ano anterior que acarretem a redução, eliminação ou diferimento do tribu-
to sempre que: a) tais atos não possuírem razões extratributárias relevantes; b)
a forma adotada não for usual, ou se trate de negócio jurídico indireto ou con-
tiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contra-
to típico; e c) sejam previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
A medida, como se viu, se destinava à prevenção e ao combate da evasão
e a elisão fiscais a partir da comunicação pelo contribuinte ao Fisco de negó-
cios que possam ser considerados abusivos. No caso da norma brasileira re-
cém rejeitada pelo Parlamento, a ausência de propósito negocial e o abuso de
forma serviam de fundamento para a exigência. Além disso, a norma previa
uma autorização legal em branco para que a Fazenda Pública incluísse outros
casos em que a exigência seria efetivada.

422 Art. 7º O conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios
jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado pelo
sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal do Brasil, até 30 de setembro de cada ano, quando:
I - os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes;
II - a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula
que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou III - tratar de atos ou
negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Parágrafo único. O sujeito passivo apresentará uma declaração para cada conjunto de operações
executadas de forma interligada, nos termos da regulamentação.”

589
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A consequência do descumprimento do dever de informar o planeja-


mento tributário era, segundo o artigo 12 da medida provisória423, a carac-
terização de omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou
fraude, tendo como resultado a aplicação da multa agravada de 150% e a re-
presentação ao Ministério Público Federal para fins criminais.
De outro lado, em caso de existência de tal declaração, ainda que a Re-
ceita Federal desconsidere as operações praticadas pelo contribuinte para fins
tributários, o tributo seria devido com a imposição de juros de mora, mas sem
a aplicação de qualquer multa, caso haja pagamento ou parcelamento efetiva-
dos no prazo de 30 dias da intimação ao sujeito passivo.
Embora seja nominalmente inspirada no Plano BEPS, nos termos em que
foi desenhada, a medida estava muito mais próxima de uma tentativa de, por via
transversa, regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário
Nacional (CTN), incluído pela Lei Complementar nº 116/01, que introduziu em
nosso direito a cláusula geral antielisiva, e que não foi regulamentada desde a
rejeição pelo Congresso Nacional da Medida Provisória nº 66/02.
Do Plano de Ação 12 do BEPS se afastou, uma vez que não se destinava
a combater a erosão da base tributária e a transferência de renda por meio do
planejamento fiscal internacional agressivo, mas era dirigida a qualquer mo-
dalidade de elisão aplicável em qualquer tributo administrado pela Secretaria
da Receita Federal do Brasil. É que o dever de comunicar mecanismos desti-
nados à transferência de renda para o exterior, esvaziando a base tributária
nacional, é obrigação que pode ser estabelecida pela lei, e o é em diversos paí-
ses. Porém, tal medida é incompatível com uma previsão genérica destinada a
abarcar qualquer modalidade de economia fiscal que, por ser demais ampla e
dotada de baixa densidade normativa, inviabiliza a previsibilidade e seguran-
ça exigidas para a adequada aplicação do Plano 12.
Como se viu no item anterior, as Mandatory Disclouse Rules devem ser
instituídas por leis que definam com precisão e clareza as operações que de-
vem ser informadas, e os dados a elas relativos que deverão ser divulgados. Na
norma brasileira, que não se dirigia só às operações internacionais relaciona-

423 “Art. 12. O descumprimento do disposto no art. 7º ou a ocorrência de alguma das situações previstas
no art. 11 caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os
tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa prevista no 1996.”

590
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

das à tributação da renda, não havia qualquer clareza sobre o que deveria ser
informado. Ao contrário, qualquer operação que viesse a ser imputada com
os rótulos do abuso de forma e da ausência de propósito negocial deveriam
ser informadas. Sem falar da previsão em branco para que a Receita Federal
estabelecesse outros casos de obrigatoriedade de comunicação.
Por outro lado, tal amplitude era ainda mais agravada em um ambiente
de grave insegurança jurídica, que passou a imperar no Direito Tributário
brasileiro após a rejeição pelo Congresso Nacional da MP nº 66/02, e de con-
fusão jurisprudencial entre as figuras da evasão, da elusão e da elisão fiscal, a
partir da absorção das duas últimas pela primeira em qualquer caso em que
estejam presentes, ainda que isoladamente, um dos elementos necessários à
configuração do abuso de direito.
Esse fenômeno ainda é mais preocupante em um ordenamento jurídico
que criminaliza a ilicitude fiscal, o que acaba por ampliar o raio de atuação do
Direito Penal como forma de viabilizar juridicamente a exigência do tributo,
uma vez que, nesse ambiente de indefinição das fronteiras entre o ato ilícito, o
abuso de direito e o ato eficaz, a legitimação da cobrança da exação vai sem-
pre depender da criminalização do planejamento fiscal não chancelado pela
administração tributária.
Como já vimos, a tipificação penal de ilícitos fiscais, a partir da extensão
artificial do conceito de evasão fiscal, acaba por transformar a comunicação
do planejamento fiscal em uma conduta potencialmente autoincriminatória.
Deste modo, a divulgação obrigatória de atos que possam ser caracterizados
como dolo, fraude sonegação ou simulação vai exigir que o sujeito passivo
produza prova contra si mesmo, com o que resta violado o princípio da não
autoincriminação (nemo tenetur se detegere), fundado no artigo 5º, LXIII, CF
e no artigo 8º, §2º, g, do Pacto de San José da Costa Rica, que estabeleceu a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, incorporada em nosso or-
denamento jurídico pelo Decreto nº 678/1992.
Em nossa Constituição Federal, o aludido princípio aparece no direito
ao silêncio, nos seguintes termos:
“LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de perma-
necer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”

591
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Do direito ao silêncio decorre a ideia de que ninguém é obrigado a pro-


duzir prova contra si próprio, que é um dos elementos constitutivos do devido
processo legal, conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal,424
sendo aplicável não só em relação ao processo penal, mas também às apura-
ções administrativas de fatos típicos, como também reconhecido pelo STF,
em relação ao direito de a testemunha permanecer em silêncio nas Comissões
Parlamentares de Inquérito.425
A extensão do direito ao silêncio para além do direito do preso, como
manifestação do direito de não produzir prova contra si, é expressamente pre-
vista no texto da referida norma de direito internacional estabelece que:
“Artigo 8º, 2º. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se
presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua
culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualda-
de, às seguintes garantias mínimas:
...............................................................................................................................
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confes-
sar-se culpada; e (...)”

Não há aqui que se equiparar, para fins de afastar a vedação à autoincri-


minação dos delitos fiscais, a obrigação de comunicar o planejamento evasivo
ao dever de o sujeito passivo declarar a prática do fato gerador e de todas as
circunstâncias que o informam, uma vez que a consequência do conhecimen-
to da Fazenda Pública sobre esta não tem efeitos incriminatório, estando rela-
cionada apenas ao nascimento da obrigação tributária. Ao contrário, a confis-
são do planejamento abusivo, em ambiente em que não se distingue a elisão da
evasão, levará quase sempre à produção de provas contra o próprio declarante.
Em outro giro, é importante destacar que a equiparação do descumpri-
mento da obrigação de prestar informações quando à prática do planejamento
tributário à sonegação fiscal, a partir da obrigatoriedade de declarar as condutas
atípicas ou exclusivamente destinadas à economia do tributo, perpetrada pelo
artigo 12 da MP nº 685, significava criminalizar e estabelecer multa que equi-
vale uma vez e meia o valor do tributo pelo mero descumprimento do dever

424 STF, 2ª Turma, HC nº 94.601/CE, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 11/09/09.
425 STF, Pleno, HC nº 80.584/PA, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 06/04/2001, p. 69.

592
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

instrumental de informar algo que não se sabe de antemão que precisa ser infor-
mado, especialmente à luz de um perspectiva fazendária que considera atípicas
ou estranhas condutas há muito praticadas no mercado. Aqui subverteu-se a
lógica do devido processo legal, com o contribuinte tendo o dever de prever se
a Fazenda Pública poderia enquadrar a sua atividade em qualquer roupagem
definida a posteriori como agressiva aos seus interesses. Ou seja, pretendia-se
qualificar o contribuinte como criminoso por descumprir o dever de informar
fixado genericamente por norma que não identifica o que deve ser informado.
Por outro lado, mesmo em relação aos casos em que não restava caracte-
rizado o crime fiscal, não seria razoável exigir que o sujeito passivo declarasse
que as operações por ele praticadas estariam eivadas de vícios que poderiam
ensejar a sua invalidade perante o Fisco, salvo se a norma legal já declinasse
quais operações não seriam consideradas válidas. Do contrário, seria forço-
so admitir a existência de um padrão oficial de atuação empresarial para os
agentes privados, o que contraria o princípio da livre iniciativa, por fundar-se
em dirigismo estatal na economia privada que não é passível de ser assimilado
pelo discurso constitucional senão por uma roupagem obsoleta do princípio
da supremacia do interesse público426, a partir da sua utilização utilitarista vio-
ladora dos direitos fundamentais dos contribuintes.
É que a centralidade dos direitos fundamentais no Estado Social e De-
mocrático de Direito não autoriza que o desenvolvimento das atividades em-
presariais tenha que se adequar a uma roupagem pré-estabelecida pelo Esta-
do. Nessa seara, em que inexiste a prática de ato ilícito, não é tarefa fácil, tam-
pouco segura, caracterizar, por ocasião da realização dos negócios jurídicos,
e, portanto, antes de qualquer atividade estatal, se a conduta será considerada
pelo Fisco como normal ou atípica. Se tem propósito econômico ou se visa
apenas a economia do tributo. Se constitui exercício regular ou abusivo de
direito. Surge daí a importância de o normativo legal identificar as práticas
que precisariam ser declaradas.

426 Para a crítica à existência do referido princípio da ordem constitucional brasileira, vide: SARMENTO,
Daniel. “Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional.”
In: Daniel Sarmento. (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio
da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23-116.

593
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Afastada a similitude entre o Plano de Ação 12 e a frustrada iniciativa


do Poder Executivo de disciplinar a matéria pela MP nº 685427, é mais plau-
sível considerar esta última como mais uma tentativa malograda de regula-
mentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional,
ainda que por via oblíqua, pois, ao contrário do que preconiza o dispositivo
da nossa lei de normas gerais - que prevê a edição de lei ordinária que estabe-
leça um procedimento prévio ao lançamento para a investigação do indício,
identificado pela autoridade fiscal, de abuso de direito no planejamento fiscal,
possibilitando, se for o caso de confirmação das suspeitas fazendárias, a des-
consideração do negócio dissimulado-, a medida provisória rejeitada exigia
que o contribuinte tomasse a iniciativa de comunicar a existência de possíveis
fragilidades nas operações por ele realizadas, quando presentes o abuso de
forma e a inexistência de propósito negocial ou qualquer outro motivo que a
Receita Federal resolvesse estabelecer.
Por isso, é sob os contornos de norma antielisiva que se passa a analisar
o dever de informar o planejamento dito agressivo.

IV) O Dever de Informar como Cláusula Antielisiva


A despeito dos seus nobres propósitos baseados no necessário combate
à elisão abusiva e à evasão fiscal, e da sua inspiração, em alguma medida,
na cláusula geral antielisiva do parágrafo único do artigo 116 do CTN, cuja
regulamentação, que sempre defendemos, trará maior segurança jurídica ao
planejamento tributário, é forçoso reconhecer que os contornos legislativos
adotados pela MP nº 685 em muito se afastam do mecanismo trazido ao nosso
direito pela LC nº 104/01 e de alguns dispositivos caros à Constituição Fede-
ral, como a legalidade tributária, a capacidade contributiva e a livre iniciativa.

