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Adeus
EU JÁ NÃO SABIA MAIS O QUE FAZER. COMO PODERIA
ESCAPAR DE toda a dor? A dor da verdade, a dor da decepção ao descobrir
que tudo aquilo em que eu acreditava não passava de uma farsa premeditada.
A única verdade em tudo era meu amor por Max, mas nem a isso eu podia me
segurar mais.
Fui até o quarto de Edward, ele devia estar de repouso após o transplante
de rim, mas já havia voltado à faculdade e, de certa forma, a ausência dele
facilitava um pouco as coisas para mim. Abri a gaveta de sua escrivaninha e
tirei todos os papéis, eu sabia que o que eu procurava estaria lá e não
demorou muito para encontrar.
Naquele mesmo dia, marquei um encontro num café com Karola, Drake e
Henry, um lugar onde mamãe não nos ouviria. Eles eram os únicos com
quem eu ainda falava. Contei-lhes o meu desejo de me matricular e ir embora
o mais depressa possível, Karola ficou relutante, mas Drake e Henry
aparentemente me entenderam, ou pelo menos respeitaram minha decisão. O
peso que eu estava carregando nas costas era maior do que eu poderia
suportar.
— Sim, eu tenho.
— Denise e Eddie não vão concordar muito com isso. — Drake lembrou.
Eu dei de ombros.
— Ele não vai a lugar algum, vai? Já se passou um mês e nem sinal de ele
acordar. Não perdi as esperanças, não o amo menos por isso, mas não posso
mais ficar aqui. Está sendo muito difícil acordar todos os dias e conviver com
a verdade. — Admiti.
Queria estar tão seguro quanto as palavras que saíam da minha boca.
— Se você tem certeza que quer isto, eu posso ajudá-lo com a parte
financeira. — Henry disse por fim.
— Então vamos correr contra o tempo. Se não quiser perder o prazo, terá
que embarcar amanhã.
***
Eu ainda não tinha falado com a Sra. Dodger desde que havia descoberto
a farsa entre nossas famílias, ela era tão vítima quanto eu, mas eu não queria
reabrir suas feridas, as minhas por si só já bastavam. Então fiquei em silêncio
quando entrei no leito de Max. Sentei ao lado dela, já era um hábito nosso.
Observei aquele corpo desacordado, seus traços que eu conhecia tão bem.
Estremeci, ele estava emagrecendo. Tão vulnerável, dependente de várias
máquinas que não paravam de ecoar diferentes zumbidos. Todas elas o
mantinham vivo.
— Olá Thomas.
A Sra. Dodger ergueu a cabeça sem ânimo. Sorri para ela, mas era algo
vago, mais como um movimento de lábio desprovido de qualquer alegria. Ela
suspirou e se endireitou na poltrona, fez menção para que eu sentasse ao seu
lado e eu o fiz.
— Sim, nós até fizemos um pacto de sangue. E, por favor, não fale como
se ele estivesse morto, nós não possuíamos, nós possuímos uma relação muito
forte.
Ela pareceu me ignorar, mas não tirou os olhos dos meus.
— Eu ficaria, mas não consigo olhar para minha mãe ou para meu irmão.
Isso está além do que consigo suportar, sempre acordo desejando que o dia
acabe. Eu não queria que fosse assim, não queria deixar Max, eu prometi...
— Thomas, você fez o que pôde, pare de se culpar. Não me admira que
você tenha sido o único a ficar aqui, nunca o deixou. Max era muito popular,
mas os amigos que ele tinha não eram amigos como você...
— A senhora pode não gostar do que vou dizer, mas o que eu e Max
tivemos, temos, é muito mais forte e intenso que uma amizade. Nós
compartilhamos um...
— Um amor singular. Não precisa ser um gênio para perceber isso. Eu sei
que sempre fui ausente na vida dele, mas os pais conhecem os filhos, eu
sempre soube como ele era e também, apesar dos pesares, sempre me senti
feliz e grata por ele poder contar com você quando eu e Mark não estávamos
por perto. Eu sei que ele te ama muito, sempre amou. E só posso lamentar por
você ter que passar por isso, você é tão jovem, não merecia.
Ficamos pensativos por uns instantes.
