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Universidade Federal Fluminense

Departamento de Psicologia – Psicologia, turma B1 (ter./qui. 14h~16h)


Campus do Gragoatá, Niterói

Disciplina: Epistemologia e História da Psicologia


Professora: Luiza Rodrigues de Oliveira
Monitores: Ana Paula de Souza Venâncio, Hugo Bomfim

Alunos: Paulo Henrique Ribeiro de Sá


Renan dos Santos Dourado

TRABALHO DE EPISTEMOLOGIA

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de começar o nosso trabalho agradecendo imensamente à


nossa professora, Luiza Rodrigues, por ter nos dado esse direcionamento
para o trabalho, selecionando o tema para que pudéssemos dar
continuidade ao assunto que abordamos no módulo anterior. O assunto
sobre o encarceramento da população negra e o papel da psicologia em
sua análise é bastante delicado e, por isso, tem que ser tratado com muito
cuidado e respeito. Por isso, também agradecemos ao nosso monitor, Hugo
Bomfim, por nos ajudar a pensar numa forma de construir o trabalho de uma
forma crítica e responsável. Além disso, queremos agradecer à nossa
monitora Ana Paula Venâncio, por sua última aula, tão inspiradora para que
pudéssemos trabalhar a questão da linguagem no nosso caso clínico. Por
último, mas definitivamente não menos importante, agradecemos à
consultoria inteligentíssima do nosso querido amigo Pablo Alves, que nos
deu seu parecer enquanto futuro psicólogo negro, com toda a carga teórica
e prática da qual ele vem sendo imbuído ao longo desses anos de curso,
nos oferecendo fontes de estudo para a construção do texto, além de, não
menos importante, o apoio moral.

NO QUE CONSISTE O TRABALHO

Apresentaremos aqui uma narrativa em formato de um caso clínico fictício,


baseado em estudos acadêmicos realizados a partir de casos reais
similares e de experiências relatadas em ambiente clínico. Pela falta de um
respaldo teórico aprofundado, não temos ainda recursos para tornar a
retratação da abordagem clínica psicológica algo fidedigno, mas a nível
narrativo, tentaremos deixar a história e o caso em si algo verossímil,
apresentando experiências com as quais pacientes negros possam se
identificar.

O CASO CLÍNICO

Cássio, homem de 26 anos, chega ao prédio de Miguel, localizado na


Tijuca. É na sala de estar de seu apartamento onde ocorrem as suas
sessões de terapia. É o último horário de atendimento antes do almoço: das
11 horas da manhã ao meio-dia. Miguel não costuma fazer primeiras sessões
nesse horário, justamente pela necessidade de serem mais longas. Todavia,
abriu uma exceção para Cássio, que parecia desesperado e irredutível,
aparentando ser aquele o único horário possível.

Cássio chega com uma aparência cansada, ofegante, com a testa


brilhando de suor. Ao adentrar o consultório, pede licença e entra,
sentando-se no sofá dedicado aos pacientes, de frente para o sofá em que
senta Miguel. O paciente olha em volta por alguns segundos e se dispõe a
opinar sobre a sala de estar:

— Caraca, mané. Sala bonita, papo reto. Tudo bonitinho, limpinho,


organizadinho. Foi tu que decorou?

Miguel responde:

— Ah, obrigado. Que bom que gostou. Sim, sim, fui eu que decorei.
Mas, Cássio, o que te trouxe aqui afinal?
Cássio muda a expressão brincalhona e assume uma postura nervosa,
tensa:

— Pô, então. Sobre o horário da sessão, eu prefiro que seja esse


porque eu num gosto de fazer ninguém esperar não, tá ligado? Aí eu prefiro
pegar esse horário pré-intervalo, mas ó, se ficar muito ruim pra tu, a gente…
— Cássio dá uma pausa no raciocínio, desvia o contato visual que estava
fazendo com Miguel — …recombina.

— Não, não. Fica tranquilo! Horário é uma coisa sua. E tinha essa vaga,
não tem por que te negar. — Miguel pega seu bloco de notas para começar
a escrever coisas sobre Cássio. Anotou seu primeiro nome, pontuou o desvio
do olhar quando sugeriu a recombinação de horário. — Mas, que mal lhe
pergunte, por que não à noite, no último horário, por exemplo?

— Pô, menó, eu moro em Piedade. — Ri. — Complicado pegar o 607 à


noite.

Miguel assente com a cabeça, anota mais coisas, deixando em aberto


a possibilidade de já estar diante dos medos do paciente.

— Entendo. Cássio, antes de começarmos a sessão, só me diz seu


nome completo pra eu organizar seu prontuário, por favor.

Cássio gela, paralisa completamente por uns três segundos. Seus


lábios começam a tremer e Miguel nota o choque. Antes que pudesse
retomar anotações, o paciente volta a si, fecha os olhos e respira fundo,
resgatando os olhares atentos do terapeuta. Finalmente, ele diz, com um
tom de evidente incômodo.

— Cássio da Silva Santos. — Senta mais para trás, tentando se


recolher no encosto do sofá, como se fosse afundar e ajudá-lo a se
esconder.

— Uhum, certo. — Miguel anota o nome completo de Cássio. — Não


gosta do seu sobrenome, Cássio?

Cássio franze o cenho, novamente perde o contato visual. Olha para a


grande janela do apartamento de Miguel. Se dá conta em poucos segundos
e volta-se para a sessão.

— Não vim falar disso aqui.


— Você pode falar sobre o que quiser.

— Mas não foi pra isso que eu vim, cê me desculpa.

— Você não me respondeu quando eu te perguntei o que te trouxe


aqui. O que te trouxe aqui, Cássio?

Cássio comprime os lábios, sentindo uma frustração extrema.