427 A Medida Provisória nº 685, editada em 26.07.2015, foi objeto de questionamento no STF, a
partir do ajuizamento da ADI 5.366, pelo Partido Socialista Brasileiro, em 19.08.2015. No parecer
apresentado pela PGR, foi recomendado o conhecimento da ação e a sua parcial procedência,
verificando a abusividade da multa prevista no artigo 12 da MP. Em julgamento monocrático, o
Rel. Min. Luiz Fux destacou a prejudicialidade da ADI, visto as alterações introduzidas pela Lei nº
13.202/2015 quando da conversão da MP nº 685/2015. Extinto o processo sem resolução de mérito,
houve o trânsito em julgado em 03.02.2016.

594
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em primeiro lugar, é preciso destacar que o planejamento fiscal é uma


conduta inerente ao desenvolvimento regular das atividades das empresas, as-
segurado constitucionalmente pelo princípio da livre iniciativa (art. 170, CF).
Porém, o abuso no exercício dessa liberdade, a partir de um planejamento
tributário que se afaste dos princípios mais caros à nossa ordem constitucio-
nal, é combatido por mecanismos introduzidos no direito positivo, como as
cláusulas antielisivas. No entanto, a ponderação entre a liberdade de planejar
as atividades econômicas e as pautas valorativas baseadas na Justiça Fiscal
oferece um modelo em que o combate ao planejamento fiscal é condicionado
a certos requisitos, que devem estar conjuntamente presentes:
a) prática de um ato jurídico, ou um conjunto deles, cuja forma esco-
lhida não se adequa à finalidade da norma que o ampara, ou à vontade
e aos efeitos dos atos praticados pelo contribuinte;
b) intenção, única ou preponderante, de eliminar ou reduzir o montan-
te de tributo devido;
c) identidade ou semelhança de efeitos econômicos entre os atos prati-
cados e o fato gerador do tributo;
d) proteção, ainda que sob o aspecto formal, do ordenamento jurídico
à forma escolhida pelo contribuinte para elidir o tributo;
e) forma que represente uma economia fiscal em relação ao ato previsto
em lei como hipótese de incidência tributária.428

No primeiro requisito, há que se ressaltar a necessidade de harmonia


entre a vontade do contribuinte, o objeto negocial e os efeitos que são próprios
ao negócio jurídico praticado, com a forma jurídica manifestada. Mesmo nos
negócios de forma livre, há que se inquirir se o seu objeto está adequado à rela-
ção jurídica que o contribuinte espera criar, modificar ou extinguir. Analisa-
-se também se os efeitos por ele esperados são os normalmente obtidos pela
fórmula jurídica utilizada e consagrada pela lei. Ausente essa harmonia entre
a vontade e a lei que tutela o negócio declarado, este, como sustenta Luís Ca-
bral de Moncada, resta ineficaz.429

428 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2003, p 145-146.
429 De acordo com o civilista lusitano, a “eficácia se acha fundamentalmente dependente da
conformidade ou harmonia entre a vontade na sua manifestação e a lei. É justamente essa

595
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

O segundo requisito é revelado pela intenção predominante no negócio ju-


rídico. Se a economia fiscal foi a principal razão para a escolha daquela fórmula,
em detrimento da prevista na hipótese de incidência, é possível a utilização da
teoria do abuso de direito. Observe-se, porém, que, ao contrário do que defen-
diam os seguidores das teorias causalistas da consideração econômica do fato
gerador, só há que se falar em elisão abusiva enquanto a economia do imposto
for a motivação determinante da conduta, e não uma mera consequência.430
Em relação ao terceiro requisito, há que se verificar a similitude entre
os efeitos do ato escolhido pelo contribuinte como cobertura e o fato gerador
legal. Caso contrário, não se verifica a manifestação de riqueza escolhida pelo
legislador como signo de manifestação de riqueza, violando-se o princípio da
capacidade contributiva. Neste caso temos a economia fiscal eficaz, e não a
elisão abusiva. A similitude é da essência da elisão abusiva, uma vez que o
contribuinte promove uma analogia às avessas,431 procurando um fato que
tenha os mesmos efeitos econômicos, mas que não seja tributado na mesma
proporção, para mascarar a ocorrência do fato gerador.
É essencial também, para a caracterização do abuso de direito - e é nisso
em que consiste o quarto requisito -, que a fórmula utilizada pelo contribuinte
para ocultar a ocorrência do fato gerador seja, se analisada de per si, lícita.
Conforme adverte Tulio Rosembuj,432 citando Cipollina, só há que se falar em
elisão fiscal quando os meios jurídicos implicados na configuração do fato im-
ponível se inserem, de forma irreprochável, sob a égide do direito positivo es-
trito. Caso o contribuinte utilize-se da simulação, da sonegação ou da fraude
na caracterização do suporte fático, não se fala de elisão, mas de evasão fiscal.

conformidade ou harmonia entre vontade e lei que nos deu a noção de ato ou negócio jurídico.
Se uma tal conformidade existe, diz-se do ato ou da vontade que eles são juridicamente eficazes e
válidos. Se tal conformidade se não dá, diz-se que eles não são válidos ou são ineficazes. A validade
e a eficácia de que aqui falamos, não são produto exclusivamente da vontade, nem exclusivamente da
lei, mas da colaboração das duas na realização do direito. ” (Lições de Direito Civil. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 1995, p. 706).
430 ROSEMBUJ. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario. 2.ed.
Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 103.
431 TORRES, Ricardo Lobo. “A Chamada “Interpretação Econômica do Direito Tributário”, a Lei
Complementar nº 104 e os Limites Atuais do Planejamento Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira
(Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 240.
432 ROSEMBUJ. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario, p. 102.

596
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Por último, mas não menos importante, aparece como quinto requisito
a economia fiscal representada pela diferença a maior entre o pagamento do
imposto na forma do fato gerador previsto em lei e o negócio escolhido pelo
contribuinte. Sem esse requisito, não há o dano à Fazenda Pública, pressupos-
to para a aceitação do abuso de direito na teoria geral da ciência jurídica.
Contudo, ao contrário do que exige nosso ordenamento constitucional,
a medida provisória em questão se contenta, para a desconsideração dos atos
praticados pelo sujeito passivo, com a existência de apenas um desses elementos:
a ausência de propósito negocial relevante, isoladamente considerada. Ou ainda
com um conceito que vai muito além do abuso de forma, que é a utilização de
forma atípica ou pouco usual. E até com qualquer outro motivo escolhido pela
Receita Federal que, espera-se, seja ao menos baseado no abuso de direito.
Vale destacar que a ocorrência de qualquer desses pressupostos estabe-
lecidos pela medida provisória, quando isoladamente considerados, é insu-
ficiente para a caracterização do abuso de direito, pois um negócio jurídico
pode ser atípico ou pouco usual justamente para se adequar aos propósitos
negociais específicos das partes envolvidas. Ou pode ter como escopo prepon-
derante a economia de tributo, mas sem que a sua efetivação seja realizada
com a completa harmonia entre os seus elementos constitutivos.
É que, como observa Ernest Höhn,433 o abuso de direito no planejamento
fiscal não ocorre no âmbito do direito tributário, mas no do próprio direito
privado, na medida em que o contribuinte, utilizando-se de um negócio jurí-
dico admitido por lei, não atende às finalidades almejadas pelo legislador civil,
mas a outras, que constituem objeto da hipótese de incidência tributária. Por
isso, a simples motivação na economia fiscal não caracteriza esse desarranjo
entre os elementos do negócio jurídico.
Tendo a MP nº 685, a exemplo do que já havia sido feito pela também
rejeitada MP nº 66/02, estabelecido o abuso de forma e a ausência de propó-
sito negocial como requisitos suficientes para, cada um de per si, legitimar a
caracterização do planejamento fiscal agressivo, vale discorrer, ainda que bre-

433 HÖHN, Ernest. “Evasão do Imposto e Tributação segundo os Princípios do Estado de Direito”.
In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo:
Saraiva, 1984, p. 298.

597
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

vemente, sobre cada um desses dois institutos, com o objetivo de proporcionar


a sua boa aplicação a partir da sua correta compreensão.
Decorre o abuso de forma de previsão contida no Código Tributário Ale-
mão de 1919, que autorizava a autoridade administrativa a desconsiderar o abu-
so no uso das formas jurídicas oriundas do direito privado. Nesse caso, é permi-
tido ao aplicador desenvolver considerações econômicas para a interpretação da
lei tributária e para o enquadramento do caso concreto, com base no sentido da
lei que transborda da sua literalidade.434 Segundo Amílcar Falcão, para a apli-
cação da teoria do abuso de forma, é necessário que o contribuinte se utilize de
uma forma jurídica atípica em relação ao fato econômico desejado.
Mas, na verdade, não basta apenas que a escolha da forma seja atípica,
como queriam os seguidores das teorias causalistas da consideração econô-
mica do fato gerador. É preciso que a escolha da forma seja abusiva; ou seja,
que não haja motivo razoável, além da economia fiscal, para a escolha daquela
modalidade negocial. Por outro lado, havendo descompasso nos elementos
constitutivos do fato jurídico, pode-se caracterizar o abuso, mesmo diante de
uma formulação típica.
A realização do arrendamento mercantil antes da Lei nº 6.099/74 e da
inclusão do item nº 52 da lista de serviços do ISS, fixada pela LC nº 56/87,
constituía um exemplo de utilização de um contrato atípico que poderia mas-
carar a realização de uma compra e venda a prazo, quando o preço do bem
fosse quase que inteiramente diluído nas prestações, restando uma parcela
insignificante para que o arrendatário exercesse sua opção de compra, ao fi-
nal do contrato. Hoje, com a tipificação do contrato e de sua tributação pelo
ISS, ainda há a possibilidade da elisão abusiva, quando o leasing for utilizado
como cobertura a uma compra e venda, dada a desproporção entre os valores
do “arrendamento”, e o preço residual.
Com o exemplo acima, fica clara a grande proximidade entre as figuras
da fraude à lei e do abuso de forma, que muitas vezes se confundem. Poderiam
as duas situações ser extremadas pelo critério da atipicidade. É que no abuso
de forma, na visão de Amílcar Falcão, haveria uma atipicidade na forma do
negócio escolhido pelo contribuinte. Já na fraude à lei, havendo, segundo a

434 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4.ed. Anotada e atualizada por Geraldo
Ataliba. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 71.

598
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

maioria dos autores,435 a necessidade de uma norma de cobertura, teríamos


um outro negócio jurídico tipificado, a dissimular o negócio jurídico efetiva-
mente praticado no mundo econômico. No entanto, reconhecemos que nem
a atipicidade é requisito indissociável da teoria do abuso de forma, e nem a
existência de norma de cobertura é essencial à fraude à lei,436 o que torna prati-
camente impossível a distinção entre as duas modalidades de abuso de direito,
constituindo a primeira em uma subespécie da segunda.437
O combate à elisão abusiva com base na ausência de intenção negocial surge
por obra da jurisprudência, em países como os EUA e a Inglaterra, e do legislador,
como ocorre na Suécia, no Canadá e na Austrália, a partir da possibilidade de
caracterizar a elisão abusiva quando o contribuinte, se afastando de seu propósito
negocial, busca obter a economia fiscal. Assim, deve o fisco perquirir o objetivo
negocial do ato jurídico apresentado pelo contribuinte: o business purpose test.
Tal critério, de fato, que se mostra bastante útil na análise da vontade do con-
tribuinte, indispensável à configuração do abuso de direito, não pode, no entanto,
ser o único indício do caráter abusivo da elisão, pois a mera intenção de praticar
ato menos oneroso do ponto de vista tributário, não gera a sua ineficácia perante
o Fisco, se não estão presentes os outros requisitos da conduta abusiva, como a
inadequação entre o negócio jurídico escolhido e a formula jurídica adotada.
Embora a verificação do abuso de forma e da ausência de interesse nego-
cial sejam importantes indícios do caráter abusivo do planejamento fiscal, a
desconsideração dos negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, sem a
presença de todos os elementos caracterizadores da elisão abusiva, acaba por
se traduzir em violação do princípio da legalidade previsto no artigo 150, I,
CF na medida que autoriza a tributação analógica a partir da oneração de uma
situação praticada no plano fático que não está descrita pela norma que se
pretende aplicar para fins fiscais. Da mesma forma que agride o princípio da
capacidade contributiva quando admite que manifestações de riqueza sejam

435 Por todos, DE LA VEGA (Teoría, Aplicación, y Eficacia en las Normas del Código Civil, p. 232, apud
ROSEMBUJ, El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario, p. 41).
436 Pela desnecessidade de uma norma de cobertura na fraude à lei, manifestam-se ESTÉVEZ, José
Lois. Fraude Contra Derecho. Madrid: Civitas, 2001, p. 189 e RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. v.1.
10. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 222.
437 Registre-se que o próprio Amílcar Falcão considerava ser o abuso de forma uma modalidade de
fraude à lei: FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 73.

