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TRABALHO DE EPISTEMOLOGIA
AGRADECIMENTOS
O CASO CLÍNICO
Miguel responde:
— Ah, obrigado. Que bom que gostou. Sim, sim, fui eu que decorei.
Mas, Cássio, o que te trouxe aqui afinal?
Cássio muda a expressão brincalhona e assume uma postura nervosa,
tensa:
— Não, não. Fica tranquilo! Horário é uma coisa sua. E tinha essa vaga,
não tem por que te negar. — Miguel pega seu bloco de notas para começar
a escrever coisas sobre Cássio. Anotou seu primeiro nome, pontuou o desvio
do olhar quando sugeriu a recombinação de horário. — Mas, que mal lhe
pergunte, por que não à noite, no último horário, por exemplo?
— Fiquei surpreso de você não ter pedido antes, visto que já chegou
aqui ofegante, cansado…
— Diferente como?
— Que seja! Tu num tá ligado, eu vim nuns três psicólogo antes de vir
em tu. Tudo branco, né? Cara, tu num tem noção. Um teve a cara de pau de
perguntar se eu tinha certeza se eu era inocente mermo! Sabe o que outro
disse pra mim: “mas como você pode ter certeza que te trataram mal porque
você era negro?”. Quer dizer, ele teve nem coragem de dizer “negro”, ele
passou o dedo assim na pele do braço — imita o gesto — e apontou pra
mim. Os cara não tá preparado pra lidar com gente igual a gente não,
Miguel. Eles têm medo da gente. E eu fico com medo deles, fico bloqueadão.
O último que eu fui, vou te falar, nem sei dizer o que que ele falou. Não
entrava. E ele era daqueles que falava mais do que escutava, então aí é que
eu não aproveitei nada mesmo. Sei lá, cara, só sei que eu saí pior do que eu
entrei. Mas nem foi por causa do cara não. Assim, o cara até que parecia
maneiro, mas sei lá, a gente pega trauma…e também…
Cássio paralisa e perde novamente o contato visual. Miguel se inclina
na direção de Cássio, interessado.
— E também…?
— O motivo d’eu negar horário que tem gente depois de mim, não é
pra não incomodar, não. É porque eles me olham feio. Os paciente, tudo me
olha torto, como se eu não pertencesse ali. E aí, tipo, posso ta falando
besteira também, mas se me encararem antes da sessão, caguei, sabe? Tô
ali, desabafo logo com o psicólogo, tô pagando pra isso. Mas depois da
sessão, vem um babaca e faz isso? Cara, sei lá, só sinto como se eu
perdesse o progresso, estragou tudo o que eu tinha, sacou? Não, e isso
porque não sabem que eu já fui preso. Se soubessem, capaz até de me
baterem.
— Cássio, esteja certo de que farei de tudo para que aqui lhe seja um
espaço seg-… — Miguel para de falar quando percebe a distração de
Cássio. O paciente logo percebe a interrupção na fala e volta sua atenção
ao terapeuta. — …você realmente não se permite distrair nem por um
minuto, não é?
— Bem, certo! O que você acha que mudou em você desde que você
foi preso até o presente momento?
— Não seeei, não sei se fui eu que mudei. Quer dizer, eu também
mudei, mas as pessoa que mudou comigo. Primeiro que eu não consigo
mais emprego. De manhã por aqui, eu fico procurando emprego. Maior parte
dos dias é Tijuca, tem dias que eu vou lá pra Copacabana, Ipanema, às
vezes dou uma procurada pelo Catete também. O que dá, né? Miguel, é
inacreditável. Ó, não tô dizendo que eu sou pica das galáxias não, viu? Eu fiz
meu Ensino Médio bonitinho e tudo mais, até comecei uma faculdade
particular, dessas de bairro, mas não deu pra pagar, pulei fora. Mas, pô, eu
sei fazer muita coisa! Sei mexer com tudo esses negócio aí de Pacote Office,
computador, sei usar esses site aí tudo, mané! Sou safo! E eu sou simpático,
desenrolo legal pra trabalhar em loja de roupa, atendente, dou até pra
trabalhar em telemarketing! Mas não chamam, cara! Antigamente
chamavam, né? Pô, antes de ter sido preso eu tava até trabalhando num
lugar maneirinho, tava dando aula de Inglês num cursinho na Conde de
Bonfim… porque assim, né! Minha mãe sabia que faculdade ela não ia ter
condição de me ajudar, nem nada, mas o Inglês ela fazia questão que eu
tivesse, tá ligado? E eu me sentia, né? Caraca, chegava lá na minha rua,
meus amigo de infância lá, e eu como? Falando inglês bonitin, gostosin no
azeite, sem sotaque. Eu tinha mó orgulho, né? Ainda mais que minha mãe
sempre reclamou do jeito que eu falo português. E já foi pior, viu?
