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GOTAS DE CHUVA, LÁGRIMAS

E SAUDADES
Gracielly Grellmann
Tristeza. Compaixão. E saudade. Essas três palavras resumem meu estado físico e mental no momento em
que me debruço sobre a pequena lapide em minha frente. Hoje completa exatamente 4 anos desde que
Max partiu. Quem era Max? Ah, Max. Você com certeza devia tê-lo conhecido, pena que nem para todos o
tempo é longo, e ele acaba quando menos esperamos.
- Celine?

- Celine, você está bem? Olha para mim... – uma voz grave e masculina ressoou por meus ouvidos enquanto
mãos trêmulas e geladas me seguravam - Por favor.

Tentei fazer um esforço enorme para abrir meus olhos, mas tudo que via era escuridão, e uma horrível
pontada de dor que ardia em minhas pernas. Que diabos tinha acontecido? Eu estava... indo para Oceane
com Leah, precisávamos chegar a tempo de pegar o último voo para Rio Prado, nossa mãe nos esperava lá.
Mas... isso não parecia nada com um aeroporto porque, afinal de contas... por que razão minhas pernas
doíam tanto?

E foi aí que não ouvi ou senti mais nada.


Despertei um tempo depois dentro de um quarto de hospital quando o médico que estava lá, depois de
eu tanto insistir, me contou o que havia acontecido, me certificando de que havia passado mais de 30 dias
desde minha entrada no hospital. Aparentemente eu e minha irmã sofremos um acidente de carro a
caminho do aeroporto e pelo que ele disse, era um milagre eu ter acordado. Eu estava em coma, dissera
ele. E havia sofrido uma paralisia muscular nas duas pernas.

Enquanto ele se retirava do quarto indo avisar quem quer que seja Elizabeth de que eu havia acordado,
abrindo espaço para um homem alto, de olhos azuis e com uma aparência jovial que entrava com uma
rapidez um tanto desesperada, tentei me sentar na cama, mas me dei conta de que as minhas pernas não
se movimentavam. Elas não se moviam de jeito nenhum. Tentei fazer esforço, mas eu não sentia nada, não
conseguia me mover de forma alguma. O terror subiu pelo meu corpo quando associei a tal paralisia com
meu atual estado.

- Celine. - O homem me abraçou com força enquanto lágrimas rolavam por seu rosto. – Você não sabe o
quanto senti sua falta. Você não sabe o quanto eu achei que nunca mais veria o brilho dos seus olhos. Mas
você acordou. Bem-vinda de volta, meu bem.

Ele me soltou e se afastou para me observar, parte por parte. Mas quem era ele? E que história de “meu
bem” era essa? Ele me fitou esperando por uma resposta quando percebeu a confusão em meu rosto. As
olheiras nitidamente visíveis em seu rosto denunciavam o enorme cansaço pelas noites não dormidas.

- Celine? Eu sou o Max, você lembra de mim, não é? Eu sou seu namorado. – Uma pausa. – Line? – Ele
tentava não demonstrar a exaustão, mas estava falhando cada vez mais. Seus olhos estavam ficando
inchados, mas o tom de azul se destacava em meio a todo aquele turbilhão de emoções. Com esforço e
tentando raciocinar tudo, respondi:

- Desculpa, mas eu não sou nenhuma Celine. Você deve ter se confundido, deve ter errado o quarto. Eu
não conheço você. – O então “Max” continuava me observando. Ele não parava de chorar e seu rosto estava
com uma expressão de espanto. Ele notou meu esforço para tentar me sentar e inesperadamente me
ajudou com isso.

- Eu sinto muito por tudo isso. Pelo acidente. Por sua irmã. Por tudo... o médico disse que era possível
você perder a memória por um período determinado. Sabe, quando eu e sua mãe pedimos a ele a
probabilidade de você sofrer algum trauma, ele disse que era grande, então já estávamos cientes do pior,
mas ver isso sendo concretizado é dolorido da mesma forma. Mas eu sei que você vai lembrar de mim. De
nós.

Ele se aproximou novamente e ficou em silêncio por um tempo.

