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Contribuições da

geografia e da história
para uma pesquisa
climático-ambiental no
Nordeste do Brasil
UM POUCO DA HISTÓRIA DAS
CONDIÇÕES CLIMÁTICAS DO
TRÓPICO SEMIÁRIDO BRASILEIRO

Lucivânio Jatobá

Resumo
Este artigo analisa as causas prováveis da existência do semiárido no território
brasileiro. Retoma uma antiga tese defendida por dois geógrafos pernambucanos-
Gilberto Osório de Andrade e Rachel Caldas Lins- segundo a qual existe uma relação
estreita entre o anticiclone semi-fixo do Atlântico Sul, o deserto do Kalahari e da
Namíbia e o semiárido da Região Nordeste do Brasil. Aborda ainda as principais
características de uma massa de ar , denominada Tépida Kalahariana (TK), que seria
a principal causa da semiaridez observada no Brasil. Por último, examina a notável
expansão dos climas secos regionais sobre o território brasileiro durante o Último
Máximo Glacial.
Palavras-chave: deserto do Kalahari; história do clima; semiaridez; massa de
ar; Nordeste.
Abstract
This paper analyzes the probable causes of the existence of semi-arid
Brazilian territory. Reintroducing an old argument by two geographers Pernambuco,
Gilberto Osorio Caldas de Andrade and Rachel Lins, according to which there is a
close relationship between the anticyclone semi-permanent South Atlantic, and the
Kalahari Desert of Namibia and semiarid region of northeastern Brazil . Also discusses
the main features of an air mass, called Warm Kalahariana (TK) to be the main cause
of semiaridez observed in Brazil. Finally, it examines the remarkable expansion of the
regional dry climates over Brazilian territory during the Last Glacial Maximum.
Keywords: Kalahari Desert; climate history; semiaridity; air mass; Northeast.

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Introdução

Uma ampla área do território brasileiro, que excede 800.000 km²,


apresenta um notável bolsão de semiaridez, onde domina o clima BSh.
Trata-se de um espaço geográfico complexo, de natureza azonal, que
possui uma série de problemas ambientais e socioeconômicos, muitas
vezes, decorrentes das adversidades climáticas. Neste artigo, são discutidos
diversos aspectos relacionados às relações entre as condições de aridez
existentes no sudoeste do continente africano e a instalação do semiárido
no Nordeste brasileiro. Trata-se de um trabalho didático que mostra, de
forma resumida, alguns elementos necessários à compreensão da história
dos estudos climático-ambientais do país.
O semiárido brasileiro já vem sendo investigado, há muito tempo,
por naturalistas, geógrafos, climatólogos e meteorologistas. Busca-se
entender as razões da anomalia climática nordestina, e em especial das
secas que periodicamente assolam a região, a partir da influência isolada
de um ou outro fator estático ou dinâmico do clima. Um dos primeiros
trabalhos sobre essa questão foi apresentado por Orville Derby, no final
do século XIX. Na primeira metade do século XX, diversos autores
abordaram, mais amplamente, as secas, sem contudo discutirem os
complexos mecanismos climáticos envolvidos no problema. Ressaltam-
se os trabalhos de Freitas (1915)1, direcionados em especial às chuvas
de Quixeramobim, no Estado do Ceará, e de Delgado de Carvalho2,
responsável pela elaboração de um interessante Atlas Pluviométrico do
Nordeste do Brasil.

1 FREITAS, C. N. ‘‘Estação Meteorológica de Quixeramobim. Precipitação de 1909-1914’’. In:


Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, n°29, pp. 348-350, 1915
2 DELGADO DE CARVALHO, C.M. Atlas Pluviométrico do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro:
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, 1923.

