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Universidade Federal de Sergipe

Departamento de Letras Vernáculas


Laboratório para o Ensino de Língua Portuguesa
Prof.ª Dr.ª Maria Emília Barreto Barros
Aluno/a/e: __________________________________________________________________________________________________

Minha Língua
(SUASSUNA, Flávia: texto não publicado)

Não cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Fui à escola. Tudo que sou e
compreendo deve-se a esse acidente inescapável da civilização.
Meu gato e minha magnólia tomaram um susto tão grande, que não me lembro do tempo que
aprendi a ler. Só da cartilha, um livro estúpido.
Crianças não precisam aprender o óbvio, só adultos, e essa cartilha terminou por adiar um pouco o
meu amor por livros.
Ah! Ela tinha um tesouro escondido: quando ela terminava, tinha uma coleção de sílabas
descartáveis com as quais pude começar a escrever.
A minha avó morava no sertão e não via a uva. Pude, com as sílabas, formar minhas próprias
frases: minha avó não via nada, era uma barata tonta. Mas que avó...
Com esse tesouro fiz absurdos, inclusive alfabetizei minha irmã. Até hoje ela pesquisa aprendizado
e ensino de língua por minha culpa, tentando explicar para os alunos o avesso do que sofreu.
Passei pelo primário e não trago dele nenhuma lembrança do português, a não ser a classificação
morfológica das palavras.
Flávia: substantivo próprio, feminino, singular. Sou: verbo anômalo, da segunda conjugação,
primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Lembro-me bem mesmo da matemática, um bicho
horrível que seguiu me apavorando vida afora...
No ginásio, tudo piorou. As professoras eram freiras e não conseguiam ensinar o prazer. A aula de
religião era um horror. Deus, em vez de luz e compreensão, foi, nesse período, ira e vingança.
“Além, muito além, da serra”, era só um adjunto adverbial de lugar. “Que ainda azula no horizonte”,
uma oração subordinada adjetiva explicativa e “nasceu Iracema”, uma oração principal... “Iracema”, um
sujeito simples? “Azula”, um verbo intransitivo?
Eu lia um texto, sentindo o gosto de sua ritmação maviosa e Iracema era linda, de cabelos mais
lindos que a asa da graúna, como bafo de baunilha, porte de palmeira, pé grácil e sorriso doce como o favo
de uma abelha. Ela mergulhava no rio de aljôfar d’água e rorejava como uma mangaba...
Como ela seria um sujeito simples?
A freira classificava orações e eu mergulhava nas palavras exuberantes de Alencar e amei o verbo
“azular” e, apesar de ter cabelos castanhos, bafo de gente mesmo, porte de hipopótamo, pé chato e risada
de acintosa, quando mergulhava no chuveiro, o aljôfar d’água me rorejava toda e meu banho sabia a
mangaba.
Foi Alencar meu primeiro professor de português de verdade. Seus adjetivos não concordavam
com os substantivos, iluminavam-nos!
A partir daí, me tornei uma aluna mediana, pois tinha mais o que fazer e descobrir, os livros
começavam a me forjar: uma substância própria, feminina e singular, testemunha que eles me tornavam de
outras consciências se construindo sob meus olhos.
Entre as capas, havia pessoas que erravam, acertavam, refaziam, refaziam-se, amavam,
perdoavam, viviam, morriam, cresciam, nasciam, sonhavam e havia povos, nações, sociedades, culturas...
Foi assim que ganhei o que sou: uma trança de gente, uma professora de português, língua com
cujas estruturas coordenadas me construí adjetiva, adversativa, conclusiva e explicativa e com a qual me
desvencilhei das estruturas subordinativas e me sinto integrante, temporal, condicional, causal e com
finalidade, apesar de não conformativa e comparativa.
Sou Flávia Suassuna.”

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