Você está na página 1de 4

OPINIÃO

Philip M. Fearnside

OPINIÃO
Coordenação de Pesquisas em Ecologia, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
pmfearn@inpa.gov.br

A água de São Paulo


e a floresta amazônica
Para prevenir futuros

racionamentos de água e energia,


N o início de novembro de
2003, os reservatórios que
fornecem a água da cidade de São
os impactos do Programa Avan-
ça Brasil’, em CH nº 182). O pro-
cesso de tomada de decisão que
Paulo atingiram um nível míni- levou ao Plano não considerou
os habitantes de São Paulo mo: apenas 5% de sua capaci- efeitos mais amplos desse des-
dade. A água era racionada na matamento, como a redução da
e Rio de Janeiro deveriam tomar maior metrópole brasileira e res- água ‘exportada’ para São Paulo.
tavam poucos dias para o esgota- O papel da floresta amazônica
posição contra o desmatamento mento das reservas. A cidade do nessa ‘oferta de água’ em outras
Rio de Janeiro vivia situação pa- regiões do país pode ser visua-
da Amazônia. À primeira vista, recida. O volume de água nos re- lizado a partir da constatação de
servatórios que a abastecem cor- que a conversão de áreas de flo-
a frase parece sem sentido, respondia a 14% da capacidade resta em pastagem aumenta dra-
total e havia o risco de que secas- maticamente o escoamento super-
mas está correta. Estudos sobre sem antes da estação chuvosa, em ficial da água das chuvas. Estu-
dezembro. Antes, em 2001, a es- dos sobre a erosão realizados pelo
cassez de água nos reservatórios autor, em Rondônia, revelaram
o clima na América do Sul
das hidrelétricas de toda a por- que, para coletar a água que es-
ção não-amazônica do país fez corria em 24 horas na superfície
mostram que grande parte
com que os principais centros de uma área de 1 m por 10 m, em
populacionais brasileiros sofres- uma pastagem limpa, eram ne-
da água das chuvas responsáveis
sem grandes blecautes (os ‘apa- cessários quatro tambores de 200
gões’) e levou a prolongado racio- litros cada – com menos tambo-
pelo enchimento de rios
namento de eletricidade. res, a água transbordava. Em uma
Esses acontecimentos deve- parcela adjacente de floresta, com
e reservatórios do Centro-sul
riam produzir uma consciência o mesmo tamanho, a coleta exi-
aguda da importância da água giu apenas um tambor, mas em
do Brasil é ‘exportada’ transportada por correntes de ar geral bastava um balde, suspenso
da Amazônia para o Centro-sul do dentro do tambor. O escoamento
pela floresta amazônica através Brasil (figura 1). Infelizmente, es- superficial foi cerca de 10 vezes
sa consciência ainda não se mate- maior na área de pastagem.
de ventos de baixa altitude. rializou, e o modelo de desenvol- Embora não se possa extra-
vimento que o governo federal polar resultados de pequenas par-
Essa transferência pode ser quer implantar na Amazônia (pre- celas para bacias hidrográficas
visto no Plano Plurianual 2004- inteiras, a grande diferença veri-
reduzida, no futuro, 2007) baseia-se em uma série de ficada no escoamento superficial
obras de infra-estrutura (rodovias, permite prever sérias conseqüên-
se a derrubada de grandes hidrelétricas e outras) que leva- cias caso o desmatamento aumen-
rão a perdas significativas de flo- te ainda mais. Nesse caso, tais con-
áreas de mata não for evitada. resta (ver ‘O futuro da Amazônia: seqüências envolvem a água, um 

