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COLEÇÃO GRANDES TEMAS DA ADVOCACIA 11

Coordenação Geral: PEDRO MIRANDA DE OLIVEIRA

ADVOCACIA CRIMINAL:
TEMAS ATUAIS

Coordenadores:
GUILHERME SILVA ARAUJO
LUIZ EDUARDO DIAS CARDOSO
RODOLFO MACEDO DO PRADO

Colaboradores:
Ana Paula da Silva Pereira | André Ferreira | Bernardo Lajus dos Santos
Bianca Bez Goulart | Carolina Gevaerd Luiz | Chiavelli Falavigno
Daniel Ivonesio Santos | Diego Nunes | Dirnei Levandowski Xavier
Domingo Montanaro | Eduarda Viscardi da Silveira | Francisco Yukio Hayashi
Guilherme Silva Araujo | Jackson da Silva Leal | Jean Carlos Martins Rodrigues
João Ricardo Pereira Rudniski | Jorge Henrique Goulart Schaefer Martins
Juliana Nercolini Malinverni | Juliano Keller do Valle | Luísa Walter da Rosa
Luis Irapuan Campelo Bessa Neto | Luiz Eduardo dias Cardoso | Marlo Almeida Salvador
Pedro Henrique Monteiro | Raquel Lima Scalcon | Rodolfo Macedo do Prado
Rodrigo Fernando Novelli | Rodrigo Oliveira de Camargo | Rossana Brum Leques
Stefany Adriana de Souza | Vítor Pereira Baratto
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis López Guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás S. Vives Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

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VI
O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL?
DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES
CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Diego Nunes
Professor História do Direito Penal dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
UFSC. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Macerata (Itália). Advogado.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Os vetos à Lei nº 14.197/2021: a manutenção


da polarização entre a doutrina de segurança nacional e o estado democrático de
direito – 3. Sucessão de leis penais no tempo: os novos crimes contra o Estado
Democrático de Direito frente aos tipos penais da Lei de Segurança Nacional – 4.
Os “crimes contra o estado democrático de direito” são crimes políticos? Natureza
jurídica e competência para julgamento dos delitos da Lei nº 14.197/2021 – 5.
Conclusão.

1. Introdução
A Lei de Segurança Nacional de 1983 (LSN) tem um duplo significado
na história do direito penal brasileiro. De um lado, se olharmos boa parte de seu
conteúdo, especialmente os artigos iniciais, percebemos haver uma ruptura com
a “doutrina de segurança nacional” da Guerra Fria. De outro, se nos atentarmos
ao simbolismo da manutenção da nomenclatura, bem como pela persistência de
determinadas categorias, talvez se esteja para além de uma continuidade semân-
tica.
Tal questão permaneceu olvidada pela pouca relevância teórica e prática
do tema nos últimos tempos. Ao menos após a emanação da lei, promulgação da
Constituição de 1988 e a década de 1990, a questão praticamente sumiu dos de-
bates doutrinários e jurisprudenciais. Nos anos 2000, poucas e destoantes vozes
em casos de ocupações de terra pelo MST no Rio Grande do Sul (2000) e dos
ataques do PCC em São Paulo (2006) levantaram a possibilidade de uso da Lei
nº 7.170/1983.
Na última década, porém, uma série de situações, talvez por conta da po-
larização política crescente a partir do caso Mensalão e da operação Lava Jato,
passaram a serem vistas como possíveis campos de aplicação da LSN. Para citar
alguns de diversos matizes, vejam-se as “greves” da Polícia Militar na Bahia e
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dos Bombeiros no Rio de Janeiro (2012), as manifestações contra os gastos da


Copa do Mundo em Minas Gerais (2013), a consulta paralela realizada pelo mo-
vimento “O Sul é meu País” durante as eleições (2016).
Da parte do Judiciário, até esse momento a jurisprudência do STF mos-
trava que a corte vinha aplicando a lei respeitando os parâmetros acima. Isso
significa dizer que a LSN é residual em relação aos crimes comuns. Nas poucas
vezes em que a lei foi invocada no STF1, conseguiu limitar resquícios da ordem
jurídica anterior, como a incomunicabilidade de presos.
A partir do atentado de Adélio Bispo contra o então candidato à pre-
sidência Jair Bolsonaro e desde o início do atual ciclo político, em janeiro de
2019, houve uma escalada de casos que fazem referência aos crimes constantes
na LSN. No primeiro ano e meio do governo Bolsonaro, por exemplo, regis-
traram-se mais inquéritos baseados nesta lei do que em todo o período pós-
19882. Os casos mais recentes colocam na balança a liberdade de expressão e a
defesa das instituições democráticas. Isso engloba desde opiniões individuais,
de caráter hipotético nas redes sociais, até manifestações coletivas, realizadas
ostensivamente em via pública.
Tal contexto de agitação político-ideológica, iniciado em 2013, gerou uma
série de manifestações que poderiam ser enquadradas como “antipolítica” no sen-
tido de rediscutir em termos radicais o establishment político nacional. Várias
pautas têm buscado a hegemonia, todas com o mote de queda do atual sistema
político por conta da corrupção, como a crítica aos gastos com as sedes da Copa
do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil, aumento da tarifa do
transporte coletivo, Operação Lava-Jato, Impeachment da presidenta Dilma e
intervenção militar3.
Além de manifestações coletivas, uma série de condutas pessoais nos últi-
mos anos levantaram questionamentos sobre os limites da liberdade de expressão

1 KIRSZTAJN, Laura Mastroianni. A Lei de Segurança Nacional no STF: como uma lei da ditadura vive na demo-
cracia? Monografia (Especialização) - Sociedade Brasileira de Direito Público. São Paulo, 2018. Disponível em: http://
www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/03/LauraMonografia.pdf. Acesso em: 17 set. 2020.
2 CAMPOREZ, Patrik. Lei de Segurança gera recorde de inquéritos. UOL: Brasília, 25 jul. 2020. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/25/lei-de-seguranca-gera-recorde-de-inqueritos.
htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 17 set. 2020.
3 PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. Augusto Aras pede ao STF abertura de inquérito para apurar vio-
lação da Lei de Segurança Nacional. Brasília, 20 abr. 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/
augusto-aras-pede-ao-stf-abertura-de-inquerito-para-apurar-violacao-da-lei-de-seguranca-nacional. Acesso em: 17 set.
2020; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro autoriza abertura de inquérito para investigar atos em
favor do AI-5 e do fechamento de instituições republicanas. Brasília, 21 abr. 2020. Disponível em: http://portal.
stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441751&ori=1. Acesso em: 17 set. 2020; CAMAROTTO,
Murillo; DI CUNTO, Raphael. PGR pede inquérito contra ato que solicitou AI-5; deputados podem ser investiga-
dos. Valor Econômico: Brasília, 20 abr. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/
pgr-pede-inqurito-contra-ato-que-pediu-ai-5-deputados-podem-ser-investigados.ghtml. Acesso em: 17 set. 2020.
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e possibilidades de aplicação da LSN: o discurso de Lula em sua libertação alcu-