— Max, eu preciso partir. Sentirei sua falta mais que tudo. — Resfoleguei
— Estou indo para Cork, na Irlanda, farei o curso dos meus sonhos, embora
minha vida seja um pesadelo. Algumas coisas ruins aconteceram, erros que
os nossos pais cometeram que atingem diretamente a nós dois, mas você não
precisa saber disso agora, apenas descanse. Estou indo viver o presente
sabendo que o terei no futuro. Eu o amo, você nem imagina o quanto me faz
falta. A vida é uma droga sem você. Está tudo muito difícil para mim, e sei
que pode piorar, mas peço que continue assim, estável, continue bem e
evolua aos poucos, não desista! Você estando bem, eu também estarei. Estou
indo enquanto você se recupera, mas eu te prometo Max, que eu vou voltar.
Independentemente do que aconteça, eu estarei aqui para testemunhar tudo.
Eu te amo, sempre vou te amar.
Fui acabando com o espaço entre nossos rostos, encostei meus lábios em
sua testa pálida. Eu era o calor e ele o frio.
Dei uma última olhada nele, fechei a porta do quarto e com lágrimas nos
olhos abracei a Sra. Dodger uma última vez, depois procurei a saída do
hospital. Não tornaria a vê-lo tão cedo, pensei.
***
Sempre ouvi dizer que despedida era uma coisa difícil de suportar. Eu,
particularmente já havia passado por algumas. Despedi-me do meu pequeno
irmão em seu leito de morte, despedi-me de Heaven Wood, do colégio, mas a
questão era que eu estava prestes a me despedir de tudo, da minha "família",
do meu país, do amor da minha vida. Max Dodger, o cara com quem eu
sempre sonhei dividindo um apartamento, um sorriso, uma cama, o cara com
quem eu me casaria e viveria o meu "felizes para sempre". Talvez
pudéssemos ter um cachorro ou um gato para chamar de Steve, acordaríamos
lado a lado todos os dias e quando eu acordasse na madrugada após um
pesadelo, ele estaria lá abraçado a mim para garantir que tudo estava bem,
que com ele eu estaria seguro. Mas tudo isso não passava de um sonho
bobo...
— Mano, você não pode passar a vida trancado no banheiro, seu voo
parte em alguns minutos. — Drake disse, estava à minha espera do outro lado
da porta.
Respirei fundo, mas não tentei falar. Minha voz se quebraria e eu voltaria
a chorar. Eu só não conseguia entender o motivo pelo qual a vida insistia em
me ferrar. Devia haver um milhão de idiotas piores que eu no mundo inteiro,
mas tudo só dava errado comigo.
— Você é muito importante para mim, mano. Depois das coisas que
passamos juntos, a última coisa que eu queria na vida agora era que
ficássemos distantes, mas eu sei que se você continuar aqui, vai acabar
morrendo ou se matando. Seus olhos não brilham como antes, seu corpo está
magro, tão pálido quanto um cadáver. Você não dorme, pois tem pesadelos,
não se alimenta, pois não tem fome. Nem sequer presta muita atenção no que
acontece ao seu redor. Eu sei que Max era o seu mundo, mas o mundo não se
resume a Max, se é que me entende. Você acabou de fazer dezoito, tem uma
vida inteira pela frente, assim como eu. Se não quer encontrar outro cara,
tudo bem, ninguém está te pedindo isso, mas Tom... você precisa viver! Ele
vai continuar à sua espera, se reabilitando para quando você voltar. E já
chega de chorar, eu não quero ser contagiado com a sua emoção colorida.
Ele me soltou, encarei o chão. Eu tinha ouvido tanta coisa, entre elas, o
que eu considerava as piores de se ouvir, principalmente por que eu já as
havia ouvido após a morte de Michael: você vai se curar, você vai ficar bem,
tudo vai dar certo.
Estavam todos blefando, nada daria certo. Na verdade, nunca vi algo dar
tão errado. Eu nunca ficaria bem e, principalmente, nada nunca iria curar a
maldita dor que me dilacerava inteiro por todos os segundos de cada minuto,
de cada hora, de cada dia estúpido. Exceto, se ele acordasse...
