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REGIÕES DE CIRCUNDESNUDAÇÃO PÓSCRETÁCEA,

NO PLANALTO BRASILEIRO

Aziz Nacib Ab’Sáber

1949. Regiões de circundesnuda- A existência de zonas de desnudação periférica, bas-


ção pós-cretácea, no Planalto tante pronunciadas, nas diversas regiões que bordejam as
Brasileiro. Boletim Paulista de grandes bacias sedimentares brasileiras, levou-nos a inda-
Geografia, São Paulo, 1:1-21. gações mais amplas, de caráter geomorfológico, visando
comprovar a existência de vastíssimas calhas de circundes-
nudação, no dorso do Planalto Brasileiro.

Conceito de circundesnudação

Procurando redefinir o termo circundesnudação


como expressão geomorfológica, a fim de poder aplicá-lo
ao estudo do relevo brasileiro, devemos dizer que enten-
demos por tal fenômeno o processo de formação de pa-
tamares de erosão, deprimidos e periféricos, na borda de
bacias sedimentares. Trata-se de um velho conceito usado
pelos geógrafos franceses para exprimir, em termos de geo-
morfologia, o conjunto de fenômenos de desnudação perifé-
rica que se verificam, após fases de epirogênese positiva, nas
bordas de sinclinais entulhadas.
Predominando a forma circular ou semicircular para
o traçado de um grande número de bacias sedimentares,
este fato determinou a conformação de calhas periféricas de
erosão, apresentando idêntico aspecto, circular ou semicir-
cular, devido à extraordinária generalização dos processos
de desnudação por quase todas as margens dessas bacias. As
camadas das bordas das sinclinais soerguidas, sendo, além
de pouco espessas, exatamente as mais expostas à erosão,
representam linhas preferenciais de fragilidade para o en-
talhamento e remoção da cobertura sedimentar periférica.
O processo de circundesnudação é sempre o mesmo
para qualquer bacia do tipo a que nos referimos: cessada a
fase de deposição, quando tiver início fenômenos de epi-
rogênese positiva ou quando houver uma mudança muito
grande de nível de base para a hidrografia regional, há, ime-
diatamente, o reinício de atividades erosivas. Neste instante

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da história geológica regional, a hidrografia superim- Origem dos estudos sobre cuestas e circundesnudação
posta ao quadro geral da antiga bacia de sedimen-
tação entalha profundamente as estruturas regionais, Foi a observação dos primeiros mapas geo-
removendo, de um modo mais rápido, as camadas lógicos da Bacia de Paris, aliada às tentativas de
menos espessas da periferia, por intermédio do tra- interpretação da gênese do relevo regional, que
balho intensivo de rios de traçado subsequente. Com conduziu à percepção dos problemas geomorfoló-
isso, ao se iniciar o processo de desnudação marginal gicos oferecidos por aqueles curiosos alinhamentos
generalizado, esboçam-se, também, extensas linhas de cuestas concêntricas ali existentes. Elie de
de cuestas, de conformação geral concêntrica, cuja Beaumont, reparando na disposição das tradicionais
gênese relaciona-se com a inclinação comum das côtes no mapa da região parisiense, propôs, há um sé-
camadas para o eixo da bacia e com as diferenças culo, o nome de falésias concêntricas para as escarpas
de resistência à erosão, oferecidas por cada uma das de erosão regionais (Martonne, 1909, p. 549). Davis,
estruturas regionais. em 1899, propugnou pela adoção do termo cuesta, re-
Numa bacia de forma circular ou semicircular, tirado da terminologia geográfica popular mexicana,
sujeita a desnudação marginal generalizada, as linhas para expressar a forma de detalhe desses acidentes
de cuestas constituem um rendilhado de escarpas geomórficos, de caráter estrutural, correspondentes
dessimétricas, acompanhando a forma geral da bacia, a paredões de erosão, abruptos e dissimétricos. Mar-
de tal modo que a linha geral dos paredões escarpados tonne, em 1909, propôs que na terminologia cien-
apresenta sua frente voltada no sentido das old lands do tífica internacional se conservasse o termo popular
embasamento que circunda a bacia sedimentar. Fato francês côtes, quando se pretendesse classificar aci-
que determina, invariavelmente, para o caso normal dentes idênticos.
de uma sinclinal sujeita a processos de circundesnu- O importante a lembrar, porém, é que os es-
dação, uma seção transversal típica, em que aparecem tudos dos alinhamentos concêntricos de escarpas de
sempre cuestas laterais, dominando, em sentido erosão e de faixas de terrenos geológicos na Bacia de
oposto, calhas de desnudação periférica. As escarpas Paris levaram a uma compreensão geomorfológica,
de erosão dessas regiões constituem sempre côtes mais ou menos clara, dos fenômenos de circundesnu-
arquées à front externe, se quisermos usar de uma ex- dação tomados em seu conjunto.
pressão moderna proposta por Em. De Martonne, Infelizmente, não pudemos atinar com a fonte
em sua tentativa de classificar os dois principais tipos primária dessa expressão, tão feliz como termo cien-
de alinhamentos de cuestas existentes no relevo ter- tífico e, relativamente, tão esquecida na nomencla-
restre (1947, p. 769). tura geomorfológica internacional. A única refe-
Os mapas geológicos de regiões sujeitas a fe- rência que dela tivemos notícia foi a de Vidal de La
nômenos de circundesnudação apresentam alguns Blache, que, em seu Tableau de la Géographie de la
caracteres bastante individualizados, que permitem France (1911, pp. 108-110), procurando explicar a
ao pesquisador experimentado uma interpretação, formação do relevo das côtes da Bacia de Paris, assim
rápida e precisa, dos processos geomórficos a que a se expressava: “Les roches dures ont engendré ce que
região foi submetida. Isso porque os fenômenos de les savants ont appelé d’un mot, d’ailleurs expressif et
circundesnudação fazem aflorar, nas bordas das ba- juste, des montagnes de circumdénudation, ce que le
cias sedimentares, em longas faixas semicirculares peuple apelle des côtes, des monts”.
concêntricas, camadas inferiores, mais antigas, da Convenhamos que côtes ou cuestas são deno-
pilha de sedimentos regionais. Fato que acarreta, minações populares, usadas para expressar, ligeira-
por outro lado, normalmente, para o observador mente, as formas de detalhe dos paredões escarpados,
que partir do embasamento das “terras velhas” em sem maior preocupação geomorfológica. Significam,
direção à bacia sedimentar, o encontro sucessivo de tanto quanto entre nós, a denominação serrinha e
formações estratigraficamente mais recentes, à me- muito menos do que os termos de sentido altamente
dida que se progrida em relação às porções mais in- expressivo, usados para nossas escarpas de erosão no
teriores da bacia. Fenômeno válido para a Bacia de Nordeste, no Leste e no Centro do Brasil, tais como
Paris ou para a Bacia do Paraná no Brasil ou, em aparado, talhado, tombador ou tromba. A antiga ex-
casos normais, para qualquer outra antiga sinclinal pressão francesa montagnes de circumdénudation po-
entulhada, sujeita a processos relativamente recentes deria ser introduzida em nossa jovem nomenclatura
de circundesnudação*. científica sob a designação geomorfológica mais pre-
cisa de escarpas de circundesnudação. Em edições re-
* Paul Maçar, em obra recente (1946), estudou ligei- centes de seu Traité, Em. De Martonne propôs, para
ramente o processo geomórfico da formação de linhas de os alinhamentos de cuestas que desenham “arcos
cuestas de front externo, em structures en bassin. Não analisa, concêntricos com o 'front' voltado para o exterior”,
porém, os fenômenos de circundesnudação propriamente a denominação complexa de côtes arqueés à front
ditos. externe. Não pode haver dúvidas que a expressão es-