Antigamente eu falava “praca”, “Framengo”, que eu sou flamenguista, né.
Mas pra arrumar emprego e tals, eu acabei me ajustando. Mas vou te
falar…eu adoro meu jeitinho de falar.
— Ué, Miguel? Demitido, né? Falaram que não “iam aceitar bandido,
não” — faz aspas com os dedos. — Acredita que o dono da unidade veio
pessoalmente me visitar na cadeia pra falar isso? E eu tendo que engolir a
seco. E aí, agora…tô me sustentando de freela, quando aparece. Mas
emprego, emprego mesmo, não tá tendo. Eu vou lá, deixo o currículo, sem
foto pra não me rejeitarem de cara, faço a entrevista, a pessoa até gosta de
mim, mas não sei o que rola que eles conseguem ter acesso à ficha criminal
dos outro pelo computador. E aí, pronto. Nisso vai o dinheiro da passagem
de ônibus pra ir, o dinheiro da passagem de ônibus pra voltar. Saio de
segunda a sexta de casa, 6h30, 7h da manhã pra vir caçar emprego por
essas bandas. Aí eu volto pra casa na hora do almoço, pra dar tempo de
comer a comida da minha mãe. Porque, né? O dinheiro que eu tava juntando
pra alugar uma coisinha por aqui foi tudo pra manter meus pais enquanto eu
tava preso, sem poder colocar comida em casa.
Miguel começa a procurar uma linha para abordar o caso. Ele arrisca
algo:
— E pra procurar emprego pelos seus arredores, lá em Piedade?
— Por quê?
Miguel replica:
— Você é diferente dos outros psicólogos que eu fui, Miguel. Eles tinha
divã, não tinha sofá, não era esse frente a frente. Era muito impessoal.
— E pra você isso é melhor ou pior?
— Só diferente.
— Rayane?
— Era uma origem tipo a deles assim que eu queria, tá ligado? Papo
de pretos no topo. Beyoncé e Jay-Z. Era isso que eu queria pra mim.
— Pô… eu não posso falar pela Beyoncé, nem por você, muito menos
pela avó dos irmãos Rebouças que morreu há sei lá quantos anos atrás, né.
— Cássio ri. Garante um sorriso de Miguel. — Mas tipo… — Novamente, a
expressão distante e taciturna toma conta do rosto do paciente — …pra mim,
significou a luta, tá ligado? Anda significando até hoje. Não que eu jogue isso
pra todos os preto, não posso falar por todos. Mas posso falar por mim, pela
minha mãe, pelo meu pai, pela Rayane. Ih…mas issaí é mó papo de doido,
filosofia demais pra minha cabeça. — Cássio dá uma pequena pausa para
refletir. — Miguel, sabe alguém que eu queria que respondesse essa
pergunta? O cara que roubou a loja e me deixou ser preso no lugar dele.
Será que pra ele, isso foi a glória?
— A diferença, Miguel, sabe qual é? Foi que ele pediu por isso quando
cometeu um crime. Ele fez sabendo das consequência e não assumiu, tá
ligado? Num arcou com nada, deixou pra mim arcar, eu num tinha nada a ver
com isso. Minha mãe sempre falou que eu tinha que ser duas vezes mais
pra que os outros me dessem metade do reconhecimento. Depois que eu fui
preso então, eu tô precisando fazer quatro vezes mais pra conseguir um
quarto. Eu posso não saber muita coisa nessa vida, Miguel, mas eu sei
Matemática. Eu sempre fui bom com os número, eu cresci tentando não virar
um. Eu sempre lutei pra andar na linha, pra fazer o bem pras pessoa. Nunca
roubei um tomate, porque eu sabia que se eu roubasse, podiam matar eu,
minha mãe, minha família inteira. E frustra sim, depois de me dizerem a vida
toda que se eu saísse da linha, iam me pegar, ver uma pessoa saindo da
linha e escapando. — Cássio levanta do sofá, indignado. — E pior ainda, não
adiantou nada eu andar na linha, que mermo assim me fizeram ir pra cadeia.
— Não. Lá em casa a gente nunca teve muita coisa, sacou? Mas que
eu me lembre pelo menos, a gente nunca passou fome, não. Não lembro dos
meus pais deixando de comer pra me dar, sempre teve pra mim e pra eles.
Pouco, mas tinha. Num dava pra ter o brinquedo da estação, que passava no
comercial, o telefone da época depois que virou moda, roupa daora de
marca então, pô, nunca. Mas sempre tivemo comida, conta em dia,
televisãozinha, computador, teve até uma época que a gente tinha plano de
saúde. O mais fuleiro, mas era alguma coisa, né? Foi na época de professor
de cursinho.
