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CONHECIMENTO SOBRE AS FLUTUAÇÕES CLIMÁTICAS

DO QUATERNÁRIO NO BRASIL

Aziz Nacib Ab’Sáber

O número de estudos sobre a natureza das influên-


Boletim da Sociedade Brasileira de cias e as eventuais repercussões fisiográficas das variações
Geologia, São Paulo, v. 6, climáticas do Quaternário no território brasileiro é ainda
p. 41-48, 1957. restrito. Infelizmente não temos ainda pesquisadores
habituados ao estudo de nossas formações quaternárias
capazes de fornecer elementos objetivos para estabelecer
a evolução paleoclimática moderna do país. Entretanto,
BIBLIOGRAFIA como é fácil de se aquilatar, trata-se de um setor em que o
caso brasileiro poderá constituir um depoimento de ine-
gável importância para a compreensão dos reflexos tidos
pelos períodos frios do Quaternário em relação à região
que, pela sua posição intertropical, permanece completa-
mente a escapo das glaciações de latitude.
De há muito os geólogos brasileiros têm o costume
de reconhecer como pertencentes ao Pleistoceno os de-
pósitos dos seixos rolados dispostos em baixos terraços
fluviais, os quais são referidos, ainda que um tanto va-
gamente, como documento sedimentológico de climas
úmidos e drenagens torrenciais do Quaternário Antigo.
Tais cascalheiros, encontrados nas mais diversas áreas do
Planalto Brasileiro, não foram , entretanto, submetidos
a análises demoradas, quer de ordem granulométrica,
quer de ordem morfoscópia. É quase certo, porém, que a
impressão primeira por eles causada seja cientificamente
ratificada um dia; isto é, provavelmente trata-se de le-
gítimos documentos de períodos chuvosos torrenciais,
em que os rios atuais tiveram um poderio bem maior de

