Você está na página 1de 8

AZIZ AB’SÁBER

AZIZ AB’SÁBER
é professor honorário
do Instituto de Estudos
Avançados da USP e
autor de, entre outros,
Amazônia – do Discurso à
Práxis (Edusp).
o conhecimento sobre a dinâmica climática e hidrológica de um
rio perene, que cruza caatingas em um certo trecho de seu
longo vale, é essencial para qualquer tipo de planejamento.
Nos estudos básicos para fundamentação de projetos para os
sertões secos do Nordeste, há que considerar todas as terri-
torialidades que estão ao norte do Araripe, dotadas de rios inter-
mitentes, sazonários, exorréicos, assim como toda a área sertaneja
localizada ao sul da chapada divisora.
Além do mundo físico e ecológico, é absolutamente necessário
realizar estudos básicos sobre a projeção da sociedade sertaneja
sobre o espaço total da área reconhecida como Polígono das Secas,
e identificar os problemas enfrentados pelas comunidades residentes
de todos os sertões. No caso da transposição do Rio São Francisco para
além-Araripe, torna-se imprescindível conhecer melhor a região semi-
árida da qual se pretende tirar um certo volume de água fluvial.
No caso do projeto governamental ora sob pressão para
transpor águas do São Francisco, de início se fez um branco no tra-
tamento da região semi-árida são-franciscana. Quando se percebeu
a grandiosidade do erro em termos sociais e políticos, passou-se a
falar, entre os maiores interessados na implantação do projeto, em
uma revitalização prévia do Vale do Rio São Francisco. Como se
essa tarefa fosse factível em face da ordem de grandeza espacial
do vale e da complexidade socioeconômica dos homens habitantes.
De forma que a palavra utilizada epidermicamente teve apenas um
valor demagógico. No que tange aos sertões pseudamente receptores
dos recursos hídricos a serem tirados do São Francisco, desde o início
se falou em “águas para todos”, como se um projeto linear tivesse
força para abranger areolarmente todos os sertões povoados de
além-Araripe. Mais do que isso, procurou-se dizer que a transposição
garantiria águas para beber. Sem lembrar que um certo volume de
águas poluídas misturadas com águas salinizadas de alguns grandes
açudes impediria o uso imediato das águas para fins potáveis.
Propagou-se desde o início uma esta- lativamente bem distribuídas, totalizando
tística aproximada dizendo que a retirada de 1.100 a 1.400 mm anuais.
das águas do São Francisco seria de apenas A seguir, por outras centenas de quilô-
1% do volume total do rio. Um fato que, metros ocorrem climas tropicais úmidos
segundo os dizeres técnicos limitados, não a duas estações (verão chuvoso e inverno
iria prejudicar nem o rio, nem tampouco seco), existindo, porém, um total de chuvas
a população ribeirinha são-franciscana. anuais que se acrescenta às águas provindas
Somente não se falou, nem se quis falar, do alto vale. Em seguida, a partir da fron-
que a maior necessidade de águas para teira de Minas Gerais com a Bahia, ocorre
além-Araripe coincidiria com a estação uma dualidade hidrográfica na área em
seca dos meados do ano em que o Rio São que o rio transpõe o semi-árido no espaço
Francisco permanecia com menor volume interior de Bahia, Pernambuco, Alagoas e
de água. adjacências. Em outras palavras, somente o
Convém lembrar sempre aos técnicos São Francisco continua perene, porém com
mal orientados sobre a hidroclimatologia rebaixamento do volume da água corrente.
regional dos sertões de aquém e além- A oeste da Bahia, os rios se comportam
Araripe que será mais necessário ter águas como se fossem tropicais úmidos a duas
exatamente quando o Nordeste semi-árido estações, conseguindo chegar até a margem
designado por Grande Sertão Norte estiver esquerda do São Francisco em “pleno in-
mais quente e seco com seus rios “cortados”, verno”. No entanto, numerosos pequenos
para usar de uma palavra tradicional criada afluentes da região semi-árida cruzada pelo
pelos sertanejos. Tanto o rebaixamento e Rio São Francisco, na Bahia, comportam-se
corte das águas dos sertões além-Araripe segundo o modelo mais amplo dominante
quanto aqueles ocorrentes no médio-baixo no semi-árido brasileiro, ou seja, como
Vale do São Francisco correspondem ao rios intermitentes, sazonários, exorréicos.
inverno astronômico; entretanto, devido As chuvas do semi-árido são-franciscano
a um conjunto de fatores hidroclimáticos totalizam volumes de 500 a 600 mm anuais
complexos, nos sertões de além-Araripe por oposição aos 1.500-1.800 mm predo-
ocorre uma secura prolongada que faz a in- minantes no domínio dos cerrados.
termitência sazonária dos rios e que, por uma O quarto conjunto hidroclimático do
razão pragmática compreensível, conduziu Rio São Francisco corresponde à chamada
as populações regionais a falarem em verão. Zona da Mata costeira, onde as precipita-
Fato que, aliás, não é único no mundo, já ções, num espaço relativamente limitado
que existem outras áreas onde, no inverno (Sergipe, Alagoas), atingem um total de
astronômico, ocorrem condições quentes e 1.200 a 2.100 mm, aproximadamente. Para
secas que conduzem a uma inversão termi- ser mais detalhado, convém, entretanto,
nológica regional justificável. registrar as fortes transições progressivas
O primeiro ponto a destacar é que o existentes entre os climas tropicais úmidos
Rio São Francisco cruza os sertões baia- das cabeceiras, os climas do médio vale
nos, pernambucanos, pro parte alagoanos mineiro do São Francisco, o clima da re-
e sergipanos, com as águas de suas cabe- gião semi-árida baiana e, por fim, os climas
ceiras e uma parte das chuvas sazonárias tropicais úmidos da região costeira. Com
importantes do domínio dos cerrados. Na um detalhe a mais, em relação à transição
realidade, o São Francisco possui quatro rápida e complexa entre o clima dos sertões
setores principais hidroclimáticos sub-re- secos do São Francisco e as faixas úmidas
gionais a serem considerados com atenção da Zona da Mata. Há muito, o próprio povo
para qualquer tipo de projeto, como esse ora identificou a longa e irregular faixa de tran-
em discussão. Nas suas cabeceiras, desde a sição entre o muito seco e o relativamente
Serra da Canastra até algumas centenas de muito úmido sob o nome de área dos agres-
quilômetros, existem condições tropicais tes. De tal forma que essa expressão tem
úmidas de planalto com precipitações re- validade tanto hidroclimática e ecológica,