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 63


OPINIÃO
Os ventos dominantes na Ama-
zônia sopram de leste para oeste,
A questão do transporte de água da Amazônia em função da rotação da Terra.
Quando eles batem nos Andes, vi-
para o Centro-sul do país ilustra claramente ram para o sul, e o vapor d’água é
levado para outras partes da Amé-
que manter grandes áreas de floresta amazônica rica do Sul, inclusive São Paulo.
As características do transpor-
é do maior interesse do país te de água da Amazônia para o
Centro-sul do Brasil têm sido es-
tudadas há duas décadas. Nos úl-
recurso básico tanto para a sobre- forçosamente exportada para al- timos dois anos, avanços nas téc-
vivência da vegetação nativa quan- guma outra região (figura 2). nicas de mapeamento dos ventos
to para as populações humanas. Parte do vapor d’água exporta- melhoraram bastante o entendi-
A maior parte da água das chu- do escapa para o oceano Pacífico, mento da distribuição espacial e
vas não consegue penetrar no solo passando por cima da cordilhei- da variação sazonal da chuva de-
compactado das pastagens ama- ra dos Andes no canto noroeste rivada da água transportada atra-
zônicas. Então, escoa na superfí- da bacia amazônica, na Colôm- vés dos ventos amazônicos.
cie, vai para a rede fluvial e por bia. A maior parcela da água O vento denominado ‘jato de
fim é despejada no oceano Atlân- transportada, porém, vai para o baixa altitude sul-americano’
tico. Na floresta, porém, a água en- Centro-sul do Brasil e para Para- (SALLJ, na sigla em inglês) move-
tra no solo, sendo em sua maior guai, Uruguai e Argentina. Um se rapidamente (cerca de 30 km
parte absorvida pelas raízes das certo volume também atravessa por hora) em uma estreita faixa
árvores e relançada à atmosfera o oceano Atlântico e chega ao sul de altitude (cerca de 1 km acima
pela transpiração das folhas. Cer- da África. Esse transporte de água do nível do mar). Entre junho e
ca de metade da chuva, na Ama- para outras bacias, em especial agosto, na estação seca no Sul do
zônia, é constituída por água re- para a bacia do rio da Prata, dá ao Brasil, apenas os ventos do sudo-
ciclada pela vegetação, segundo desmatamento amazônico um ní- este da Amazônia viram para o
estudos do balanço de calor na flo- vel de impacto que tem sido pou- sul, levando vapor d’água, mas
Figura 1. resta feitos pelo ecólogo Enéas co avaliado quando se definem as entre dezembro e fevereiro isso
O vento ‘jato
Salati e colaboradores, utilizan- políticas para a região. acontece com ventos de toda a
de baixa
altitude do isótopos de oxigênio na água. O volume de água exportado região (figura 3). Embora a con-
sul-americano’ A quantidade de vapor d’água que todo ano pela Amazônia (3,4 tribuição da Amazônia para a
(LLJ) atravessa entra na região com os ventos vin- trilhões de m3) pode ser mais bem chuva no Centro-sul do país seja
a Amazônia dos do Atlântico é calculada em entendido se comparado à vazão maior na estação chuvosa, mes-
de leste
cerca de 10 trilhões de m3 por ano, média do rio Amazonas. A expor- mo na época seca a água amazô-
para oeste
e é desviado enquanto a descarga média do rio tação representa 52% da vazão na nica pode ser muito importante
pelos Andes, Amazonas, na foz, é de 6,6 trilhões foz do rio – e só quem viu o Ama- para essa outra região do país,
levando de m3 anuais. A diferença, em tor- zonas com os próprios olhos pode onde se concentra a maior parte
o vapor d’água no de 3,4 trilhões de m3 por ano, é ter uma idéia do enorme volume da produção agrícola brasileira.
na direção sul
que isso significa. A quantidade O mesmo se aplica ao Paraguai
e depois Evapotranspiração
para leste da floresta de água exportada é pouco e à Argentina. Há, na Argentina,
Ventos alísios
(para a bacia do Nordeste
menor que a vazão média uma forte preocupação com os
do rio da Prata) (3,8 trilhões de m3 por ano) possíveis efeitos, nas chuvas da-
Equador
medida no ‘encontro das quele país, do desmatamento con-
águas’ dos rios Solimões e tinuado na Amazônia brasileira.
Negro, perto de Manaus. Na Na estação chuvosa, até 70%
Amazônia, portanto, qual- da precipitação em São Paulo de-
LLJ
quer mudança no percentual pende do vapor d’água amazôni-
de chuva que volta à atmosfera co, de acordo com estudos do me-
(resultante da conversão de flo- teorologista Pedro Silva Dias, da
FONTE: PROYECTO SALLJEX, 2003

resta em pastagem) implica uma Universidade de São Paulo. Os


Condensação
de nuvens perda imensa de água, tanto na ventos que trazem esse vapor ba-
e chuva própria região quanto em outras tem nas serras da Mantiqueira e
regiões onde as chuvas dependem do Mar, entre São Paulo, Minas
dessa fonte. Gerais e Rio de Janeiro, provocan-