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carpas de circundesnudação exprime melhor e de um relevo da Bacia do Paraná, principalmente no que
modo mais intrínseco o fenômeno geomorfológico se refere a algumas seções do Planalto Meridional
que se pretende pôr em evidência através de todos brasileiro, à altura de São Paulo, não se fez, ainda,
esses termos. nenhum trabalho de maior fôlego, em que se procu-
Para o estudo a que nos propomos, inte- rasse mostrar o conjunto e o detalhe dos fenômenos
ressa salientar, ao fim dessa pequena digressão de de desnudação periférica em nosso território. Não
geomorfologia teórica, que em todas as regiões onde encontramos, mesmo, em nenhum dos trabalhos
linhas de cuestas e regiões deprimidas de erosão periférica desses eminentes pesquisadores, um esboço que seja
possuírem conformação semicircular, ligeiramente con- para uma correlação mais ampla de dados regionais,
cêntrica em relação às bordas do embasamento que as ro- visando uma interpretação de âmbito mais largo. Em
deia, estaremos em presença de zonas onde se processaram outras palavras: até hoje, os melhores trabalhos geo-
fenômenos típicos de circundesnudação. morfológicos sobre o interior do Planalto Brasileiro
têm tratado acidentalmente da gênese das cuestas e
Zonas de desnudação periférica no Planalto das chamadas “depressões periféricas”, na base dos
Brasileiro fenômenos de desnudação marginal; porém não fo-
calizaram com maior insistência os fenômenos ge-
De há muito, no Brasil, ficou evidenciada rais de circundesnudação, tomados na expressão plena
a existência de patamares deprimidos de erosão do termo.
localizados entre os velhos terrenos cristalinos e De nossa parte, após situar paleogeografica-
as linhas de cuestas mais interiores esculpidas nas mente a data mais provável do início do entalha-
províncias sedimentares. Alguns geógrafos de maior mento do Planalto Brasileiro, iremos analisar, regio-
visão geomorfológica passaram a considerar esses nalmente, os processos de desnudação marginal no
patamares intermediários, existentes em diversas Nordeste Oriental e na calha do médio vale do São
porções do interior do Planalto Brasileiro, como Francisco, dedicando maior atenção à Bacia do Pa-
elementos geomorfológicos básicos de nosso relevo raná, onde os fenômenos de desnudação periférica
( James, 1942, e Guimarães, 1943). generalizados constituíram, a nosso ver, uma gigan-
A seção esquemática da estrutura da Bacia do tesca rede de circundesnudação pós-cretácea. Nosso
Paraná, traçada por Washburne (1930), já deixava trabalho, que é um estudo preliminar e de síntese,
evidente a existência de fenômenos de desnudação teria sido absolutamente impossível caso não pu-
marginal generalizados, circundando a imensa bacia déssemos contar com o grande estoque de material
de sedimentação. Para perceber isso, bastaria que geológico e geomorfológico reunido nas obras dos
atentássemos para os patamares de desnudação pe- ilustres pesquisadores citados.
riférica, localizados a leste da cuesta de Botucatu e
a oeste da serra de Maracaju. Achamos mesmo que O quadro paleogeográfico que precedeu os
quem tentar rebater um bloco-diagrama esquemá- fenômenos de desnudação periférica e
tico, na base dessa seção geológica, já antiga, de Wa- circundesnudação no Planalto Brasileiro
shburne, obterá, mais ou menos, o quadro geral do
relevo das bordas da grande bacia, onde aparecem, Provavelmente, a fase de peneplanização mais
inconfundivelmente, os resultados dos fenômenos de importante e de maior interesse à geomorfologia do
circundesnudação. Brasil foi a que se processou nos fins do Cretáceo
Estudos geológicos mais recentes, a respeito de e início do Terciário. A erosão dos rest-bergs, ainda
outras vertentes da Bacia do Paraná, demonstraram muito salientes, dos núcleos cristalinos de Brasília foi
a repetição das mesmas linhas de relevo, apresen- bastante pronunciada, nesse período, resultando em
tando outras tantas escarpas de erosão com front aplainamento parcial de vastas áreas, acompanhado
voltado para o exterior, dominando regiões de des- de entulhamento progressivo das concavidades ainda
nudação periférica típicas. Custou muito entre nós, existentes no eixo de nossas sinclinais principais.
porém, perceber-se que a gênese de nossas linhas de Deve ter sido um clima semiárido predominante, que
cuestas, assim como o fenômeno de seu afastamento foi capaz de criar o sistema de hidrografia endorreica,
gradual para o interior, era um processo geomorfo- responsável pelas formações lacustres e terrígenas do
lógico, concomitante, inteiramente relacionado com Período Cretáceo. O material sedimentário dessas
o estabelecimento dos patamares deprimidos e peri- formações foi, em parte, retirado do capeamento su-
féricos de nossa principal bacia sedimentar. Exceto perior triássico retrabalhado e, em parte, originado
os trabalhos de P. Denis (1927), O. Maull (1930), da erosão nas saliências aflorantes das zonas cripto-
Ch. Washburne (1930), M. Rego (1931), V. Oppe- zoicas ou basálticas triássicas. Na época em questão,
nheim (1934), Em. De Martonne (1943-1944), F. F. as áreas cretáceas deviam abranger extensões muito
Marques de Almeida (1940, 1944 e 1947) e Maack maiores das que os mapas geológicos apresentam
(1947), em que foram tratados alguns problemas do hoje, após tão longo período de desnudação e cir-