8 REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006


assim como de suas ofertas para atividades
agrárias, valendo como uma identificação
científica intuitiva quase perfeita.
De toda esta análise, fica bem patente
que o semi-árido nordestino brasileiro
possui o mesmo ritmo sazonário dos pla-
naltos interiores dominados por cerrados,
existindo, porém, uma diferença fantástica
de volume de precipitações anuais entre
os extensos cerrados e os grandes sertões.
Nos planaltos interiores recobertos por
cerrados e recortados por densas florestas
de galerias, as precipitações anuais totais
chegam a três ou quatro vezes mais do que
os totais de chuvas tombadas na mesma
época nos sertões quentes e secos, dotados
de caatingas herbáceas, arbustivas, altos
“pelados” e cactáceas em lajedos de solos
líticos e inselbergs.
Convém lembrar que a melhor maneira
para delimitar o Polígono das Secas, em
relação aos domínios morfoclimáticos e
fitogeográficos do seu entorno, é o espaço
Arte sobre foto de Sílvia Lins

até onde ocorrem as caatingas e áreas de rios


e riozinhos intermitentes, sazonários: aí está
a core-área do domínio dos sertões nordes-
tinos. De tal maneira que fica fácil para os
cientistas, os planejadores e os governantes
saberem alguma coisa do espaço total re-
gional, dominado por rusticidades e grandes
problemas para o homem habitante.
Um fato absolutamente deplorável no
projeto de transposição de águas do São
Francisco para o setor além-Araripe do
Nordeste seco diz respeito à total ausên-
cia de estudos básicos sobre a dinâmica
climática macrorregional. Não é possível
afirmar, em termos genéricos, que o projeto
prevê a retirada de apenas 1% do volume
das águas do “Velho Chico” e que, por essa
razão mesma, não haverá prejuízo para as
funções permanentes do rio em relação às
hidroelétricas de Paulo Afonso, Itaparica e
Xingó. Em uma comparação muito próxima,
já se sabe que o Nilo atravessa o deserto,
enquanto o São Francisco cruza um bom
trecho de caatinga em seu baixo-médio
vale até a Bahia, Pernambuco e Alagoas.
Na realidade, o São Francisco é dependente
das áreas úmidas de seu alto vale acrescidas
das águas de alguns de seus afluentes pro-

REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006 9


vindos de áreas relativamente chuvosas, ou rochosas que seccionam transversalmente
de rios espaçados do domínio de cerrados. os rios dos sertões nordestinos constituem
Trata-se, portanto, de um curso d’água o mais importante manancial para obtenção
perene de tipo marcadamente alóctone. O de água potável nas áreas cortadas por rios
Jaguaribe, para onde se pretende transpor de leito arenoso. Bastaria lembrar o cenário
parte das suas águas, enquadra-se na ca- das crianças sertanejas puxando jegues com
tegoria de rios intermitentes, sazonários e pipotes para obter águas doces nas pequenas
abertos para o mar (exorréicos). Fato que cavas feitas no leito superficialmente seco,
precisa ser repetido muitas vezes para os mas dotado de águas subsuperficiais retidas,
planejadores dotados de baixa interdiscipli- não-evaporadas, a um ou dois metros de
naridade. Convém lembrar também, nesse profundidade.
sentido, que quase 100% dos rios brasileiros
inter e subtropicais chegam ao mar pelos Ao se iniciar a idéia da transposição de
mais variados caminhos, enquadrando-se águas do São Francisco para o Ceará e Rio
na categoria de drenagens abertas para o Grande do Norte, ninguém se preocupou
oceano (tecnicamente dito exorréicos). Não com os problemas da própria região de onde
existem verdadeiras drenagens endorréicas sairiam as águas. Era uma idéia fixa por
e arréicas no território brasileiro. Trata-se transpor, apesar das observações corretas
de uma vantagem a nosso favor, relacionada feitas pelo então bispo de Barra ao então
ao fato de que todos os sais minerais reti- candidato a presidente e alguns de seus
rados das rochas decompostas ou alteradas companheiros. Caberia ao sucessor de dom
são dejetados para o oceano de tal modo Itamar Vian – Luiz Flávio Cappio – a tarefa
que é uma idiotice total quando alguém histórica de um protesto contra o simplismo
comenta que os problemas do Nordeste e a desatenção dos responsáveis pelo pro-
seco estariam relacionados ao fato de que jeto em relação aos próprios problemas do
todas as suas águas escoariam para o mar. setor semi-árido do São Francisco. Tinha
Mal sabem eles que a qualidade relativa dos muita razão dom Cappio ao fazer sua greve
solos de todos os sertões e, sobretudo, os de fome em Cabrobó, em frente à represa
do Ceará está relacionada com a dinâmica de Sobradinho. O episódio balanceou os
chamada exorreísmo. Sem conhecer esses ânimos dos autoritários e incompetentes
fatos alguém já comentou para justificar a mentores do projeto. Dom Cappio foi in-
transposição das águas do São Francisco duzido a acabar com seu histórico protesto
para além-Araripe que: “Já que as águas de repercussão nacional.
vão para o mar que mal existe com que elas Seu principal argumento era que a faixa
sejam transpostas?”. Tais raciocínios são de utilização agrária, no setor sertanejo do
mais tristes quando se sabe que as grandes São Francisco, era muito restrita. Nesse
barragens do sertão provocam localmente sentido, tinha bastante razão; mesmo por-
salinização, sobretudo no caso de Orós. que, comparado com os sertões do Ceará,
Por meio desses raciocínios singelos e onde existia gente por toda a parte, as bei-
inconseqüentes, não se pode avaliar que as radas do “Velho Chico” eram mais rústicas
águas doces poluídas do São Francisco, ao e pobres do que as colinas sertanejas de
serem despejadas do outro lado do Araripe, além-Araripe.
irão se misturar com as águas semi-sali- Esses argumentos tornam-se mais
nizadas de um grande açude (Orós), ou verdadeiros quando se considera a grande
prejudicar as águas doces retidas abaixo extensão de dunas da região de Xique-Xi-
dos sedimentos arenosos, dos leitos de rios que, que elimina qualquer possibilidade
dependentes, das águas de alta qualidade de uso do espaço na margem esquerda
provenientes de chuvas dos sertões semi-ári- do rio, frente à velha cidadezinha. A
dos (“de inverno” no dizer do sertanejo). não-consideração da fantástica quantidade
Deve-se lembrar que até hoje normal- de areias do paleodeserto de Xique-Xique,
mente as águas poupadas entre soleiras além da limitação para usos tradicionais