599
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

colhidas diretamente na realidade econômica, sem a filtragem que o Direito


Tributário estabelece por meio da definição legal da hipótese de incidência.
No Direito Tributário, a teoria do abuso de direito passa a incidir a partir
do momento em que o contribuinte lança mão de um negócio jurídico, for-
malmente lícito, não visando, porém, adequar-se aos efeitos deste, mas ape-
nas, ou fundamentalmente, à economia do imposto.
Deste modo, a cláusula geral antielisiva se dirige tão somente contra o
abuso de direito, e não em direção aos planejamentos fiscais caracterizados
por apenas um dos seus elementos constitutivos. Aliás, se não há ilicitude ou
abuso de direito, o ordenamento jurídico não tem como admitir a desconside-
ração do ato praticado pelo contribuinte com base na capacidade contributiva
considerada fora das possibilidades oferecidas pela literalidade do texto da lei,
pois não há que se confundir a consideração econômica do fato gerador com
a teoria da interpretação econômica do fato gerador.438 Procurar a tributação
fora dos sentidos oferecidos pela lei, apenas buscando a identidade dos efeitos
econômicos entre o ato praticado pelo contribuinte e a hipótese de incidên-
cia tributária é, afastando-se da moderna doutrina pós-positivista, retornar
à teoria da interpretação econômica do fato gerador, tão cara aos causalistas
da primeira metade do século XX, mas rejeitada nos dias atuais, mesmo nas
escolas doutrinárias pós-positivistas.
Por outro lado, se não bastasse a insuficiência dos critérios previstos na
medida provisória para autorizar a desconsideração dos negócios jurídicos
praticados pelo contribuinte, um outro ponto é de especial importância cons-
titucional. Trata-se da exigência de comunicação do contribuinte sobre a prá-
tica de atos que possam ser caracterizados como abusivos sob pena da sua
configuração como omissão com intuito de sonegação fiscal.
Nesse particular, a medida provisória confere os efeitos de evasão fiscal,
que sempre parte de uma conduta ilícita, a atos que seriam, em tese, objeto da
elisão abusiva, ou até mesmo dotados de plena validade. A causa de tal meta-
morfose seria apenas o descumprimento da obrigação acessória de comunicar
a realização do planejamento fiscal.

438 Sobre a distinção entre consideração econômica do fato gerador e interpretação econômica do fato
gerador, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 119-120.

600
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Embora existam autorizadíssimas vozes doutrinárias439 que defendam a


identidade entre o abuso de direito e o ato ilícito, a partir da vigência do Código
Civil de 2002 (art. 187), para quem a conduta abusiva praticada pelo contribuin-
te é eivada de ilicitude, estando, portanto, no campo da evasão fiscal, não há que
se confundir, quando aos seus pressupostos, os dois institutos, pois, embora a lei
civil tenha promovido a igualdade entre o ato abusivo e o ato ilícito quanto aos
efeitos, já que nos dois casos o seu reconhecimento acarretará a invalidade do
ato, não esvaziou a necessidade de distinguir os dois institutos. É que persiste a
diferença entre eles quanto aos requisitos para a sua configuração, uma vez que
ainda é possível reconhecer que um ato formalmente abrigado por uma lei, em-
bora não possa ser considerado ilícito, é identificado como sendo atentatório ao
Direito como um todo. Assim, a contrariedade ao ordenamento jurídico, requi-
sito indispensável para a configuração do ato ilícito, continua sendo inexigível
em relação ao reconhecimento do abuso de direito.
Deste modo, para a caracterização do abuso de direito não é necessário
que o negócio jurídico seja ilícito à luz do direito civil. Assim, não é essencial
que tenha sido praticado com dolo, fraude ou simulação, ou que tenha havi-
do sonegação fiscal. O negócio pode ser perfeitamente válido e eficaz para as
partes, mas não produzirá os efeitos tributários desejados pelo contribuinte,
senão os relativos ao negócio que foi dissimulado. É que o surgimento do fato
gerador não depende da licitude, ou forma ou dos efeitos produzidos pelo ato
jurídico, mas da realidade econômica a ele subjacente, nos termos estabeleci-
dos pelo artigo 118 do CTN.440
Vale, a esse respeito, trazer o magistério de Amílcar Falcão:
“ (...) não é necessário que o ato ou negócio privado em que se consubs-
tancie o fato gerador seja nulo ou anulável. Pelo contrário, pode tratar-
-se de um ato perfeitamente válido em direito privado, como é o caso
dos negócios indiretos, dos negócios fiduciários e dos chamados abu-
sos da forma jurídica (Missbrauch von Formen und Gestaltungsmögli-
chkeiten dês bürgelichen Rechts): a interpretação com vistas à realidade

439 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 450.
440 CTN: “Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade
jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como
da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos. ”

601
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

econômica, isto é, a cognominada interpretação econômica terá lugar,


para fins tributários. ” 441

Assim, é irrelevante, em relação à ocorrência do fato gerador, a discussão


entre os civilistas a respeito dos efeitos do ato abusivo,442 uma vez que a sua
nulidade não é perquirida por ocasião da desconsideração, pela Fazenda Pú-
blica, do ato abusivo praticado com o intuito de afastar o tributo.
De acordo com Nuno de Sá Gomes,443 tais negócios, “apesar de lícitos já
não integram o direito à poupança fiscal pois podem ser corrigidos pela Ad-
ministração Fiscal” por meio das cláusulas antielisivas.
Não dependendo o reconhecimento da elisão fiscal da ilicitude dos atos
praticados pelo contribuinte, sua consequência será traduzida na obrigação de
pagar o tributo e as parcelas oriundas da mora (juros e multa de mora), mas
não envolve, por si só, a imputação de sanção por infração formal.444

441 FALCÃO. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 84-85.


442 Para Fernando Cunha Sá o ato abusivo produz os mesmos efeitos que o ato ilícito, ou seja, é passível
de nulidade. (SÁ. Fernando Cunha. Abuso de Direito. Coimbra: Almedina, 1997, p. 626). No Brasil,
Silvio Rodrigues (Direito Civil. v.1, p. 315) considerava que o abuso de direito se enquadra no âmbito
dos atos ilícitos, posição que restou consagrada no novo Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002,
art. 187). Já Caio Mario da Silva Pereira extremava o ato ilícito do abuso de direito (Instituições de
Direito Civil. v. 1. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 468).
443 GOMES, Nuno de Sá. Evasão Fiscal, Infração Fiscal e Processo Penal Fiscal. 2.ed. Lisboa: Rei dos
Livros, 2000, p. 78.
444 No sentido do texto, é indiscrepante a posição de tributaristas como ROSEMBUJ (El Fraude de Ley, La
Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario, p. 103), GOMES, Nuno Sá (Infração Fiscal
e Processo Penal Fiscal, p. 78), GALLO, Franco (“Elisão, Economia de Imposto e Fraude à Lei”. Revista
de Direito Tributário 52: 7-18, 1990, p. 14) e AMORÓS RICA (AMORÓS RICA, Narciso. “O Conceito de
Fraude À Lei no Direito Espanhol”. In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy
Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 423-443, p. 433), onde este autor noticia que, na Espanha,
o Real Decreto nº 1.919/79 veda a aplicação de penalidades em caso de reconhecimento de elisão abusiva.
No direito alemão, a consequência do reconhecimento da elisão abusiva também se limita ao pagamento
do tributo, sem a imposição de sanções; no entanto, na França, o reconhecimento do abuso de direito
gera a imposição de multa no valor de 80% do valor do tributo devido, como informa ROSEMBUJ (El
Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario, p. 364 e 369). No Brasil,
a MP nº 66/02, prescreveu que o procedimento antielisivo não era aplicável em casos de dolo, fraude e
simulação, e excluía a imposição de multa de ofício, caso o contribuinte efetuasse o pagamento do tributo
e dos encargos moratórios após o julgamento da representação que reconheça o abuso de direito (art. 17,
§ 2º da MP nº 66/02). No entanto, caso o contribuinte não recolhesse tributo em trinta dias da notificação
desta decisão, haveria o lançamento do tributo e da multa de ofício (art. 18 da MP nº 66/02). Observa-se
que sistemática parecida foi adotada pelo art. 9º da MP nº 685/15, que prevê que se a Receita Federal não

602
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Por esta razão, não há que se aplicar as penalidades previstas para os


casos de dolo, fraude, simulação ou sonegação para os casos de elisão abusiva
fundada na ausência de propósito negocial, de abuso de forma ou qualquer
outra modalidade de abuso de direito que venha a ser prevista em ato da Re-
ceita Federal, ainda que o contribuinte tenha se quedado inerte quanto à de-
claração exigida pela medida provisória.
Cumpre destacar, neste esforço na diferenciação entre a elisão abusiva e a
evasão ilícita, que a primeira também não se confunde com a simulação fiscal,
conduta penalmente tipificada. De acordo com o § 1º, do artigo 167, do Código
Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002), há simulação nos negócios jurídicos quando:
(i) aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas da-
quelas às quais realmente se conferem ou transmitem;
(ii) contiverem declaração, confissão ou cláusula não verdadeira;
(iii) os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

A simulação é absoluta, quando não oculta qualquer outro negócio ju-


rídico; é relativa, quando há um negócio jurídico dissimulado, que as partes
procuram ocultar.
Na simulação, segundo Ferrara, há uma divergência, querida e delibera-
damente produzida, entre a vontade e sua manifestação; um acordo simula-
tório entre as partes (ou entre o declarante e o destinatário da declaração); e o
intuito de enganar a terceiro estranho.445
Há que se distinguir os negócios simulados, que são fictícios, não queridos,
frutos de uma ficção negocial, cujo propósito é a ocultação de uma realidade,
dos negócios realizados com abuso de direito, que são sérios, reais e praticados
de tal forma pelas partes, para obter um resultado idôneo que vise a burlar uma
norma imperativa ou proibitiva. São claramente diferenciados, pois na simula-
ção se cria uma aparência que oculta a realidade; enquanto no abuso de direito,
se materializam negócios jurídicos desejados pelas partes, reais em seu conteú-

reconhecer, para fins tributários, as operações declaradas, o sujeito passivo será intimado a recolher ou a
parcelar, no prazo de trinta dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora.
445 FERRARA, Francisco. La Simulación de los negocios jurídico. Madrid, 1991, p. 55.