nhando Bolsonaro de “miliciano”; a fala do ex-ministro da Educação Weintraub
em reunião ministerial apontando os ministros do STF como “vagabundos”; os
posts de Facebook dos rapazes de Uberlândia sobre “fazer história” na visita do
presidente à cidade; o outdoor do “pequi roído”, também contra o presidente.
Pensemos ainda em discursos que teriam não só o potencial de atingir a honra
de dignitários da república, mas de possuir caráter performático, como as ma-
nifestações de Sara Winter e “os 300 do Brasil”4 e o vídeo do deputado Daniel
Silveira, ambos voltados aos ministros do STF, e que redundaram em prisões e
indiciamentos.
Diante desse quadro, podemos nos questionar se os participantes de tais
manifestações seriam criminosos e que, portanto, teriam ameaçado o Esta-
do Democrático de Direito, enquanto condutas previstas até então na Lei nº
7.170/1983 e, a partir da Lei nº 14.197, no Código Penal. Tal reforma foi fruto
de intenso debate Legislativo, pois até então existiam em andamento na Câma-
ra dos Deputados5 35 projetos sobre a matéria, além de 56 inativos. Esse novo
fenômeno não era passível de refração pela Lei Antiterrorismo em 2016, tanto
que o único caso de aplicação dessa lei foi o episódio da “Operação Hashtag”6. As
tentativas específicas de alteração à LSN7 iniciaram logo após a sua emanação em
1983, e o deslinde se deu com base no projeto de 20028. A opção de se criar um
capítulo dentro do código de certo modo seria a aplicação do que Luigi Ferrajoli
chama de “reserva de código”9, findando com uma longa tradição: até a primeira
lei de segurança em 1935, os códigos penais de 1830 e 1890 traziam no início

4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro divulga íntegra de decisão no inquérito sobre manifestações anti-
democráticas. Brasília, 22 jun. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idCon-
teudo=446055. Acesso em: 17 set. 2020 e SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro divulga íntegra de decisão
sobre prisão de investigado no inquérito das manifestações antidemocráticas. Brasília, 30 jun. 2020. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446572. Acesso em: 17 set. 2020.
5 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Atividade legislativa: Busca. Brasília, 13 nov. 2021 Disponível em: https://www.
camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=data&abaEspecifica=true&fil-
tros=%5B%7B%22descricaoProposicao%22%3A%22Projeto%20de%20Lei%22%7D%5D&q=%22lei%20de%20
segurança%20nacional%22. Acesso em: 17 fev. 2022.
6 NUNES, Diego. Nova Lei Antiterrorismo: questões teóricas e práticas. In: DE BEM, Leonardo Schmitt. (Org.).
Estudos de direito público: aspectos penais e processuais. Vol. 1. Belo Horizonte: D’Placido, 2018, p. 407-413.
7 NUNES, Diego. As iniciativas de reforma à Lei de Segurança Nacional na consolidação da atual democracia brasileira:
da inércia legislativa na defesa do Estado Democrático de Direito à ascensão do terrorismo. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, p. 265-305, 2014; WUNDERLICH, Alexandre. Crime Político, Segurança
Nacional e Terrorismo. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.
8 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei nº 6.764, de 2002. Brasília, 16 abr. 2002. Disponível em: https://
www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=997664EF67AD6AB47FD079E61A2BF9F4.
proposicoesWebExterno1?codteor=32274&filename=Tramitacao-PL+6764/2002. Acesso em: 17 set. 2020.
9 CHOUKR, Fauzi Hassan; FERRAJOLI; Luigi. Entrevista com Luigi Ferrajoli. Canal Ciências Criminais, 26 jun.
2015. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/entrevista-com-luigi-ferrajoli/. Acesso em: 17 set. 2020.
74 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

da parte especial os crimes contra o Estado. O código de 1940 os manteve em


legislação especial e assim permaneceram10.
Tenho desenvolvido em uma série de trabalhos ao longo dos últimos anos
tal questionamento11. Ainda que parte da lei anterior se encontrasse em desa-
cordo com a Constituição, a ausência de certos dispositivos poderia fragilizar o
Estado Democrático12. Cabe então fazer uma análise preliminar se a nova legisla-
ção sobre a matéria será capaz de lidar com o fenômeno político. Neste sentido,
o objetivo deste trabalho é avaliar três pontos especialmente sensíveis: os vetos
impostos pela presidência, a continuidade normativo-típica entre a LSN e os
novos “crimes contra o Estado Democrático de Direito” e a competência para o
julgamento destes novos tipos penais e suas consequências para uma visão global
da criminalidade política.
Para tanto, fez-se uma revisão bibliográfica sumária, bem como a análise de
notícias e documentos produzidos acerca do tema, bem como processo legislati-
vo, legislação e jurisprudência correlatadas.

2. Os vetos à Lei nº 14.197/2021: a manutenção da polarização


entre a doutrina de segurança nacional e o estado democrático
de direito13
Com a sanção da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, foi acrescenta-
do o Título XII na Código Penal, criando os crimes contra o Estado Democrático
de Direito. Além disso, ela revogou integralmente a Lei de Segurança Nacional
e o crime de associação secreta da Lei das Contravenções Penais. Um primeiro
fato merece ser assinalado: abandona-se a lógica iniciada com a repressão aos
anarquistas na Primeira República e o advento da primeira LSN durante a Era
Vargas, que regulavam os crimes contra a ordem política e social em legislação