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cundesnudação. Recobriam quase todas as áreas Rego, 1931a). Oliveira e Leonardos, em um pequeno
das grandes sinclinais brasileiras e, possivelmente, trecho da sua Geologia do Brasil, deixam bem patente
transgrediam mesmo, por sob as bordas dos núcleos a percepção geral desses fatos todos. Não hesitamos
cristalinos aplainados e platôs de lavas, hoje muito em transcrever integralmente a síntese de nosso par-
desnudados. ticular interesse:
Do Cretáceo Médio para diante, os mares co-
meçaram a se acercar cada vez mais da face leste sul- A grande elevação do centro e nordeste do Bra-
americana, ao tempo que grandes massas oceânicas, sil processou-se no fim do Cretáceo e durante
forçadas por um mecanismo tectônico de difícil ex- o Terciário, enquanto do lado do Pacífico tinha
plicação, estrangularam as principais seções do con- lugar o dobramento dos Andes. – Na zona que
tinente de Gondwana. No Brasil, estendiam-se pelo vai do Piauí a Pernambuco, as camadas cretáce-
Nordeste Oriental, ao que tudo leva a crer, isolando as (série Araripe-Serra Grande) foram alçadas
a Borborema e atingindo a fossa da Bahia cuja sub- até mil metros sobre o mar. Também na zona
sidência mais pronunciada se processou no próprio ocidental da Bahia e Minas Gerais, e em gran-
Cretáceo. O novo arranjo de massas oceânicas deve de parte de Goiás e Mato Grosso as camadas
ter amenizado sensivelmente as condições de aridez cretáceas foram igualmente alteadas; mas nes-
imperantes no período anterior, fato que nem sempre sas últimas regiões o movimento ascencional
tem sido considerado nas especulações paleogeográ- se deve ter iniciado no Jurássico, porquanto já
ficas de conjunto para o Brasil. os depósitos cretáceos são continentais. – Pelo
Nos fins do Período Cretáceo e início do Ce- menos em certas zonas do litoral, a elevação do
nozoico, o regime climático, posto que termicamente continente prolongou-se até o Pleistoceno, como
sempre elevado, deve ter feito grandes progressos em demonstram os terraços pliocênicos da costa do
relação à umidade, ao tempo em que um novo ciclo Espírito Santo, Bahia e Nordeste. – A drenagem
de epirogênese positiva se iniciou um tanto irregu- atual do Brasil decorre dessa elevação terciária.
larmente para todo o Planalto Brasileiro. O Atlân- Longo efeito de gliptogênese teria desnudado os
tico começava a se esboçar e atuar climaticamente terrenos mesozoicos nas bacias fluviais, de sor-
como grande massa aquosa intracontinental. Após te que do extensíssimo planalto de sedimentos
muito tempo, o Planalto Brasileiro tendeu a se elevar cretáceos restam hoje apenas estreitos chapadões
a altitudes um tanto mais apreciáveis; elevação que, ao longo dos divisores de águas (1943, p. 689).
ao se completar, atingiu para mais de 1.000 metros
em relação ao Nordeste, balisada pelos peixes fósseis Na realidade, em quase todas as províncias se-
marinhos da Chapada do Araripe. E elevação lenta e dimentares do continente de Gondwana, o levanta-
relativamente menos pronunciada para a porção sul mento pós-cretáceo parece ter sido o maior respon-
do país, onde uma ação de empinamento generali- sável pela fase de esculturação que veio redundar nas
zada, acompanhada de fraturas e falhas, se processou grandes linhas do relevo atual.
na borda cristalina muito soerguida, hoje correspon- Note-se que, em conjunto, o comportamento
dente ao Brasil tropical atlântico (Leme, 1930, 1943; isostático pós-cretáceo da face oriental do continente
Martonne, 1935, 1943-4). sul-americano parece ter sido bastante homogêneo.
A epirogênese positiva pós-cretácea, aliada à O soerguimento dos Andes, como gigantesco sis-
umidificação progressiva do clima, determinou a ins- tema de montanhas jovens, orientado grosso modo de
talação de redes hidrográficas, provavelmente exor- Norte para Sul, através de alguns milhares de quilô-
reicas, fundamentais à modelagem geral do Planalto metros de extensão, determinou um jogo isostático,
Brasileiro, devido aos fenômenos de desnudação e sensivelmente homogêneo, para com as velhas por-
circundesnudação decorrentes. Esboçaram-se, nesse ções cristalinas e províncias gondwânicas do leste do
meio tempo (que medeou os fins do Cretáceo, o Eo- continente, correspondente ao Planalto Brasileiro.
ceno e o Oligoceno), as principais linhas e seções de Razão básica para explicar a generalização dos pro-
relevo do interior do Brasil. cessos de desnudação periférica e circundesnudação,
Quase todos os autores, nacionais e estran- que se fizeram observar nas grandes bacias sedimen-
geiros, embora não detalhem o processo geomórfico tares do planalto.
com maior exatidão, estão de acordo que foi essa ele-
vação pós-cretácea a determinadora da primeira rede Evolução dos fenômenos de circundesnudação, na
de entalhamento responsável pelo atual relevo do Bacia do Paraná
Planalto Brasileiro. É principalmente nos geólogos
de maior experiência e intuição paleogeográfica que É justo que se examine, em primeiro lugar,
vamos encontrar esses rápidos bosquejos de síntese, a gênese do relevo da Bacia do Paraná, pois foi na
essenciais à compreensão dos traços fundamentais periferia dessa enorme sinclinal soerguida que os
da geomorfologia do Brasil (E. de Oliveira, 1922 e fenômenos de desnudação marginal se processaram