603
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

do e execução, mas, ainda que singularmente lícitos, escondem resultados que a


lei buscava atingir e que defluem dos atos efetivamente praticados. 446
Como se vê, o abuso de direito é obtido por meio da dissimulação dos
negócios jurídicos, que é um conceito que abriga não apenas os atos ilícitos
- como o dolo, a fraude e a simulação -, mas todas as condutas, que embora
formalmente lícitas, denotam o exercício abusivo do ato, revelado pelo des-
compasso entre a sua motivação econômica, a forma e os efeitos por ele pro-
duzidos, com o intuito único, ou preponderante, de obter uma economia de
imposto, em violação à isonomia e à capacidade contributiva.
Ao confundir condutas evasivas ilícitas com a prática de planejamento
abusivo, também chamado de elusão fiscal, a MP nº 685/15 acabou por tudo cri-
minalizar, ao considerar, no seu artigo 12, como omissão dolosa do sujeito pas-
sivo com intuito de sonegação ou fraude, condutas que não são necessariamente
evasivas como a ausência de comunicação do planejamento fiscal. Também me-
reciam o mesmo destino, de acordo com o referido dispositivo, combinado com
o art. 11 da mesma norma, a apresentação da comunicação sobre o planejamen-
to por quem não for o sujeito passivo, inclusive os consultores por exemplo, ou
ainda quando a declaração fosse omissa em relação a alguns dados considerados
essenciais pela fiscalização. Além das consequências criminais, a caracterização
de tais fatos como omissão dolosa ainda ensejava a aplicação da multa agravada
de 150%, prevista do §1º do artigo 44 da Lei nº 9.430/96.
Em contrapartida, o artigo 9º da MP nº 685/15 conferia ao contribuinte a
possiblidade de pagamento ou parcelamento do tributo, em 30 dias, acompa-
nhado dos juros de mora, mas sem a imposição de qualquer penalidade, caso
a Receita Federal considerasse que o planejamento declarado não estava em
conformidade com o ordenamento jurídico. E é neste dispositivo que se podia
extrair uma solução positiva e eficaz para a adequação do Brasil à Ação 12 do
Plano BEPS, sem que se pudesse constranger o contribuinte à autoincrimina-
ção em um ordenamento jurídico que criminaliza os ilícitos fiscais e em que
se confunde evasão e elisão fiscais.
Com a rejeição dos artigos 7º a 13 da MP nº 685/15, pelo Congresso Na-
cional, abre-se caminho para que novas iniciativas legislativas possam com-
patibilizar a desejável inserção do Brasil entre os países que, em nome do prin-

446 ROSEMBUJ. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario, p. 53.

604
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

cípio da transparência, se dispõem a combater o planejamento abusivo, com


o respeito à segurança jurídica e às características inerentes ao ordenamento
jurídico tributário vigente em nosso país.
Isso, é claro, desde que tais alterações normativas voltem a equiparar o
descumprimento da obrigação acessória de informar o planejamento fiscal a
condutas evasivas e criminosas.
É que mesmo sem a sanção criminal, o cumprimento da comunicação
por parte do contribuinte pode ser estimulado pelo afastamento das sanções
pecuniárias em caso de pagamento do tributo cuja exigência é derivada pelo
exame negativo de validade da operação pela Receita Federal. Trata-se de um
estímulo bastante apreciável, considerando que, em caso de inexistência da
comunicação, a mesma situação ensejará a autuação fiscal, esta sim acom-
panhada de penalidade, cuja imposição deverá levar em consideração a exis-
tência ou não de dolo, fraude ou simulação, a determinar o agravamento da
penalidade, nos termos do § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430/96.
Deste modo, o instituto poderá ter uma natureza híbrida de consulta
fiscal, para os casos de conformidade, e de denúncia espontânea para as si-
tuações de inconformidade. Assim, seriam aplicadas as regras relativas ao
processo de consulta, para os negócios jurídicos ainda não realizados, tam-
bém em relação aos atos já praticados, sempre que a Receita Federal aferisse
a conformidade com o ordenamento jurídico do procedimento adotado pelo
contribuinte. Caso contrário, quando a Receita Federal considerasse que os
atos declarados pelo contribuinte não se coadunam com as normas vigentes, a
comunicação voluntária dos atos praticados teria a feição de denúncia espon-
tânea, nos termos do artigo 138 do CTN, com a exclusão da penalidade, desde
que acompanhada do pagamento, quando anterior a qualquer procedimento
administrativo tendente à apuração da infração, como era reconhecido pelo
próprio artigo 9º da MP nº 685/15.447
Com essas mudanças, que passariam pelo afastamento de qualquer nor-
ma similar ao art. 12 da MP nº 685/15, a iniciativa tornar-se-ia não só compa-

447 “Art. 9º. Na hipótese de a Secretaria da Receita Federal do Brasil não reconhecer, para fins
tributários, as operações declaradas nos termos do art. 7º, o sujeito passivo será intimado a recolher
ou a parcelar, no prazo de trinta dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica às operações que estejam sob procedimento de
fiscalização quando da apresentação da declaração.”

605
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tível com a Constituição Federal, mas atenderia aos objetivos do Plano BEPS
de combater o planejamento agressivo garantindo a segurança e previsibilida-
de para os contribuintes.

V) Conclusão
Como é comum aos momentos de transição, a passagem de um modelo
tributário alicerçado no formalismo jurídico e no amplo espaço para qualquer
elisão que não se escorrace na prática de um ato ilícito, para um sistema aber-
to onde é possível a desconsideração do ato praticado com abuso de direito, a
partir da dissimulação do fato gerador por uma conduta que não se traduza
necessariamente em sonegação, fraude ou simulação, não se fez sem exageros
por parte dos aplicadores do direito. Esses exageros muito se devem à insistên-
cia da doutrina formalista em recusar qualquer mecanismo de combate à eli-
são tributária, em detrimento da pesquisa dos limites à atuação da autoridade
administrativa nessa tarefa, que é inerente à função fiscal.
Tais exageros muitas vezes se fizeram presentes na sistemática desconsi-
deração dos atos dos contribuintes, sem qualquer preocupação em pesquisar se
houve a prática de atos abusivos, mas apenas verificar a existência da economia
do imposto ou da forma pouco usual. Agora, quando esses equívocos foram
praticados pela MP nº 685/15, a preocupação quanto às violações à segurança
jurídica dos contribuintes havia ganho um grau bem mais elevado. Por isso, é
positiva a rejeição dos artigos 7º a 13 da MP nº 685 pelo Congresso Nacional.
Modelo muito mais eficaz e respeitador das garantias constitucionais
dos contribuintes é a regulamentação direta do parágrafo único do artigo
116 do CTN, de forma a estabelecer um procedimento, anterior ao lançamen-
to, em que seja assegurado o contraditório e a ampla defesa, em relação aos
procedimentos fiscais que apontarem indícios da prática de abuso de direi-
to no planejamento fiscal, admitindo-se o pagamento do tributo sem multa
nos casos em que as autoridades julgadoras entenderem pela inexistência de
dolo, fraude, ou simulação, a despeito da desconsideração do negócio jurídi-
co praticado com abuso de direito. Com a edição da Lei Complementar nº
104/01, que introduziu em nosso ordenamento jurídico a cláusula geral antie-
lisiva no parágrafo único do art. 116 do CTN, a maior parte da doutrina pro-
curou desqualificar a adoção da nova medida como violadora da legalidade

606
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tributária,448 o que acabou resultando na rejeição pelo Congresso Nacional da


MP nº 66, que pretendia regulamentar a medida. Porém, a despeito da sua não
regulamentação, é forçoso reconhecer que a prática da elisão abusiva já não
vem mais sendo tolerada pela jurisprudência administrativa brasileira.
É que os debates doutrinários com a edição da LC nº 104/01 revelaram
não ser mais possível admitir a adoção de práticas abusivas na elisão fiscal, sob
o manto de uma legalidade que se restringia ao plano formal. No entanto, a
ausência de regulamentação da lei complementar, deixou o contribuinte sem a
garantia de um procedimento prévio ao lançamento, que pudesse ser marcado
pelo contraditório e pela ampla defesa, a fim de promover uma discussão sobre
a natureza abusiva ou não da conduta do contribuinte, que pudesse ser decidido
por outra autoridade de não aquela encarregada de efetuar o lançamento.
Com a introdução da cláusula antielisiva e a rejeição parlamentar da re-
gulamentação, as autoridades fiscais passaram a combater o abuso de direito
sob o pálio da simulação. Assim, a exemplo do que ocorrera na Espanha, o
fisco passou a não mais ter interesse na regulamentação da cláusula antieli-
siva, pois passou a combater a elisão abusiva pelos mecanismos normais da
ilicitude, no âmbito do procedimento do lançamento.
Porém, deve-se advertir, que, com ou sem aplicação da cláusula antieli-
siva, a desconsideração dos negócios praticados pelo contribuinte, só pode se
dar se atendidos, de forma cumulativa, os requisitos para o reconhecimento
da elisão abusiva, conforme acima exposto, sob pena da tributação violar os
princípios da capacidade contributiva e da legalidade, pela extrapolação da
regra de incidência estabelecida pelo legislador.
Como se vê, independentemente da discussão sobre a necessidade de
regulamentação da cláusula antielisiva para o combate à elisão abusiva, a dis-
cussão foi atropelada pela jurisprudência administrativa federal, que a despei-
to de não fazer expressa referência ao parágrafo único do art. 116, não consi-
dera eficaz a elisão praticada com abuso de direito.
No entanto, tanto as autoridades lançadoras, a quem, na ausência do
procedimento específico preconizado na cláusula antielisiva, têm cabido o re-
conhecimento do planejamento tributário abusivo, como as decisões advin-

448 Para o estudo das várias posições doutrinárias sobre a introdução do instrumento em nosso direito
tributário, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 162-170.

607
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

das do contencioso administrativo federal, embora considerando inválidos


atos que outrora eram considerados lícitos, evitam, salvo exceções, qualificá-
-los como elisivos ou declarar a aplicação da cláusula geral antielisiva.
Assim, a tendência verificada, até o momento, é de alargamento dos limi-
tes da simulação e da evasão fiscal, para condutas que outrora eram aceitas pelas
autoridades administrativas. Na prática, atos que eram lícitos passaram a ilícitos
sem nunca terem sido considerados abusivos. Paradoxalmente, a jurisprudência
administrativa, a despeito de qualificar os atos desconsiderados pela fiscalização
como ilícitos, não apoia tal conclusão na irregularidade formal da operação, mas,
em geral, na ausência de escopo econômico que ultrapasse a economia fiscal, traço
característico da elisão abusiva e não da evasão. Tais confusões demonstram a
necessidade de um procedimento prévio ao lançamento, em que possa ser exami-
nado o caráter supostamente abusivo do planejamento fiscal.
Pode-se, grosso modo, identificar como traços gerais da atual jurispru-
dência administrativa:
a) inexistência de menção expressa à cláusula antielisiva;
b) ampliação do espaço da evasão fiscal e da simulação;
c) exigência do escopo econômico que ultrapasse a economia fiscal;
d) insuficiência da regularidade formal da operação.

De acordo com esse panorama jurisprudencial, o planejamento tributá-


rio considerado legítimo e eficaz deve ter as seguintes características:
a) conteúdo econômico aliado à economia fiscal – é preciso um propó-
sito negocial para a operação, além da economia tributária, ou seja, é
preciso poder demonstrar que existem outros motivos para que a em-
presa realize o negócio pela forma escolhida;
b) operações devem ter existência jurídica e fática – não basta que a
forma jurídica adotada seja lícita; é essencial que a sua moldura esteja
presente na realidade econômica;
c) desconsideração dos atos sucessivos praticados em curto espaço de
tempo – são desconsideradas, portanto, alterações societárias suces-
sivas praticadas em diminuto lapso temporal, o compra-e-vende, no
mesmo dia, o “casa-separa” de empresas com o único objetivo de eco-
nomizar tributos;

608
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

d) desconsideração das avaliações que não correspondem à realidade


de mercado – nas alterações societárias os ativos transmitidos devem
ser avaliados de acordo com o valor de mercado.