XV. Um Pouco da História das Condições Climáticas do Trópico Semiárido Brasileiro


As causas das secas desencadeadas no trópico semiárido
nordestino começaram a ser melhor examinadas, sob a ótica da
Climatologia e da Meteorologia, a partir da década de 1920, por
Sampaio Ferraz 3 e por Serra4.
As relações entre os desertos da Namíbia e do Kalahari, no
sudoeste da África, foram pioneiramente identificadas e analisadas
por Andrade e Lins na década de 1960, mais especificamente com
a divulgação da clássica tese “Introdução à morfoclimatologia do
Nordeste do Brasil”,5 publicada na revista Arquivos, do antigo
Instituto de Ciências da Terra, da Universidade do Recife.
O modelo apresentado por Gilberto Osório de Andrade
e Rachel Caldas Lins será aqui retomado, mas com acréscimos
de informações, inclusive imagens de satélite, que não existiam
ainda como ferramentas de análise climatológica na época em que
o trabalho desses geógrafos pernambucanos foi concebido. As
imagens de satélite, nas diversas faixas de comprimento de ondas do
espectro eletromagnético, parecem confirmar a tese em apreço, que
é um marco na história dos estudos ambientais sobre o semiárido
brasileiro.
Além da projeção do ar do Kalahari sobre o território
nordestino, analisa-se aqui a expressiva expansão dos climas
secos que, a partir do bolsão permanente de semiaridez
nordestino, aconteceu por ocasião do Último Máximo Glacial, há
aproximadamente 18.000 anos. Essa diáspora dos climas secos
se consumou na maior parte do território brasileiro, conforme
3
SAMPAIO FERRAZ, J. Causas prováveis das secas do Nordeste brasileiro. Rio de
Janeiro:Ministério da Agricultura , diretoria de meteorologia, 1925. SAMPAIO FERRAZ, J. A
previsão das secas do Nordeste; ensaio pelo méthodo de correlações. Rio de Janeiro: Serviço de
Informações do Ministério da Agricultura, 1929.
4
SERRA, A. B. Meteorologia do Nordeste Brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE, 1945. SERRA, A.
B. ‘‘As Secas do Nordeste’’. In: A Lavoura, nº 58, p. 4-5, mar/abr/ 1954. SERRA, A. B. Tabelas
de percentagens para previsão de secas nordestinas. Rio de Janeiro: Departamento Nacional de
Meteorologia, 1973.
5
ANDRADE, Gilberto Osório de; LINS, Rachel Caldas. “Introdução à morfoclimatologia do
Nordeste do Brasil”. In: Arquivos do ICT, Recife, n. 3-4, pp. 17-28, fev./jun. 1965.

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demonstram os indicadores sedimentológicos, geomorfológicos,
paleontológicos e até arqueológicos, com notáveis repercussões na
fitogeografia e na geomorfologia do país.

1. A projeção do deserto do Kalahari


no território nordestino brasileiro

Se fossem levados em consideração a localização astronômica


e outros fatores estáticos do clima, a Região Nordeste do Brasil reuniria
quase todas as condições objetivas para que em seu território reinasse,
de forma absoluta, um tipo climático que em muito se assemelharia
ao que é observado na Amazônia brasileira: um clima quente e
generalizadamente úmido, com pequena estação seca. Colaborariam
para essa configuração climática: o relevo medíocre – as maiores
altitudes pouco excedem a cota de 1100m –, a presença de uma
massa oceânica que, nas proximidades do continente brasileiro, se
mostra quente e a ausência dos efeitos marcantes de continentalidade,
frequentes em outras partes do mundo e definidores de desertos. Mas,
o que se observa na Região é uma espécie de bolsão de clima semiárido
(BSh, segundo a classificação de Koppen) que abrange uma enorme
área que excede a cifra de 800.000km² ( Figura 1). E como entender
esse fato que chama a atenção de meteorologistas, climatologistas e
geógrafos? O que justifica a presença dessa “anomalia climática” no
espaço brasileiro?
A presença de um espaço climático seco em qualquer área
continental pode ser explicada pelos seguintes fatores: a) barreiras
orográficas significativas, b) a presença permanente de correntes
marinhas frias nas proximidades de uma área costeira, c) a instalação
constante sobre a superfície terrestre de uma massa de ar seco (sistema
anticiclônico). Às vezes, esses fatores agem solidariamente;outras
vezes, de maneira antagônica, revelando assim o que F. Engels
denominou de Dialética da Natureza.