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de um modo mais generalizado e normal, vindo a ciando, pelo trabalho de numerosos cursos subse-
corresponder, em conjunto, a um sistema típico de quentes, o entalhamento e a desnudação periférica
circundesnudação, dos mais extensos de que se tem generalizada do grande pacote sedimentário. A calha
notícia no relevo terrestre. do Paraná, pré-estabelecida no eixo mesmo da grande
O quadro do relevo da metade do Planalto sinclinal, continuou sendo sempre o principal canal
Brasileiro, ao finalizar-se o Cretáceo, devia se asse- de drenagem de toda a hidrografia regional.
melhar a uma vasta extensão de terras baixas, nas O fato de a maior parte da grande bacia sedi-
quais se entremeavam os restos, um tanto aplainados mentar sulina, principalmente em sua porção cen-
e esbatidos, dos núcleos cristalinos criptozoicos, além tral, possuir entremeamentos de lavas, sills e lacolitos
de seções aflorantes do platô basáltico e planícies associados às formações sedimentares, facilitou ex-
estabelecidas em extensos planos lacustres. Até há traordinariamente o processo de circundesnudação
pouco, havia imperado para a região um regime en- das áreas periféricas não possuidoras do arcabouço
dorreico, ditado pelas condições de um clima semiá- de rochas eruptivas básicas triássicas. Devido às sin-
rido. Nessa época, talvez já nos inícios do Cenozoico, gularidades do levantamento pós-cretáceo, grandes
o Nordeste do país, até ali parcialmente submerso, cursos consequentes paralelos entalharam epigeneti-
assistia à regressão dos mares rasos que durante os camente o pacote sedimentário, desde os velhos ter-
fins do Cretáceo recobriram algumas porções da renos cristalinos até à calha central correspondente
região. Têm-se algumas evidências de que na zona ao Paraná. Os afluentes subsequentes primitivos des-
ocidental da Bahia, as condições de clima tenham nudaram a periferia da bacia sedimentar, exatamente
sido bastante ásperas, quase desérticas (?), ao fina- na zona de transição, onde as diversas formações do
lizar-se o Mesozoico. Um clima mais úmido e um sistema Santa Catarina eram menos espessas e não
sistema hidrográfico exorreico, estabelecidos depois protegidas pelo edifício basáltico. A borda cristalina,
do Cretáceo, ao tempo em que o planalto entrou em na época, devia possuir extensões apreciáveis de ca-
levantamento, devem ter dado início à fase de en- madas cretáceas sub-horizontais, que serviram de as-
talhamento e esculturação generalizada que vamos soalho fundamental à superimposição hidrográfica e
examinar para o meridião brasileiro. ao entalhamento epigenético. O clima regional, du-
A área cristalina do Centro-Sul de Minas e rante a fase de entalhamento, devia ser sensivelmente
leste de São Paulo – núcleo principal de Austro- mais úmido do que o imperante no Cretáceo.
Brasília – sofreu uma espirogênese positiva pós-cre- Os fenômenos de desnudação marginal es-
tácea muito mais pronunciada e irregular que todas boçaram, aos poucos, uma vasta depressão periférica
as demais porções do relevo brasileiro. Os terrenos subsequente, que pôs a aflorar as estruturas paleo-
cristalinos criptozoicos dessas regiões (onde estão zoicas, realizando, ao mesmo tempo, a escultura de
situados os principais acidentes orográficos do terri- um segundo patamar, que restou como uma espécie
tório brasileiro), sendo muito rígidos para se dobrar, de segunda seção, deprimida e intermediária, na
fraturaram-se todos, frente ao processo irregular de plataforma geral do Planalto Brasileiro. Linhas des-
levantamento, que se fez acompanhar de grandes contínuas de cuestass de front externo sobraram mais
tensões longitudinais. Fato, aliás, comum na história para o interior, vindo a constituir escarpas arenítico-
tectônica dos escudos criptozoicos que, perdendo basálticas erosionais, nos limites do extenso platô
peso, após fases muito prolongadas de aplainamento, basáltico. A Serra Geral, com seu longo S, desde as
tendem a se reequilibrar isostaticamente, através de escarpas de Botucatu, em São Paulo, até a região
fases pronunciadas de epirogênese positiva (Leme, “serrana” do Rio Grande do Sul, foi o elemento
1930 e Freitas, 1947). mais característico e de maior expressão fisiográfica,
A nosso ver, a região altamente positiva de conquistado pelos fenômenos de circundesnudação
Austro-Brasília, localizada nos planaltos e velhas pós-cretácea na porção sudeste da Bacia do Paraná.
montanhas rejuvenescidas do Centro-Sul de Minas A nosso ver, a Serra Geral constitui, em quase toda
e Brasil tropical atlântico (Martonne, 1943 e 1944), a sua extensão, um sistema de escarpas de circundes-
deve ter funcionado como uma espécie de núcleo ou nudação, dos mais típicos e gigantes de que se tem
grande lombo divisor, para com os processos de des- notícia.
nudação e circundesnudação pós-cretáceos, entre as Lembramos de passagem que todas as seções
bacias sedimentares do Sul e as do médio São Fran- geológicas do Planalto Meridional do Brasil refletem
cisco e Meio-Norte. problemas de relevo e hidrografia, mais ou menos
Para o estudo da gênese do relevo do Brasil análogos. No Paraná, as formações devonianas locali-
Meridional, interessa-nos salientar que, ao se pro- zadas abaixo da série glacial carbonífera conformaram
cessar o levantamento do rebordo cristalino situado uma outra linha de cuestas, de relativa expressão mor-
a Leste e Nordeste (Brasil tropical atlântico), uma fológica, com restauração parcial de uma seção do pa-
hidrografia pós-cretácea superimposta estabeleceu- leoplano pré-devoniano, esculpido em rochas da série
se acima das formações areníticas mesozoicas, ini- Açungui, tendo à Serra Geral restado algumas de-