Porém, diante do quadro de não regulamentação e da aplicação en-


vergonhada da cláusula geral antielisiva pela jurisprudência administrativa,
a atabalhoada iniciativa de introduzir as Mandatory Disclouse Rules tentou
cumprir esse papel. Com a sua rejeição, outras normas podem fazê-lo, desde
que não se impinja ao contribuinte a declaração obrigatória sob pena de cri-
minalização do planejamento fiscal, mas o estimule a tornar transparentes os
seus negócios e as suas iniciativas para a redução legítima da carga fiscal.
Na verdade, a razão do legislador federal ter optado pelo modelo da obri-
gatoriedade do dever de comunicar o planejamento fiscal em detrimento da-
quele preconizado pela LC nº 104/01, é a entronização da simplificação admi-
nistrativa como objetivo mais importante da administração tributária, ainda
que com prejuízo dos princípios mais importantes do sistema tributário na-
cional como o da legalidade e da capacidade contributiva. Porém, não se pode
olvidar que, em um sistema aberto aos valores, a praticabilidade não pode
aniquilar os direitos fundamentais, o que se traduziria no triunfo completo
dos melodiosos acordes utilitaristas sobre a tão sonhada aspiração do Direito
pela Justiça. Contudo, a introdução das Mandatory Disclouse Rules no Brasil,
sem os apontados vícios da MP nº 685/15, especialmente no que se refere ao
seu art. 12, podem contribuir para a melhoria de qualidade da relação entre a
Fazenda Pública e os contribuintes, com base no princípio da transparência,
seja no plano interno, seja no âmbito da tributação internacional.
Agora é hora de aprender com os erros e começar tudo de novo, com
mais inteligência, e redobrada vontade, como dizia Henry Ford. E nessa nova
tentativa a palavra mais importante é o diálogo que, de acordo com o Papa
Francisco, juntamente com a busca das verdades que nos levam a construir
um projeto comum, implica em escuta, renúncias de erros, aceitação de nossos
fracassos e equívocos. Por isso, a construção de uma nova alternativa ao Plano
12 do BEPS no Brasil, exige uma participação da sociedade e dos segmentos
econômicos a fim de construir uma solução harmônica que atenda de forma
eficaz a transparência fiscal e assegure a segurança jurídica dos contribuintes.

609
21. Economia Digital e
Estabelecimento Permanente Virtual
– Considerações sobre a Ação 1

Rodrigo Cipriano dos Santos Risolia


Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo.
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Es-
tudos Tributários e Gestão Tributária pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Advogado em Curitiba.

Resumo: O artigo discorre o estudo elaborado pela OCDE relativo à


Ação 1 dos BEPS, que versa sobre a descrição da economia digital, a revelação
de problemas que os países podem enfrentar na tributação dos negócios digi-
tais e propostas de solução. Especificamente, neste artigo analisa-se a neces-
sidade de alteração do conceito de Estabelecimento Permanente em razão da
economia digital para evitar o risco de evasão fiscal e desequilíbrio da concor-
rência, os eventuais problemas para implementação das medidas propostas
pela OCDE e possível impacto nos países em desenvolvimento.
Palavras-chave: BEPS, Estabelecimento Permanente, Economia Digital,
países em desenvolvimento.
Abstract: The article discusses the study by the OECD on Action 1 of
the BEPS, which deals with the description of the digital economy, the reve-
lation of problems that countries may face in the taxation of digital business,
and proposed solutions. Specifically, the article discusses the need to change
the concept of Permanent Establishment by reason of the digital economy to
avoid the risk of tax evasion and imbalance of competition, possible problems
in implementation of the measures proposed by the OECD and the possible
impact on developing countries.
Keywords: BEPS, Permanent Establishment, Digital Economy, Develo-
ping countries.

611
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Introdução
A intensificação das relações negociais por meio da internet tem revelado
maior preocupação dos países quanto à arrecadação. A valorização dos intan-
gíveis e a redução dos custos de transação nas operações virtuais promovem a
pulverização das transações globalmente e tornam as regras atuais de tributa-
ção desatualizadas para se garantir a igualdade tributária.
Não obstante, apesar de alguns países terem produzido normas espe-
cíficas sobre a tributação dos negócios pela internet, normas unilaterais não
bastam para alcançar as manifestações de riqueza em tais operações globais.
Nesse contexto, a OCDE elencou como objeto de apreciação dos BEPS a eco-
nomia digital na Ação 1. Antes de tratar sobre tributação, o relatório da ação
traz análise importante sobre os negócios digitais em si, suas características,
classificação, negócios emergentes e potenciais que devem ser observados em
razão de sua mutabilidade e dificuldade de estabelecimento de normas de tri-
butação sobre tais atividades. Em realidade, essa parte do estudo deve ser ob-
servada, a partir de agora, por todos os Estados que pretendam desenvolver
normas de tributação sobre os negócios digitais, independentemente de envol-
ver transações internacionais ou não, uma vez que os pontos lançados no rela-
tório realmente estruturam e explicam os fundamentos da economia digital.
A tributação da economia digital é assunto complexo. Poderia ser dividi-
do em diversos temas, como a questão das moedas virtuais, exploração de di-
reitos autorais x serviços de entretenimento, negócios tradicionais x negócios
virtuais. Neste artigo prestigiou-se o do estabelecimento permanente, explo-
rando a conexão entre a manifestação de riqueza no plano virtual e o vínculo
que enseja a tributação. Não obstante, como será demonstrado, outras ações
do BEPS também englobam economia digital, o que indica que o assunto ape-
nas tem um ponto de partida na Ação 1.
No tópico I, expõe-se as principais manifestações contidas no relatório da
OCDE. No tópico II são tecidas considerações acerca do Estabelecimento Per-
manente e sua relação com a economia digital. Por fim, no tópico III comenta-se
sobre a proposta da OCDE e o respectivo impacto nos países emergentes.

612
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

I. Delineamentos da economia
digital na perspectiva da OCDE

I.1 Classificação dos negócios digitais


O plano da Ação 1 tem o objetivo de identificar as principais dificuldades
que a economia digital apresenta para a aplicação das regras de tributação in-
ternacional existentes e desenvolver opções detalhadas para resolvê-las.
Pode-se afirmar que, previamente ao estudo do tratamento tributário, o
Grupo de Trabalho da Economia Digital se esmerou em catalogar e estruturar
os negócios digitais. A tarefa apresenta dificuldades porque os negócios digitais
são marcados pelo dinamismo e por serem de difícil classificação pelo direito
civil/comercial dos países, uma vez que, em boa parte, apresentam propostas
novas de atividades empresariais carregando elementos de atividades tradicio-
nais. Daí a dificuldade de definir, por exemplo, se o fornecimento de vídeos
via streaming representa um serviço, uma atividade análoga à das locadoras de
mídias (fitas cassete, DVD e Blue Ray), ou se a atividade é mera exploração do
direito de uso de manifestação artística protegida pelo Direito Autoral.
Novos modelos de negócio surgem a partir da internet, que podem ser
classificados como e-commerce, novos serviços de pagamento, lojas de aplicati-
vos, publicidade on-line, cloud computing e plataformas participativas em rede.
O modelo de negócio e-commerce é aquele em que o objeto é a prestação de
um serviço ou fornecimento de um bem, cuja contratação se dá integralmente
por plataforma virtual com esse propósito específico. Podem envolver tratati-
vas entre fornecedores (B2B) – que corresponde à maioria das transações; entre
fornecedores e consumidores (B2C) – que é a forma mais antiga de e-commerce
e pode fornecer serviços e bens tangíveis e intangíveis; e, por último, tratativas
entre consumidores (C2C) em que as empresas figuram como intermediárias
entre os destinatários finais que comercializam bens e serviços. Constata-se o
aumento, a cada ano, das operações e usuários do comércio virtual.
Os novos serviços de pagamento surgem a partir da necessidade de um
serviço que substitua as formas tradicionais de pagamento, mesmo as não tão
antigas, como pagamento por cartão de crédito ou débito, uma vez que, para
fazer esse tipo de operação, o usuário deve prestar elevado grau de informa-

613
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

ções, e isso demanda certa confiança no fornecedor. As empresas prestadoras


desses serviços então se colocam como intermediárias do pagamento, apre-
sentando vantagens como proteção à fraude, tanto do fornecedor quanto do
consumidor, maior velocidade na transação (se comparado aos métodos tra-
dicionais) e operações em moedas locais.
Algumas soluções para pagamentos são indicadas, como: a) cash pay-
ment solution baseado em sistema de pagamento seguro através de código de
barras ou código de pagamento; b) e-waletts ou cyber-wallets, onde o usuário
carrega o sistema com créditos para realizar pequenas despesas, uma vez que
os pagamentos menores com cartões de crédito parecem ser mais onerosos; e
c) mobile payment solution mediante a utilização de telefone celular ou outro
aparelho capacitado para realizar pagamentos.
Lojas de aplicativos são interfaces que fornecem aplicativos próprios ou
de terceiros, em dispositivos móveis de um determinado sistema operacional
ou em diversos sistemas, a título gratuito ou oneroso. Os aplicativos gratuitos
são remunerados através da promoção de publicidade dentre seus usuários.
Também os aplicativos podem ser próprios da loja virtual ou de terceiros, e
estes podem fornecer os aplicativos pelas diversas partes do globo.
Quanto à publicidade on-line, esse modelo de negócio visa a exibição de
conteúdo publicitário ao mercado consumidor de maneira mais segmentada
e direcionada, além de poder observar a forma como o consumidor lida com
a marca comercial. Podem realizar publicidade através de uma plataforma de
conteúdo ou de serviços (gratuitos ou subsidiados), colhendo informações do
consumidor e direcionando o material publicitário.
O cloud computing representa o fornecimento on-line de serviços padro-
nizados, configuráveis, sob demanda de computação, que incluem armaze-
namento, software, processamento e gerenciamento de dados valendo-se de
recursos compartilhados físicos e virtuais. Os serviços de cloud computing
representam redução de custos se comparados à manutenção de uma estru-
tura específica para realização de determinado negócio e são formados por
diversos dispositivos físicos interconectados. São os mais comuns: a) serviços
de infraestrutura, em que são ofertadas máquinas físicas e virtuais e outros
recursos essências; b) serviços de plataforma, destinado a desenvolvedores de
software, em que são fornecidas plataformas de computação e ferramentas de
programação, em que o cliente não possui a gerência da estrutura, mas pode

614
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

se valer da plataforma para programação do código do software a ser desen-


volvido; c) serviço de software, modalidade mais comum, em que o fornece-
dor permite que o usuário acesse seu sistema e use aquela ferramenta, seja em
um modelo B2B ou B2C; d) serviços de conteúdo, em que o software permite
o acesso a conteúdo específico pelo usuário; e) serviços de dados, em que uma
empresa reúne dados de diversas fontes e os comercializa.
As plataformas participativas em rede consistem em fornecimento de
conteúdo agregado pela própria participação do usuário. O usuário passa, en-
tão, a ocupar a posição de fornecedor de material, igualmente.
Diante dessa apresentação categorizada dos negócios digitais, tornam-se
mais claras as características da economia digital, trazida pelo relatório da
OCDE, abordadas no subtópico seguinte.

I.2 Características da economia digital


A economia digital apresenta grande mobilidade em diversos aspectos. O
primeiro deles é a mobilidade dos intangíveis, em que o produto em desenvolvi-
mento pode ser alterado consideravelmente ao longo do tempo. As empresas in-
vestem em pesquisa e passam a agregar novas funções ao seu serviço, de modo
que ele pode, inclusive, desnaturar-se com as seguidas evoluções. O segundo é
a mobilidade dos usuários e consumidores, em que os serviços podem ser adqui-
ridos de qualquer parte do mundo, para serem utilizados em um determinado
local (cidade, estado, país) diverso do domicílio do cliente. O terceiro é a mobi-
lidade do próprio negócio digital, que demanda muito pouca presença física, e
pode ser controlado de qualquer lugar sem a personificação do administrador.
A monetização dos bancos de dados e a alimentação pelos usuários tam-
bém é uma característica dos negócios digitais. Ao coletar informações, as
empresas podem vender esses dados ou utilizá-los em planejamentos estraté-
gicos de marketing, dentre outras atividades.
Os network effects representam a característica de que a decisão de alguns
usuários implica o benefício de outros. Em uma rede social, por exemplo, em
que haja pouca interação entre os usuários, não há incentivos para que alguém
passe a se utilizar daqueles serviços. Quanto maior é o número de usuários,
maior é o valor do serviço, em compensação, menor é o valor de cada usuário.