Cabisbaixo, desabafa num desespero interno que se manifesta numa apatia
angustiante:

— Tu é minha última esperança. Minha última esperança pra voltar a


ser quem eu era.

— O que aconteceu para que você mudasse?

— Eu… eu fui preso injustamente tem três anos. Me confundiram com


outro cara… sabe como é, né? Pra eles, todo preto é igual. E aí, conclusão:
me acusaram de roubo numa loja aqui perto, no Shopping Tijuca. — Cássio
dá uma pausa no raciocínio, com os batimentos cardíacos acelerados,
engole a seco. — Tem água?

Miguel, que antes estava alternando entre ouvir atentamente e anotar


pontos importantes da fala de Cássio, levanta de seu sofá e pega um copo
d’água, entregando-o na mão do paciente.

— Valeu. — Cássio sorri e agradece, com o semblante mais leve. Bebe


a água. — Valeu mermo.

Miguel instiga Cássio, indagando-o:

— Fiquei surpreso de você não ter pedido antes, visto que já chegou
aqui ofegante, cansado…

— Num gosto de incomodar, tá ligado? — Silêncio de intermináveis


segundos paira. Miguel anota, Cássio termina de beber a água. O terapeuta
sinaliza que o paciente pode apenas deixar o copo em cima da mesinha de
canto, ao lado do sofá em que está sentado. — Enfim…onde que eu tava? Ah
sim! Prisão temporária, era pra eu ter passado cinco dias na cadeia,
conseguiram prorrogação do prazo, passei dez. Depois, me colocaram em
prisão preventiva até o dia do julgamento, sendo que não tinha nenhuma
prova me ligando ao bagulho. Abuso de poder descarado. Fiquei mofando
um mês. Um mês interminável. Fui inocentado por falta de provas. Mano, não
conseguiram nem ao menos provar que não fui eu. Só não conseguiram
provar que foi. Não, e o pior né nem isso, lek. Os cara me abordaram como
se eu fosse um bicho. E desde então, não pararam de me tratar assim…e aí
né…eu não consegui parar de me sentir assim.

Miguel está tentando conciliar todas as informações que lhe foram


dadas. Segue assim:

— Vamos por partes, por que eu sou a sua última esperança?

Cássio passa as mãos no rosto, descendo-as, em desespero. Logo, se


encolhe e numa pesada respiração, põe-se a falar.

— Porque eu não aguento mais. Não aguento mais pular de terapeuta


em terapeuta. Mas tu é diferente, cara! Eu tô sentindo que é, papo reto!

— Diferente como?

— Precisa perguntar? Tu é preto que nem eu! Tu vai me entender, vai


responder às minhas questões…

— … Olha, Cássio. — Miguel interrompe, incisivo, mas zeloso. — Eu tô


aqui criando um espaço pra você se escutar, você responder às suas
próprias questões. Quero que você tenha em mente que, no fim das contas,
você é sua própria esperança…

— Que seja! Tu num tá ligado, eu vim nuns três psicólogo antes de vir
em tu. Tudo branco, né? Cara, tu num tem noção. Um teve a cara de pau de
perguntar se eu tinha certeza se eu era inocente mermo! Sabe o que outro
disse pra mim: “mas como você pode ter certeza que te trataram mal porque
você era negro?”. Quer dizer, ele teve nem coragem de dizer “negro”, ele
passou o dedo assim na pele do braço — imita o gesto — e apontou pra
mim. Os cara não tá preparado pra lidar com gente igual a gente não,
Miguel. Eles têm medo da gente. E eu fico com medo deles, fico bloqueadão.
O último que eu fui, vou te falar, nem sei dizer o que que ele falou. Não
entrava. E ele era daqueles que falava mais do que escutava, então aí é que
eu não aproveitei nada mesmo. Sei lá, cara, só sei que eu saí pior do que eu
entrei. Mas nem foi por causa do cara não. Assim, o cara até que parecia
maneiro, mas sei lá, a gente pega trauma…e também…
Cássio paralisa e perde novamente o contato visual. Miguel se inclina
na direção de Cássio, interessado.

— E também…?

— O motivo d’eu negar horário que tem gente depois de mim, não é
pra não incomodar, não. É porque eles me olham feio. Os paciente, tudo me
olha torto, como se eu não pertencesse ali. E aí, tipo, posso ta falando
besteira também, mas se me encararem antes da sessão, caguei, sabe? Tô
ali, desabafo logo com o psicólogo, tô pagando pra isso. Mas depois da
sessão, vem um babaca e faz isso? Cara, sei lá, só sinto como se eu
perdesse o progresso, estragou tudo o que eu tinha, sacou? Não, e isso
porque não sabem que eu já fui preso. Se soubessem, capaz até de me
baterem.

Cássio sente um misto singular de nervosismo e alívio. Suspira e


põe-se a fitar a janela por mais alguns segundos. Miguel, que, por estar
focado nas anotações, não tinha reparado na dispersão do paciente, põe-se
a confortá-lo:

— Cássio, esteja certo de que farei de tudo para que aqui lhe seja um
espaço seg-… — Miguel para de falar quando percebe a distração de
Cássio. O paciente logo percebe a interrupção na fala e volta sua atenção
ao terapeuta. — …você realmente não se permite distrair nem por um
minuto, não é?

Cássio novamente tenta se encolher no encosto do sofá, dando de


ombros e respondendo à pergunta como se fosse óbvia.

— Minha mãe me ensinou a não desperdiçar o tempo das pessoas, tá


ligado? Principalmente quando eu pago pelo meu tempo.

— Bem, certo! O que você acha que mudou em você desde que você
foi preso até o presente momento?