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zenas de quilômetros mais para o interior. Em Santa o estabelecimento das vias da circulação terres-
Catarina, na zona fronteiriça com o Rio Grande do tres que põem em ligação os diversos estados do
Sul, a Serra Geral, pelo contrário, possui suas escarpas Brasil Meridional, conforme bem o salientou Pierre
morrendo nas próprias águas atlânticas, na zona em Monbeig (1947).
que o pacote gondwânico foi interceptado pelo sis- Lembramos, também, que, nas pesquisas
tema de falhas sudoeste-nordeste dos fins do Terciário de petróleo na Bacia do Paraná, foram preferidas
e início do Quaternário. As camadas inferiores do sis- sempre as regiões correspondentes à “depressão pe-
tema Santa Catarina executam aí um mergulho mais riférica”. Nessa zona marginal da grande província
acentuado, implicando em que o assoalho criptozoico sedimentária do sul do país, são muito maiores as
deixe de aflorar localmente na faixa litorânea, para só possibilidades apresentadas à perfuração, devido não
reaparecer no sudeste do Rio Grande do Sul através aparecer aí a série São Bento, com seus arenitos eó-
de um relevo muito mais esbatido, correspondente às licos e sua rede complexa de grandes derrames ba-
coxilhas sulinas. É assim que, de Torres para o sul, a sálticos. Foi, aliás, a ausência do espesso e dificultoso
Serra Geral se coloca excepcionalmente na posição da capeamento triássico, nas bordas orientais da Bacia
Serra do Mar, acompanhando muito de perto a orla do Paraná, que determinou uma política clássica em
litorânea. À altura de Taquara, no Rio Grande do Sul, face da seleção de áreas e pesquisas de óleo no sul
porém, ela se inclina mais diretamente de leste para o do Brasil (Washburne, 1930; Rego, 1931; Oliveira,
oeste, perdendo gradualmente altitude à medida que 1940). O Prof. Otávio Barbosa (1948) é de opinião
demanda o oeste e o sudoeste (calha do Uruguai). contrária, achando que se deve fazer perfurações no
Na metade setentrional do Rio Grande do cimo do planalto arenítico-basáltico (além da linha
Sul, podem ser observados outros tantos fenômenos de cuestas, portanto), a fim de se atingir e captar os
de circundesnudação, de análise relativamente com- bolsões de óleo conservados nas formações paleo-
plexa. A região deprimida, ocupada pelo vale dissimé- zoicas, que teriam sido resguardados pelo anteparo
trico do Rio Jacuí, constitui uma zona de desnudação da grande tampa de efusivas básicas. Dentro desse
marginal pós-cretácea, possivelmente esculturada ao ponto de vista, os fenômenos de circundesnudação
tempo em que a hidrografia regional se fazia de leste deveriam ser tomados como fatores negativos ao
para sudoeste. Caso essa última premissa esteja certa, problema do petróleo no Brasil Meridional, pois,
pode-se dizer que o traçado do Jacuí não é o traçado segundo os argumentos do Prof. Barbosa, a desnu-
de um rio integralmente subsequente, porém, o de dação marginal teria destruído os principais bolsões
um rio recente subsequente mais propriamente dito. ou reservatórios, por acaso existentes nas formações
Geologicamente, os patamares oriundos dos oleíferas das bordas da grande sinclinal.
fenômenos de desnudação marginal e circundesnudação A bibliografia geológica e geomorfológica
no Planalto Brasileiro são constituídos por extensas para o estudo dos fenômenos de desnudação peri-
e alongadas faixas semicirculares, ligeiramente férica, em certas áreas do sul do Brasil, é bem mais
concêntricas, de terrenos paleozoicos. Em alguns rica em conteúdo do que a existente para outras por-
lugares, entre as bordas das formações paleozoicas ções do território brasileiro. Cumpre-nos citar, prin-
e os primeiros terrenos cristalinos, afloram seções cipalmente, os trabalhos de Denis (1927), Du Toit
ainda não totalmente reesculturadas de superfícies (1927), Maull (1930), Washburne (1930 e 1939),
antigas (“superfícies fósseis”, Martonne, 1943-4). Moraes Rego (1931, 1932, 1935a, 1936, 1937-41 e
De Martonne estudou em São Paulo, na região de 1940), Oppenheim (1934), Martonne (1943-1944),
Itu, os vestígios da superfície pré-glacial, enquanto o Preston James (1942, 1946), Almeida (1947) e
Prof. Caster e, mais recentemente, Reinhard Maack Maack (1947).
puseram em evidência a existência de uma seção,
hoje bastante reesculturada, de um paleoplano pré- ö
devoniano no chamado 1º planalto do Paraná.
O grande interesse econômico apresentado Na periferia leste e noroeste da sinclinal para-
pela desnudação periférica, no sistema Santa Cata- naense, nas regiões correspondentes a Goiás, Mato
rina, foi o de ocasionar o afloramento de camadas Grosso e Paraguai, os fenômenos de circundesnu-
paleozoicas nas bordas de circundesnudação, pos- dação foram em parte auxiliados, ao mesmo tempo
sibilitando a exploração dos horizontes carboní- que dissimulados, pela intervenção de falhas e mo-
feros da série Tubarão, que ora se apresentam pró- vimentação em blocos, concomitantes ao processo
ximos ao litoral, em regiões de acesso relativamente de epirogênese positiva que alteou o rebordo da sin-
fácil (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e, em clinal naquelas regiões.
outros pontos, ficam muito para o interior, geo- A oeste das cuestas de Maracaju, até à Baixada
graficamente mal colocados (Paraná). Não poderí- Paraguaia, os detalhes dos processos de desnudação
amos deixar de nos referir, também, à importância marginal estão bem flagrantes, havendo repetição
que tiveram as regiões de circundesnudação para mais ou menos completa das condições de geologia e