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transporte e elaboração de seixos rolados. Inegavel- cation climatique profonde se placerait donc vers La
mente, porém, há muito o que esclarecer, ainda, a fin de l´ére tertiare".
respeito dos diversos níveis e tipos de cascalheiros O saudoso mestre francês Emmanuel de
apresentados por cada uma das regiões em estudo. martonne quando realizou seus estudos geomorfo-
Impõe-se, sobretudo, esclarecer melhor a origem lógicos no Brasil tropical atlântico teve sua atenção
geológica e pedológica de certas coberturas de cas- voltada para o problema das possíveis variações cli-
calhos miúdos, elúvio-coluviais subatuais, que re- máticas modernas no Brasil. Lembrava, com pro-
vestem vertentes de colinas, outeiros e morros no priedade, aquele grande cientista, que nesta parte
Brasil tropical atlântico. do Brasil "não é provável que a alteração dos climas
Por seu turno, as espessas cangas limoníticas tenha evoluído diferentemente do que nos países
que recobrem os chapadões cristalinos de Goiás, tropicais africanos onde a existência de lagos per-
assim como o topo ou patamares das serras de mitiu, pelo estudo dos depósitos, constatar muitas
Minas Gerais, são outros tantos documentos pale- oscilações para uma aridez ou uma umidade mais
oclimáticos importantes, referentes a diversas fases acentuada". Em tempo oportuno, porém, ponde-
do pleistoceno, e, em alguns casos, ao Plioceno ou rava De Martonne que se podia "suspeitar de va-
limite pliopleistocênico. Tais "cangas", constituem riações recentes cuja amplitude foi certamente mais
os representantes brasileiros das couraças lateríticas fraca do que, por exemplo, na África (1940; 1944 ,
intertropicais, possuindo por essa razão mesma p. 175). Tais asserções, De Martonne as retirou de
grande valor como documentos dos paleoclimas seus estudos geomorfológicos nas partes superiores
modernos no Brasil. Seu estudo sistemático, em do maciço sienítico do Itatiaia, onde reconheceu
bases a um tempo pedológicas e geomorfológicas, "um modelado de nivação, senão de glaciação". Se
muito poderá representar para esclarecer episódios é que até hoje não se pode comprovar em definitivo
obscuros da evolução climática do Brasil durante o o caráter glacial ou periglacial localizado do mo-
quaternário. delado dos altos do Itatiaia, é quase fora de dúvida
As bacias de Gandarela e Fonseca (Minas a existência de climas mais frios e mais secos nas
Gerais), tidas como pliocênicas e estudadas por terras altas do Brasil de Sudeste, em diversos mo-
Gorceix (1884) e Brajnikov (1948), revelam grande mentos do Plioceno e do Pleistoceno. É de se sus-
variação climática entre o período de sua deposição peitar, sobretudo, a existência de regimes climáticos
e a época de seu entalhamanto. Henry Gorceix tropicais um pouco diferentes dos que imperam
(1884, p. 91), especulando sobre as condições cli- hoje, comportando estiagens mais prolongadas e
máticas prováveis sob as quais teriam sido deposi- bem marcadas.
tadas as camadas fluviais daquelas pequeninas ba- Analisando as terras pretas de Bajé, no Rio
cias sedimentares de compartimentos de planalto, Grande do Sul, o pedólogo José Setzer (1951) en-
chegou à conclusão que a "um período de calma controu razões para dizer que o clima regional, em
relativa, sucedeu uma grande variação do regime uma fase bastante recente do Quaternário, "fora
das chuvas; poderosas ações torrenciais revolveram certamente menos úmido do que hoje, e portador,
a superfície da terra; os itabiritos friáveis sofreram de verão muito mais seco" Por esses e outros fa-
profundas erosões e deram lugar à formação do tores, torna-se plausível pensar-se que o clima
conglomerado ferruginoso que cobre os depósitos das terras altas do Brasil Meridional, assim como
terciários". Em trabalho mais recente, Boris Bra- boa parte dos pampas sul-rio-grandenses, tenham
jnikov (1948, PP. 333-334), chegou a idênticas comportado fases mais frias e menos úmidas do
conclusões, expressas nos seguintes termos: "Les que as atuais. No caso das terras altas do Sul do
couches tertiaires de Gandarela sont caracterisées par Brasil, a mata da Araucária seria a grande relíquia
La présence à partie inferieure d´argiles Kaoliniques. desse passado geológico não muito distante.
L´opinion géneralement répandue parmi les pédolo- Nesta ordem de ideias, aliás nunca será de-
gues, que l´alteration Kaolinique, ou sialitique, pour mais lembrar que as variações climáticas mais re-
employer Le mot d´Harassowitz, est typique Du climat centes muito tem a ver com a distribuição atual
temperé, — si êlle est exacte, — nous conduit à admel da vegetação em certos compartimentos de relevo
que le climat miocéne (?) était tempére. Par contre, La do Brasil Sudeste. Seria difícil explicar a "Ilha"
canga, que se forme de nos jours (sic) sous um climat de Araucária de Campos do Jordão ou a marcha
tropical, est, par surcroit, intimement associée à La de campos cerrados do platô terciário de São José
bauxite, produt allitique par excellence et sensé être do Campos, sem buscar explicações paleoclimá-
représentatif pour l'alteration tropicale. Cette modifi- ticas. Tais formações vegetais, que se revezam na