– Eu sei que você vai. E eu também sei que quem mais está sofrendo agora é você. Mas você vai superar
tudo isso. E eu estou aqui, do seu lado como sempre estive e sempre estarei. Eu nunca vou te abandonar.

Aquele era um olhar de súplica, tristeza. Um olhar que eu conhecia, mas não conseguia lembrar de onde.
Mas afinal de contas, o que realmente aconteceu? Eu tinha uma irmã? O que aconteceu com ela? Eu sofri
um acidente que levou metade dos movimentos do meu corpo embora? O que me levou a parar naquele
hospital? O médico não havia dado detalhes de nada pois estava apressado quando saiu. E meu nome.
Qual era meu nome? Eu não conseguia me recordar de nenhum. Minha mente estava uma bagunça
completa, e cada vez que eu tentava lembrar de algo, de um mínimo detalhe que seja, eu só via escuridão e
mais nada.

- Desculpa, mas eu realmente não conheço você.


Max tirou do bolso de seu casaco seu celular enquanto suas mãos tremiam. Ele estava procurando algo
no aparelho.

- Aqui. – Disse ele. – Olhe. Você e eu no nosso primeiro ano de namoro. – O celular mostrava uma foto
dele ao lado de uma jovem loira e feliz. – Olhe essa, foi quando conseguimos entrar na mesma faculdade.
Você não estava conseguindo acreditar de jeito nenhum, tanto que ligou 4 vezes para a universidade para
checar se era real. – Um pequeno sorriso se formou em seus lábios. Ele riu pela primeira vez desde que
chegara, enquanto me mostrava as centenas de fotos ao lado da mesma jovem.

- Você está realmente enganado, e essa não sou eu. Se você puder chamar algum médico por mim, essa
ajuda será bem-vinda. – Max desviou o olhar do celular e seu rosto estava com a mesma expressão de
antes. Cansado. Qualquer um que o observasse por tempo demais notaria a solidão em sua alma. Os olhos
azuis, apesar de claros e belos como o oceano, tornaram-se o habitat de tamanha tristeza que o assolava.

Enquanto caminhava de um lado para o outro pensativo, Max pareceu lembrar de algo e parou
abruptamente enquanto lançava um olhar em minha direção.

- Espere um momento. – Disse ele, dirigindo-se até o que aparentemente parecia ser o banheiro do
quarto, voltando de lá alguns segundos depois com um pequeno espelho de bordas douradas.

- Veja. Essa é você. – Ele entregou o espelho para mim e ficou esperando pacientemente enquanto eu o
levava a altura do rosto. Os mesmos traços marcantes e cabelos loiros que vi nas fotos que Max me
mostrou estavam agora, acompanhando cada movimento meu em frente ao espelho. Ou melhor, aquele
era o meu reflexo. – E essa também é a mulher pela qual me apaixonei a 5 anos atrás.

Acho que passei tempo demais observando a mim mesma que o homem alto e moreno resolveu se
sentar na poltrona ao meu lado. Eu queria poder ver além. Ver mais fundo naquele reflexo. Tentar enxergar
e entender o que foi que aconteceu com a minha vida. Do nada eu estava vivendo normalmente e depois,
bum! Acordo em uma cama de hospital com a notícia de que fiquei em coma por mais de um mês, sem
lembrar nada sobre mim e tudo ao meu redor, e além disso, algo aconteceu com minhas pernas. Eu
precisava que alguém me explicasse o que é que estava acontecendo.

Essa só podia ser mais uma brincadeira do destino, na qual, eu era o peão.

Quando soltei o espelho e estava pronta para pedir que Max me explicasse o que quer que ele soubesse
sobre o que houve, o mesmo médico que saiu anteriormente, voltava agora com uma mulher baixinha, de
olhos verdes e loira que aparentava estar na casa dos quarenta anos. Seus traços eram semelhantes aos
meus, seria ela...? Não, não pode ser. Na verdade, tudo por ser enquanto eu não lembrar de nada.

No momento em que seus olhos caíram sobre mim, a mesma saiu em disparada em minha direção e as
lágrimas já marcavam presença em seu rosto. Por incrível que pareça, sua expressão era exatamente a
mesma de Max quando ele chegou aqui. Ela também me abraçou fortemente e chorou muito, até que
resolveu realmente olhar para mim.