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relevo que se observa a leste das cuestas de Botucatu. cias e discussões de caráter geral, feitas na Associação
Uma série de trabalhos geológicos e fisiográficos de dos Geógrafos Brasileiros (seção de São Paulo) e de
Fernando de Almeida (1940, 1943 e 1944) serviram um relatório sintético do primeiro desses pesquisa-
bem para demonstrar esses fatos. dores, já publicado (1947).
No sudoeste de Goiás, as linhas de falhas
afetaram as próprias formações sedimentares pe- A calha do médio São Francisco compreendida
riféricas, antes de uma desnudação mais completa, como região de desnudação periférica
ao contrário do que se observa na borda atlântica,
onde, salvo na costa sul-catarinense e norte do Rio Na zona atual do médio vale do São Francisco,
Grande do Sul, a movimentação em blocos atingiu a hidrografia pós-cretácea entalhou e removeu grande
somente os velhos terrenos criptozoicos, alteando-os faixa de sedimentos mesozoicos, fazendo aflorar as
em forma de semisserras, cujos exemplos mais carac- formações paleozoicas inferiores da série Bambuí.
terísticos são a Mantiqueira e a Serra do Mar. Os es- Veio a formar-se assim, de sul para norte, pela supe-
tudos de Glycon de Paiva (1932), no sudoeste goiano, rimposição hidrográfica, uma extensa calha de des-
fornecem as bases para a percepção das grandes li- nudação periférica, entre as serras cristalinas de leste
nhas da geologia e fisiografia regionais, assim como e os chapadões areníticos cretáceos de oeste (Rego,
dos detalhes essenciais sobre os fenômenos de des- 1936a). A zona predisposta ao entalhamento e à des-
nudação marginal lá existentes. Em 1947, os Pro- nudação rápida, ali como em muitos outros lugares
fessores Kenneth Caster, Otávio Barbosa, Fernando do Brasil, foi a linha de transição antiga entre a bacia
de Almeida e Setembrino Petri, em expedição à sedimentar terrígena de oeste e as velhas montanhas
região sudoeste de Goiás e leste de Mato Grosso, rejuvenescidas proterozoicas de leste (Espinhaço e
estabeleceram novos mapas geológicos preliminares, Chapada Diamantina). Cursos antigos, estabelecidos
de excepcional importância para a compreensão dos do Cretáceo para diante, obedecendo à inclinação
processos de circundesnudação pós-cretáceos, que se geral de Minas para o Nordeste, conformaram uma
fizeram atuar naquelas longínquas porções da Bacia longa e expressiva “depressão periférica subsequente”,
do Paraná. Nos mapas esboçados pelos Profs. Caster na zona de transição entre o embasamento soerguido
e Almeida, ainda não publicados, fica patente a exis- de leste e a bacia sedimentar de oeste (Rego, 1936a).
tência de longas faixas semicirculares concêntricas A esse tempo, muito possivelmente, a bacia hidrográ-
de formações sedimentares paleozoicas, a partir da fica do médio São Francisco alimentava cursos an-
linha de cuestas do Caiapó. De fato, por esses novos tigos da hidrografia amazônica ou nordestina (Rego,
mapas, que tivemos ocasião de examinar, nota-se a 1936a; Valverde, 1944).
sucessão de faixas alongadas e recurvas de terrenos Somente quando o processo de desnudação
permianos, caboníferos e devonianos, estendendo-se periférica pós-cretáceo já se tinha praticamente
logo após as formações triássicas e cretáceas do Pla- completado, houve uma nova e muito pouco expres-
nalto de Rio Verde, quase que numa repetição exata siva fase de deposição, responsável pelos calcários das
dos fatos geológicos e geomorfológicos observáveis caatingas. Para Moraes Rego, a origem desses calcá-
nos mapas da face oriental da Bacia do Paraná. rios modernos deve-se ligar à “dissolução dos calcá-
Muito mais do que em outras regiões brasi- rios antigos e à precipitação dos carbonatos em clima
leiras, permanecem desconhecidos os pormenores que comportava fases semiàridas” (1936a, p. 60). O
da geomorfologia dessas extensas zonas do Centro- Prof. Otávio Barbosa tem ideias inteiramente di-
Oeste brasileiro. Mas, foi precisamente a análise do versas das de Moraes Rego a respeito da gênese dos
conjunto de fatos fisiográficos e geológicos já conhe- referidos calcários. Lembremos, de passagem, que a
cidos em relação à face ocidental da grande bacia sedimentação das formações bastante recentes, ditas
paranaense, que nos levou a perceber o mecanismo das vazantes e das cacimbas (fossilíferas), já pertence
gigante dos fenômenos de circundesnudação, que, de- a um ciclo de sedimentação pleitocênico e holocê-
pois do Cretáceo, se processaram na periferia geral nico, tendo se processado posteriormente à captura
da imensa sinclinal gondwânica soerguida existente do braço do médio São Francisco para a vertente
na metade setentrional do Planalto Brasileiro. atlântica de leste (Rego, 1936a). Corresponde à sedi-
Os trabalhos de maior interesse sobre a gênese mentação do tipo aluvial, forçada por ação de soleiras
das estruturas e do relevo da face oeste da Bacia do e ligadas à complexidade do perfil longitudinal do
Paraná são os de Paiva (1931), Paiva e Leinz (1939), Rio São Francisco.
Almeida (1940, 1943, 1944, 1947a, 1947b e 1948), Citaremos como trabalhos fundamentais ao
e Costa Jr. e Ab’Sáber (1948). Não se devendo es- estudo da geologia e da geomorfologia do médio
quecer os trabalhos ainda inéditos dos Profs. Ken- vale sanfranciscano, dentro dos limites de interesse
neth Caster, Otávio Barbosa e Fernando Almeida, da presente monografia, as obras de Moraes Rego
resultantes dos estudos realizados na expedição de (1926, 1936a), Barbosa e Oppenheim (1937), Mello
1947, dos quais só temos notícia através de conferên- Jr. (1938), Gilvandro Pereira (1943, 1945), Valverde

