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PLANETA EM TRANSE INDÍGENAS

Rio Solimões vira deserto e indígenas


adoecem bebendo água contaminada
Enormes bancos de areia se formaram e, com água suja em igarapé, indígenas
sofrem com diarreia e vômito

15.out.2023 às 16h22 notícias da folha no seu


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Vinicius Sassine
Lalo de Almeida relacionadas
Perdas humanas
TEFÉ (AM)O rio Solimões é uma veia central da Amazônia. Carrega ancestralidade, conecta lideram custos
associados à crise do
regiões e países, dá vida a uma infinidade de comunidades tradicionais em suas margens e
clima, mostra
nas margens de afluentes e igarapés. pesquisa

O trecho que banha a Terra Indígena Porto Praia de Baixo, na região de Tefé (AM), virou
deserto. O rio caudaloso, que ditava o ritmo da comunidade, foi substituído por enormes Fumaça em Manaus provoca aumento nos
atendimentos pelo Samu, diz secretaria de
bancos de areia a perder de vista. Saúde

Kokamas, tikunas e mayorunas cruzam esses bancos de areia de margem a margem, de


ponta a ponta da terra indígena, em uma imagem que lembra um deserto. 2023 tem 99% de chances de ser o ano
mais quente da história
A transformação é uma situação extrema: os indígenas de Porto Praia são unânimes em
apontar a seca de 2023 como a pior já vista, superando os efeitos da estiagem de 2010. PUBLICIDADE

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Em 2022, as águas do rio Solimões chegavam à Terra Indígena Porto Praia, na região do Médio Solimões; um ano depois, o
leito está seco - Lalo de Almeida - 13.out.23/Folhapress

O rio secou muito, os bancos de areia são mais extensos, os barcos ancoram cada vez mais
longe, a estiagem já dura mais tempo e a expectativa é de que esse cenário de deserto
continue até novembro.

"A gente tem de tirar esses barcos daqui hoje, senão tudo vai estar atolado amanhã", dizia um
dos indígenas de Porto Praia nesta sexta-feira (13), em relação a cerca de 30 barcos parados
em frente à comunidade. "O rio segue descendo", diz.

RR
AM
Terra Indígena PA
Boará/Boarazinho
Manaus
Tefé

Terra indígena rio


Porto Praia Solimões
de Baixo

RO

200 km

A Folha esteve pela primeira vez na terra indígena em 23 de agosto de 2022. Era o início da
estiagem, que se mostrou severa no ano passado, mas havia um rio no lugar. "A gente ainda
pescava bem em setembro", relembra um integrante da comunidade. Bancos de areia só se
formaram em outubro daquele ano.

Em 2023, o cenário encontrado é outro —e a transformação tem contornos dramáticos. O


rio secou em setembro, e os níveis de água diminuem a cada dia, sem previsão de fim.

Em 2022, chegar ao território foi simples: 30 minutos de barco de Tefé à escada de acesso à
comunidade. Agora, os barcos só chegam a dois quilômetros da aldeia. É preciso percorrer a
pé a margem enlameada do rio. Outro percurso possível é pelos bancos de areia,
contornando poças de água que resistem à estiagem.

1/8 Seca faz rio Solimões virar deserto e indígenas sofrem com a falta de água

O indígena kokama Sebastião Penha carrega o motor de sua canoa nas costas até a comunidade de Porto Praia, em Tefé
(AM), temendo ação de pir… MAIS

"É tudo muito triste. Não tem como sair para pescar, ou levar nossos produtos para vender
na cidade", afirma o cacique Amilton Braz da Silva Kokama, 52. As mais de 100 famílias do
território produzem principalmente farinha e banana.

Os indígenas improvisam pequenas dragagens, tentando abrir caminho para a água e para os
barcos. Funciona muito pouco. A cada dia, há menos água.

O deserto que se formou é cruzado por quem insiste na pesca num lago após a margem
oposta. Ou por carregadores de produtos da cidade e de motores dos barcos deixados a
quilômetros da comunidade.