615
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Vários dos negócios digitais possuem a característica de serem multila-


terais, em que as ações de um grupo podem gerar externalidades positivas ou
negativas para outro grupo. Se um intermediário oferece conteúdo de qualidade
para um grupo, poderá oferecer espaço publicitário a outro grupo, e o primeiro
grupo acessará os links dos patrocinadores. De outro lado, esse mesmo modelo
de negócio pode negociar dados pessoais de seus usuários aos patrocinadores
sem o devido consentimento, gerando prejuízo ao primeiro grupo.
Outra característica é a tendência ao monopólio, em que um negócio
recém-criado, valendo-se da característica de demandar baixo investimento e
o principal capital ser intelectual, pode crescer rapidamente e tomar o merca-
do em pouco tempo. Diante disso, a empresa passa a prestar outros serviços e
o usuário opta por centralizar todos em uma única companhia.
Por fim, a última característica listada é a volatilidade. Os negócios di-
gitais, normalmente, por não demandarem grandes aportes financeiros, nem
exigirem contrapartidas financeiras dos usuários, tendem a crescer rapida-
mente, e as companhias passam a dominar o mercado em pouco intervalo de
tempo. Contudo, não existem barreiras significantes para ingressar no mer-
cado, de modo que a empresa que ocupa a liderança pode passar a perder
espaço em pouco tempo com a chegada de um novo concorrente que preste
um serviço inovador.
Passada a estruturação da economia digital elaborada pela OCDE, em
breve relato do texto supra, aborda-se o aspecto tributário, em linhas gerais,
de questões postas pelo relatório da Ação 1.

I.3 Princípios e questões atinentes


à tributação da economia digital
Em 2013, a OCDE destacou o Task Force on the Digital Economy para
identificar as questões oriundas da economia digital e possíveis soluções a se-
rem trazidas no relatório. O grupo concluiu que os princípios elucidados na
Conferência Ministerial de Ottawa de 1998, sobre o comércio eletrônico, são
aplicáveis à economia digital. Os princípios são: neutralidade, que consiste na
obrigação da tributação não poder discriminar os meios convencionais e ele-
trônicos no fornecimento de bens e serviços; eficiência, impondo que os custos

616
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

de apuração de tributos pelo contribuinte e de fiscalização pela Administra-


ção devem ser reduzidos ao necessário; certeza e simplicidade, determinando
que as leis fiscais devem ser claras e não suscitar dúvidas, nem dificuldade de
aplicação, e seus efeitos devem ser previsíveis; efetividade e justiça, em que a
tributação deve implicar o tributo correto ao tempo correto; minoração da
potencial sonegação fiscal; e flexibilidade das normas fiscais para acompanhar
o desenvolvimento tecnológico.
O relatório da OCDE ainda ressalta outros princípios a saber: a igual-
dade nos planos horizontal e vertical de todos na medida de suas igualdades e
desigualdades; e igualdade internacional, que busca equilíbrio na distribuição
da arrecadação entre os países da fonte e da residência.
O resultado dos estudos apontou questões concernentes ao BEPS no âm-
bito da economia digital, com relação à tributação direta e indireta. Quanto à
tributação direta, busca-se o ajuste das normas para evitar situações como: a)
mitigação da tributação no país em que se exerce a atividade mediante o desvio
da configuração de um estabelecimento permanente, ou, ainda desvio do lucro
pela utilização de empresas veículo ou mitigação do lucro pelo pagamento ex-
cessivo de despesas dedutíveis; b) baixa ou ausência de tributação na fonte; c)
baixa ou nenhuma tributação no país do destinatário (em razão de um paraíso
fiscal, regime preferencial ou instrumento híbrido) através de estruturações so-
cietárias de um mesmo grupo; d) baixa/ausência de tributação da empresa mãe.
Quanto à tributação indireta, o ajuste das normas tributárias deve estar
voltado à possibilidade de o país do fornecedor tributar o IVA quando o país
do receptor estabelecer isenção do tributo e não exigir seu recolhimento na
entrada do bem. A empresa cuja atividade é isenta (tanto na aquisição quanto
na revenda do produto) terá a sua operação onerada pelo IVA tributado no
país do fornecedor, ainda que parcialmente.
O relatório da OCDE conclui, como desafios ao BEPS, a criação de novas
regras para o estabelecimento de nexo da lei tributária à atividade econômica,
a definição do valor tributável de um negócio pelo acúmulo de informações
que ele gera, e qualificação do negócio digital pela lei tributária.
A economia digital é merecedora de especial atenção porque rompe pa-
radigmas econômicos até então praticados, o relacionamento entre os agentes
econômicos transmuda-se e novas formas de manifestações de riqueza pas-
sam a existir. A mobilidade dos fatores exposta no relatório da OCDE permite

617
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

que a presença física das empresas seja desproporcional à participação econô-


mica em um país, o que fatalmente ofenderá a justiça fiscal. A preocupação
também é devida porque a perspectiva da economia digital é de crescimento,
e não é sem tempo que se tornou objeto de estudo dos BEPS. Um passo inicial
é a configuração de estabelecimento permanente a partir da presença econô-
mica do agente, sobre o qual se discorre.

II. Economia digital e o estabelecimento permanente


As regras de tributação internacional atuais são insuficientes para atingir
toda a capacidade contributiva dos agentes, permitindo erosão da base tribu-
tável e alocação de lucros com o intuito de redução da carga fiscal, seguindo
pela dupla não tributação não planejada pelos países. A legislação precisa ser
atualizada, especialmente pela crescente valorização dos intangíveis em situ-
ações para além da tributação interna (BRAUNER, 2015, p. 70). A primeira
questão quanto à tributação dos negócios digitais que vem à mente da maioria
dos investigadores é a da aplicação da lei tributária no espaço. Quais seriam os
limites da tributação de qualquer país, se é que haveria algum? A instituição
de normas tributárias decorre, antes da competência, da soberania. Um Esta-
do encontra limites para sua soberania somente diante da soberania de outro
Estado, reconhecida pela comunidade internacional. Um Estado não se su-
jeita nem pode sujeitar outro Estado à sua soberania. Afora isso, a tributação
decorre do princípio da territorialidade – que nada mais representa do que a
própria soberania – e do princípio da universalidade, que é o vínculo entre o
princípio da territorialidade e o sujeito que realiza o fato jurídico tributário
(TÔRRES, 2001, pp. 61-62).
Não se parte da perspectiva, nesse artigo, de que a soberania tributária
não encontraria qualquer limite. A própria soberania não exprime um direito
absoluto, pois sucumbe diante do direito das gentes e direitos humanos, en-
tre outros (TÔRRES, 2001, p. 63). Se o exercício da soberania em um Estado
Democrático de Direito deve observar o princípio da isonomia, então o vín-
culo entre o sujeito passivo e o Estado deve ser justificado. Não por menos,
a tributação decorre do princípio da capacidade contributiva (corolário da
igualdade), e há de se relacionar a manifestação de riqueza e a titularidade do
direito de tributar por um determinado Estado. Se no plano jurídico-positivo

618
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

a capacidade contributiva representa a relação de direitos e obrigações entre


o contribuinte e o Estado, que vai determinar aquela capacidade e seu âmbi-
to, no plano ético-econômico há uma ligação com a justiça material, que é a
possibilidade econômica de o sujeito suportar ser polo passivo de relação tri-
butária, tendo em vista os recursos por ele possuídos e sua respectiva necessi-
dade (COSTA, 2012, pp. 26-27). Sob a óptica do contribuinte, este deve sofrer
a tributação pela riqueza que manifestar, observando a proporcionalidade e
razoabilidade. Sob a óptica do Estado, esse deve exigir das pessoas a devida
contribuição para as despesas comuns da coletividade, de maneira isonômica
de todos aqueles que mantenham o vínculo necessário. Assim, verifica-se o
elemento de conexão legítimo somente nas hipóteses em que o contribuinte
for (i) residente (nacional) de um determinado Estado, podendo ter sido a ren-
da auferida naquele território ou em qualquer outro; (ii) por um não residente,
em razão de um vínculo com o Estado tributante, pela percepção de renda no
território (SCHOUERI, 2005, p. 338).
Com a globalização, há intensificação das relações econômicas entre os
agentes da economia mundial, observam-se empresas cada vez mais enrai-
zadas em territórios de outros países, apresentando vínculos mais fortes ao
longo do tempo, a ponto de apresentar estruturação típica ou assemelhada de
um negócio interno. Diante de situações como essa, o modelo da OCDE, no
art. 5º, versa sobre a atuação negocial local consistente em base fixa presente
no Estado, em instalação estável/permanente e conexa ao exercício normal
da empresa, desde que evidenciada sua idoneidade produtiva, sendo a ativi-
dade posta em desenvolvimento e realizada por meio da própria organização
(TÔRRES, 2001, pp. 222-223). Igualmente, é possível sustentar a existência de
um estabelecimento permanente pessoal em que, por características do ne-
gócio, não é necessária essa estruturação física própria, bastando se valer de
agentes estabelecidos pela norma, desde que constatada a habitualidade de
transações com o país estrangeiro (TÔRRES, 2001, pp. 230-231).
É certo que o Estabelecimento Permanente pode ter várias conotações,
como: noção técnico-jurídica relativa à sujeição passiva tributária, conceito,
princípio limitador à competência tributária exclusiva do Estado da residên-
cia, centro de imputação ou critério de conexão (CALIENDO, 2003, p, 553).

619
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Sem conflitar com as referidas conotações, defende-se que o Estabeleci-


mento Permanente é uma ficção jurídica, uma equiparação de uma estrutura
à pessoa jurídica conforme estabelecido nos acordos contra a bitributação.
Deve-se contrastar o Estabelecimento Permanente, como instituto de
Direito Tributário Internacional, com o estabelecimento previsto na legisla-
ção civil e tributária brasileira. Neste caso, o Código Civil estabelece, no art.
1.142, que “Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado,
para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Por
sua vez, o inciso III do art. 126 do CTN reconhece a capacidade tributária pas-
siva independente da regularidade da constituição da pessoa jurídica. Apesar
da semelhança do conceito de Estabelecimento Permanente e de Estabeleci-
mento Comercial na lei brasileira, não se pode sustentar que a lei brasileira
conceitue o primeiro (CALIENDO, p. 236 e UCKMAR, V. et al, 2012, p. 287).
Isso porque os institutos, ainda que possam se sobrepor, regulam relações ju-
rídicas distintas. Enquanto a lei interna busca o reconhecimento de existência
do Estabelecimento Comercial para ser objeto de relações jurídicas nas di-
versas áreas do direito, os acordos demarcam o conceito de Estabelecimento
Permanente com a única finalidade de isolar essa base fixa para sujeitá-la à tri-
butação exclusiva do país da fonte, como se contribuinte residente fosse. Essa
noção é relevante porque a mera demarcação do que seja Estabelecimento Per-
manente nos acordos bi/multilaterais pode não ser suficiente para permitir a
tributação pelo país da fonte, é possível que se demande alterações na própria
lei interna de cada país. No caso do direito brasileiro, o texto menciona “com-
plexo de bens organizados”, não discriminando se o estabelecimento é forma-
do por bens corpóreos ou incorpóreos. Ainda que abranja bens incorpóreos,
a lei tributária, ao menos, deve ser mais específica se pretender tributar a eco-
nomia digital, não apenas se valendo das definições trazidas pela OCDE em
razão do próprio princípio da legalidade.
Sendo certo que, nos últimos tempos, diferentemente da forma tradicio-
nal da tributação da renda, a tributação dos intangíveis, de fatores móveis, de
mercados que operam 24 horas do dia, além da facilidade desses negócios em
atrair capital e de reprodução dos mesmos instrumentos financeiros, ou seja,
dada a dificuldade de tributação desse segmento econômico, o peso da carga
tributária se torna assimétrico entre o capital e o trabalho (SCHINDEL, 1998,
pp. 797-829). Nesse contexto, seria possível atualizar os critérios legais pre-