6 4 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 203
OPINIÃO
do chuvas nessas regiões. A água DESCRIÇÃO FLUXOS COMPARAÇÃO Figura 2.
das chuvas flui para o leste, até o Fluxos de água
Do Atlântico para a Amazônia, por ventos alísios 10 (±1) 152% na Amazônia
oceano Atlântico, através da ba-
(em trilhões
cia do rio Paraíba do Sul e bacias Vazão média do rio Amazonas em sua foz 6,6 100%
de m3/ano)
litorâneas, ou para o oeste e o sul, Precipitação na bacia hidrográfica do Amazonas 15,05 228% e comparação
através da bacia do rio da Prata. com a vazão
Evapotranspiração 8,43 128% média na foz
Em ambos os trajetos, a água pas-
Vapor levado por ventos para outras regiões 3,4 (±1) 52% do rio
sa por represas que garantem pro-
Amazonas (%)
dução de energia e abastecimen-
to para as principais cidades do
país, inclusive Rio de Janeiro e de investimento do governo fe- sul do país ilustra claramente
São Paulo. Como o enchimento deral na região privilegiam a in- que manter grandes áreas de flo-
dessas represas depende de pou- fra-estrutura, causando a destrui- resta amazônica é do maior inte-
cas semanas de chuva intensa, em ção da floresta. Uma reavaliação resse do país. É comum ouvir, no
especial em dezembro, quando é das prioridades nacionais levaria Brasil, a opinião de que existe
máxima a contribuição da Ama- à revisão desses projetos, consi- uma conspiração permanente pa-
zônia, as conseqüências de qual- derando o desmatamento que ra enganar o país, fazendo com
quer redução no volume de vapor provocam – hoje, os estudos de im- que este não desmate a Amazô-
d’água vindo dessa região seriam pacto ambiental para licenciar nia – essa renúncia beneficiaria
muito sérias. obras só avaliam os impactos di- outras partes do planeta, em de-
A água trazida a São Paulo pelo retos da infra-estrutura, omitin- trimento dos interesses brasilei-
vento ‘jato de baixa altitude’ não do os indiretos, como a atração de ros. Manter a floresta amazônica
sai diretamente de todas as áreas pecuaristas e madeireiros a suas de fato beneficiaria o resto do
da Amazônia. À medida que o va- vias de acesso, resultando na der-
por gerado pela floresta move-se rubada da floresta.
para oeste, afastando-se do ocea- Além da revisão dos planos de A B
no Atlântico, uma parcela cres- investimento, a criação de áreas
cente é reciclada (cai como chu- protegidas e o efetivo cumpri-
va e evapora outra vez). De todo mento das leis ambientais se-
o vapor d’água que chega ao ex- riam de grande importância pa-
tremo oeste da região, 88% já fo- ra a manutenção dos serviços
ram reciclados no mínimo duas ambientais da floresta amazôni-
vezes, segundo estudos sobre o ca – como a biodiversidade, o es-
ciclo hidrológico do meteorolo- toque de carbono (que ajuda a
gista Heinz Lettau, do Instituto evitar o ‘efeito estufa’) e a cicla-
Nacional de Pesquisas Espaciais, gem de água (que inclui a provi-
e colaboradores. A água amazô- são de água para outras áreas,
nica presente nas chuvas em São como São Paulo). O valor econô-
Paulo provém de florestas na mico dos serviços ambientais é a mundo, mas isso não altera o fato Figura 3.
porção oeste da bacia: Rondônia, chave para que se encare a ques- de que o maior prejudicado com Orientação dos
Acre, oeste do Amazonas e Bolí- ventos do ‘jato
tão do desmatamento sob uma a perda dos serviços ambientais
de baixa altitude
via. Embora o desmatamento nes- nova ótica: isso transformaria a da floresta amazônica é o próprio sul-americano’
sas áreas tenha um impacto mais economia amazônica, hoje ba- Brasil. A continuação do desma- em junho-
direto sobre a chuva em São Pau- seada na derrubada da floresta, tamento reduziria, por exemplo, agosto (A)
lo, a derrubada da floresta mais a levando a um novo modelo, fun- o potencial do país para obter ‘cré- e em dezembro-
leste também é prejudicial, por- fevereiro (B) —
dado em sua manutenção. Usar ditos de carbono’ através do Pro-
nesse último
que reduz o volume de água que a floresta como provedor de ser- tocolo de Kyoto (ver ‘Como o efei- período,
chega ao oeste amazônico. viços ambientais é uma alterna- to estufa pode render dinheiro época chuvosa
A quantificação exata do trans- tiva plenamente sustentável, pois para o Brasil’, em CH nº 155, e em São Paulo,
porte de água da Amazônia para as perdas decorrentes da extinção ‘Mudanças climáticas: impasses o vento que vem
áreas como São Paulo ainda exi- da Amazônia
desses serviços (com o desmata- e perspectivas’ e ‘As florestas no
traz mais água
girá muitas pesquisas, mas o que mento) seriam maiores que os acordo do clima’, em CH nº 171)
já se sabe é suficiente para indi- ganhos que o desenvolvimento É, portanto, do interesse do Brasil
car a necessidade de uma mudan- predatório atual pode trazer. usar todos os mecanismos dispo-
ça radical nas políticas nacionais A questão do transporte de níveis para prevenir a perda de
para a Amazônia. Hoje, os planos água da Amazônia para o Centro- floresta na Amazônia. ■

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 65


NOTA DE CORREÇÃO

No artigo de Philip M. Fearnside “A água de São Paulo e a floresta amazônica” (CH


No. 203), foram cortadas na produção final as citações de fonte das figuras 1 e 3. Os
respectivos mapas foram redesenhados de:

Proyecto SALLJEX. 2003. PROYECTO SALLJEX (South American Low Level Jet
Experiment). http://ar.geocities.com/lapaginaderionegroyneuquen/temas/salltej.htm

Nicolini, M., J. Marengo & M.A.S. Dias. 2002. South American Low-Level Jet, October
2002 Report. PROgram for the study of regional climate variability, their prediction
and impacts, in the mercoSUR area—PROSUR. IAI Project CRN055.
Interamerican Institute of Global Change Research (IAI), Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE), São José dos Campos, SP. 13 p.
http://www.prosur.fcen.uba.ar/documentos/_2002SalljGroup.pdf.

Você também pode gostar