— Se você pensar muito nisso, nunca vai sair daqui. Passaria a vida
vegetando junto a ele num leito de hospital. Eu não desejaria isso. Você é
muito inteligente, vai estudar e levar uma vida normal. Você conseguiu
aprovações incríveis, então... pelo menos tente. Um semestre ou dois no
máximo, mas tente. Por mim, por você, pelo Max. — Drake insistiu.
No alto-falante, uma moça com voz mecânica anunciou meu voo. Drake
jogou um braço ao meu redor e me arrastou pelo saguão até o embarque,
onde encontrei Karola e Henry.
— Não.
Afastei-me.
— Se cuide Tom, você pode contar comigo para o que precisar. — Disse
Henry com seu tom responsável que me soava como um pai, que nunca tive.
Drake começou a tentar contê-lo, mas não foi preciso. Antes que ele
chegasse perto o bastante para fazer o que planejava, eu fui embora sem olhar
para trás.
Meu voo ia de Londres à Cork, com uma conexão em Dublin. Assim que
me despedi e encontrei meu assento no avião, junto à janela, senti o estômago
embrulhar. Queria me trancar em outro banheiro para chorar ou vomitar um
pouco mais, mas não podia.
Quis ignorar a cidade ficando para trás conforme o avião decolava, então
fechei a proteção da janelinha, fechei os meus olhos e comecei a repassar na
mente algumas lembranças.
Eu não sairia de perto de Max por nada. Talvez até pudesse aceitar um
emprego ruim, faria alguns cursos... enfim, deixá-lo estava fora de questão,
mas isso foi antes de eu descobrir a verdade.
Perguntei se eu poderia ser doador, mas não poderia sem uma ordem
judicial. Levaria semanas para conseguirmos uma. Além disso, precisaríamos
fazer vários exames para determinar a compatibilidade e, por fim, ainda
haveria riscos maiores de rejeição.
Mas não acabou por aí, quando questionei a Sra. Dodger sobre o que ela
pretendia fazer para contornar a situação, ela simplesmente me obrigou a me
afastar. Disse que sabia o que fazer, mas eu precisaria dar um tempo a ela,
aos dois. Eu tinha sorte de poder estar ali todos os dias, então não me opus.
Aceitei.
Mamãe, que – assim como eu – nunca foi boa em esconder suas aflições,
andava muito nervosa, cheia de olheiras, com uma alegria forçada e olhos
vermelhos. Karola nunca estava em casa, Drake andava desconfiado e eu não
tinha notícias de Max há um bom tempo e cansei de esperar. Tinha medo de
que eles estivessem escondendo uma piora ou até a morte dele.
Não sei como tive coragem de dizer isso para ela, mas disse.
— É um pouco complicado...
Mas eu estava bem enganado. Sempre achei que minha vida era
complicada, mas até aquele momento eu nem fazia ideia do quanto ela podia
ser pior.
Stela Dodger contou-me que Max havia passado pelo transplante e que
tudo ocorreu incrivelmente bem. Fez certo mistério ao falar sobre o doador e
eu percebi logo de cara. Insisti outra vez, disse que queria conhecê-lo e
agradecer pessoalmente. Ela relutou, mas sabia que eu encontraria uma forma
de fazer isso sozinho, então cedeu, mas antes me disse uma coisa que eu
nunca esquecerei.
— Se é isso que você quer Thomas, não vou impedi-lo. Mas saiba que
sua vida vai mudar completamente assim que você o ver.
***
Algo nela me lembrou Loren, talvez tenha sido a falsidade na voz ou seu
cabelo incrivelmente parecido com o dela, não sei... respirei fundo.
Respondi me segurando para não dizer "sim, a menos que você possa
trazer meu Max de volta!". Ela sorriu mais uma vez e seguiu seu rumo.
Decidi abrir a proteção da janela, Londres já não podia ser vista lá embaixo,
senti outro embrulho no estômago, tudo o que eu via eram as nuvens. Logo
cheguei à conclusão de que minhas raízes haviam sido arrancadas.
Fechei os olhos e fiz uma pequena prece, só não sei bem a quem.
Eu sabia que era verdade, podia sentir. Estava prestes a responder, mas
uma gota de sangue escorreu de seu nariz, ele tossiu e logo começou a
vomitar, jorros de um sangue grosso e escuro, quase preto. Quis ajudá-lo,
mas era tarde, ele caiu no precipício.