— Não seeei, não sei se fui eu que mudei. Quer dizer, eu também
mudei, mas as pessoa que mudou comigo. Primeiro que eu não consigo
mais emprego. De manhã por aqui, eu fico procurando emprego. Maior parte
dos dias é Tijuca, tem dias que eu vou lá pra Copacabana, Ipanema, às
vezes dou uma procurada pelo Catete também. O que dá, né? Miguel, é
inacreditável. Ó, não tô dizendo que eu sou pica das galáxias não, viu? Eu fiz
meu Ensino Médio bonitinho e tudo mais, até comecei uma faculdade
particular, dessas de bairro, mas não deu pra pagar, pulei fora. Mas, pô, eu
sei fazer muita coisa! Sei mexer com tudo esses negócio aí de Pacote Office,
computador, sei usar esses site aí tudo, mané! Sou safo! E eu sou simpático,
desenrolo legal pra trabalhar em loja de roupa, atendente, dou até pra
trabalhar em telemarketing! Mas não chamam, cara! Antigamente
chamavam, né? Pô, antes de ter sido preso eu tava até trabalhando num
lugar maneirinho, tava dando aula de Inglês num cursinho na Conde de
Bonfim… porque assim, né! Minha mãe sabia que faculdade ela não ia ter
condição de me ajudar, nem nada, mas o Inglês ela fazia questão que eu
tivesse, tá ligado? E eu me sentia, né? Caraca, chegava lá na minha rua,
meus amigo de infância lá, e eu como? Falando inglês bonitin, gostosin no
azeite, sem sotaque. Eu tinha mó orgulho, né? Ainda mais que minha mãe
sempre reclamou do jeito que eu falo português. E já foi pior, viu?
Antigamente eu falava “praca”, “Framengo”, que eu sou flamenguista, né.
Mas pra arrumar emprego e tals, eu acabei me ajustando. Mas vou te
falar…eu adoro meu jeitinho de falar.

Entre várias anotações, Miguel direciona Cássio ao ponto com uma


pergunta:

— E aí, o que aconteceu com o emprego no cursinho?

— Ué, Miguel? Demitido, né? Falaram que não “iam aceitar bandido,
não” — faz aspas com os dedos. — Acredita que o dono da unidade veio
pessoalmente me visitar na cadeia pra falar isso? E eu tendo que engolir a
seco. E aí, agora…tô me sustentando de freela, quando aparece. Mas
emprego, emprego mesmo, não tá tendo. Eu vou lá, deixo o currículo, sem
foto pra não me rejeitarem de cara, faço a entrevista, a pessoa até gosta de
mim, mas não sei o que rola que eles conseguem ter acesso à ficha criminal
dos outro pelo computador. E aí, pronto. Nisso vai o dinheiro da passagem
de ônibus pra ir, o dinheiro da passagem de ônibus pra voltar. Saio de
segunda a sexta de casa, 6h30, 7h da manhã pra vir caçar emprego por
essas bandas. Aí eu volto pra casa na hora do almoço, pra dar tempo de
comer a comida da minha mãe. Porque, né? O dinheiro que eu tava juntando
pra alugar uma coisinha por aqui foi tudo pra manter meus pais enquanto eu
tava preso, sem poder colocar comida em casa.

Miguel começa a procurar uma linha para abordar o caso. Ele arrisca
algo:
— E pra procurar emprego pelos seus arredores, lá em Piedade?

Cássio muda o semblante, fica levemente irritadiço e desfaz o contato


visual.

— Eu preferia que não fosse por lá.

— Por quê?

— Porque não, porque eu quero conquistar um lugar melhor, uma


condição melhor que eu num vou encontrar por lá. — Cássio levanta uma
sobrancelha e dá uma risada de canto para Miguel. — Já sei o que tu tá
pensando. Que eu tô negando as minhas raízes, né?

— Eu deveria pensar isso?

— Me diz você, ué.

— Eu te retorno a provocação, Cássio. É isso que eu deveria pensar?


Que você nega as suas raízes? Que é por causa disso que você desgosta
de seus sobrenomes?

Cássio perde a paciência, mas tenta manter a pose despojada:

— Caceta, mas tu implicou mesmo com essa parada do sobrenome,


hein! Cê num acha que pra quem passou por violência policial, cadeia,
desemprego e preconceito, esse probleminha com sobrenome num é menor
não?

Miguel replica:

— Problemas menores também são problemas, também machucam e


às vezes também pedem por uma solução, Cássio. Principalmente quando a
gente acha que todos os nossos problemas são menores. — Miguel senta
mais para frente no assento, afastando-se do encosto. Percebe que Cássio
toma a direção contrária, novamente afofando suas costas no sofá. — Por
que você não gosta dos seus sobrenomes?

Cássio foge exasperadamente do contato visual. Vislumbra


panoramicamente a sala.

— Você é diferente dos outros psicólogos que eu fui, Miguel. Eles tinha
divã, não tinha sofá, não era esse frente a frente. Era muito impessoal.
— E pra você isso é melhor ou pior?

Cássio volta a encarar Miguel.

— Só diferente.

— Do que tanto você se esconde, Cássio? Do que você tem tanto


medo? — Miguel dispara, peremptório.

Cássio entra num pequeno pânico, recobrando a consciência depois


de poucos segundos.