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Figura 1- Localização das áreas semiáridas no Brasil. A mancha
escura corresponde ao domínio dos climas secos. Neste mapa
foram considerados limites políticos e não as fronteiras naturais.

As barreiras orográficas, como por exemplo um sistema


montanhoso disposto transversalmente aos fluxos de ar úmido,
impedem que na vertente ou depressão topográfica sub-exposta
definam-se espaços úmidos. Configuram-se assim espaços a sotavento
que poderão possuir um notável déficit hídrico. Este é o caso do deserto
de Gobi, na Ásia.

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A presença permanente de uma massa oceânica fria nas
proximidades do continente, defrontando-se com um sistema
atmosférico de altas pressões, com ar subsidente e, portanto, em
equilíbrio estável, aumenta a estabilidade do ar na medida em que inibe,
consideravelmente, os fluxos de ar ascendente e impede a convecção
mais ativa, bem como a formação de nuvens. O deserto costeiro do
Atacama e o deserto da Namíbia são exemplos insígnes dessa conjugação
de fatores dinâmicos do clima.
Por último, a instalação constante de uma massa de ar seco,
estável, de altas pressões (anticiclones) é uma das principais causas
da origem dos desertos de latitudes tropicais e subtropicais, como o
Kalahari, o Saara e o deserto de Vitória, na Austrália. Os anticiclones são
centros de altas pressões em que o ar notabiliza-se por ser subsidente e
divergente. O ar nesses centros é jogado de encontro ao solo, aquece-
se e impede os movimentos ascendentes do ar, que são fundamentais
à formação de nuvens de desenvolvimento vertical (Cb, por exemplo).
A Figura 2 mostra a posição média do centro de altas pressões semi-
fixo do Atlântico Sul. A periferia desse centro que, por sinal, é um
dos “centros de ação’’ da circulação atmosférica do Brasil, permanece
instalado durante todo ano sobre o deserto do Kalahari, no sudoeste do
continente africano (Figura 3). Há, portanto, uma relação dialética entre
o anticiclone semi-fixo do Atlântico Sul, a corrente fria de Benguela e
os desertos da Namíbia e do Kalahari. Imagens de satélite mostram,
atualmente, com muita clareza, tal relação. Os fluxos de ar , observados
na figura a seguir, parecem confirmar a projeção do ar do Kalahari sobre
o Nordeste brasileiro.
O semiárido nordestino, ou seja, o amplo espaço dominado
pelo clima BSh (quente e seco de baixas latitudes, segundo defende W.
Koppen) é de natureza azonal, e não respeita os ditames da latitude
sobre as condições climáticas. Pela importância que tem essa área do
Brasil, com suas características ambientais singulares e, também, por

XV. Um Pouco da História das Condições Climáticas do Trópico Semiárido Brasileiro


apresentar índices socioeconômicos muito aquém do que se poderia
desejar, inúmeros autores, há muitos anos, vêm dedicando uma
particular importância ao tema.

Figura 2 - O centro de
altas pressões semi-fixo do
Atlântico Sul. A significa o
centro de altas pressões. As
setas indicam o escoamento
do ar (ventos).
Data :24/04/01

Figura 3- Localização aproximada dos desertos da Namíbia e do


Kalahari ( Fonte: Google Earth, 2011)

Um dos trabalhos de cunho científico pioneiros sobre esse


bolsão de semiaridez foi desenvolvido por Orville A. Derby, geógrafo
estadunidense, naturalizado brasileiro, no final do século XIX. Esse
autor estudou uma expressiva estiagem que aconteceu entre os anos
de 1877 e 1879. Na ocasião, associou a existência das manchas solares
com as crises climáticas do trópico semiárido brasileiro.