10 NUNES, Diego; SONTAG, Ricardo. The Restless National Security Acts: the absence of crimes against national secu-
rity in the 1940 Brazilian Penal Code. In: SKINNER, Stephen (Org.). Ideology and Criminal Law: Fascist, National
Socialist and Authoritarian Regimes. 1ed.Oxford: Hart Publishing, 2019, v. 1, p. 321-344. Disponível em: https://
www.academia.edu/39906711/The_Restless_National_Security_Acts_The_Absence_of_Crimes_Against_Nation-
al_Security_in_the_1940_Brazilian_Penal_Code. Acesso em: 17 set. 2020.
11 Por exemplo, OLIVEIRA, Claudio Ladeira de; NUNES, Diego. Em defesa da liberdade de expressão, a Lei de Segu-
rança Nacional pode ser aplicada. Juscatarina: Florianópolis, 03 ago. 2020. Disponível em: https://www.juscatarina.
com.br/2020/08/03/em-defesa-da-liberdade-de-expressao-a-lei-de-seguranca-nacional-pode-ser-aplicada-por-clau-
dio-ladeira-de-oliveira-diego-nunes/. Acesso em: 17 set. 2020.
12 NUNES, Diego. A aplicação da Lei de Segurança Nacional às manifestações antidemocracia. JOTA: São Paulo, 04
mai. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-
-aplicacao-da-lei-de-seguranca-nacional-as-manifestacoes-antidemocracia-04052020. Acesso em: 17 set. 2020.
13 Esta parte do trabalho é fruto da atualização de texto já publicado em: NUNES, Diego. O fim da Lei de Segurança
Nacional? Juscatarina: Florianópolis, 13 set. 2021. Disponível em: https://www.juscatarina.com.br/2021/09/13/o-
-fim-da-lei-de-seguranca-nacional-por-diego-nunes/. Acesso em: 17 set. 2021.
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extravagante. Tal fato, como se sabe, perdurou até a última dessas leis, em 1983,
inclusive com o advento da lei antiterrorismo em 2016.
Passam a ser considerados crimes contra o Estado Democrático de Direito
condutas que atentem contra a soberania nacional, as instituições democráticas
e os serviços essenciais, além de criminalizar condutas contrárias ao correto fun-
cionamento das instituições democráticas durante o processo eleitoral e apresenta
disposições gerais. Enfim, determinadas condutas contra a honra e a paz pública
inseridas nestas seções da codificação.
A sanção, porém, contou com quatro importantes vetos presidenciais, ain-
da passíveis de reversão pelo parlamento. Ao longo do tempo entre a aprovação
parlamentar e a publicação, foram veiculadas várias hipóteses, especialmente no
último dia de prazo. Primeiro, que a nova lei seria aprovada, mas a LSN seria
mantida. Imagine-se a confusão da convivência entre os textos antigo e novo e
a discussão sobre a prevalência de lei penal mais benéfica sobre uma dezena de
tipos penais. Depois, que a nova lei seria integralmente vetada, e apenas a LSN
mantida. Em seguida, que nada seria vetado; para, ao fim, prevalecerem vetos
parciais.
O primeiro veto foi sobre o tipo penal de comunicação enganosa em massa
(Art. 359-O). Apesar de, assim como o Art. 359-N, tratar-se de crime estrita-
mente eleitoral (e, portanto, deveria estar no novo código desta matéria, tam-
bém em pauta no Congresso Nacional, e não nesta lei), não há de se dar razão
ao veto, motivado pelo temor do estabelecimento de um “tribunal da verdade”,
como exposto na mensagem presidencial. O crime busca impedir a promoção
ou o financiamento da disseminação de notórias fake news com tamanho volume
que fosse capaz de ameaçar a confiança no atual modelo de eleições. Do mesmo
modo, não há que se concordar com o raciocínio de que o crime pudesse afugen-
tar o eleitorado do debate político, pois a incriminação não é sobre a discussão
ideológica, mas relativa às regras do jogo democrático, que a precede e é regulado
por um órgão do poder judiciário, o TSE, justamente por tais razões. Sobre as
dúvidas quanto ao momento consumativo do delito, e a possibilidade de verifi-
cá-lo nas modalidades continuada e permanente, também parece não ter guarida
o arrazoado ministerial, haja vista que a modalidade de financiamento é instan-
tânea, verificados os demais requisitos do tipo, que possui fim especial de agir; a
promoção não é do simples compartilhamento, mas a realização de “campanha
ou iniciativa”, que pressupõem atos complexos, como arregimentação de pessoas
76 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

ou mesmo de empresas ou robôs para a execução de empreitada capaz de ofender


o bem jurídico14.
O segundo veto diz respeito à possibilidade de ação penal subsidiária de
partido público em face da inação do Ministério Público (Art. 359-Q). A men-
sagem de veto confunde a hipótese legal ao justificar a rejeição do dispositivo
alegando possível desrespeito à decisão da acusação penal pública com a inação
do órgão responsável. Fica claro pela hipótese que se faz necessária a verificação
de desídia do membro do parquet quando não der o andamento a ele obrigado
por lei: ou a denúncia, ou o arquivamento, cujos prazos são estabelecidos pela
legislação processual. Dado o vigor da instituição, a hipótese poderia até parecer
desnecessária; mas, justamente por isso, parece salutar haver possibilidade de re-
médio diante da inação de quem possua a atribuição para tanto e não respeite o
disposto em lei15.
O terceiro veto diz respeito aos tipos penais de atentado contra direito de
manifestação (Art. 359-S) e suas formas qualificadas pelo resultado de violência
grave ou morte como delito contra a cidadania. A justificativa para o veto cen-
tra-se na possível dificuldade de as forças de segurança pública agirem diante de
manifestações violentas. Ora, não se trata de crime próprio, que mire apenas
policiais; pensa-se, inclusive, no entrechoque de grupos que busquem impedir
outros, de direcionamento político diverso, de pacificamente realizarem discursos
constitucionalmente permitidos. O veto atinge o coração da lei, que é a defesa do
direito de livre expressão sem excessos em manifestação, basicamente regulando
o direito de reunião e liberdade de pensamento previstos como direitos funda-
mentais na constituição. O dever das polícias, em manifestações, é duplo: de um
lado, utilizar de inteligência para prever possíveis desdobramentos violentos; de
outro, proteger os manifestantes que estão a exercer os direitos mais caros a uma
democracia liberal16.
O quarto e último veto diz respeito à previsão de causas de aumento de
pena e efeitos da condenação (Art. 359-S)17. O dispositivo contava com três hi-
póteses: se os crimes cometidos com violência se valessem do uso de arma de
fogo (Art. 359-S, I); se cometidos por funcionários públicos (Art. 359-S, II); e se

14 Para mais, ver: TANGERINO, Davi. Comunicação enganosa em massa. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o
Estado Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
15 Para mais, ver: BARBOSA, Mario Davi. Ação penal privada subsidiária. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o
Estado Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
16 Para mais, ver: ABRAHAM, Ricardo. Atentado a direito de manifestação. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o
Estado Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
17 Para mais, ver: LUCCHESI, Guilherme Brenner. Aumento de pena. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o Estado
Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
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cometidos por militares (Art. 359-S, III). Nestes dois últimos casos, ainda seria
imposta a perda da posição. Creio valha comentário específico sobre cada uma
das questões.
Na primeira hipótese de aumento de pena, o veto carece de justificativa.
Não há qualquer menção sobre qual razão de interesse público se impõe para a
recusa em aumentar as penas quando da utilização de arma de fogo. Imagina-se
que, preocupada com a argumentação sobre os outros incisos, acabou que se
esqueceram desta; ou, ainda, que simplesmente tenha se adotado a fórmula mais
simples de eliminar todo o artigo. Nenhuma dessas circunstâncias, porém, po-
dem servir de justificação para o poder executivo interferir em decisão soberana
do parlamento. Além de efetivamente ser causa de maior reprovabilidade, in-
clusive de previsão comum em outros delitos do ordenamento jurídico, merecia
maior atenção em sua análise.
Na segunda hipótese também parece ter andado mal a justificação do veto.
Argumentou-se que o aumento de pena e a perda de cargo ou função pública
imporia responsabilização penal objetiva aos agentes públicos. O fato de a nova
lei trazer os crimes contra o estado democrático para o código penal teve a van-
tagem de retirar dúvidas sobre a lógica de sistema. No caso do aumento de pena,
vários crimes ao longo do código impõem maior reprovação a pessoas que, por
sua condição pessoal ou profissional, são sujeitos a maior reprovação. A lógica da
lei foi: os que trabalham para o efetivo funcionamento das instituições democrá-
ticas teriam uma responsabilidade a mais na defesa dessas instituições do que o
cidadão comum. A disposição valeria igualmente para servidores civis de carreira,
comissionados ou agentes políticos, inclusive eleitos, nos termos do art. 327 do
código penal. Do mesmo modo que a disciplina sobre os efeitos da condenação:
a disciplina deles em geral (como a perda de cargo, com hipóteses no art. 92, I)
exige fundamentação em sentença pelo juiz para sua imposição (art. 92, Par. Úni-
co). Portanto, nunca seria aplicada de modo automático. Além do mais, outras
leis trazem dispositivo semelhante, como o crime de tortura.
A terceira hipótese, em linha semelhante, parece não ter sido a melhor
solução. Aqui, porém, a fundamentação tratou da desproporcionalidade entre
o aumento previsto aos funcionários civis (um terço) e aquele para os militares
(metade da pena). A diferenciação parece levar em conta o fato de os militares
estarem sujeitos à hierarquia e disciplina, sendo o cometimento de crime a mais
grave falta a estas diretrizes. O civil, ainda que também tenha um especial dever
de abstenção quanto ao cometimento de tais fatos, não possui o mesmo tipo de
vínculo com o Estado, especialmente com o desenho de Administração Pública
e modelo de serviço público trazidos pela constituição. A discussão sobre o efei-
78 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