— Calmaê, cara! Uma pergunta de cada vez. Tá, eu vou responder. Eu


acho que cê entende dessas questões. Eu li o teu currículo na internet antes
de te contactar. Eu sei que tu estudou uma galera diferenciada. Acho que tu
vai me entender. Tipo…eu não gosto dos meus sobrenomes porque eu vi na
internet um dia que o “Silva”, “da Silva”, enfim, era um sobrenome que foi
passado dos portugueses pros negros escravizados recém-libertos, aqueles
que não tinham sobrenome. É como se fosse o “vai qualquer coisa mesmo”.
E o “Santos” vem daquelas parada lá de colonização jesuíta, uns bagulho
que real apaga a história do meu povo…do nosso povo. Miguel, eu num sei
de onde meus antepassados vieram. Os meus amigo branco lá do bairro, até
a galera que eu trabalhei lá no cursinho, os aluno, tudo sabia se os bisavós
eram italiano, alemão, português, espanhol e os caramba a quatro. E eu,
Miguel? Te mandar o papo porque eu acho que tu sabe do que eu tô
falando. Não é que eu odeie minhas origem, eu odeio isso que me
impuseram como origem.

— E me contando tudo isso que você me contou, você acha esse um


problema menor? Terem sequestrado sua história? Sua origem?

— Me sequestraram coisa muito maior na cadeia, Miguel. Minha


liberdade. Eu me sinto sem ela mesmo agora, solto. Minha história é de
muita gente além de mim. A minha liberdade era só minha, pertencia só a
mim, agora ela tá com ninguém.

Miguel anota muitas coisas. Fica uns 30 segundos, mais ou menos,


anotando relatos que Cássio traz que podem ser importantes na abordagem
do caso. No entanto, interrompe ao sinal iminente de que o paciente iria se
debulhar em lágrimas. Cássio logo começa a chorar copiosamente, baixinho:
— Sabe do que que eu acho que eu tenho medo? De mim. De
descobrir que eu sou uma bagunça, que eu tenho mais pra resolver do que
só a questão da cadeia. Por isso que eu fico tentando resolver só isso.
Porque eu quero que, depois disso, eu me sinta bem. É pedir demais isso?

— Tudo exacerba com a questão da cadeia. Coisas com as quais você


não sabia que lidava, que você não sabia que sentia… Você quer um lenço?
Um copo d’água?

— Tô de boa, valeu. — Cássio para de chorar, funga e limpa o nariz


com o antebraço. — Só tava precisando desse momento pra desabafar. Eu
não consegui fazer isso nos outro terapeuta, não. Acho que eu não chorava
na frente de alguém assim desde quando eu fui preso e chorei enquanto me
levavam algemado ali do shopping… Caraca, cara, na frente da Rayane
ainda por cima.

Miguel ainda não havia ouvido aquele nome antes. Perguntou-se


internamente se era a mãe de Cássio, a qual ele não parava de mencionar.
Pegou o bloco e indagou:

— Rayane?

— Minha namorada, pô. A pessoa que mais me deu força, tá ligado?


Ela é linda, Miguel. Tem que ver. Um dia eu vou morar com ela, casar com
ela. E meu sonho é eu pegar o sobrenome dela. Eu queria pegar o
sobrenome todo: “Rodrigues Rebouças”. “RRR”, engraçado, né? Eu fico
muito de olho naquele “Rebouças” dela. Sabia que André e Antônio
Rebouças foram os primeiro engenheiro negro do Brasil? Ela que me contou
essas parada. Que ela estuda raça, né? Toda engajada.

— Sim, sabia! Foram também os primeiros afrodescendentes do nosso


país a cursarem uma universidade. Foram os engenheiros mais
conceituados do século XIX. Inclusive, o André Rebouças foi uma das vozes
mais importantes na luta abolicionista, junto com o Machado de Assis.

— Era uma origem tipo a deles assim que eu queria, tá ligado? Papo
de pretos no topo. Beyoncé e Jay-Z. Era isso que eu queria pra mim.

— Sim, mas a avó dos irmãos Rebouças foi escravizada e depois


alforriada, eles ainda carregam isso, assim como você e eu.
De feliz, a expressão de Cássio ganha nuances de frustração com
uma ligeireza não antes vista na sessão. Põe-se a retomar sua questão com
as raízes:

— Se pá, é por isso que eu não gosto muito da minha origem, tá


ligado? Cansei de ser associado à opressão, à escravidão, a essas parada
triste. Eu queria saber de que rei africano eu sou descendente, se eu sou
tataraneto de algum intelectual africano que revolucionou os paranauê tudo
lá, que foi importante. Tipo, não que a luta dos nosso pra acabar com a
escravidão não seja. Mas se os branco têm direito à glória, por que que nós
só pode ser associado com luta?

Nesse momento, Miguel se distrai das anotações e começa a prestar


atenção total aos relatos de Cássio. Começa a refletir se é a hora de largar a
neutralidade da técnica, que pode ser nociva em alguns momentos, e
começar a abordar o caso pela vivência, mas fica na defensiva.

— Cássio, vendo essas diferentes vivências dentro da negritude, dos


irmãos Rebouças, da avó deles, da Beyoncé e do Jay-Z, a sua mesmo, a que
você supõe sobre a minha… que conclusão você tira disso? O que é ser
preto pra você, afinal?

— Pô… eu não posso falar pela Beyoncé, nem por você, muito menos
pela avó dos irmãos Rebouças que morreu há sei lá quantos anos atrás, né.
— Cássio ri. Garante um sorriso de Miguel. — Mas tipo… — Novamente, a
expressão distante e taciturna toma conta do rosto do paciente — …pra mim,
significou a luta, tá ligado? Anda significando até hoje. Não que eu jogue isso
pra todos os preto, não posso falar por todos. Mas posso falar por mim, pela
minha mãe, pelo meu pai, pela Rayane. Ih…mas issaí é mó papo de doido,
filosofia demais pra minha cabeça. — Cássio dá uma pequena pausa para
refletir. — Miguel, sabe alguém que eu queria que respondesse essa
pergunta? O cara que roubou a loja e me deixou ser preso no lugar dele.
Será que pra ele, isso foi a glória?