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conquista dos espaços do Brasil Sudeste durante áridas regionais Ruellan encontrou entre outros
o Quaternário, hoje coexistem em áreas relativa- depósitos de bajadas, ocorrências de gipisita, con-
mente próximas, preservadas em compartimentos forme comunicação feita ao X Congresso Brasi-
preferenciais, onde localmente as condições climá- leiro de Geologia, reunido no Rio de Janeiro em
ticas e ecológicas se aproximam um tanto mais da- novembro de 1956. Tais ocorrências de depósitos
queles que dominaram em tempos subatuais. de origem endorreica incontestável, caso extrema-
Na Amazônia, a presença de diversos níveis mente raro no Brasil, confirmaram a existência de
de terraços conservados por crostas duras de late- fases semiáridas na Amazônia Brasileira, antes da
rita e a existência de campos cerrados ilhados em instalação dos climas úmidos e superúmidos muito
zonas dominantemente florestais têm sugerido a recentes que facilitaram a expansão da grande flo-
ideia de que, imediatamente antes da floresta, ali resta regional. Enquanto as crostas limoníticas dos
tenha havido climas mais secos e degradados, que, terraços indicam climas de savana moderados, os
de certa forma, mais se aproximariam dos senega- depósitos de bajadas, dos campos do Rio Branco,
leses que dos congoleses hoje dominantes. Nesse revelariam períodos de aridez muito mais pronun-
setor, os estudos geomorfológicos, em grande parte ciada, próxima dos semidesertos intermontanos.
inéditos, de Francis Ruellan, Octavio Barbosa e Ab’Sáber (1955), estudando a região subli-
Antônio Teixeira Guerra, realizados no Território torânea do Estado do Maranhão, encontrou evi-
do Rio Branco nos últimos anos, muito vieram a dências de que as colinas regionais, ao invés de
contribuir para esclarecer em definitivo estas ve- terem sido afetadas por uma simples peneplani-
lhas hipóteses de trabalho. zação, teriam sofrido uma quase que pediplanação
Em uma notável comunicação feita à asso- quaternária. Ali, porém, a semiaridez não deve ter
ciação do Geógrafos Brasileiros (Seção Regional de alcançado o grau de intensidade que atingiu no
São Paulo), em junho de 1956, o professor Octavio Rio Branco ou na parte inferior do Médio São
Barbosa deu conta de suas observações geológicas Francisco. As crostas limoníticas e cangas piso-
e geomorfológicas no Planalto das Guianas, entre líticas quaternárias que recobrem a maior parte
Manaus e os confins do Território do Rio Branco, das colinas sublitorâneas regionais, quando muito
fornecendo elementos preciosos para fixar a evo- seriam reflexos dos climas de savana que ante-
lução paleoclimática moderna da região. Entre cedem as florestas e os babaçuais da região. Nesta
outras novidades geomorfológicas reveladas pelas porção sublitorânea do Maranhão, não faltam nem
suas pesquisas há que destacar a revisão na concei- mesmo os campos cerrados, em áreas limitadas,
tuação do baixo plano de erosão, que era conhecido como que a indicar sua qualidade de vegetação-
na literatura por peneplano gnáissico, a partir dos relicto. É bem esse o caso dos cerrados existentes
estudos pioneiros de Glycon de Paiva na região. entre a Ilha do Onça, os campos da Pombinha e o
Tal baixa superfície aplainada que separa o tabu- vilarejo de Piqui, ilhados numa grande mancha em
leiro terciário norte-amazônico do planalto das pleno coração dos babaçuais regionais (estrada de
Guianas propriamente dito, na opinião do dr. Oc- São Luiz-Pedreiras).
tavio Barbosa seria o mais sério testemunho de um Indiscutivelmente, porém, em nosso terri-
ciclo de pediplanação pleistocênica naquela porção tório, é no Nordeste Brasileiro, que vamos encon-
da Amazônia. Os morrotes, ilhados no pediplano trar casos espetaculares de flutuações climáticas in-
pleistocênico regional, ainda segundo Octavio tertropicais. Enquanto no resto do Brasil os climas
Barbosa, seriam inselbergs típicos, elaborados no úmidos recentes foram capazes de mascarar quase
ciclo-árido e remodelados pelo clima úmido atual. que inteiramente as feições morfológicas, que por
A existência de depósitos de pedimentação, bem acaso tenham sido originados por outros climas
preservados, serviam para documentar a hipótese a partir do Plioceno, no Nordeste Brasileiro os
de Octavio Barbosa. fatos morfológicos estão muito bem conservados
Trabalhando isoladamente na região do Rio nos compartimentos interiores do sertão, em pe-
Branco, desde 1955, Francis Ruellan realizou ali diplano intermontanos, campos de inselbergs e al-
demoradas pesquisas geomorfológicas, ainda iné- gumas poucas bajadas fossilíferas pleistocênicas.
ditas. Ao que sabemos suas pesquisas atingiram Por outro lado, não faltam depósitos fluviais, repre-
conclusões absolutamente idênticas às de Octavio sentados por potentes seixos rolados, que através
Barbosa, quer na interpretação do pediplano dos de bem marcadas discordâncias separam o clima
campos do Rio Branco, com seus inselbergs e páleo- semiárido dos fins do Pleistoceno em relação ao
bajadas. Nos depósitos das antigas baixadas semi- clima semiárido moderado que hoje ali domina.