to da condenação merece maior atenção. Como levantado pelo veto, a própria


constituição estabelece como a questão deve ser tratada. No caso de praças, o
próprio tribunal que julga a causa decide acerca da perda de patente (art. 125, §
4º). No caso de oficiais, a regra (art. 142, VI e VII) se aplica do seguinte modo:
exige-se a condenação por pena maior de dois anos em tribunal comum; neste
caso, deve-se acionar o tribunal militar para julgar especificamente este aspecto.
Certo que nesse caso se exige a pena mínima de dois anos, mas vale lembrar que
a única hipótese da nova lei que feriria o quantum constitucional seria a hipótese
do auxílio à espionagem mediante entrega de senha ou acesso a sistema de infor-
mação (Art. 359-K, § 3º), que possui mínimo legal inferior.
A Lei nº 14.197/2021, mesmo com as limitações acima listadas, é um pas-
so avante diante dos desafios deste momento histórico. Claro, sempre se poderá
avançar em matéria de salvaguarda das instituições democráticas. No caso dos
vetos, todas essas questões, como se pode imaginar, serão fruto de intenso debate
quando forem analisadas pelo Congresso Nacional, que deverá meditar profun-
damente as consequências de sua manutenção ou derrubada.

3. Sucessão de leis penais no tempo: os novos crimes contra o


Estado Democrático de Direito frente aos tipos penais da Lei
de Segurança Nacional
A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021 trata, evidentemente, de uma
nova fase da relação entre direito penal e política, com o objetivo de substituir
e dar nova disciplina à matéria da vetusta lei de segurança nacional, que a nossa
Constituição designou como crimes políticos, conforme se detalhará adiante.
Resta avaliar, com relação à sucessão de leis no tempo, os casos de nova lei in-
criminadora, novatio legis in pejus ou in mellius, abolitio criminis e continuidade
normativo-típica. Após isso, poderemos olhar o conteúdo da denúncia de casos
célebres dos últimos anos, como os do deputado federal Daniel Silveira18 e do
presidente do Partido Trabalhista Brasileiro, Roberto Jefferson19.

18 PR; CR; CF. Por unanimidade, Plenário mantém prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ).
Supremo Tribunal Federal: Brasília, 17 fev. 2021, in https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idCon-
teudo=460657&ori=1; PIOVESAN, Eduardo; SIQUEIRA, Caro; TRIBOLI, Pierre. Câmara decide manter prisão do
deputado Daniel Silveira: Foram 364 votos a favor e 130 votos contra. Agência Câmara de Notícias: Brasília, 19 fev.
2021, https://www.camara.leg.br/noticias/729294-camara-decide-manter-prisao-do-deputado-daniel-silveira/. Acesso
em: 17 set. 2021.
19 CALEGARI, Luiza; GOES, Severino. Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, é preso por ordem do ministro Ale-
xandre, do STF. Revista Consultor Jurídico: São Paulo, 13 ago. 2021, https://www.conjur.com.br/2021-ago-13/
alexandre-manda-prender-roberto-jefferson-aliado-bolsonaro. Acesso em: 17 set. 2021.
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A nova lei, que passou a integrar o Código Penal 90 dias após sua publica-
ção, comparada com o antigo texto legal que regulava a matéria, nos faz verificar
o seguinte quadro sucessório:
1. O Art. 8º da LSN passa a ter seu conteúdo regido pelo Art. 359-I do
CP, o crime de “atentado à soberania”;
2. O Art. 11, pelo Art. 359-J, o “atentado à integridade nacional”;
3. Os Art. 13 e 14, pelo Art. 359-K, a “espionagem”;
4. O Art. 15, pelo Art. 359-R, a “sabotagem”;
5. O Art. 17, parte pelo Art. 359-M, o “golpe de Estado”, no que se refere
à ordem e ao regime, e o Art. 359-L, a “abolição violenta do Estado
Democrático de Direito”, no tocante ao estado de direito;
6. O Art. 18, pelo Art. 359-L, a “abolição violenta do Estado Democrá-
tico de Direito”;
7. O Art. 23, II, pelo Art. 286, Parágrafo único; e
8. O Art. 26, pelo Art. 138 e 139 c/c 141, I e II.
Nesse quadro geral, a grande maioria dos delitos teve sua pena reduzida,
seja no tempo mínimo como no tempo máximo. Algumas penas mantiveram-se
iguais em grau mínimo, mas reduzidas no tempo máximo. Apenas dois crimes
passaram a ter penas mais severas com a nova lei: a forma qualificada de espio-
nagem, pela violação de documento secreto (art. 359-K, § 2º), que aumentou
o tempo mínimo; e a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art.
359-L), que além de aumentar o quantum mínimo e máximo, impõe o concurso
material pelos resultados violentos.
Os demais dispositivos da LSN, entre tipos penais, regras gerais e dispo-
sições processuais, restarão revogados. Importante lembrar que a lei inovou em
dois tipos penais:
1. A “interrupção do processo eleitoral”, Art. 359-N; e
2. A “violência política”, Art. 359-P.
Há, enfim, a cláusula de salvaguarda do Art. 359-T que impede a crimina-
lização da livre manifestação de pensamento individual ou coletiva. Desconside-
ramos a análise dos vetos citados no item anterior.
Assim, portanto, podemos passar a verificar as denúncias de dois casos
recentes de grande repercussão sobre o tema para exemplificar de que modo os
crimes políticos passarão a ser punidos: como ficarão casos como os de Daniel
80 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

Silveira e Roberto Jefferson à luz das alterações da Lei nº 14.197/2021 no Código