O médico que descobri que se chamava Dr. Torres, perguntou o que eu estava sentindo, se conseguia
movimentar minhas pernas e lembrar de algo. Depois de me examinar me explicou que a paralisia muscular
pode ser curada com fisioterapia e medicamentos e a perda de memória se explicava por ser uma amnésia
traumática que com o tempo será superada e minha memória voltará. Ele disse que o acidente causou um
impacto muito grande tanto fisicamente quanto emocionalmente em mim. Mas que eu ficaria bem com o
tempo.

- Bom, eu acho que vocês têm muito para conversar. - Depois de prescrever algumas recomendações, ele
se retirou do quarto.
Era impossível simplesmente ouvir tudo isso e fingir que estava tudo bem como se nada demais havia
acontecido. Era difícil acreditar. Eu quase morri. Mas estou aqui, apesar de tudo.

- Acho melhor deixar para sua mãe o papel de explicar tudo. – como se tivesse lido meus pensamentos,
Max se levantou e deu um breve aceno de cabeça. – Eu voltarei amanhã. – E assim ele se foi me deixando
com a figura materna a minha frente. Pelo jeito tudo é possível mesmo.

Será essa a mesma sensação de quando nascemos e vemos nossa mãe pela primeira vez? A curiosidade
em saber quem é a mulher que está nos segurando em seus braços, absorvendo cada mínimo detalhe. A
sensação acolhedora de ter alguém ali, nos protegendo e amando em todos os momentos. Apesar de nem
todos terem esse privilégio. Muitas famílias não tiveram o prazer de desfrutar dessa mesma sensação. E
alguns, não tiveram uma mãe ou família para serem segurados em seus braços em sua vinda ao mundo.
Mas no meu caso, eu estava muito tensa e confusa. Obviamente essa não é a primeira vez que a vejo. Mas a
primeira em que consigo lembrar e sentir algo.

Eu até cheguei a cogitar se ela sabia falar, porque já havia se passado um bom tempo e ela estava ali,
imóvel, chorando. Desde o momento em que chegou. Mas lembrei que Max deixou bem claro o contrário
antes de sair. Comecei a pensar em algo, ou em como começar essa conversa sobre mim e tudo.

- Então você é.… a minha mãe? – As palavras pareceram fazer algum efeito pois ela soltou um longo
suspiro enquanto secava as lágrimas em seu rosto e se sentou na poltrona. Eu não podia acreditar em
qualquer coisa num momento desses, principalmente porque não tenho nada para me defender. Eu não sei
sobre nada.

- Sim, Line. Eu sou sua mãe. E você não imagina o quanto eu senti a sua falta. – Ela parecia estar perdida
em seus pensamentos pois seu olhar estava em mim, mas distante. – Então você realmente perdeu sua
memória? Eu imaginei todas as piores hipóteses do que podia acontecer com você, e isso acabou comigo.
Eu já perdi sua irmã. Eu não quero perder você também. Eu vim até aqui todos os dias desde que vocês
sofreram o acidente. Leah estava nesse quarto também. Ela ficou nessa cama por cinco dias. – Ela apontou
para uma pequena cama no outro lado do quarto que eu não havia notado que estava ali. – Depois,
inesperadamente, ela veio a falecer. Ela estava bem, até os médicos ficaram surpresos pois a possibilidade
de você parar de respirar a qualquer momento era bem mais grande. – Ela se levantou e foi até uma mini
geladeira e pegou um copo de água. Enquanto bebia, as lágrimas reapareceram em seu rosto. – Eu estava
sem esperança alguma depois do ocorrido. Porque era praticamente impossível você acordar, você foi a
mais ferida no acidente.... E estava sendo impossível continuar. Eu pensei em desistir de tudo diversas vezes.
Mas antes, quando o Dr. Torres veio me chamar, eu não acreditei. Eu simplesmente não conseguia acreditar
que você havia acordado e eu precisava ver isso com meus próprios olhos. Eu vim o mais rápido que pude.
E eu estou imensamente grata por você estar viva. Você não sabe o quanto eu estou feliz em poder ouvir
sua voz novamente.