— O que eu tô dizendo é que, talvez, toda essa sua raiva, todo esse
seu ressentimento, esse seu rancor estejam direcionados ao lugar errado.
Pensando nessa hipótese que a gente formulou aqui agora: ele fugiu porque
ficou com medo de morrer. Se ele roubou para sobreviver, não faria sentido
ele se colocar pra morrer depois de tudo, certo?
— Então! Em vez de ressentir esse jovem, que você diz não ter
empatia com você, por que não ressentir o racismo, a estrutura violenta, a
polícia truculenta que não tem empatia com nenhum de vocês dois?
— Sobre a prisão?
— Acho que…se ser o que eu sou é passar pelo que eu passo, eu não
gosto de ser quem eu sou. — Cássio enxuga com as mãos as lágrimas de
seu rosto — Acho que isso soava melhor na minha cabeça.
— Cássio…
— O que você faz com esse ódio que você sente de si mesmo? Afinal,
quando você se encolhe, quando desfaz o contato visual, quando se afasta e
se recosta no sofá, é o medo ou o ódio falando?
— E ainda assim, você prefere estar aqui, frente a frente, do que estar
num divã, sem ver que te vêem. Os psicólogos brancos que te atendiam,
eles conseguiam te ver quando você estava deitado no divã?
— Sei lá. — Cássio ri. — Eu não tava vendo eles me verem, como tu
falou. É como dizem no inglês, né? Out of sight, out of mind.
— Mas, Cássio, ao mesmo tempo, você disse que eu me destacava
entre os psicólogos em que você foi. Por qual motivo você disse mesmo, que
eu me destacava?
Cássio desfaz o contato visual, mas logo repara no que faz e retoma
seus olhos para Miguel, fazendo uma reflexão:
— É ruim demais não ter as resposta das parada, né? O pica é que na
minha cabeça tem uma diferença muito óbvia, mas mano…eu num consigo
argumentar contigo.
— Cássio, eu não vejo um padrão claro aqui. Você diz que não gosta
da associação da sua negritude à luta, mas gosta de adotar alguns símbolos
de resistência. Você não gosta das suas origens, mas gosta das origens da
sua namorada, que não são tão diferentes das suas se você olhar pelo
aspecto histórico. Acho que não é da luta que você está cansado, mas sim,
da derrota. Você se inspira e se espelha em vencedores. Pretos
vencedores-… Não! Vencedores pretos! E talvez essa sensação de que você
não se gosta venha do fato de que você, por estar em desvantagem, porque
sim, algumas desvantagens acabam se apresentando pelo caminho, acha
que vai perder sempre.
— É difícil não achar que vai perder toda hora quando sua mãe te
protege o tempo todo, tá ligado? Dizendo que o tombo vai ser menor se eu
fizer isso, ou aquilo.
— Não quero falar da minha mãe. Não nessa sessão. Só quero que tu
saiba que ela é uma mulher incrível, que fez tudo o que tava no alcance dela
pra que eu pudesse sobreviver até hoje.
— Como assim?
— Você pode não ter reparado, mas a frustração que você sente
consigo mesmo é posterior aos subterfúgios que você apresentou para se
esconder, para se proteger. Você a vida toda passou por um processo de
embranquecimento, de perda da sua identidade, para que assim, pudesse
se moldar no mundo dos brancos sem ser malvisto, malquisto. Agora, vendo
que não adiantou e que você foi preso, você se sente culpado por se deixar
levar por esse embranquecimento.
Cássio é tomado por uma raiva intensa e começa a levantar a voz:
— Valeu, Miguel. Ó, num tô falando que vai ser fácil aceitar certas
paradas aí que tu falou, não, tá ligado? Esse bagulho aí de perdoar o cara
que me deixou pra se ferrar no lugar dele, isso vai demorar um tempo. Mas
eu gostei de você, gostei da sessão, foi bom botar as parada pra fora. Eu não
sei dizer se tu me entende perfeitamente, mas eu vi que tu quer me
entender. Acho que isso vale demais já.
Cássio pega seu telefone, são 11h54. Empolgado, pede por mais
conversa.
— Bem, acho que por hoje, nós falamos bastante coisa. É bom que
você consiga digerir tudo com calma, pra termos o que conversar na
próxima sessão.
— Ah…não, tranquilo.
— Eita…pô, ouvir falar acho que eu já ouvi sim, tá ligado? Mas nunca
procurei saber, ficava com medo de ser furada, os teste confiável deve tudo
ser caro pra caceta.
— Fiz!
— E aí?
— A sessão não é pra falar de mim, viu? — Miguel ri. — Vou dizer só
porque você perguntou. Eu tenho origem moçambicana. Uma mistura de um
pessoal que já era de lá com uns que migraram pra lá, trazendo a língua
bantu. Cheios de cabeça de gado!
— Não brinca!
FIM
SITES CONSULTADOS
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