Penal, que revogou a Lei de Segurança Nacional?
Daniel Silveira foi denunciado em 17 de fevereiro no âmbito do Inquérito
4.288, do STF, sobre a organização de atos antidemocráticos. A denúncia, agora
parte da Ação Penal 1.044, também do STF, assinada pelo vice-procurador-geral
da República, Humberto Jacques de Medeiros, acusou o deputado de incorrer no
art. 344 do CP (três vezes) e no artigo 23, II (uma vez) e IV (duas vezes) da LSN,
sendo este último combinado com o art. 18 da mesma lei.
Já Roberto Jefferson foi denunciado em 25 de agosto a partir da Petição
9.844, também do STF, sobre a atuação do mesmo em vários meios de comuni-
cação e redes sociais. De acordo com a denúncia, aceita pelo STF e enviada para
a primeira instância da Justiça Federal, assinada pela vice-procuradora-geral da
República, Lindôra Maria Araujo, o presidente do PTB incorreu no art. 23, IV
combinado com o art. 18 (três vezes), além do art. 26 (uma vez), todos da LSN;
no art. 286, combinado com 163, Parágrafo único, incisos II e III (uma vez),
todos do CP; e, enfim, no art. 20, §2º (duas vezes) da Lei 7.716/1989.
Portanto, cumpre-nos aqui analisar, mais detidamente, os artigos 23 e 26
da LSN que, respectivamente, possuíam modalidades específicas de incitação ao
crime e de calúnia e difamação, e sua comparação com as inovações da Lei nº
14.197/2021.
No primeiro caso, o art. 23, na hipótese do inciso II, punia “Incitar: [...]
à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as
instituições civis” com pena de reclusão, de 1 a 4 anos. O tipo foi incorporado ao
Parágrafo único do art. 286, dizendo que “incorre na mesma pena [de “incitar,
publicamente, a prática de crime”] quem incita, publicamente, animosidade en-
tre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições
civis ou a sociedade”, e punindo com detenção de três a seis meses ou multa20.
Portanto, uma sensível diminuição de pena. Trata-se, portanto de “nova” lei – na
verdade, equiparação à norma pré-existente – mais benéfica, sendo imperativa a
sua aplicação em detrimento da antiga previsão da LSN.
Na outra hipótese aventada para o art. 23, a do inciso IV, há de se olhar
com maior atenção. O tipo previa “Incitar [...] à prática de qualquer dos crimes
previstos nesta Lei” com a mesma pena anteriormente descrita ao inciso II. Trata-
va-se de norma penal em branco homogênea, pois faz referência à própria LSN.

20 Para mais, ver: CARDOSO, Rafhaella. Incitação ao crime. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o Estado Demo-
crático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
DIEGO NUNES | 81

Em ambos os exemplos fáticos aqui trazidos, a norma em questão era o art. 18


da LSN, que dispunha como crime “Tentar impedir, com emprego de violência
ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Es-
tados”.
À primeira vista, poderia parecer caso de abolitio criminis. Porém, aten-
temo-nos ao fato de que art. 286, Parágrafo único, diferente da redação do art.
23 da LSN passou também a punir “quem incita, publicamente, animosidade
[das...] Forças Armadas [...] contra os poderes constitucionais”. Não seria jus-
tamente esta a hipótese fática que diz respeito a incentivar o exército a fechar o
STF ou impedir a realização das sessões da CPI da COVID-19 no Senado? E
mais: tendo em vista a sucessão do Art. 18 da LSN pelo Art. 359-L do CP, não
continuaria a haver a incitação à prática de um crime?
Claro que há a necessidade de se analisar discurso por discurso dos acu-
sados, inclusive porque ambos foram denunciados pelo concurso desses crimes.
Porém, em tese não resta dúvida que esta hipótese específica se trata de conti-
nuidade normativo-típica. Claro, da mesma forma que na primeira hipótese, a
“nova” punição também será consideravelmente mais branda.
No segundo caso, o art. 26 da LSN punia “caluniar ou difamar o Presidente
da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supre-
mo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo
à reputação” com pena de reclusão entre 1 e 4 anos, além de igualmente punir
“conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga”. A supressão
deste tipo penal sem substituto impõe a desclassificação da norma especial para a
geral, passando a incorrer os acusados na forma comum previstas no código penal
de calúnia (art. 138) e difamação (art. 139), com as causas especiais de aumento
previstas contra o presidente da república e os presidentes da Câmara, Senado e
Supremo (art. 141, I e II)21.
Dois pontos, porém, devem ser levados em conta. O primeiro diz respeito
à propagação da ofensa à honra dos dignitários ofendidos. A previsão do Parágra-
fo único do art. 26 da LSN repete-se no código penal apenas para a calúnia. Isso
significa que a disseminação da difamação, nestes casos, deixou de ser fato típico.
Assim, neste particular, vislumbrar-se-ia a abolitio criminis, o que não parece ser
o caso dos acusados, pelo teor das denúncias.

21 Para mais, ver: PAULO, Alexandre Ribas de; SILVA, Valine Castaldelli. Crimes contra a honra. NUNES, Diego (org.).
Crimes contra o Estado Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido,
2022.
82 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

O segundo ponto diz respeito à natureza da ação penal. Todos os crimes


da LSN eram de ação pública, segundo o disposto no revogado art. 30, Pará-
grafo único. Desta feita, o regime das ações penais dos chefes de poder passou a
ser regulado pelo art. 145 do CP, que prevê a requisição do Ministro da Justiça,
no caso do chefe do executivo, e representação do ofendido, no caso dos chefes
das casas legislativas e da cúpula do judiciário. Por se tratar de regra diminui-
dora do ius puniendi estatal, neste caso haveria no mínimo a necessidade de
ratificação para a posterior realização da emendatio libelli, a qual não há dispo-
sição legal que a regule, até por se tratar de caso anômalo. Porém, tenhamos
em vista a hipótese oposta, a de retratação da representação, regulada pelo art.
102, CP e art. 25, CPP. Como o limite de sua realização, desde que obedecido
o prazo decadencial de seis meses, é a proposição da denúncia, está-se diante de
hipótese de necessário trancamento da ação penal. Dada a natureza de norma
material que a natureza desta possui, não há que se falar na ultratividade lei
processual do tempo do fato. Portanto, a partir da entrada em vigor da nova
norma, deve-se abrir o prazo para os ofendidos realizarem a representação ao
Ministério Público, ou mesmo ingressarem com queixa, se assim preferirem, de
acordo com a Súmula 714 do STF.
Portanto, no que concerne aos crimes anteriormente tratados pela LSN,
temos dois cenários nos casos em discussão:
1. Na incitação ao crime, as denúncias se sustentam, mas se deverá aplicar
a lei nova com pena mais branda; e
2. Na calúnia e na difamação, as denúncias não se sustentam pela mu-
dança da natureza da ação penal, exigindo-se a representação dos ofen-
didos para o reinício dessas acusações, cuja lei incriminadora subsis-
tente também é mais branda.
Conforme já decidido no caso Daniel Silveira, o STF concordou com ape-
nas a primeira de nossas teses, entendendo que no segundo caso a ação deveria
prosseguir igualmente. Tendo em vista a concessão de graça, é possível que a
decisão possa ser revista no caso Roberto Jefferson.
Enfim, a casuística apresentada em conjunto com a exposição comparada
da antiga disciplina dos crimes contra a segurança nacional para o novo regime
dos crimes contra o Estado Democrático de Direito aponta para a opção legis-
lativa por um direito penal mínimo, de cunho subsidiário, pronto para agir em
último caso e dentro de parâmetros de racionalidade punitiva capazes de enfren-
tar com serenidade os desafios da polarização política de nosso tempo. Neste
sentido, a nova lei, com a remodelação do código penal, é bem-vinda, ainda que
DIEGO NUNES | 83

o posicionamento jurisprudencial seja um desafio a ser enfrentado pela doutrina


e advocacia.