Leah. Ela não resistiu e isso explicava a dor e a angustia que pairava na atmosfera daquele quarto e que
estava presente naqueles que haviam estado lá.

Eu não tinha no que acreditar. E se essa era a única opção, então eu seria Celine. Pelo menos até eu
lembrar de algo.

Ficamos conversando por um bom tempo. Ela me explicou o que aconteceu. Me contou sobre Leah,
sobre a irmã incrível que ela era. Me contou sobre meu pai, que havia falecido no mesmo ano em que nasci,
sobre minha vida, quem eu era, que eu tinha feito 21 anos no inverno passado, o que fazia, onde trabalhava
e que cursava psicologia. Ela se culpou diversas vezes pelo acidente, mas eu disse que não havia sido culpa
dela em momento algum. Eu ainda estava completamente desacostumada com tudo que ela havia dito. Eu
não sabia quem eu era, não por experiência própria e certamente minha memória demoraria para voltar.
Enquanto isso, eu precisaria recomeçar tudo do zero. Recapitular cada dia da minha vida até esse
momento.

Enquanto remexia em sua bolsa de couro vermelha, ela me entregou documentos e um celular. Quando
vi a foto na identidade e o nome Celine Annenberg notei que eles pertenciam a mim, e o celular também.
Na capinha transparente havia uma polaroid com uma foto de duas pessoas se divertindo em um parque
de diversões. Eu e Max. Nós dois.

Eu havia me esquecido dele e do fato de que ele disse que somos namorados. Elizabeth não havia falado
nada sobre ele até então.

- Então Max é meu namorado? – Provavelmente ela foi pega de surpresa e ficou pensativa por uns
instantes, talvez percebendo que havia esquecido dele também.

- Ah. Max, sim. Sim, ele é seu namorado. Vocês estão juntos desde o ensino médio e desde então, nunca
se desgrudaram. – Ela sorriu como se memórias tivessem surgido em sua mente. – Ele é um bom garoto. Na
verdade, um ótimo por sinal. Ele sempre esteve aqui com você todos esses dias, mesmo quando eu estava,
ele se recusava a ir para casa descansar. Ele passou diversas noites sem dormir quando soube o que
aconteceu com vocês. Ele teve que vir para o hospital várias vezes, ele passava mal e desmaiava. Ele ficou
extremamente abalado. Para um garoto que antes era saudável, ele está acabado agora. Eu sei que você
acordou a poucas horas atrás e é difícil para entender quem você é, mas essa é você Celine, a garota
apaixonada pelo Max. Que sempre amou ele de verdade. E ele também ama você. – Ela me abraçou e olhou
para a janela ao meu lado. – Eu não quero que você se sinta pressionada. Você está em um novo mundo
agora, imagine que seja assim. Você precisa redescobrir tudo e quando estiver pronta, poderá dar o
próximo passo. Não se cobre em momento algum. Você também precisa do seu tempo. – Com um longo
suspiro, mas agora de alivio, ela falou que me deixaria descansar e então, ela saiu e o silêncio e o laranja do
pôr do sol tomaram conta do ambiente.
A noite chegou rapidamente e a luz da lua refletia na enorme janela de vidro.

Encontrei uma agenda e canetas em cima da mesinha ao meu lado e comecei a fazer uma linha do
tempo em uma das folhas. Nela coloquei tudo o que Elizabeth havia dito e li diversas vezes. Nada surgia em
minha mente, nem uma lembrança se quer. Depois de tanto olhar para aquele mesmo papel, desisti.
Comecei a sentir um leve formigamento em minhas pernas

Ela disse que eu fazia psicologia e lembro de Max falar sobre estarmos na mesma faculdade.
Provavelmente ele dara um bom psicólogo. Já eu, não consigo me imaginar com um jaleco branco,
passando o dia sentada em uma sala minúscula ouvindo diversas pessoas falarem sobre si e suas vidas.
Devo ter escolhido a profissão errada, com certeza.

Apesar de ter passado mais de um mês em coma, o cansaço já se faz presente em mim. Alguns instantes
depois, uma enfermeira entra no quarto com o que parece ser o jantar.

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