O medo é de que os motores sejam roubados por piratas, comuns no médio Solimões. Eles
seguem atuando mesmo na estiagem severa.

A reportagem esteve em Porto Praia em 2022 para uma série sobre terras indígenas não
demarcadas, como é o caso do território.

Os indígenas fizeram uma autodemarcação, como forma de proteção contra invasores,


especialmente madeireiros e pescadores ilegais, e montaram uma guarda para vigiar e
combater a atuação de piratas no Solimões.

1 / 14 Indígenas do Solimões fazem autodemarcação e montam guardas contra piratas

Membros da guarda indígena patrulham comunidade Porto Praia, localizada às margens do rio Solimões, próximo a Tefé
Lalo de Almeida/Folhapress

Pouco mais de um ano depois, a conversão de um rio em deserto alterou a escala de


preocupações na comunidade.

"A mortandade de peixes foi enorme, como não ocorreu na seca de 2010", diz o cacique.
"Aqui não ‘fechava’ assim. Ficavam uns poços mais profundos."

Um poço artesiano garante o consumo de água pelas famílias. Porto Praia insiste em
contornar o isolamento: os indígenas tentam acessar lagos para pesca e a cidade de Tefé,
onde vendem seus produtos. O rio segue em vazante, um indicativo de que a seca ainda vai
avançar nesse ponto do Solimões.

A realidade na aldeia Nova Esperança do Arauiri, da Terra Indígena Boará/Boarazinho,


também é de isolamento —o igarapé Paranã do Arauiri virou um estreito curso d’água, com
água parada, aquecida, enlameada e fétida. As embarcações não alcançam mais o Solimões.
Para chegar à aldeia é preciso percorrer dois quilômetros por uma trilha improvisada diante
da sequidão do igarapé.

Nova Esperança vive um crônico problema de falta d’água. Até um mês atrás, a comunidade
não tinha alternativa senão usar a água barrenta do igarapé. O resultado foi uma "pandemia"
—palavra usada pelo cacique Cláudio Cavalcante, 44— de diarreia, vômito, febre e dor de
estômago, especialmente entre as crianças.

Casas flutuantes estão encalhadas

As casas flutuantes do rio Solimões ainda boiavam no ano passado, mas este ano estão encalhadas em frente à cidade de Tefé
- Lalo de Almeida - 12.out.23/Folhapress

A instalação de placas solares no mês passado permitiu o bombeamento de água de um lago


próximo, mas a qualidade segue ruim. Segundo o cacique, não houve capacitação para que as
famílias pudessem tratar e filtrar a água, que também é captada das esparsas chuvas na
estiagem.

Os problemas de saúde decorrentes do consumo dessa água prosseguem. Quando a


reportagem esteve na comunidade, quatro pessoas estavam doentes, com diarreia.

Procurados, o governo do Amazonas, a prefeitura de Tefé e a Funai (Fundação Nacional dos


Povos Indígenas) não responderam até a publicação desta reportagem.

A Defesa Civil levou água potável às 17 famílias kokamas de Nova Esperança, mas em
quantidade insuficiente.

"Com urgência, a gente precisa de água, de capacitação para o tratamento e de


medicamentos para diarreia, infecção intestinal e vômito", diz Cavalcante. O cacique prevê
uma seca ainda mais prolongada: o rio só estará navegável no fim de novembro. "A seca de
2010 não foi tão difícil como essa. Com certeza esta é a pior que já tivemos aqui dentro."

O encolhimento do igarapé impede o transporte até Tefé do milho, da banana e da melancia


cultivados pelos indígenas. "O sol foi tão quente nessa região que atrapalhou a plantação.
Secou a plantação de melancia", afirma Cavalcante.

Sem água para beber, foi necessário paralisar as aulas das crianças. Nada é mais urgente na
aldeia do que a busca por uma solução para que as famílias tenham água potável durante o
prolongamento da seca.

"A gente sofre com a ‘pandemia’ dessas doenças todo ano. Mas este ano foi pior, já começou
em agosto", diz o cacique. "A gente não consegue tratar a água."

1/9 Seca faz rios desaparecerem na Amazônia e isola comunidades

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