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J. de Sampaio Ferraz, notável meteorologista do Ministério da
Agricultura, dedicou uma particular atenção ao semiárido nordestino,
publicando, em 1931, um trabalho clássico da Climatologia do Brasil,
intitulado “As causas prováveis das secas do Nordeste brasileiro”. Ferraz6
apresentou como as prováveis causas das secas, que atormentam a
natureza e a sociedade no semiárido, as seguintes: a) as flutuações das
chuvas nessa região seca associavam-se às variações da atividade solar,
isto é, à maior ou menor frequência e extensão das manchas solares; b)
os anos de seca ou de grandes eventos de precipitações pluviais estariam
relacionados à circulação secundária do ar atmosférico regional; c)
por último, considerava que as precipitações pluviais verificadas no
Nordeste seco encontravam-se submetidas às trajetórias de anticiclones.
Coube aos geógrafos Gilberto Osório de Andrade e Rachel Caldas
Lins, professores da então Universidade do Recife e que lecionavam
nos cursos de Geografia e Geologia da referida instituição de ensino
superior, a defesa de uma tese que revolucionou a Climatologia Regional
do Brasil. Esses autores vislumbraram uma relação entre a área desértica
do sudoeste africano e o bolsão anômalo de semiaridez do Nordeste
brasileiro. O trabalho singular de Andrade e Lins foi publicado sob o
título modesto “Introdução à Morfoclimatologia do Nordeste do Brasil”,
durante o Congresso Nacional de Geologia, que aconteceu no Recife,
no ano de 1963. Vejamos o que afirmaram os autores naquela época
em que não existiam, ainda, as ricas imagens de satélite que permitem
estudar, com rapidez e facilidade, as ações de centros de altas e de baixas
pressões diuturnamente.
No Nordeste Oriental, o que persiste durante todo o ano é o ar
límpido, estável, dos alísios de SE, com baixo teor de umidade
relativa, que dá estreladas noites transparentes do Sertão. Esses
alísios austrais têm como centro propulsor a célula de altas
pressões subtropicais do Atlântico Sul, estabelecida aí pelos
paralelos de 35º e 40º; centro que gira no sentido contrário

6
SAMPAIO FERRAZ, J. Causas prováveis das secas do Nordeste brasileiro. Rio de
Janeiro:Ministério da Agricultura , diretoria de meteorologia, 1925.

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ao dos ponteiros dum relógio, projetando ventos em todas as
direções do circuito. Do flanco oriental da célula, secante ao
deserto sulafricano do Kalahari, provêm os alísios de SE , que
sopram em direção ao Equador, crescentemente desviando-se
para a esquerda. Absorvem, no percurso, umidade fornecida
pela evaporação oceânica; mas viajam, também, sobre
uma superfície cada vez mais quente, se sorte que se vão
aquecendo ao mesmo tempo pela base e a umidade relativa
mantém-se sempre baixa. O Nordeste Oriental é o domínio,
dessarte, duma projeção transatlântica da mesma atmosfera
que responde pelo deserto do sudoeste africano. Propusemos
denominar essa projeção de “ar calaariano”, a exemplo do
“ar saariano” dos meteorologistas boreais, que transpõe o
Mediterrâneo durante o verão europeu.7

Posto dessa maneira, o semiárido nordestino é fruto do


estabelecimento permanente no Nordeste de uma massa de ar “tépida”
estável e portanto seca. Essa massa foi designada pelos autores , com muita
propriedade, de “massa Tépida Kalahariana (TK). Muitas críticas foram
feitas a esse paradigma dos geógrafos pernambucanos mencionados,
muitas destas por mero problema de “regionalismo” acadêmico. Hoje,
com a riqueza indescritível das imagens de satélite, nos mais diferentes
comprimentos de ondas (infravermelho, visível, vapor d’água, etc), essa
projeção transatlântica do ar do sudoeste africano parece cada vez mais
confirmar-se.