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Na realidade, no Nordeste Oriental, como em atingas, assim como as "ilhas" de campos cerrados
algumas porções do médio vale do São Francisco paradoxalmente encravadas em zonas florestais,
(Moraes Rego, 1963; Djalma Guimarães, 1951), no meio de babaçuais ou em baixos tabuleiros em
onde imperam climas quentes semiáridos, é pos- pleno coração das catingas, sem usar de uma argu-
sível encontrar-se documentos seguros das flutu- mentação ligada às variações climáticas modernas
ações climáticas responsáveis pela elaboração geral sofridas pelo Brasil.
do relevo e evidenciar objetivamente a existência Para os que se dedicam a estudos de lateritos,
de ciclos úmidos alternados com fases áridas ou principalmente, nunca será demais lembrar que, se
semiáridas. Tendo havido ali, variações climáticas nas zonas intertropicais o clima é fundamental-
até certo ponto excepcionais para o caso brasileiro, mente quente, as variações no setor da umidade ou
ora no sentido de uma umidade mais pronunciada, da aridez podem ter sofrido uma série de modifi-
ora no sentido de uma certa aridez, o relevo a hi- cações regionais, de arranjo complexo, dentro do
drografia e a flora regionais, refletem diretamente Quaternário. Ao contrário do que muitos pensam
as interferências de sistema de erosão que se pro- os ambientes intertropicais são aqueles que podem
cessaram. Entretanto, muito há o que estudar ainda apresentar os maiores contrastes climáticos, paisa-
sobre as flutuações climáticas quaternárias nessa gísticos e ambientais. Daí, a infinidade de varia-
porção do território brasileiro. Somos os primeiros ções importantes sofridas por tais áreas por oca-
a reconhecer o caráter de provisoriedade e o valor sião das flutuações climáticas de âmbito universal
relativo das pesquisas que ali realizamos até o mo- que caracterizaram o Quaternário. E se é que não
mento (Ab’Sáber, 1956 e 1956a). possuímos documentos de variações climáticas
Muitos são os campos científicos que podem tão extremas quanto aquelas do território africano
ser beneficiados pelo acúmulo dos conhecimentos pode apresentar, são abundantes entre nós os docu-
sobre as variações climáticas do Quaternário bra- mentos das variações menos espetaculares, porém
sileiro. igualmente importante para a explicação da estru-
A paleontologia pleistocênica do país, a clas- tura das paisagens físicas de nosso território.
sificação pedológica mais precisa de certas áreas de Em face da inegável importância de tais es-
solos aparentemente anômalas e, sobretudo, nossa tudos, urge que sedimentologistas, pedólogos, fito-
fitogeografia, têm muito que beber da mesma geógrafos e geomorfologistas voltem seus olhares
fonte, para esclarecer problemas pendentes. Seria mais à miúde para o problema, usando de suas
quase impossível explicar o desaparecimento dos respectivas técnicas de trabalho, sem nunca perder
mamíferos quaternários do Brasil, a gênese dos la- aquele extraordinário sentido de interdependência
teritos dos terraços e dos baixos níveis de erosão da do conjunto de fenômenos da Biosfera.
Amazônia e alhures, a origem dos calcários das ca-

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