***
Senti uma vontade imensa de ligar para Edward, era ele quem me salvaria
em uma situação como a em que eu me encontrava, mas eu não podia falar
com ele. E levaria tempo até que eu conseguisse.
Uma gota de chuva caiu em meu nariz e foi como um déjà vu. Eu sabia o
que viria depois dela, pois já havia acontecido.
A chuva que caiu em seguida não me assustou, pelo contrário, foi como
uma boa recepção. Ela era algo que eu conhecia intimamente, uma velha
amiga. Não me movi, deixei que me tocasse, mas as lembranças que vieram
com ela trouxeram o sentimento de perda outra vez.
Encontrei seus olhos, verdes como o mar revolto. Max me encarava com
a mesma intensidade.
— Tinha uma abelha em seu rosto — disse ele parecendo um tanto sem
graça, antes que eu pudesse questionar.
Nem sequer terminei a frase, uma gota grossa e gelada caiu em meu
nariz, seguida por outras e logo a chuva despencou e nos atingiu sem
piedade.
Então era isso. Estava chovendo, mas ele não estava comigo. Sentei na
calçada e continuei debaixo da chuva, me senti totalmente abandonado.
Talvez estivesse caindo a ficha de que eu estava sozinho num lugar estranho,
longe da minha zona de conforto, se é que pode ser chamada assim.
Estar perdido no campus não era o maior dos meus problemas, por isso
joguei o mapa molhado na linha de água que escorria pelo acostamento, eu
estava me perdendo de mim. Para que isso não ocorresse, eu precisaria
encarar as sombras que me rodeavam, e não eram poucas. Tudo começou a
desandar quando Max me deixou, será que ele ainda me amaria se soubesse
que fui embora?
— An bhfuil tú caillte?
O observei da cabeça aos pés. Estava irritado por ele ter me tirado da
conexão que tive com a chuva, ou talvez eu só estivesse enlouquecendo. Era
óbvio que eu estava perdido, mas de que importava a ele?
O rapaz era da minha altura, pele clara e rosada, olhos verdes suaves,
cabelo desgrenhado, vestia um casaco preto e jeans, era magro e
aparentemente meigo. Sua voz era grave demais, algo que não parecia
combinar com o resto. Além disso, ele tinha um sotaque estranho, não era
irlandês, eu já havia ouvido irlandeses antes, ele devia ser de outro país. Ele
não parou de me encarar.
— Thomas Thompson.
— Onde fica?
— Não quero te apressar nem nada, mas está caindo um dilúvio e logo vai
escurecer, podemos pegar um resfriado. Então, se você não se importa, pode
decidir logo?
Fiquei de pé e peguei minhas malas encharcadas, mas não falei nada. Ele
se ofereceu para carregar uma delas e eu deixei, andamos debaixo da chuva,
contornamos um prédio e fomos por uma estrada de pedestres reta que dava
para o cruzamento da famigerada Rodovia College. Esperamos o semáforo
liberar nossa passagem, então atravessamos e entramos na Rua Highfield, que
era uma ruazinha calma, havia carros estacionados no acostamento e também
em algumas garagens das inúmeras casas idênticas. Algumas delas tinham
placas com nomes em latim, irlandês e inglês, vi a placa da Ceatha no portão
da casa, era a terceira de três casas exatamente iguais, até a cor era a mesma.
Se não fosse a placa, eu me confundiria. Sobre o nome havia entalhado em
madeira, havia um arco-íris.
Ele abriu o portão de ferro cuja tintura descascava e gesticulou para que
eu entrasse. A chuva já não era tão forte, a casa era pequena, mas era bonita
em seu estilo irlandês comum.
— Calma Du, ele é só um calouro. Nós precisamos dele e ele trouxe mais
um, assim poderemos manter a Ceatha por mais um ano. Eu vou comprar
seus malditos bagels — decidiu.
— Tudo bem, mas vocês dois estão molhados, esperem aí, eu vou pegar
toalhas. Elijah, lembra qual o meu sabor favorito?
Konstantin sorriu, mas logo escapou dele um espirro. O tal Duane voltou
com as toalhas.
Tirei minha calça e enrolei a toalha ao meu redor, então tirei a camisa.