2. A estrutura vertical da massa de ar Tépida Kalahariana

Uma massa de ar, na linguagem climatológica, é um bloco de ar


de grandes dimensões que, após se estabelecer sobre uma dada região,
continental ou oceânica, adquire as características de temperatura e
umidade desse espaço sobre o qual se instalou. Assim, uma massa de ar
poderá ser quente, tépida ou fria, considerando o parâmetro temperatura.

7
ANDRADE, Gilberto Osório de; LINS, Rachel Caldas. “Introdução à morfoclimatologia do
Nordeste do Brasil”. Op. cit., pp.22-23.

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Mas poderá ser úmida ou seca, dependendo do tipo predominante de
movimento que o ar experimenta sobre a região de origem e também
das características físicas desta, especialmente a umidade do ar.
A massa de ar que se forma sobre uma área continental possui
uma tendência para ser seca, exceção notável para o caso da massa
de ar Equatorial Continental que, mesmo originária acima de uma
ampla superfície continental, é mais úmida até que certas massas de ar
oceânicas. Neste caso, a intensa evapotranspiração potencial advinda
da floresta latifoliada amazônica, e comunicada ao ar vizinho, substitui,
com brilhantismo, a inexistência de um mar epicontinental no território
brasileiro.
A massa Tépida Kalahariana mantém um profundo vínculo com
o Anticiclone Semi-fixo do Atlântico Sul, já anteriormente mencionado.
Ele é o elemento mais destacado do controle climático do Nordeste
brasileiro. É dele, ou melhor dizendo, de uma parte dele, que partem os
fluxos dos alísios de SE-E, que nada mais são do que os deslocamentos
da TK (Figura 4).

Figura 4- Representação meramente esquemática dos alísios do


hemisfério sul. Observar o desvio que sofrem à esquerda como
imposição do desvio de Coriolis.

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Essa massa de ar apresenta estrutura vertical que é uma das
principais responsáveis pela definição do semiárido nordestino. Ela
possui uma camada inferior tépida e relativamente úmida separada
de uma camada superior que é quente e seca. Ambas estão separadas
por uma superfície de descontinuidade, conhecida como camada de
inversão ou zona de inversão térmica. No ar límpido dos alísios austrais,
o gradiente térmico é negativo, ou seja, o ar adiabaticamente resfriado
fica abaixo de um ar mais quente. É preciso lembrar que só ocorre
inversão com o ar estável.
Da região de origem da TK até a faixa de depressão barométrica
que se instala na zona dos doldrums (baixas pressões equatoriais), a
camada de inversão segue num plano ascendente. Quanto mais alta se
encontra essa camada, mais o ar fica instável e há uma possibilidade de
ocorrência de chuvas mais ou menos fortes, e quanto mais baixa, mais
seco será o lugar.
Sobre o deserto do Kalahari, a camada de inversão se situa a
poucas dezenas de metros acima do solo. Isso se dá como consequência
da forte subsidência do ar superior que impede, sobremaneira, a
formação e desenvolvimento de nuvens, daí o ar límpido a que se
referem Andrade e Lins. Uma parte expressiva do trajeto da massa de ar
TK (alísios de SE-E) se faz sobre uma corrente oceânica fria, a corrente
de Benguela (Figura 5), que colabora para que a camada de inversão
permaneça em níveis altimétricos baixos e o ar fique estável.
A massa de ar TK, mesmo atravessando uma grande parte do
Atlântico , não adquire deste uma grande quantidade de umidade, que
seria suficiente para abortar o semiárido nordestino. É bem verdade que, ao
chegar nas proximidades da costa brasileira, o oceano já está mais quente,
sob o domínio da corrente marinha do Brasil. Esse fato contribui, aliás, para a
instalação de uma instabilidade do ar (ascensão) passageira ou condicional,
que pode resultar, inclusive, em episódios de chuvas fracas. Depois, os fluxos
da TK, que remontam o continente de sudeste a noroeste ou até de leste
a oeste, dependendo da estação do ano, se defrontam com escarpas, mas
não monumentais como as do Sudeste brasileiro, da Borborema, um velho