10 REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006


de sobrevivência da população regional, cerrado, cerradões e campestres cruzados
constitui uma área matriz de fornecimento por florestas-galerias.
detrítico para assoreamento do rio. Um Aos poucos, passam a dominar cerrados
atestado a mais do pouco conhecimento e cerradões degradados na depressão inter-
dos mentores do projeto, que teimam planáltica do médio vale são-franciscano,
em dar propostas simplistas para o que sob um clima tropical a duas estações. Flo-
chamam de revitalização do vale. Uma restas-galerias e eventuais veredas marcam
tarefa para a qual não estão preparados, a relativamente estreita planície do rio. A
pelo pouco conhecimento que possuem em leste, a partir das montanhas do quadrilátero
relação a um rio que tem 2.000 quilôme- auro-ferrífero, estende-se a dorsal da Serra
tros de extensão sul-norte, desde as suas do Espinhaço, e os altiplanos da Chapada
cabeceiras tropicais úmidas de planalto, e Diamantina, onde ocorrem campestres de
pela região dos cerrados tropicais a duas cimeira e mini-relictos de cactáceas. A oeste,
estações, até chegar ao baixo-médio vale, pronunciam-se os chapadões cretácicos do
onde atravessam caatingas na condição de noroeste da Bahia, com sua rede de cursos
curso d’água alóctone. Não considerando afluentes, orientados de sudoeste para nor-
a grande extensão sul-norte do vale e seus deste, marcados por estreitas e alongadas
diferentes setores climático-hidrológicos, florestas ciliares (florest galarie): um con-
assim como a diversidade de ocupação junto espacial sujeito à expansão da soja e
antrópica nos diferentes setores do vale, à multiplicação do sistema de irrigação por
é totalmente impossível aplicar um termo pivôs. As precipitações nessa área atingem,
tão genérico quanto “(re)vitalização”. em média, pouco mais do que 1.600 mm
Em função de seu longo traçado sul- anuais, com uma grande predominância de
norte no Brasil tropical centro-oriental, o chuvas de verão e inverno relativamente
Rio São Francisco atravessa quatro seto- seco. Uma transição brusca nas condições
res de domínios da natureza do território climáticas acontece nos confins do São
brasileiro. Desde o altiplano cristalino da Francisco baiano, surgindo bruscamente
Serra da Canastra – a nordeste do Triângulo diferentes fácies de caatingas, em terras
Mineiro – até o mar, na fronteira de Alagoas baixas, encarceradas entre a Chapada
com Sergipe; devendo ser lembrado que o Diamantina e os chapadões sedimentares
rio totaliza 2.170 quilômetros de extensão. cretácicos de oeste (areado).
Atravessando setores de quatro domínios É, grosso modo, a partir da fronteira de
morfoclimáticos e fitogeográficos inter- Minas Gerais com a Bahia, que o São Fran-
tropicais brasileiros – em um eixo maior cisco começa a cruzar o setor regional de
nitidamente longitudinal –, o “Velho Chico” caatingas. As precipitações baixam gradu-
percorre espaços climático-hidrológicos almente de 1.100 mm para 600 ou 400 mm,
muito diferentes entre si: como já expuse- prosseguindo em condições semi-áridas por
mos, nasce em um altiplano dotado de cam- todo o médio-baixo vale até o cotovelo do
pestres e matinhas biodiversas de cimeira, rio e os sertões de Alagoas e Sergipe; es-
passando logo a percorrer regiões tropicais tendendo caatingas pelas próprias paredes
úmidas de planalto, outrora recobertas por do cânion de Xingó.
matas biodiversas de transição, hoje domi- Por longos espaços, o São Francisco
nadas por atividades agrárias diversificadas. comporta-se como o único curso d’água
Recebendo precipitações anuais superiores perene da região, em que, no seu conjunto,
a 1.100 mm em média, bem distribuídas, as efetivamente predomina uma drenagem
terras regionais têm condições de possuir intermitente sazonária exorréica, que é
lençóis d’água subsuperficiais suficientes incapaz de manter qualquer lençol d’água
para manter a perenidade de todo o Alto subsuperficial que garanta uma perenidade
Vale do São Francisco. Após algumas cen- de todos os córregos, rios e riozinhos re-
tenas de quilômetros para o norte, ocorre gionais; já que o aprofundamento do lençol
uma rápida transição para a vegetação do força um sistema hidrológico em que o calor

REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006 11


e a evaporação obrigam os pequenos cursos de morros e maciços antigos; baixios de
de água a alimentarem o lençol abaixo de pé-de-serra; bizarros montes cársticos;
seus leitos temporariamente secos por cinco vazantes ribeirinhas lodosas, envolvendo
a sete meses do ano. Exatamente quando, argilas e partículas de calcários; corpos de
em pleno inverno astronômico, o exagerado dunas de um paleodeserto arenoso (psamo-
aquecimento produz uma condição chamada bioma); além de rios afluentes empestados
de “verão sertanejo”. por resíduos de defensivos agrícolas; e um
Ultrapassados os “altos sertões” de Per- afluente de exceção na margem direita do
nambuco e Alagoas e pro parte Sergipe, o rio, proveniente de grandes cidades e áreas
São Francisco cruza faixas irregulares de minero-siderúgicas. De tal forma que o alto
agrestes. Essa banda leste do espaço prin- e médio Vale do Rio das Velhas possui um
cipal dos sertões semi-áridos inclui o mais complexo metabolismo urbano-industrial
variado mosaico de ecossistemas nordesti- e forte poluição hídrica.
nos, envolvendo caatingas arbóreas, mati- No espaço total da bacia hidrográfica
nhas ralas e, por fim, na periferia interior da do Rio São Francisco existe, portanto, uma
Zona da Mata costeira típica, uma alongada setorização climático-hidrológica regional
e sinuosa faixa de vegetação designada por que garante sua perenidade, possibilitando
“matas secas biodiversas”. No interior desse o cruzamento das caatingas e paleodesertos
conjunto complexo do agreste, em áreas arenosos, ocorrentes no médio vale inferior
rebaixadas de solos razoáveis, acontece um da bacia hidrográfica regional. É impor-
protótipo regional de atividades agrárias que tante relembrar que a área dos cerrados do
comporta cercas-vivas reticuladas; onde se médio vale são-franciscano tem a mesma
separam terrenos para plantações e terrenos sazonalidade que o Polígono das Secas;
para criação de gado. Esse agroecossistema porém, totaliza de três a quatro vezes mais o
indica sempre condições climáticas, fitogeo- volume de chuvas de inverno do que o total
gráficas e ecológicas moderadas de grande das precipitações do Nordeste seco. Esta
tipicidade e importância social, recebendo última pode ser considerada a mais ampla,
de 750 a 950 mm em média de precipitação complexa e socialmente importante faixa
anual. Somente as chamadas matas secas de transição de todo o Nordeste, por toda
se diferenciam dos agrestes, localizando- a parte reconhecida pelo termo “agrestes”
se sempre nos confins da mata atlântica ou “terras agrestadas”. Na continuidade
sublitorânea, onde ocorrem estreitas faixas espacial para a zona litorânea e sublito-
de florestas tropicais úmidas biodiversas rânea – zona da mata propriamente dita
em colinas e tabuleiros, com verdadeiras – os totais de precipitações anuais sujeitas
faixas de florestas tropicais biodiversas. a chuvas de verão e de inverno alcançam
Esta última é uma área que, ao longo de de 1.500 a 2.100 mm anuais, em média. O
cinco séculos de ocupação agrária baseada conhecimento de tais fatos, para qualquer
sobretudo na plantação de cana de açúcar, tipo de planejamento, é indispensável, obri-
na prática perdeu quase todos os seus ecos- gando os órgãos de gerenciamento regional
sistemas naturais. a um aprofundamento do conhecimento e
Tão importante quanto entender o tran- da obtenção de dados meteorológicos sobre
secto geral dos espaços climático-ecológi- os mais diversos espaços do sertão. Sendo
cos do Vale do São Francisco, em um curso absolutamente necessário incorporar sem-
de mais de 2.100 quilômetros de extensão, pre, às condicionantes do mundo físico e
é o entendimento de suas complexas áreas ecológico, o conhecimento socioambiental
de transição e contacto, que muitas vezes das comunidades sertanejas residentes,
apresentam mosaicos de ecossistemas di- semi-escravizadas pelas dificuldades quase
ferenciados em sucessivas áreas, desde o incorrigíveis da radical estrutura agrária vi-
extremo sul até a área em que o rio transpõe gorante na região. Por fim, um fato básico,
caatingas. Além da presença de minibiomas nem sempre levado em consideração por
relictuais; redutos de matas na cimeira políticos e planejadores: é exatamente no