— O que você sente quando lembra dele?

— Raiva, mágoa. Um monte de coisa. Tipo, lek, é meu irmão de cor,


minha namorada diz que deve passar por um monte de parada que a gente
passa, mas sei lá. Que “irmão” é esse que deixa os seus pra pagar pelas
consequências dos seus próprios atos? Se ele soubesse os bagulho que eu
passei na cadeia e que eu continuo passando mesmo sem estar mais lá,
será que ele se arrependeria?

— E justificaria se tudo isso acontecesse com ele?

— A diferença, Miguel, sabe qual é? Foi que ele pediu por isso quando
cometeu um crime. Ele fez sabendo das consequência e não assumiu, tá
ligado? Num arcou com nada, deixou pra mim arcar, eu num tinha nada a ver
com isso. Minha mãe sempre falou que eu tinha que ser duas vezes mais
pra que os outros me dessem metade do reconhecimento. Depois que eu fui
preso então, eu tô precisando fazer quatro vezes mais pra conseguir um
quarto. Eu posso não saber muita coisa nessa vida, Miguel, mas eu sei
Matemática. Eu sempre fui bom com os número, eu cresci tentando não virar
um. Eu sempre lutei pra andar na linha, pra fazer o bem pras pessoa. Nunca
roubei um tomate, porque eu sabia que se eu roubasse, podiam matar eu,
minha mãe, minha família inteira. E frustra sim, depois de me dizerem a vida
toda que se eu saísse da linha, iam me pegar, ver uma pessoa saindo da
linha e escapando. — Cássio levanta do sofá, indignado. — E pior ainda, não
adiantou nada eu andar na linha, que mermo assim me fizeram ir pra cadeia.

Cássio senta novamente no sofá. Miguel pensa em que caminho tomar


agora.

— Você comentou especificamente sobre roubo de tomate. Você já se


viu em alguma situação em que precisava ter roubado pra ter o que comer e
preferiu não roubar?

Cássio meneia a cabeça.

— Não. Lá em casa a gente nunca teve muita coisa, sacou? Mas que
eu me lembre pelo menos, a gente nunca passou fome, não. Não lembro dos
meus pais deixando de comer pra me dar, sempre teve pra mim e pra eles.
Pouco, mas tinha. Num dava pra ter o brinquedo da estação, que passava no
comercial, o telefone da época depois que virou moda, roupa daora de
marca então, pô, nunca. Mas sempre tivemo comida, conta em dia,
televisãozinha, computador, teve até uma época que a gente tinha plano de
saúde. O mais fuleiro, mas era alguma coisa, né? Foi na época de professor
de cursinho.

— Muito provavelmente nunca vamos saber o que realmente


aconteceu, mas será que não vale modificar o exercício de “ele se
arrependeria se soubesse o que você passou?” para “será que ele não
roubou por necessidade?”. Tem gente que anda na linha pra sobreviver, tem
gente que sai da linha com o mesmo objetivo.

Cássio cruza os braços, insatisfeito com a resposta de Miguel.

— Cê tá basicamente dizendo pra eu ter empatia com quem não teve


empatia comigo? É isso? Que papinho, hein, Miguel.

— O que eu tô dizendo é que, talvez, toda essa sua raiva, todo esse
seu ressentimento, esse seu rancor estejam direcionados ao lugar errado.
Pensando nessa hipótese que a gente formulou aqui agora: ele fugiu porque
ficou com medo de morrer. Se ele roubou para sobreviver, não faria sentido
ele se colocar pra morrer depois de tudo, certo?

— Certo, faz sentido.

— Então! Em vez de ressentir esse jovem, que você diz não ter
empatia com você, por que não ressentir o racismo, a estrutura violenta, a
polícia truculenta que não tem empatia com nenhum de vocês dois?

— Mas eu ressinto tudo issaí também, mané. Eu fico bolado demais


quando eu ouço na minha vizinhança que eu tava na hora errada, no lugar
errado. Eles não entendem, cara. Toda hora e todo lugar pra mim é errado. E
eu sei que é culpa do racismo, que não é culpa minha. Eu tento me ajudar,
não dar mais brecha pra pensarem alguma coisa e me matarem, me
prenderem de novo. Mas é chato, pô… se toda hora e todo lugar pra mim é
errado, às vezes me dá sim a sensação de que o errado sou eu. Não nessa
situação, mas ao longo da vida mesmo.

— Então, você admite que não é um sentimento que surgiu só depois


da prisão.

Cássio silencia, seu olhar perde o brilho, sua expressão é


melancolicamente séria, como um deprimido encarnando um cinismo blasé.

— Não quero mais falar sobre isso hoje.

— Sobre a prisão?

— É. Vamo falar sobre outra coisa.

— Você tem algo pra dizer?


Cássio começa a tremer, sua voz começa a embargar e uma lágrima
cai de seus olhos.

— Acho que…se ser o que eu sou é passar pelo que eu passo, eu não
gosto de ser quem eu sou. — Cássio enxuga com as mãos as lágrimas de
seu rosto — Acho que isso soava melhor na minha cabeça.

A expressão de Miguel, antes neutra, começa a ganhar contornos de


pesar. Não é fácil para ninguém escutar algo assim, mesmo para terapeutas,
principalmente se tratando de uma marca atravessada por ele. No entanto, a
sessão deveria continuar. Começou a pensar no que fazer.