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A Obra de Aziz Nacib Ab'Sáber
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(1944), Almeida (1946) e Porto Domingues (1947, nalisando no presente trabalho; e, em conferências
1947a,1948), sem esquecer os trabalhos clássicos de pronunciadas naquela época, salientou a idade pré-
Derby, Branner, Freyberg, Jacques de Moraes e Gui- cretácea da fase de esculturação geral do peneplano
marães, todos de caráter mais propriamente geoló- nordestino.
gico e petrográfico. Note-se que as camadas mesozoicas, que re-
pousavam na plataforma aplainada existente na pe-
Fenômenos de desnudação, na periferia oriental riferia oriental da Bacia do Meio Norte, possuíam
da Bacia do Meio-Norte disposição praticamente horizontal. Daí o relevo
tabular da Chapada do Araripe e outros pequenos
A desnudação parcial das formações lacustres morros testemunhos ainda restantes no sertão do
e marinhas cretáceas da margem oriental da Bacia Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte. As ca-
do Meio-Norte se processou, ao que tudo indica, madas paleozoicas, que à altura da fronteira do Piauí
entre o início do Terciário e o Mioceno. Nesse lapso com o Ceará (Serra do Ibiapaba) apresentam-se na
relativamente grande de tempo geológico, uma rede forma de extensa linha de cuestas, possuem sensível
hidrográfica exorreica, estimulada pela epirogênese mergulho geral para oeste, em direção ao antigo eixo
positiva que se manifestou generalizadamente no re- da velha sinclinal regional. Foi essa inclinação gene-
bordo de leste da grande Bacia, auxiliou a remoção e ralizada que determinou, ao lado dos fenômenos de
o entalhamento do capeamento sedimentar que pre- desnudação periférica, o estabelecimento da linha de
enchia a plataforma cristalina aplainada, existente cuestas da Serra Grande. A seção geológica traçada
entre o costado ocidental da Borborema e a região por Plummer (1946) é altamente sugestiva, tanto sob
do Ibiapaba. Nesse trecho de território, o único tes- o ponto de vista da geologia como da geomorfologia
temunho mais pronunciado de terrenos sedimen- regionais.
tares, que restou no meio da antiga peneplanície Pode-se dizer que, em conjunto, a Serra
cristalina, restaurada e reesculturada, foi a Chapada Grande (Ibiapaba) representa um dos alinhamentos
do Araripe. Os outros resíduos de estruturas sedi- dos mais característicos de escarpas de circundesnu-
mentares existentes no sertão do Nordeste Oriental, dação, relacionada à Bacia do Meio-Norte. Pena é
posto que pouco salientes, têm grande importância que nos faltem elementos para apontar fenômenos
paleogeográfica e geomorfológica, porque lembram idênticos em outras vertentes da grande bacia sedi-
e indicam a extensão do antigo capeamento sedi- mentar regional.
mentar ali existente. Uma das consequências negativas aos interesses
O retalhamento do pacote sedimentário na do homem, diretamente oriundas dos fenômenos de
porção oriental do Nordeste foi sobremaneira fa- desnudação periférica no Nordeste Oriental, é muito
cilitado pela inexistência de eruptivas básicas, tão bem posta em evidência por Leonardos e Oliveira,
comuns à Sinclinal Paranaense e, mesmo, ao eixo quando dizem que as condições de aridez tenderam
principal da Bacia do Meio-Norte. Desta forma, sempre a piorar na porção oriental do Nordeste, “com
o trabalho erosivo da hidrografia pós-cretácea na a destruição progressiva das rochas reservatórias e
porção oriental se fez de um modo relativamente com o aumento do peneplano de rochas cristalinas,
simples, retalhando e removendo as camadas peri- não acumuladas de água no subsolo” (1943, p. 630).
féricas da grande província sedimentar nordestina. Está bem claro que há um grande exagero quando
Esboçou-se, no decorrer do processo de erosão, a esses autores dizem que “em virtude da destruição
topografia tabular das chapadas nordestinas, assim dos reservatórios, que eram os sedimentos arenosos,
como a linha de cuestas da chapada do Ibiapaba, aci- originou-se como fatalidade geológica as secas que
dentes que foram posteriormente remodelados nos flagelam os estados nordestinos”. É fora de dúvida,
detalhes, devido aos novos processos de intempe- porém, que, hoje, em face do atual zoneamento cli-
rismo criados pelos climas semiáridos ali instalados mático imperante no Planalto Brasileiro, a ausência
no Quaternário. quase completa de um capeamento sedimentar na
Foi exclusivamente a desnudação perifé- zona que se estende desde o Ibiapaba até a Borbo-
rica pós-cretácea, na periferia oriental da Bacia do rema agravou o fenômeno da escassez de água, cuja
Meio Norte, forçada por um movimento epirogené- origem, na realidade, resulta do regime pluviomé-
tico positivo, que determinou a restauração parcial trico regional. Serve de contraprova a esse fato, como
do assoalho várias vezes aplainado da peneplanície oportunamente nos lembrou o Prof. Dias da Silveira,
cristalina nordestina, além do ressalientamento do o que ocorre na base da Chapada do Araripe, ma-
lombo de relevo cristalino da Borborema. O Prof. nancial perene da região do Cariri.
João Dias da Silveira, em 1943, após uma viagem de Dentro do grupo de obras básicas para a
estudos ao sertão do Nordeste, discutindo a gênese compreensão da história geológica e alguns fatos
do peneplano cristalino regional, chamou a atenção geomorfológicos do Nordeste, indispensável é
para os aspectos geomorfológicos que estamos rea- citar-se os trabalhos de Small (1923, 1923a), Jacques