4. Os “crimes contra o estado democrático de direito”


são crimes políticos? Natureza jurídica e competência para
julgamento dos delitos da Lei nº 14.197/2021
Os “crimes políticos”, assim nomeados pela doutrina e pela Constituição,
se entendidos como os do novo Título XII na Código Penal, que inseriu os “cri-
mes contra o Estado Democrático de Direito”, retornam ao código penal e pas-
sam a seguir integralmente as diretrizes da parte geral da codificação.
Há quem pleiteie22 que os delitos criados pela Lei nº 14.197/2021, que
revogou integralmente a Lei de Segurança Nacional, não seriam crimes políticos.
A ideia-base é que uma democracia não comportaria crimes políticos, mas apenas
regimes autoritários os regulariam. Tal interpretação carece de fundamento: os
autores entendem que as benesses destinadas a esta categoria de delitos, como
a desobrigação ao trabalho (art. 200, LEP), a não verificação de reincidência
(art. 64, II) e a proibição de extradição (art. 5º, LII) somente seriam meritórias
a agentes que lutassem contra regimes que não possuíssem uma constituição de-
mocrática e respeitassem os direitos humanos. Ora, como esperar tais (e outras,
não listadas) benesses fossem concedidas e mesmo cumpridas por ditaduras?
Se pegarmos os exemplos do Estado Novo e da Ditadura Civil-Militar,
veremos que é justamente disso que se trata. Contrariando a tradição liberal, que
com todas as suas contradições desde o século XIX garantia tais direitos23, esses
regimes limitavam as possibilidades da fruição de sursis e liberdade condicional24,
por exemplo; isso sem falar da aplicação enviesada de princípios e normas gerais
de direito penal25.

22 CUNHA, Rogério Sanches: ARAÚJO, Fábio Roque; COSTA, Klaus Negri. Crimes federais. 6 ed. atual. e ampl.
Salvador: JusPodivm, 2022, p. 43ss.
23 NUNES, Diego. Extradition and Political Crimes in the ‘International Fight against Crime’: Western Europe and
Latin America, 1833-1933. HÄRTER; Karl; HANNAPPEL, Tina; TYRICHTER, Jean Conrad. (Org.). The Trans-
nationalisation of Criminal Law in the Nineteenth and Twentieth Century: Political Crime, Police Cooperation,
Security Regimes and Normative Orders. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2019, p. 41-64.
24 NUNES, Diego. “Excluido, no caso, qualquer intuito de regeneração, por não se tratar de réu degenerado”: a interpre-
tação do sursis e da liberdade condicional aos criminosos políticos pelo Tribunal de Segurança Nacional (1935-1945).
Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 25, v. 131, maio, 2017, p. 117-143. Disponível em: https://www.
academia.edu/37995656/_Excluido_no_caso_qualquer_intuito_de_regeneração_por_não_se_tratar_de_réu_dege-
nerado_a_interpretação_do_sursis_e_da_liberdade_condicional_aos_criminosos_pol%C3%ADticos_pelo_Tribu-
nal_de_Segurança_Nacional_1935_1945_. Acesso em: 17 set. 2021.
25 NUNES, Diego. Legislação penal e repressão política no Estado Novo: uma análise a partir de julgamentos do Tribu-
nal de Segurança Nacional (1936-1945). Acervo: Revista do Arquivo Nacional, v. 30, p. 126-143, 2017. Disponível
em: http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/837. Acesso em: 17 set. 2021.
84 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

A categoria “crime político”, pensada para a sociedade de cavalheiros pós-


-iluminista foi nitidamente pensada para beneficiar o infrator, tendo em vista a
intenção política altruísta. A ideia é que a criminalização da oposição atendesse
a determinados limites. No caso hodierno, a norma tutela o atual Estado Demo-
crático de Direito, e não aqueles que almejam o seu rompimento. A ideia domi-
nante de se ter uma legislação penal sobre o tema é a necessidade de exercício do
ius puniendi e diminuição de direitos e garantias constitucionalmente assegura-
dos às pessoas. A se aceitar que, de um lado, a categorização como crime político
é um benefício ao acusado e, de outro cogitar que a nova lei tenha o objetivo de
tutelar o Estado, chegar-se-ia ao errôneo resultado de que não há crime político
em regimes democráticos como no Brasil e, como consequência, reconhecer-se-ia
como inúteis as regras constitucionais que tratam especificamente de benefícios
ao indivíduo no âmbito criminal.
Passemos, então, a analisar cada uma das benesses concedidas a processa-
dos e condenados por crimes políticos para compreender o seu significado e a sua
extensão. O primeiro diz respeito à execução da pena. Aos condenados por crime
político tradicionalmente é regalada a dita “custódia honesta”, que basicamente
significaria a ausência de regime penitenciário. É herança da tradição liberal que
via o criminoso político como um altruísta, que sacrificava a própria liberdade
em nome da luta pelas liberdades do povo. O 200 da LEP é mais econômico,
apenas desobrigando os condenados por tais crimes de trabalharem, restando
hígido o cumprimento das demais obrigações.
Outro efeito importante com referência ao caráter político destas infra-
ções diz respeito à reincidência, ou seja, a capacidade de que uma condenação
anterior por esta categoria de delitos faça parte da vida pregressa do agente com
consequências penais. Assim como os crimes militares próprios, entende-se que o
crime político é fruto de circunstância específica, ou seja, da tomada de posicio-
namento em determinada situação paradigmática (guerra ou crise). Por isso o art.
64, II do CP proporciona o apagamento imediato, pois o objetivo da incrimi-
nação dessas condutas é a neutralização do sujeito, e não a sua emenda. Casa-se,
portanto, com o dito acima acerca do regime penitenciário.
Por fim, existe uma consequência com relação àqueles perseguidos ou
condenados criminalmente por crimes políticos no Brasil e que se abrigam no
exterior26. O conceito por detrás disso é que um criminoso contra quem esteja