— Cássio…

— Quando eu tava na cadeia, minha mãe foi lá me visitar, né? Uma


vez. Meu pai não, meu pai ia quase todo dia, quatro vezes por semana ele
tava lá. Ela só foi uma vez, logo no começo. E ela tava decepcionada comigo.
Não porque ela achava que eu era culpado, ela sabia que eu não era. Mas
ela ficou tipo: “falei tanto pra você tomar cuidado, pra você olhar por onde
andava, com quem andava, pra você ver se tinha alguém fazendo alguma
coisa suspeita”. Eu decepciono a minha mãe só de ta existindo, nada faz eu
me odiar mais que isso, mano. Eu devo a minha vida a ela, tá ligado?

Miguel, antes ansioso pra começar a falar sobre a mãe de Cássio,


assunto que ele evocava constantemente, se prende nessa nova informação
do auto-ódio. Arrisca desvendar isso:

— O que você faz com esse ódio que você sente de si mesmo? Afinal,
quando você se encolhe, quando desfaz o contato visual, quando se afasta e
se recosta no sofá, é o medo ou o ódio falando?

— É como se eu quisesse me esconder. É como se eu quisesse me


misturar no meio da multidão, porque, tipo, se eu for visto, eu sou visado pra
ser vítima de violência. Só que aqui não tem como me esconder, tu fica me
olhando o tempo todo.

— E ainda assim, você prefere estar aqui, frente a frente, do que estar
num divã, sem ver que te vêem. Os psicólogos brancos que te atendiam,
eles conseguiam te ver quando você estava deitado no divã?

— Sei lá. — Cássio ri. — Eu não tava vendo eles me verem, como tu
falou. É como dizem no inglês, né? Out of sight, out of mind.
— Mas, Cássio, ao mesmo tempo, você disse que eu me destacava
entre os psicólogos em que você foi. Por qual motivo você disse mesmo, que
eu me destacava?

Cássio arregala os olhos, surpreso com a contradição:

— Porque…cê era preto.

— E por que é diferente com você?

Cássio desfaz o contato visual, mas logo repara no que faz e retoma
seus olhos para Miguel, fazendo uma reflexão:

— É ruim demais não ter as resposta das parada, né? O pica é que na
minha cabeça tem uma diferença muito óbvia, mas mano…eu num consigo
argumentar contigo.

Miguel torna a anotar, agora que a angústia maior de Cássio parece


ter saído de seu peito. O terapeuta agora tinha a mente mais fresca para
continuar a sessão.

— Cássio, o que sua mãe pensa desse seu estado?

— Nunca perguntei pra ela. É aquilo de novo, out of sight…, tananan.


Tenho mó medo de chegar na moral pra perguntar e ela lançar a braba
comigo, dizer que eu sou fraco. Eu bato minhas cabeça com ela de vez em
quando, sabe? Pra eu ter minha liberdade pra colocar meus dread, só
quando eu fiz com meu dinheiro, antes ela me mandava ter cabelo rapado,
que ela tinha medo de falarem do meu cabelo. E chegou um ou outro pra
comentar mermo, assim na lata, mas eu sempre deixei pra lá. Eu gosto,
minha mulher gosta, meus amigos curtem também. O meu jeito de falar ela
tentou um pouco mudar assim, né, mas num conseguiu totalmente não. Cara,
— põe-se a rir ao lembrar de uma história — minha mãe estapeava meu pai
pela casa pra ele não falar “framengo” perto de mim. Ai, ai…muito bom. Mas
assim, agora, roupa maneirinha, pans, ela sempre me deu força e eu sempre
quis também. Num curto andar largado, não. Só em casa.

— Curioso você usar a palavra ”liberdade” quando falou dos seus


dreads. Você considera que nessa parte de si, você se libertou de algo?

— Ah, menó, modo de falar. Precisa problematizar também tudo o que


eu vou falar não. Assim, né…é um símbolo de resistência. Eu acho
importante, faz eu me sentir forte, me dá uma confiança show, tá ligado? Vou
aproveitar que eu posso, né? Se aqueles branco tosco alternativo pega
nossas trança, nossos dread, nossos cabelo, sem saber o que significa, por
que eu preto não posso, né?

— Mas então, você associa os dreads à “luta” ou à “glória”?

— Pô, Miguel. Que saco essas pergunta difícil, cara! Ó, eu me achava


um cara inteligente, hein? Aposto que a Rayane saberia responder essa.

Miguel pressente a possibilidade de Cássio estar confundindo o que


sente, que ao reclamar do auto-ódio como algo primário, originário, ele está
reclamando da coisa errada.

— Cássio, eu não vejo um padrão claro aqui. Você diz que não gosta
da associação da sua negritude à luta, mas gosta de adotar alguns símbolos
de resistência. Você não gosta das suas origens, mas gosta das origens da
sua namorada, que não são tão diferentes das suas se você olhar pelo
aspecto histórico. Acho que não é da luta que você está cansado, mas sim,
da derrota. Você se inspira e se espelha em vencedores. Pretos
vencedores-… Não! Vencedores pretos! E talvez essa sensação de que você
não se gosta venha do fato de que você, por estar em desvantagem, porque
sim, algumas desvantagens acabam se apresentando pelo caminho, acha
que vai perder sempre.

— É difícil não achar que vai perder toda hora quando sua mãe te
protege o tempo todo, tá ligado? Dizendo que o tombo vai ser menor se eu
fizer isso, ou aquilo.

— “Isso ou aquilo” o quê? — Cássio desvia o olhar de Miguel enquanto


o terapeuta fala. — Cássio, me fala um pouco sobre a sua mãe.

O despertador do celular de Cássio toca. Miguel olha com


estranhamento. São 11h45 da manhã. Cássio pega o aparelho móvel e para
o toque.

— Tenho que ir, minha sessão acabou, 45 minutos.

Cássio levanta do sofá. Miguel faz menção de levantar, atraindo a


atenção do paciente.
— Não, não. A primeira sessão de um paciente meu dura uma hora. Só
se você quiser continuar comigo, as próximas sessões serão de 45 minutos
e pagas.