620
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

vistos para o estabelecimento permanente, com o fito de elevar a arrecadação


e realizar tributação mais justa? Se possível, a alteração dos critérios promo-
verá esse fim? Apresentam-se na doutrina duas funções do estabelecimento
permanente: a primeira é a de servir de critério de conexão subjetivo entre a
estruturação empresarial e o Estado, e a segunda é a de limitar a competência
do Estado da residência, estabelecida nos tratados internacionais (TÔRRES,
2001, p. 217). Entende-se que há uma terceira função, que é a de aproximação
da tributação da empresa não residente às regras de tributação que se sujeitam
às empresas locais, ou seja, outra finalidade do estabelecimento permanente é
a de favorecer a neutralidade fiscal (HONGLER, 2015, p. 10).
Pelas funções, não seria incompatível a atualização dos critérios do estabe-
lecimento permanente – e pela legislação interna do próprio conceito de estabe-
lecimento. Deve-se apenas investigar se esses critérios condizem com o princípio
da isonomia, da capacidade contributiva – especialmente a objetiva, que implica
manifestação de riqueza, razoabilidade, bem como desenvolvimento econômico.
O modelo de tratados contra a bitributação da OCDE traz, no item 4 do art.
5º, uma lista negativa de hipóteses em que não se configura estabelecimento per-
manente. Dada a mobilidade dos negócios digitais, o fracionamento da atividade
é facilitado, de modo que a mensuração da presença de uma companhia desse
ramo em um determinado país deve ter um sentido mais econômico do que físico.
Essas funções da lista negativa, que habitualmente são apenas auxiliares aos ne-
gócios, na economia digital podem ser atividades principais (BLUM, 2015, p. 316),
de modo que a figura jurídica para economia tradicional não apresentaria o mes-
mo efeito na economia digital. Um exemplo disso seria o item 4 da cláusula 5 da
Convenção Modelo, que estabelece as exceções ao estabelecimento permanente
como as safe harbors, que poderiam beneficiar desproporcionalmente os negócios
digitais, uma vez que a atividade de armazenamento de bens intangíveis pode ser
justamente a atividade principal da empresa.
De outro lado, não é justo que os negócios digitais se valham das van-
tagens de um país sem contribuir para aquela sociedade. Aqui há a ofensa ao
princípio da igualdade entre os países, da capacidade contributiva objetiva –
por se tratar de nítida manifestação de riqueza (COSTA, 2012, p. 28), além de
contrariedade à teoria do benefício. A ratio da lista negativa do estabelecimen-
to permanente para os negócios tradicionais não coincide com a dos negócios
digitais, por todas as suas características já apontadas no tópico acima.

621
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A teoria do benefício não explica, por si só, a instituição do estabeleci-


mento permanente. Primeiro porque, como alternativa, pode o país adotar
a tributação na fonte das receitas do não residente. Segundo porque o paga-
mento maior de tributo por parte de um contribuinte não o faz receber mais
ou melhores serviços públicos que os destinados aos contribuintes de menor
capacidade contributiva (SCHOUERI, 2015, p. 55). Pela neutralidade e pela
igualdade entre as nações é que se denota exigência maior de tributar empre-
sas com forte presença econômica em um país igualmente às empresas locais.
FALCÃO e MICHEL produziram artigo que demonstra a possibilidade de
uma empresa de Research & Publishing promover cursos a partir de Luxem-
burgo, para alunos de diversas partes do mundo, com pesquisadores de países
diversos sem que esses países recebam tributos, com auxílio da tecnologia da
informação (2014), demonstrando a ofensa aos princípios mencionados.
Conforme aponta BRAUNER (2014, p. 72), a preocupação atual sobre a
economia digital é maior que em 1999, manifestada na Conferência de Ot-
tawa. Naquela época a questão central era o estudo de um Estabelecimento
Permanente sem a presença física, mas ainda não representava significância
econômica a ponto de promover profundas alterações na legislação tributária,
situação completamente diversa da atual, em que os estudos ainda se ocupam
do estabelecimento permanente com a ampliação do nexo de tributação, além
de outras questões geradas pela valorização dos intangíveis, como transfer pri-
cing, troca de informações, instrumento multilateral, por exemplo. A dificul-
dade de se atribuir a imputação dos lucros e a potencial tributação dos bens
digitais implicam uma reforma mais profunda e ampla. Igualmente, a classi-
ficação das receitas torna-se dificultosa e exige harmonização entre os países.

III. Considerações sobre a proposta da ação 1 e possível


impacto nos países emergentes
O relatório da OCDE aponta os primeiros fundamentos de possíveis cri-
térios para a nova configuração do estabelecimento permanente, como volu-
me de vendas digitais, números de contratos, número de consumidores/usu-
ários, nível de consumo.

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Em princípio, tais critérios são verdadeiras manifestações de capacidade


contributiva objetiva, não sendo sustentável que um país não possa se valer de tais
critérios para estabelecer um limite do que seria um estabelecimento permanente
na economia digital, porque tais manifestações são direcionadas ao país.
Entretanto, solução para a tributação da economia digital vai além das
soluções unilaterais, porque dificilmente seria concretizável a fiscalização da
presença econômica significante se os países não participarem de vasta gama
de acordos bilaterais que estabeleça a colaboração na obtenção de informações
(Ações 11 e 13) ou a adesão a um instrumento multilateral (Ação 15) que pre-
veja um sistema de compartilhamento de informações. Como defende CAR-
MAN, o relatório da Ação 1 indicou uma série de problemas na economia
digital e propostas de solução, mas ainda há de se resolver as incertezas sobre
a implantação dessas possíveis soluções. Tanto a iniciativa privada quanto a
governamental deveriam trabalhar em conjunto para planejar, projetar e ter
bases reais de que os objetivos serão alcançados (CARMAN, 2014, p. 106).
A fluidez da economia digital torna difícil o regramento de sua tributação.
De uma maneira geral, há crítica de que o relatório apresenta uma mistura
acidental das questões, ainda que importantes, mas postos de maneira desor-
ganizada (BRAUNER, 2014, p. 72).
Outros elementos podem ser extraídos do relatório da OCDE, como publi-
cidade e campanha de descontos, que vem sendo defendido pelos Estados Uni-
dos sem muito apoio dos demais países (BRAUNER, 2014, p. 72). Considerando
que a exploração de material protegido por direitos autorais por streaming tem
sido um dos segmentos de maior crescimento na internet, certamente um crité-
rio bastante válido para se determinar o Estabelecimento Permanente Virtual
seria o local definido contratualmente para a disponibilização do material ob-
jeto da atividade. Os direitos autorais patrimoniais podem ser explorados com
limitação no tempo e no espaço. Não é errado sustentar que tendo em sua base
de conteúdo diversas obras cuja autorização seja comum em um determinado
país, naquele país pode haver Estabelecimento Permanente Virtual.
Além dos critérios citados, o relatório sugere que a atividade principal
ou parte significante dela corresponda a venda de bens e serviços digitais; ne-
nhum elemento ou atividades físicas sejam envolvidas na criação de bens ou
serviços, e sua entrega ou manutenção ocorra por meio de servidores e websi-
tes ou outras ferramentas de tecnologia da informação, bem como de coleta,

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

processamento e comercialização de informações; contratos geralmente se-


jam concluídos remotamente por Internet ou telefone; pagamentos sejam fei-
tos somente por cartões de crédito ou outras formas de pagamento eletrônico
on-line ou por plataformas vinculadas ou integradas aos respectivos websites;
os websites devem ser a única interface com o cliente, não podendo envolver
lojas físicas ou agências para exercer a atividade principal, além de escritórios
localizados na companhia mãe ou na sede de cada país; todo o lucro ou a
maior parte deve ser atribuída a bens e serviços digitais; o local da sede ou o
domicílio tributário seja impertinente para o consumidor e não pode influen-
ciar na sua escolha; o uso do bem ou serviço digital não pode ensejar contato
físico senão com o próprio computador ou outro dispositivo eletrônico.
Algumas considerações cabem a esses critérios. Primeiramente, não há
um elemento indicativo seguro para comparar as empresas quanto à natureza
(não)digital de sua atividade principal, abrindo margem para o planejamen-
to tributário, com a possibilidade do contribuinte conseguir estruturar seu
negócio de forma lícita, porém não planejada pelos países. Isso certamente
traria desequilíbrio concorrencial com as empresas sediadas no país da fonte
(HONGLER e PISTONE, 2015, p. 31). A discussão do que venha a ser negócio
digital e tradicional sempre apresentará polêmicas.
No caso brasileiro, a Emenda Constitucional 87/2015 alterou a forma de co-
brança do ICMS sobre produtos destinados a não contribuintes em transações
interestaduais. Essa mudança se deu por pressão de diversos Estados, que perdiam
receitas por conta do comércio eletrônico. Como a venda a não contribuinte era
tributada pelo Estado do domicílio fiscal do contribuinte, alguns estados do Nor-
deste brasileiro passaram a cobrar o diferencial de alíquota, em desconformidade
com a Constituição. Diversos contribuintes se insurgiram contra a medida, ob-
tendo resultados favoráveis no Judiciário. Contudo, por pressão política, obteve-se
a aprovação da referida emenda constitucional, que incluiu o art. 99 no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, bem como alterou o inciso 7º do § 2º do
art. 155, e passou a destinar o diferencial de alíquota ao Estado do adquirente não
contribuinte. É sabido que essa alteração se deu em razão do comércio eletrônico,
mas de forma alguma o constituinte fez distinção do que fosse comércio eletrôni-
co e comércio tradicional. A medida acabou afetando, uniformemente, todas as
modalidades de comércio de mercadorias.

624
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

A insegurança jurídica do que seja “significância na economia digital” talvez


leve não apenas a criação de um novo conceito de estabelecimento permanente,
mas a alteração do conceito até mesmo para a economia tradicional, porque vá-
rias empresas sofrem automatização, influência da tecnologia da informação em
maior ou menor grau. Esse binômio digital/não digital (tradicional) pode falhar
na missão de assegurar a neutralidade e repartir a receita tributável entre os países.
Os paradigmas da Conferência Interministerial de Ottawa não são suficien-
tes para serem aplicados na economia digital atualmente. É necessário estabele-
cimento de regras criativas, em que devem ser coordenadas a tributação direta e
indireta, assim como as regras tributárias dos países, que já não mais conseguem
atingir seus objetivos por meio da atuação unilateral (BRAUNER, 2014, pp. 71-72).
A Ação 1 desenvolveu importante trabalho sobre a classificação dos negócios
digitais. A relevância desse trabalho se dá porque os contratos da economia digi-
tal podem apresentar natureza mista (BAL, 2014, p. 520), envolver mais de uma
espécie de contrato, o que pode prejudicar na qualificação quanto à incidência ou
não do tributo, da alíquota, ou até mesmo da retenção na fonte e da distribuição
da receita tributária conforme tratado assinado entre os países.