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maciço arrasado por prolongadas e intensas fases erosivas pretéritas. Mesmo
sem a imponência de outras escarpas, a Borborema induz, mecanicamente,
um movimento ascendente do ar do Kalahari, na fachada oriental. Essa
ascensão pode provocar chuvas de caráter orográfico a leste da Borborema.

Figura 5 - Deslocamentos
da corrente marinha fria de
Benguela. (Fonte: Google,
2011)

Durante muito tempo, um equívoco foi ensinado nas escolas


e faculdades brasileiras. Esse equívoco consistia em afirmar que era a
presença do “Planalto” da Borborema o fator responsável pelo bolsão de
semiaridez regional. E mais, dizia-se que o ar que chegava ao interior
do Nordeste era seco porque perdia, na parte oriental da região, a sua
umidade por conta da ascensão antes mencionada. Contudo, no Ceará,
o clima seco se instala praticamente na fachada litorânea, o mesmo
acontecendo no litoral setentrional do Rio Grande do Norte. Nesses
espaços geográficos inexiste a Borborema ou outro sistema de relevo
capaz de repetir, no continente brasileiro, mesmo que em escala bem

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mais modesta, o que o Himalaia impôs ao interior da Ásia, no tocante a
instalação de áreas excessivamente seca. Então, o que se passa?
A camada de inversão da TK ascende mecanicamente por causa
do relevo (Figura 6). Esse fato é indiscutível. Mas, quando esse mesmo
ar mergulha em direção à unidade regional de relevo, denominada
“Depressão Sertaneja”, a camada de inversão acompanha essa descida
e a estabilidade do ar se refaz, impedindo, novamente, a formação de
nuvens de desenvolvimento vertical. As áreas mais secas do Nordeste
brasileiro se localizam exatamente nas regiões de relevo deprimido,
em superfícies de altimetria algo em torno de 450-500m. Esse fato vem
endossar essa hipótese que levantamos.

Figura 6- Imposições do relevo às condições climáticas. Depressão sertaneja


observada do topo da cuesta da Ibiapaba. Observa-se nitidamente (área indicada
pela seta) a ascensão da camada de inversão como resposta às imposições do
relevo.

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3. A cinemática da massa Tépida Kalaariana

Os movimentos experimentados ao longo do ano pela massa


de ar que responde pela semiaridez do Nordeste brasileiro estão na
dependência do pivô da principal da circulação geral da atmosfera
que atinge o Brasil. Esse pivô é o centro de altas pressões semi-fixo do
Atlântico Sul, que se configura como uma vasta porção de ar subsidente,
divergente e límpido e se comporta como um remoinho que gira no
sentido contrário ao deslocamento dos ponteiros de um relógio.
No inverno, esse centro anticiclônico avança para o norte
e para leste. Dilata-se, portanto, e se instala sobre grande parte do
Brasil, acarretando um inverno seco, fato marcante no Brasil central
e particularmente em Brasília. O índice de nebulosidade despenca, o
mesmo acontecendo com os valores de precipitação pluvial. No verão, o
anticiclone em apreço recua e fica confinado, praticamente, ao Atlântico
Sul, nas latitudes tropicais onde se origina.
A massa TK provém do flanco leste do anticiclone do Atlântico
Sul, mais especificamente da ampla área desértica do sudoeste africano.
Move-se da costa Kalahari para o Nordeste brasileiro sobre a corrente
fria de Benguela e mantém, em todo o percurso, a camada de inversão,
anteriormente mencionada (Figura 7). Ao atingir a costa brasileira,
a massa de ar desencadeia uma instabilidade, contudo, por efeito
topográfico e, às vezes, por efeito ciclônico, em decorrência, neste caso,
das descargas do ar polar. Uma vez estabelecida sobre o continente,
regenera a estabilidade originária e , consequentemente, contribui
para a semiaridez que se verifica , de leste a oeste, a partir do Agreste.
O inverno no semiárido é seco, com céus limpos, grande aquecimento
diurno e elevadas temperaturas durante o dia. No inverno, a TK restringe-
se ao Nordeste brasileiro, onde passa o ano inteiro, só sendo substituída
quando os fluxos da Zona de Convergência Intertropical e da massa de
ar Equatorial Continental avançam (verão-outono), acarretando chuvas
convectivas e despersonalizando, momentaneamente, o ar límpido da TK.