26 NUNES, Diego. Espulsione ed estradizione come mezzi di rafforzamento del penale in Brasile dall’Impero alla Re-
pubblica. Italian Review of Legal History: Milão, v. 5, 2020, p. 526-557, Disponível em: https://www.academia.
edu/42644658/Espulsione_ed_estradizione_come_mezzi_di_rafforzamento_del_penale_in_Brasile_dall_Impero_
alla_Repubblica. Acesso em: 17 set. 2021.
DIEGO NUNES | 85

atualmente no poder aqui no Brasil deixaria de ser uma ameaça no estrangeiro,


de onde não poderia tramar ou agir diretamente contra as instituições políticas
nacionais. Vê-se, mais uma vez, que aqui se está diante da ideia de que o crimi-
noso político não se enquadra nas categorias comuns das finalidades da pena de
prisão, estabelecidas pelas ciências criminais a partir do Iluminismo. Ao contrá-
rio, é uma espécie de “anjo caído” que merece a piedade, muito porque se estaria
diante de um “igual” em uma sociedade – na verdade, desigual – liberal.
O caso do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, foragido nos Estados
Unidos, coloca em xeque a teoria liberal sobre a extradição de criminosos cons-
truída ao longo do fim do século XIX e início do XX. O caso é de aplicação da
cláusula suíça ou de preponderância27: no concurso de crimes comuns (p. ex.,
organização criminosa) e políticos (p. ex., incitação às forças armadas), o motivo
principal é político e, portanto, será vedada a extradição. Isso se dá pelos tratados
internacionais (como entre Brasil e Estados Unidos), pela nossa constituição (art.
5º, LII) ou pela simples reciprocidade.
A ideia base de tal proibição, como já visto, é que um perseguido político
não seria capaz de fazer mal no exterior, longe de sua pátria e seus companhei-
ros. No entanto, isso já era controverso no século XIX, quando os anarquistas
foram capazes de criar redes internacionais de solidariedade, a ponto de ter sido
cunhada a categoria dos “crimes sociais” para extraditá-los, porque contrariariam
não um regime, mas a organização do Estado28. Com a internet, de fato, isso se
relativiza, pois o poder de ação não muda, ou mesmo se potencializa, desde que
o agente mantenha sua audiência fiel.
Todavia, não esqueçamos que o processo é uma forma de garantia ao acu-
sado, e a extradição deve, portanto, obedecer a tal princípio presente em nosso
direito. Um exemplo histórico de como não se deve suplantar garantias em nome
de convicções pessoais é o do advogado Sobral Pinto29: católico conservador,
defendeu comunistas célebres como Luís Carlos Prestes. O direito penal como
arma do estado deve obedecer aos limites jurídicos. Cabe à nossa democracia se

27 NUNES, Diego. ‘Exceções à exceção’. DAL RI JR., Arno (org.). Pensamento jurídico e dimensão internacional:
Experiências históricas e itinerários conceituais entre os séculos XIX e XX, 2011, Florianópolis. Anais Encontro de
História do Direito da UFSC. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. Disponível em: https://iuscommune.paginas.
ufsc.br/anais-de-evento/. Acesso em: 17 set. 2021.
28 DAL RI JR., Arno (org.). Soberania, terrorismo, extradição: Itinerários e construções históricos sob a perspectiva de
uma visão multidisciplinar, 2012, Florianópolis. Anais Encontro de História do Direito da UFSC. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2012. Disponível em: https://iuscommune.paginas.ufsc.br/anais-de-evento/. Acesso em: 17 set.
2021.
29 SOBRAL PINTO, Heráclito Fontoura. Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte: Comunicação, 1979;
DULLES, John W. F. Sobral Pinto: a consciência do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
86 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

defender da delinquência política com os instrumentos estabelecidos, sem per-


verter sua natureza.
Enfim, pensando que tais benefícios penais ora discutidos são hauridos
diretamente da Constituição e das normas que a regulam, não pode uma norma
infraconstitucional obstar a sua observação no devido processo legal, sob pena de
tornar o próprio texto constitucional uma utopia.
Por tudo isso, é relevante a discussão sobre a natureza jurídica de alguns
desses delitos. Seriam também os crimes contra o funcionamento das instituições
democráticas no processo eleitoral (Capítulo III do novo título), além da nova
redação dos artigos 141, II e 286, Par. Único, crimes políticos? Para além de uma
definição doutrinária de crime político ou “contra a ordem política e social”,
são para a Constituição um fator para atribuição de competência. No campo
processual penal, os constituintes atribuíram à Polícia Federal “apurar infrações
penais contra a ordem política e social” (art. 144, § 1º, I), à Justiça Federal de
primeira instância “processar e julgar [...] os crimes políticos” (art. 109, IV) e ao
Supremo Tribunal Federal “julgar, em recurso ordinário [...] o crime político”
(art. 102, II, b)30.
Um critério meramente topográfico faria com que chegássemos à conclu-
são de que todos os crimes constantes no Título XII seriam políticos e, portanto,
de atribuição federal e com o duplo grau de jurisdição diferenciado. Essa não
parece, porém, a melhor solução.
Em primeiro lugar, porque o Capítulo III se refere expressamente ao pro-
cesso eleitoral. Nesse sentido, os crimes de interrupção do processo eleitoral (Art.
359-N) – e comunicação enganosa em massa (Art. 359-O), a se derrubar o veto
– claramente se encaixa à questão e, portanto, é matéria da Justiça Eleitoral. No
caso do crime de violência política (Art. 359-P), poder-se-ia cindir a sua com-
petência com relação a quais direitos políticos estão em jogo: quando se tratar
de ser votado e votar (em eleições, plebiscitos ou referendos), continua a Justiça
Eleitoral a ser competente; nas hipóteses de lei de iniciativa popular e ação popu-
lar, parece que o caráter político não eleitoral se sobressai, salvo se for cometido
de forma conexa a outro crime eleitoral.
Em segundo lugar, entender que apenas os crimes previstos neste títu-
lo sejam julgados como políticos impediria inclusive a aplicação da cláusula de

30 O recurso ordinário criminal, previsto no art. 102, II, b, da Constituição Federal, como já decidido pelo Supremo
Tribunal Federal, “tem a natureza de apelação, da mesma forma como são elas julgadas pelos Tribunais de Justiça, pelos
Tribunais Regionais Federais [...]”. (RC no 1.468, Pleno, Relator para o acordão o Ministro Maurício Corrêa, DJ de
16/8/2000). Ou seja, não cabe apelação aos TRFs em caso de crime político.
DIEGO NUNES | 87

salvaguarda do art. 359-T31 à nova modalidade de incitação do art. 286, Par.