III.1 instrumentos para induzir a abertura de filiais


brasileiras de empresas estrangeiras da economia digital
Apresentam-se duas medidas para induzir a abertura de filiais para recolhi-
mento de tributos no Brasil, evitando a problemática da configuração do Estabele-
cimento Permanente: o bloqueio de sites e serviços on-line de empresas que atuam
irregularmente no Brasil e a tributação na fonte de remessas internacionais.
Quanto a primeira, questão interessante a saber é a de que, em sendo tecni-
camente possível, se seria lícito o bloqueio do acesso à empresa inserida na eco-
nomia digital por seus consumidores em razão de falta de regularidade fiscal.
São conhecidas as súmulas 70, 323 e 547 do STF, que afastam a possibilidade de
instituição de sanção política por parte do Fisco, como também é conhecido o
resultado do julgamento do Recurso Extraordinário nº 550.769, que chancelou a
cassação do registro especial para a fabricação e comercialização de cigarros da
empresa American Virginia em razão de falta de regularidade fiscal. O objetivo
aqui não é o exame do acerto dessa decisão, nem a avaliação de uma suposta

625
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

tendência da jurisprudência nesse sentido. Mas em sendo consideradas lícitas as


políticas de maior rigor quanto à liberdade de iniciativa em razão da regulari-
dade fiscal, o direito brasileiro albergaria esse bloqueio de acesso pelo mercado
consumidor? Essa questão, muito embora tenha sido deixada em aberto por
HELLERSTEIN (2014, p. 348), pode ser respondida positivamente no direito
brasileiro especificamente quanto aos negócios digitais. A Lei nº 12.965/2014
regulou o marco civil da internet, e, em seu art. 2º, I e V, estabeleceu como
fundamento da internet “o reconhecimento da escala mundial da rede” e “a livre
iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor”, ou seja, ao reconhecer
a escala mundial da rede, bem como a livre iniciativa dos negócios, esses negó-
cios estão sob a incidência da lei brasileira, nos casos em que, evidentemente,
houver conexão do direito brasileiro, independentemente de os agentes econô-
micos pertencerem ou agirem a partir do território nacional. Dessa maneira, se
a lei tributária tolher a iniciativa sob o manto da proteção à livre concorrência
pela falta de regularidade fiscal e não havendo qualquer inconstitucionalidade,
isso também se aplicaria aos negócios da internet independente do país em que
esteja localizado o fornecedor. Portanto, o bloqueio do acesso a serviço interna-
cional oferecido na internet pode vir a ser meio coercitivo para a regularização
da atividade empresarial virtual no Brasil.
A segunda alternativa que pode também servir de instrumento de in-
dução para incentivar as empresas a se regularizarem no País é a retenção
dos tributos na fonte. Esse é um sistema implantável com certa dificuldade
nos países em não há controle do sistema financeiro tão rígido quanto ocorre
em países como o Brasil. Além disso, há empecilho para tributar os negócios
B2C, uma vez que não há incentivo aos destinatários finais para reterem o
pagamento – justamente por isso é que em um sistema financeiro bastante
regulado a instituição acaba sendo a responsável tributária. Nos negócios B2B,
normalmente há o interesse do adquirente em realizar a retenção porque o
risco de fiscalização é maior, além de que, no caso dos tributos indiretos, é
possível haver creditamento do tributo retido. Nas transações C2C, haverá um
intermediário que promoverá o encontro entre os consumidores finais que
realizem a transação. É sobre o intermediário que recairia o ônus da retenção.
O sistema de retenção do tributo na fonte também deve ser padronizado e de
baixo grau de complexidade, pois o responsável pode dispor de poucas infor-
mações para a qualificação do fenômeno econômico. A alíquota a ser estipu-

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

lada deve levar em consideração a base de cálculo razoável para os negócios


da economia digital e da alíquota efetiva, buscando aproximar a tributação
presumida da retenção da fonte à tributação mediante apuração contábil-tri-
butária. A retenção ainda pode incentivar o contribuinte a se estabelecer no
país, uma vez que não permite vantagens como compensação de prejuízos ou
deduções, por exemplo. Deverá, da mesma forma, respeitar os tratados contra
a bitributação, que, como já dito, podem originar certas dúvidas de qualifica-
ção (nesse sentido BRAUNER e BAEZ, 2015, p. 6).

III.3 o impacto da ampliação do conceito


de estabelecimento permanente nos países
em desenvolvimento
A ampliação do conceito de Estabelecimento Permanente nos países em
desenvolvimento para a economia digital pode levar um tempo maior que
nos países desenvolvidos, bem como pode não abranger vasta gama de países,
uma vez que os países de Terceiro Mundo passam por processos de abertura
econômica e, de maneira geral, não têm tantos acordos contra bitributação
firmados. Além disso, o alargamento do conceito de estabelecimento para fins
de tributação nos países desenvolvidos pode dificultar a inserção de empre-
sas digitais nesses mercados provenientes de países em desenvolvimento, o
que poderia representar reserva de mercado às empresas residentes. Por fim, a
necessidade de ajuste da lei interna diante de um padrão internacional previa-
mente estabelecido para a qualificação das receitas das empresas da economia
digital, ainda que esses países não venham a participar da produção dessas
normas paradigmáticas.
A OCDE, se pretende realmente promover harmonização ampla da le-
gislação tributária, precisará ouvir e atender pleitos dos países emergentes,
uma vez que esses representam grandes mercados sem os quais as alterações
pretendidas terão pouca efetividade, uma vez que a evasão será apenas evi-
tada em operações entre países que cooperaram com a padronização. Dada
a fluidez da economia digital, é bastante fácil alocar estabelecimento em um
país em desenvolvimento que não participe da harmonização da legislação e,
a partir dele, promover a evasão fiscal.

627
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

Conclusão
O aprimoramento da tecnologia e o barateamento dos equipamentos
de informática permitiram a inclusão digital de pessoas por todo o mundo,
e novas formas de relacionamento econômico vêm surgindo a cada dia. Os
agentes se colocam em posições diversas, como clientes de uma empresa ou
até mesmo colaboradores indiretos. Manifestações de riqueza assumem novas
formas, e a lei tributária, para garantir a justiça, a isonomia e a capacidade
contributiva, precisa ser repensada.
Essa nova sistemática fiscal é de difícil construção, porque sempre deve
considerar a fluidez da economia digital, ou seja, a mobilidade de diversos
fatores, como a dos intangíveis, em que o produto pode ser alterado ao longo
do tempo; a dos clientes, que não possuem barreiras para adquirir ou deixar
de consumir determinado produto ou serviço digital, o que nos remete ao
conceito de negócios escaláveis, em que uma mesma estrutura pode atender
demanda em quantidade variável sem o proporcional incremento em sua es-
trutura; e mobilidade do próprio negócio digital, em que sua presença física é
mínima e pode ser controlado de qualquer local.
Na economia digital a geração de riqueza não se dá apenas pela prestação
de serviço, mas por outros fatores como a interação entre seus usuários e a
alimentação de um banco de dados. Podem gerar efeitos positivos ou nega-
tivos a determinados grupos, conforme sua utilização, o que deve ser consi-
derado, inclusive, nas questões de tributação indutora. Também os negócios
da economia digital tendem ao monopólio (o usuário acabará optando por
centralizar todos os seus serviços com uma única empresa) e são voláteis, pois
não há necessidade de grande aporte de capital para iniciar um negócio, nem
pagamento de preço elevado para fruir do bem/serviço, de modo que as em-
presas tendem a crescer rapidamente e ocupar espaço no mercado, mas que é
cotidianamente atacado pelo surgimento de novos negócios.
O relatório da ação 1 apresenta os princípios da tributação diante da eco-
nomia digital, e relata algumas situações de evasão de tributos pelos fatores
discorridos neste artigo, apontando algumas soluções. Uma delas, a ampliação
do conceito de Estabelecimento Permanente, é objeto de análise neste artigo.
A legislação tributária atual mostra-se ineficiente para taxar a economia
digital de maneira satisfatória, não atingindo a capacidade contributiva dos

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A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

agentes. A estrutura em que ela se calcou falha nesses negócios justamente por
suas características de mobilidade e volubilidade. Agentes econômicos inter-
nacionais, além de poderem escapar da tributação no país da fonte, concor-
rem com as empresas residentes, muitas vezes sendo tributados por paraísos
fiscais, o que causa distorção no mercado. Daí a necessidade de ampliação e
atualização do conceito de Estabelecimento Permanente.
Importante ter em mente que Estabelecimento Permanente é uma ficção
jurídica, uma equiparação de um conjunto de bens organizados a uma pessoa
jurídica. Apesar de ter conceito assemelhado ao de Estabelecimento Comer-
cial, com ele não se confunde. São institutos de natureza distinta. Enquanto
o primeiro busca identificar situação específica para limitação da tributação
ao país da fonte e sujeição de regime de residente, o outro regula as diversas
relações possíveis desse conjunto de bens nas áreas do direito. Pelo princípio
da legalidade, o mero ajuste no conceito de Estabelecimento Permanente não
permite que o Estado da fonte o tribute como um residente sem que haja a
respectiva previsão pela lei interna. No caso da economia digital, entende-se
que a lei brasileira precisa ser aprimorada para abrigar um conceito de Esta-
belecimento Comercial Virtual.
O relatório da OCDE aponta novos critérios para definição de Estabeleci-
mento Permanente que revelam a participação da empresa em economia de de-
terminado país. Sem levar em consideração a suposta dificuldade para obter os
dados necessários, essa medida seria de grande valia, pois representa captação da
capacidade contributiva absoluta/objetiva. Deve-se, entretanto, ter a noção de que
os Estados somente terão êxito nessa medida se aproximarem a legislação interna,
equilibrando a qualificação das receitas e ampliando seu rol de acordos contra a
bitributação e procedimentos multilaterais, especialmente versando sobre troca
de informações. A lei também não deve discriminar a tributação dos negócios
digitais aos dos negócios tradicionais, uma vez que as próprias empresas da eco-
nomia tradicional se modernizaram e essa linha seria muito tênue. A reforma da
lei tributária, para esse fim, deve ser mais ampla e profunda.
Os Estados podem implementar medidas para forçar as empresas inter-
nacionais a se registrarem no país, através da retenção do tributo na fonte,
como uma norma indutora, uma vez que, é, potencialmente, mais vantajoso
ser tributado como um residente a ter os lucros tributados, na integralidade, a
uma alíquota, a certo ponto, elevada. De outro lado, estando respaldados pela

629
A Tributação Internacional na Era Pós-BEPS

lei interna, é possível que os Estados promovam a suspensão da atividade da


empresa por descumprimento de obrigações fiscais que venham a tumultuar
a concorrência. No caso brasileiro, entendemos haver essa possibilidade em
razão de autorização implícita prevista no Marco Civil da Internet no Brasil.
A busca pela harmonização da tributação internacional pode afetar signi-
ficativamente os países em desenvolvimento. Para implantá-la, os Estados pre-
cisarão firmar diversos acordos contra a bitributação em que haja previsão de
instrumentos para o combate à evasão fiscal. Além disso, os conceitos de Estabe-
lecimento Permanente dos tratados devem guardar alto grau de homogeneidade.
Como alternativa, os países em desenvolvimento devem ser signatários
de instrumentos multilaterais, mas tanto a participação em negociações bila-
terais quanto multilaterais não é tão comum em países de Terceiro Mundo,
que ainda passam por momento de abertura do mercado.
Dessa forma, a ampliação do conceito de Estabelecimento Permanente
pode dificultar a presença de empresas de países emergentes em países de-
senvolvidos, haja vista a burocracia nestes últimos, o que pode representar
reserva de mercado por parte dos países de Primeiro Mundo.
Os países membros da OCDE precisarão observar a realidade dos países
emergentes para garantir a desejada uniformização das normas de tributação
atualizadas para a nova realidade da economia digital, uma vez que a mobilida-
de dos fatores e a volatilidade dos negócios, abordadas acima, favorecem a mi-
gração das empresas no intuito de se obter regimes tributários mais favorecidos.

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