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Figura 7- Avanço da massa TK sobre o Nordeste brasileiro. Imagem
de satélite infravermelho. Data 01 de maio de 2008. Observa-se
nitidamente a incursão da massa de ar entre a Zona de Convergência
Intertropical (ao norte e a oeste) e a uma frente fria (ao sul).

4. A diáspora dos climas secos no território brasileiro durante


o último máximo glacial quaternário

Os climas variaram consideravelmente na escala geológica. Essas


variações desempenharam um papel destacado sobre a distribuição
dos biomas na superfície terrestre e até sobre os deslocamentos de
populações humanas, no Quaternário Superior.
O Quaternário é um dos períodos geológicos em que se encontra
subdividida a era Cenozóica. A expressão Quaternário foi empregada
pela primeira vez por Jules Desnoyers para designar alguns depósitos
marinhos que se situam sobre formações sedimentares da Bacia de
Paris. Depois, a Geologia empregou esse mesmo termo para definir a
“Idade do Gelo”. A questão da idade do Quaternário ainda é motivo de
polêmica, mas há uma certa tendência, entre os geocientistas, para se
aceitar a cifra de 1,8 milhão de anos para esse período geológico.

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A ocorrência de grandes mudanças e flutuações climáticas, numa
escala dos climas zonais, sobretudo, é um dos fatos mais marcantes desse
período. Quatro prolongadas fases de resfriamento global, pelo menos,
ocorreram no Quaternário, separadas por fases de aquecimento global
ou interglaciais. Essas alternâncias de fases glaciais e interglaciais podem
ser entendidas pelos “ciclos de Milankovich”. Sabe-se, contudo, que os
climas zonais modificaram-se e ora se expandiram, ora encolheram
como o pulsar do “coração” de uma atmosfera inquieta.
As sucessivas variações climáticas durante o período
geológico examinado estão documentadas nas paisagens de todo
mundo. Denunciam-nas as evidências estratigráficas, os registros
paleontológicos, os remanescentes geomorfológicos e, em alguns casos,
os achados arqueológicos mais antigos.
Os estudos paleoclimáticos do Quaternário, particularmente no
Pleistoceno, voltam-se sobretudo para as variações da temperatura nas
superfícies dos continentes e na superfície oceânica8, bem como para
a sucessão de intervalos glaciais e interglaciais. No mundo tropical, e
no Nordeste brasileiro, com maior ênfase, esses estudos concentram-se
especialmente nas variações da pluviosidade.
O Último Máximo Glacial ocorreu há aproximadamente
18.000 anos. O homem da Pré-História brasileira conviveu com essas
mudanças. O que aconteceu com as condições climáticas zonais do
Brasil, especialmente no Brasil tropical?
Durante as fases glaciais e não apenas no Último Máximo Glacial,
três sistemas atmosféricos foram consideravelmente modificados,
trazendo repercussões diretas ou indiretas sobre o território brasileiro:
a Zona de Convergência Intertropical, o Anticiclone Semi-fixo do
Atlântico Sul e os ventos de oeste (westerlies).