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de Moraes (1924), Moraes Rego (1935, 1935b), muito mais a processos erosivos que à sedimentação
Paiva e Miranda (1937), Euzébio de Oliveira (1940), propriamente dita. Nesse segundo caso, teríamos que
Preston James (1942), Oliveira e Leonardos (1943), conceber, durante o Cenozoico, um período de abai-
Silveira (1943, 1943a) e Plummer (1946). xamento por flexura de grande vulto, a fim de poder
explicar a existência daquele enorme abaulamento,
Especulações a respeito dos problemas da observável em toda a extensão do atual anfiteatro
desnudação pós-cretácea no sul da Amazônia e cristalino amazônico.
periferia ocidental da Bacia do Meio-Norte É bem possível que, enquanto o Nordeste
Oriental, a Região Leste e a Região Meridional, de-
Quando se procuram analisar os problemas da pois do Cretáceo, sofriam uma fase de levantamento
gênese do relevo da metade setentrional do Planalto e empinamento generalizado, o sul da Amazônia,
Brasileiro, surgem questões praticamente insolúveis, que permanecera relativamente alteado, até então, daí
ligadas ao desconhecimento geológico e topográfico por diante tenha sido submetido a um vasto movi-
de extensas porções da Amazônia e do Nordeste Oci- mento de flexionamento, cujo eixo central continuou
dental. Há quem suponha ter a sedimentação cre- sendo a velha sinclinal amazônica. A borda ocidental
tácea se estendido por grandes áreas, possuindo, no da sinclinal do Meio-Norte, hoje correspondente aos
caso, ligações com as outras províncias sedimentares estados do Maranhão e Piauí, teria acompanhado,
contíguas, tendo recoberto no passado até mesmo até certo ponto, esse movimento de flexura sul-ama-
os apêndices cristalinos que as separavam anterior- zônico, abatendo-se um tanto mais para oeste e no-
mente. Nesse caso, teria sido a potente hidrografia roeste. Fato que talvez tenha sido o principal respon-
de tipo equatorial, ali posteriormente estabelecida, o sável pela não repetição muito nítida dos fenômenos
que teria feito a desnudação rápida e generalizada de circundesnudação nessa vertente*.
do capeamento mesozoico que deveria encobrir as Praticamente não existe bibliografia auxiliar
encostas cristalinas sul-amazônicas e ocidentais do para especulações geomorfológicas em torno dessas
Maranhão. Por outro lado, porém, é possível que as duas últimas regiões que tentamos examinar; o que
encostas cristalinas, hoje esbatidas do meridião da apresentamos constitui ideias preliminares, dedu-
Amazônia, estivessem muito mais altas durante o zidas do escasso material geológico que conhecemos
decorrer da era secundária. Talvez representassem, sobre a região.
na época, uma área grandemente positiva, sujeita
A bibliografia deste artigo se encontra no DVD anexo

* Sobre as relações paleográficas em face da fossa


tectônica de Marajó, recentemente prevista pelos estudos
geofísicos do Conselho Nacional do Petróleo, nada se pode
deduzir até o estado atual dos acontecimentos. Ver O.H.
Leonardos, in Miner. e Metal., nº 73, 1948, p. 35.
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