12 REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006


inverno (astronômico), quando as águas do acreditar minimamente nos efeitos sociais e
Rio São Francisco ficam mais baixas, que é psicossociais da propalada transposição.
necessário maior volume delas para manter Tinha, portanto, mais do que razão
as hidrelétricas de Paulo Afonso, Itaparica dom Luiz Flávio Cappio em protestar
e Xingó. No mesmo período em que seria contra o ligeirismo e a deficiência dos
necessário transpor mais águas para além- conhecimentos dos fatos antrópicos nos
Araripe, onde todos os rios sertanejos per- projetos elaborados às pressas de trans-
dem correnteza por longos meses. posição das águas do São Francisco para
Para justificar o projeto de transposição o Ceará, Rio Grande do Norte, e os cariris
de águas perante a opinião pública nacional, novos, cabeceiras do Rio Paraíba do Nor-
falou-se em “águas para todos” – todos os te. Convém lembrar que, em um projeto
nordestinos, evidentemente – e, a partir daí, democrático, inteligente e bem elaborado,
passou-se a falar que seriam beneficiados nunca se poderá dizer autoritariamente
milhões de sertanejos. E nunca se mencio- que “se trata de um projeto político do
nou para que classes sociais a transposição presidente”, mesmo porque todo projeto
iria interessar. Os proprietários de terras exclusivamente político é, por princípio,
absenteístas ficaram radiantes porque, antes uma auto-afirmação sobre o seu caráter
que as obras começassem, houve valori- demagógico e eleitoreiro. Ao invés desse
zação dessas terras. Os vazenteiros, que enunciado preferimos que se diga que se
cultivavam o leito e faziam culturas de ciclo trata de um projeto de governo metodica-
curto no leito exposto do rio por cinco a seis mente bem elaborado, e de aplicabilidade
meses, ficaram apavorados porque iriam macrorregional, interdisciplinar, de grande
perder o único espaço possível de utilização interesse social. Ninguém seria contra a
pelos sertanejos roceiros sem-terras. transposição de águas do São Francisco se
Os mentores do projeto nem mesmo houvesse projetos paralelos simples e bem
previram um sentido de prioridade para que distribuídos por todos os sertões a fim de
os vazenteiros tivessem a possibilidade de fazer ascender socioeconômica e sociocul-
se integrar a possíveis projetos de irrigação turalmente os mais pobres e desventurados
nas colinas das margens do vale. A maneira habitantes do interior brasileiro.
pela qual os técnicos e funcionários das No Nordeste seco existe gente por toda
instituições gerenciadoras dos projetos de a parte: um fato que transformou a nossa
irrigação vêm tratando os pobres sertanejos região sertaneja sofrida na região semi-árida
que se associaram aos projetos é mais do mais povoada do mundo e de mais difícil
que injusta e incompreensível. atendimento social efetivo a sua brava gente
Pior do que isso é a desatenção que os (Jean Dresch). Tudo levando a crer que um
técnicos têm tido para com os que procuram projeto certamente eleitoreiro e desenvolvi-
a direção dos açudes por ocasião das gran- mentista somente vai atender a fazendeiros
des secas. O autoritarismo e a ausência de absenteístas da beira alta de alguns vales e
sensibilidade social e humana dos gestores a empreiteiras desesperadas por um novo
têm sido abomináveis e discriminatórios. ciclo de lucratividades.
Além de uma total falta de criatividade e As considerações aqui feitas são uma
espírito de inovações técnicas, socioeconô- homenagem a Luiz Flávio Cappio e ao seu
micas e socioculturais em relação aos brios antecessor Itamar Vian, grandes conhece-
culturais da gente sertaneja. Se tal situação dores das realidades físicas, sociais e eco-
continuar prevalecendo, não será possível nômicas do Vale do São Francisco.

REVISTA USP, São Paulo, n.70, p. 6-13, junho/agosto 2006 13

Você também pode gostar