8
O geógrafo Aziz Nacib Ab’Sáber publicou, há alguns anos, um importante trabalho que analisa
a questão da expansão dos climas secos na América do Sul e as temperaturas da superfície
marinha. AB’SABER, Aziz. Nacib. ‘‘Espaços ocupados pela expansão dos climas secos na
América do Sul, por ocasião dos períodos glaciais quaternários’’. In: Paleoclimas, v. 3, p.1-19,
1977.

XV. Um Pouco da História das Condições Climáticas do Trópico Semiárido Brasileiro


A Zona de Convergência Intertropical é um sistema atmosférico
formado pelos fluxos dos alísios boreais e austrais. Nos dias atuais, esse
sistema é responsável por pesados aguaceiros convectivos de verão-
outono no Nordeste brasileiro. Aplicando-se o Princípio do Atualismo,
segundo o qual “os mesmos processos e leis físicas que atuam no presente
agiram no passado, se bem que nem sempre com a mesma intensidade”,
como enuncia Williams D. Thornbury (1960)9, pode-se compreender
melhor o que ocorreu nas fases glaciais, em termos paleoclimáticos.
Nos anos em que o Atlântico Sul se encontra mais frio, no
presente, os alísios austrais ficam mais enérgicos como uma decorrência
da maior expansão do Anticiclone Semi-fixo do Atlântico Sul. O
gradiente barométrico acentua-se e os ventos se fazem mais fortes.
O ar, nessas condições, adquire uma maior estabilidade. A Zona de
Convergência Intertropical, que responde pelo regime de chuvas de
verão retardadas para outono, que tão bem caracteriza os sertões do
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, é empurrada mais
para norte, não migrando, como seria desejado, para o sul. Instala-se,
dessa maneira, a seca no semiárido desses estados.
Ao longo do Último Máximo Glacial, a Zona de Convergência
Intertropical, provavelmente, ficava situada em latitudes mais
setentrionais do que a posição média que ocupa na atualidade. Secas
prolongadas devem ter acontecido no território nordestino, mas também
em outras regiões do país. No território brasileiro, ao sul do Equador,
a situação atmosférica, ao longo da última glaciação quaternária, foi
bem diferente do que se verificou na África Setentrional e Oriental. A
Amazônia e o Nordeste passaram a ter climas bem mais secos como
decorrência dessa posição mais ao norte da Zona de Convergência
Intertropical.
Com as temperaturas da superfície do Atlântico mais baixas,
o Anticiclone Semi-fixo do Atlântico Sul deve ter sofrido uma
extraordinária expansão, instalando-se, por conseguinte, o ano inteiro
9
THORNBURY, Williams D. Principles of Geomorphology. Nova Iorque: John Willey & Sons,
1960.

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sobre o território brasileiro e não apenas sobre o saliente nordestino
como hoje o faz. A paleomassa de ar TK adquiriu muita energia e
fez com que o clima regional BSh se espalhasse sobre o resto do país,
seguindo todas as direções e avançando de preferência pelas depressões
topográficas. Há evidências sedimentológicas e topográficas dessa
diáspora dos climas secos do Último Máximo Glacial sobre o território
brasileiro, espalhadas pelas várias regiões, e até na atual superúmida
Amazônia. O bolsão de semiaridez, que se verifica hoje num mapa
pluviométrico, generalizou-se, repercutindo sobre a cobertura vegetal
e nos processos erosivos e deposicionais que moldaram as feições de
relevo quaternárias.
Por último, os ventos de oeste (westerlies) experimentaram,
no Último Máximo Glacial, um deslocamento de 5 a 10º para o Norte,
empurrados que foram pelo anticiclone polar, também dotado de grande
energia que adquiria em face do resfriamento global e das alterações
da radiação de ondas curtas (ROC) recebida pela superfície terrestre e
emanada do Sol.

Recebido em: 31/10/2011


Aceito em: 20/02/2012

XV. Um Pouco da História das Condições Climáticas do Trópico Semiárido Brasileiro

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