— Peraí, eu num tenho que pagar essa sessão aqui?

— Absolutamente não. Sente-se aí! Fale um pouco da sua mãe.

Os dois se sentam novamente em seus respectivos lugares. Cássio


apoia sua mão direita em sua bochecha, emocionalmente distante.

— Não quero falar da minha mãe. Não nessa sessão. Só quero que tu
saiba que ela é uma mulher incrível, que fez tudo o que tava no alcance dela
pra que eu pudesse sobreviver até hoje.

— Mas não é sobreviver que você quer, é?

Cássio reflete a pergunta por breves segundos.

— Não…eu não quero sobreviver, eu quero viver.

— E como você pretende viver se você se esconde tanto? De tudo e


de todos?

— É, mermão, só mermo parando de se odiar, né? — Emite uma risada


amarela e, ao ver que não arranca reações de Miguel, se fecha novamente.
— É pra isso que eu vim fazer terapia.

— Cássio, você se esconde porque você se odeia, ou você se odeia


porque você se esconde?

Cássio esbugalha os olhos com espanto, é tomado por um sentimento


de repulsa, cruza os braços, contrariado.

— Como assim?

— Você pode não ter reparado, mas a frustração que você sente
consigo mesmo é posterior aos subterfúgios que você apresentou para se
esconder, para se proteger. Você a vida toda passou por um processo de
embranquecimento, de perda da sua identidade, para que assim, pudesse
se moldar no mundo dos brancos sem ser malvisto, malquisto. Agora, vendo
que não adiantou e que você foi preso, você se sente culpado por se deixar
levar por esse embranquecimento.
Cássio é tomado por uma raiva intensa e começa a levantar a voz:

— Coé, mané, cê tá dizendo que eu tô tentando ficar igual branco?


Caraca, é muita cara de pau mermo, né? Eu pensei que tu fosse diferente!
Que tu fosse me entender porque tu é preto, mas na moral? Tu é livre, tu
sempre foi livre, tá por cima. E por que, né? Tu tá me acusando de uma coisa
que tu mermo faz, muleque…

— Eu não estou te acusando de nada, eu… — Miguel tenta falar por


cima, mas não consegue.

— …cala a boca que agora tu vai me ouvir! — Cássio corta a tentativa


de interrupção de Miguel — Tu fala que eu tô me embranquecendo. Miguel,
eu olhei pra tua sala, primeira coisa que eu pensei foi: “pô, maneiro, acho
maneiro um cara preto ter uma sala bonita assim, ser dono de um
apartamento desse, bonito, eu quero isso pra mim” e eu achava que tu tinha
conseguido isso respeitando a tua origem, mas não, cara! Tu se
embranqueceu! Miguel, te manca! Desde quando a gente começou essa
nossa sessão, tu não cometeu um deslize de português, tu quer me deixar
de burrão no comparativo, aquele que num sabe falar. Tu fala branco, tu
veste branco, tu se porta branco, e pelos poucos passo que tu deu aqui
nessa sala, deu pra perceber que até andar, tu anda branco, cara…!

Miguel consegue interromper, brusco, cortante e veemente:

— Mas eu sou branco? Eu estou isento de pessoas me confundindo


com “o faxineiro do Dr. Miguel”, fazendo pouco caso da minha sessão,
ficando chocadas quando eu conto tudo o que eu conquistei? Sim, Cássio,
eu adaptei minha linguagem à Academia e sim, é triste que isso tenha sido
necessário para eu galgar uma posição de respeito dentro da minha área. É
frustrante não poder me vestir como eu quero, porque senão não vão levar
minha abordagem a sério. Ser um “preto no topo” é uma questão de
perspectiva e você sabe disso, você me relatou isso. A branquitude, por mais
medíocre que seja, vai nos ver como base da cadeia alimentar, não importa
quanto os meus me deifiquem. Mas eu prefiro me apegar à visão dos meus.
Eu não tenho vergonha de dizer que eu me incorporei ao sistema pra poder
plantar a minha sementinha lá, reformular e revolucionar ele aos poucos.
Isso não significa que o processo até aqui foi fácil. E com tudo isso, Cássio,
me responda. Você acha que eu não sofro racismo?

Cássio se acalma, arrependido, e responde com uma voz chorosa:


— Não… — Cai em prantos, sentindo um remorso colossal. —
Desculpa, Miguel. Desculpa mermo. Eu num devia me sentir assim frustrado
de te ver falando certo, eu devia ficar orgulhoso.

— Mas, Cássio, você fala certo! Eu te entendo, você me entende, a


gente fala português direito, nós dois. O que você fala tem nome e tem
resistência. A Lélia Gonzalez conceitua isso como “pretoguês”. O retirar dos
plurais no substantivo, o enfoque nas tônicas… até mesmo o “framengo” que
você falava e que sua mãe te fez parar, tudo isso faz parte. Isso constitui um
recorte da nação, é um marco, tem uma importância muito grande, constituir
saberes que desviam dessa norma europeia branca padrão. Cada um tem a
sua forma de lutar contra o sistema. E você é vitorioso com essa, é vitorioso
com o seu cabelo, com as suas afetividades. E ao longo das sessões, você
vai perceber que é vitorioso de muito mais formas.

Cássio sorri, sentindo o acalanto das palavras de Miguel em seu peito.

— Valeu, Miguel. Ó, num tô falando que vai ser fácil aceitar certas
paradas aí que tu falou, não, tá ligado? Esse bagulho aí de perdoar o cara
que me deixou pra se ferrar no lugar dele, isso vai demorar um tempo. Mas
eu gostei de você, gostei da sessão, foi bom botar as parada pra fora. Eu não
sei dizer se tu me entende perfeitamente, mas eu vi que tu quer me
entender. Acho que isso vale demais já.