Único, que basicamente repete dispositivo da antiga LSN. De fato, a opção do
legislador em localizar este delito como forma equiparada de crime contra a paz
pública dificulta a sua utilização. Por outro lado, entender que justamente em
um crime que pode ser cometido pela modalidade discursiva, oral ou escrita, não
valha a especial proteção legal da liberdade de expressão seria um lapso de grande
monta, talvez o maior defeito de técnica legislativa da nova normativa. Na pior
das hipóteses, a especial proteção do discurso seria tutelada diretamente pela in-
terpretação das liberdades constitucionais, mas retiraria o julgamento deste delito
daquele que é, por seu conteúdo, o seu juiz natural constitucionalmente previsto.
As coisas parecem ter um rumo diverso se pensarmos no destino dos crimes
contra a honra. Trazer os chefes de poder ao art. 141, II – à exceção do presidente
da república, já previsto no art. 141, I – parece ter sido, à luz do uso abusivo do
art. 26, LSN/1983, uma tentativa de retirar o caráter político do fato, ainda que
ressalvando um especial respeito a tais figuras. Pela súmula 147 do STJ, a compe-
tência já é atribuída, quando a vítima for servidor público federal pelo exercício
de sua função, à Justiça Federal. Mas, a entender tais hipóteses ainda como crimes
políticos, mudaria o órgão recursal, dos tribunais regionais federais para o STF.
Tal lógica parece não prosperar se pensarmos que a natureza da ação penal (art.
145, Par. Único), apesar de pública, é condicionada à requisição do Ministro da
Justiça (de forma anacrônica, pois à época não existia Advocacia-Geral da União)
no caso do presidente da república, ou à representação do ofendido, no caso dos
demais funcionários públicos, inclusos os presidentes das casas legislativas e do
STF. Haveria sentido em restrições ao exercício da persecução penal em crimes
contra o Estado Democrático? Na LSN/1983, todos os crimes, incluso o art. 26,
eram de ação penal pública incondicionada, o que fazia sentido justamente pelo
bem jurídico envolvido, o que parece perder razão a partir de agora.
Diante de tudo isso, parece imperioso prevalecer interpretação que expan-
da ao máximo os crimes políticos, fazendo com que todos os delitos do título XII
do código (à exceção daqueles de natureza eleitoral) assim sejam considerados,
bem como em situações específicas de incitação às forças armadas e calúnia e di-
famação, por ser imperativo de uma ordem constitucional garantista.

5. Conclusão

31 Para mais, ver: CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. Isenção do crime. NUNES, Diego (org.). Crimes contra o Estado
Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlácido, 2022.
88 | VI. O FIM DA (LEI DE) SEGURANÇA NACIONAL? DESAFIOS NA APLICAÇÃO DOS NOVOS CRIMES CONTRA O ESTADO [...]

Certamente, a melhor saída para a Lei nº 7.170, de 1983 era uma refor-
ma ou a emanação de um novo texto. A Lei nº 14.197/2021, mesmo com as
limitações acima listadas, é um passo avante diante dos desafios deste momento
histórico. Enfim, com os crimes na codificação ganha-se com a lógica de sistema
e a isonomia de sua aplicação aos crimes comuns, ressalvadas as benesses consti-
tucionais e legais aos criminosos políticos, já descritas em detalhe. Claro, sempre
se poderá avançar em matéria de salvaguarda das instituições democráticas.
Diante do exposto, vê-se que os crimes contra o Estado Democrático de
Direito são um tema que comporta a análise de múltiplos aspectos, seja em abs-
trato como em concreto. Nos casos práticos que citei, busquei demonstrar que a
nova lei pode ser cabível, em continuidade normativo-típica, em casos flagrantes
de ações concretas contra a existência do Estado e da ordem constitucional vigen-
te. As manifestações contra as instituições dos poderes Judiciário e Legislativo,
sua incitação por vias digitais, bem como de um uso irregular das Forças Arma-
das, tudo mediante organização prévia, são atos que merecem reprovabilidade da
lei penal como forma de tutela do regime democrático.
É verdade que vários conceitos presentes na LSN e agora transpostos para
o Código Penal são de difícil determinação, podendo entrar em rota de colisão
com a proteção das instituições democráticas e das liberdades civis e políticas da
sociedade, se interpretados de forma antidemocrática. Ainda assim, o balanço
parece ser positivo, ao contrário do que aduzem alguns autores32. Uma série de
dispositivos, especialmente aqueles que dizem respeito à “segurança externa” do
Estado, como espionagem e desintegração do território continuam a merecer a
proteção justamente por atenderem à lógica do direito penal como ultima ratio.
Tais delitos, assim como os com os presentes na LSN sob a égide da Constituição
de 1988, somente devem ser aplicáveis de acordo com o princípio da subsidiarie-
dade. Os próprios limites impostos pelo código, dado o estabelecimento do bem
jurídico tutelado, exigem o fim especial de agir contra o ordenamento constitu-
cional e a lesividade ao Estado Democrático de Direito, funcionando como freios
contra arbitrariedades.
Quanto aos vetos à Lei nº 14.197/2021, entendo que não devam prospe-
rar, posto que a ausência deles, de forma indireta, fomenta a permanência latente
da doutrina de segurança nacional ou, ao menos, um protecionismo aos militares
das forças armadas e das polícias incompatível com o estado democrático de
direito.

32 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: artigos 213 a 361 do Código Penal. V. 3. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2022,
p. 941.
DIEGO NUNES | 89

No que tange à sucessão de leis penais no tempo, vê-se que os novos cri-
mes contra o Estado Democrático de Direito frente aos tipos penais da Lei de
Segurança Nacional foram um ganho. A tutela jurídico-penal oferecida pelos
acréscimos à codificação não se pautou nem por uma lógica de exceção, com
penas desproporcionais (ao contrário: como visto, em geral diminuíram), nem
por uma lógica de ocasião, tratando o tema de forma imediatista (o que em geral
parece correto, dada a diminuição de tipos penais).
E, afinal, concluímos que os “crimes contra o estado democrático de di-
reito” são crimes políticos, porque implicam na efetivação dos princípios cons-
titucionais e doutrinários de direito penal, que implicam numa postura favor
rei. Todas essas questões, tanto de natureza jurídica como de competência para
julgamento dos delitos da Lei nº 14.197/2021, como se pode imaginar, serão
fruto de intenso debate quando chegarem aos tribunais, que deverão meditar
profundamente, seja em conflitos positivos ou negativos de competência, bem
como na concessão de benefícios na aplicação e execução da pena, e ainda nos
processos de extradição.
Portanto, o advento da Lei nº 14.197/2021 se trata de debate fundamental
que deve ser construído com argumentos sólidos. Heleno Fragoso já profetizara
o avanço que a LSN/1983 representava contra os abusos do regime autoritário.
Este progresso foi apenas a primeira parte de uma longa jornada, que esperamos
nossa geração tenha resolvido com a nova regulação dos crimes contra o estado
democrático de direito: “Essa nova lei, no entanto, está longe de constituir uma
solução definitiva em nosso direito, no que tange aos crimes políticos […] Demos
agora, com a nova lei, um passo largo. Temos que prosseguir na caminhada”33.

33 FRAGOSO, Heleno Cláudio. A nova lei de segurança nacional. Revista de Direito Penal de Criminologia, Rio de
Janeiro, n. 35, jan.-jun, p. 60-69, 1983. Disponível em: http://www.fragoso. com.br/wp-content/uploads/2017/10/
20171002195930-nova_lei_seguranca _nacional.pdf. Acesso em: 17 set. 2020.

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