— Muito obrigado, Cássio. De verdade. A troca foi muito legal.

Cássio pega seu telefone, são 11h54. Empolgado, pede por mais
conversa.

— A gente ainda tem mais seis minutos de sessão.

— Bem, acho que por hoje, nós falamos bastante coisa. É bom que
você consiga digerir tudo com calma, pra termos o que conversar na
próxima sessão.

Cássio fica levemente surpreso, um tanto atônito, não disfarça a boca


aberta.

— Ah…não, tranquilo.

Miguel percebe a insatisfação e começa a pensar em mais coisas que


poderia tratar com Cássio.
— Cássio, espera. Você já ouviu falar naqueles projetos de coleta de
DNA para descobrimento da origem por etnia, nacionalidade, tudo o que
você possa imaginar?

— Eita…pô, ouvir falar acho que eu já ouvi sim, tá ligado? Mas nunca
procurei saber, ficava com medo de ser furada, os teste confiável deve tudo
ser caro pra caceta.

— E se eu pagasse um pra você?

Cássio escancara um enorme sorriso.

— Cê faria isso por mim?

— Cássio, vou te contar um segredo. A clínica infelizmente não vai


conseguir destruir o racismo, a estrutura patriarcal, nem nada maior do que
nós enquanto indivíduos. Mas se eu, enquanto psicólogo negro atento à
questão das marcas, puder aliviar o sofrimento dos meus pacientes, é pra
isso que eu vou trabalhar. E eu vou fazer o que tiver ao meu alcance pra
isso.

— Tu fez essa parada aí?

— Fiz!

— E aí?

— A sessão não é pra falar de mim, viu? — Miguel ri. — Vou dizer só
porque você perguntou. Eu tenho origem moçambicana. Uma mistura de um
pessoal que já era de lá com uns que migraram pra lá, trazendo a língua
bantu. Cheios de cabeça de gado!

— Não brinca!

— Sério! E eu tenho uma porcentagem bem pequenininha de sangue


persa também, provavelmente um comerciante! Mas é bem legal assim.
Olha, eu sempre fui bem resolvido com questão de origem familiar, nunca fui
exatamente complexado. Fiz de curiosidade, pra ver como era. Cássio, eu
chorei TANTO quando recebi o resultado. Imagina só você, que quer tanto
saber.

— Eu mal posso esperar, sério!


Cássio e Miguel estão em êxtase, sabem que criaram uma conexão
entre psicólogo e paciente que vai além da neutralidade engessada. Cássio
pega o telefone, são 11h57. Miguel se preocupa e comenta:

— Olha, confesso que fiquei sem repertório…

— Não, relaxa… — Cássio se põe a olhar ao redor do apartamento de


Miguel, observa a paisagem pela janela, vai escrutinando pelas brechas dos
móveis e pelas folhas das plantas, apenas com o girar dos olhos. — Tô só me
distraindo um pouquinho até dar minha hora.

Miguel sorri, enquanto toma muitas notas, para compensar o período


que passou sem anotar absolutamente nada.

— Até semana que vem?

Cássio, disperso e sem nenhuma pretensão de contato visual, agora


por outro motivo, responde:

— Até semana que vem.

FIM

SITES CONSULTADOS

https://www.google.com/maps/dir/Tijuca,+Rio+de+Janeiro+-+RJ/Pied
ade,+Rio+de+Janeiro+-+RJ/@-22.8962548,-43.3126397,19z/data=!3m1!4b1
!4m14!4m13!1m5!1m1!1s0x997e1b4bfbdacd:0x4a4d38d7dbf91618!2m2!1d-43.2
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m2!1d-43.3126665!2d-22.8963027!3e3

https://moovitapp.com/index/pt-br/transporte_p%C3%BAblico-line-6
07-Rio_de_Janeiro-322-857285-504482-2

https://asminanahistoria.wordpress.com/2018/04/15/lelia-gonzalez-e-
o-pretogues/

https://inbec.com.br/blog/conheca-historia-irmaos-reboucas-primeiro
s-engenheiros-negros-brasil
https://www.ip.usp.br/site/noticia/racismo-estrutural-e-negligenciado-p
or-psicologos-nao-negros-em-atendimentos/

https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/relatos-de-psicologos
-mostram-casos-de-racismo-no-cotidiano/

https://www.scielo.br/j/pcp/a/6qtXvXGFnYmBfNwzhGSwjRM/

https://inej.com.br/2021/07/27/prisao-temporaria-x-prisao-preventiva-
quais-as-diferencas/#:~:text=Cumpre%20ainda%20mencionar%20que%20
a,cautelar%20destinada%20ao%20processo%20penal.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mo%C3%A7ambique#Hist%C3%B3ria

https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/comportamento/quer-entender-
seu-sobrenome-origens-podem-esbarrar-em-acasos-trafico-de-escravos-e-
colonizacao,f6be8ebebce1ec8793cd1b589a16e47552pqx8lb.html

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/por-que-tem-tanto-silva-no
-brasil/

https://www.nexojornal.com.br/podcast/2017/03/17/Por-que-n%C3%A
3o-temos-sobrenomes-africanos-ou-ind%C3%ADgenas

https://www.familysearch.org/pt/blog/sobrenomes-brasileiros

https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/as-origens-dos-sobren
omes-mais-comuns-do-brasil-e-o-que-revelam-sobre-seu-salario/

https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,quer-entender-
seu-sobrenome-origens-podem-esbarrar-em-acasos-trafico-de-escravos-e-
colonizacao,70002814312

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