Konstantin fez o mesmo, ele entrou no banheiro do térreo, Duane levou
nossas roupas até a área de serviço e voltou para me levar até o banheiro.
— Suas malas estão encharcadas, eu vou arranjar algo para você vestir,
amanhã nós daremos um jeito nelas. — Ele disse.
— Não consigo ver nada, acho que você deveria entrar, ele está
demorando. — Disse Duane.
— Eu? Mas...
— Vem, eu te mostro.
— Obrigado.
Ele me encarou com certa preocupação. Olhei para o chão, não era muito
bom em mentir, mesmo para estranhos. Por sorte, ele não insistiu, saiu do
quarto. Me deixou sozinho. Fui até a janela, abri as cortinas e vi a rua, as
casinhas iguais, os prédios da universidade ao longe, pessoas apressadas indo
e vindo, aquela seria a minha realidade, a minha nova vida.
— Não me venha com essa Du, não estou contra você, só estou dizendo
que...
— Pensei que estivesse de dieta. — Elijah disse para ele, que deu de
ombros.
— Sei...
Havia um clima estranho pairando sobre a mesa e eu sabia que era por
conta da minha presença inesperada, porém nós comemos em silêncio, até
toda a comida se extinguir e Duane e Elijah discutirem sobre as calorias que
havia em um pão, enquanto Konstantin revirava os olhos.
— Bem... precisamos saber quem você é. Tudo o que sabemos até agora é
que se chama Thomas, correto?
— Ok.
— Não, você não vai fazer isso de novo. — Elijah o repreendeu, mas ele
ignorou.
Respirei fundo, senti minhas bochechas queimarem, mas não estava tão
constrangido.
— Eu também sou gay, estou solteiro, não sou soropositivo, nem tenho
doença alguma. Não sou rico e venho de Cambridge, Inglaterra. Estou aqui
para cursar medicina e para fugir do meu passado.
— Uau, então você tem uma coisa comum com todos nós. Somos todos
fugitivos do passado. Mas a pergunta que não quer calar, você matou alguém
para estar aqui?
Paralisei, sabia que era apenas uma brincadeira, mas minhas mãos
começaram a tremer, eu as escondi sob a mesa enquanto pensava no que
poderia responder, eu não havia matado alguém, mas alguém quase morreu
por minha causa.
— Não se importe Tom, ele só está brincando. O Du nasceu para fazer
piadas e atormentar os calouros. — Elijah disse para me tranquilizar.
— É claro...
***
Eu deveria ter ficado com Max, talvez se eu tivesse tentado mais... não. A
quem eu estava tentando enganar? O peso da verdade, às vezes, é maior do
que se pode suportar. E eu havia descoberto que fui enganado desde que
nasci, que minha vida era uma farsa. Minha família de estruturas frágeis já
não podia mais ser considerada uma família, o vilão era o mocinho e os
mocinhos eram os verdadeiros vilões.
— Ei Thomas, Tom. Você está trêmulo, suando frio... está tudo bem?
Só quando ouvi a voz grave lembrei que Konstantin ainda estava na cama
ao lado com os olhos pregados em mim. O lado ruim de dividir um quarto
com alguém.
— Estou bem, não se preocupe — menti.
Eu tinha sido ignorante com ele sem motivo, Konstantin tinha razão. Não
íamos querer sair tarde, se já podíamos nos perder de dia, imagina à noite.
— Obrigado.
Eu não me sentia grato. Estava fervendo de raiva por dentro. Aquilo com
certeza tinha sido um plano de Edward para me fazer sentir melhor, mas era a
última coisa que eu precisava. Busquei meu celular no bolso, mas lembrei
que tudo o que me pertencia ainda estava na mala, eu só havia tirado de lá a
roupa que vestia. Eu ligaria para ele e o mandaria se ferrar.
— Não, não estou. Droga! Vocês têm que parar de me perguntar se estou
bem. Eu nunca vou estar.
— Desculpe, ok? Acho que entendi, não vou mais te aborrecer. Você se
importa se passarmos no Smallows? Não é longe e eles têm um cardápio
muito bom, o jantar é por minha conta.
Dizer que não havia problema quando se tratava de mim era uma ousadia.
Os problemas me perseguiam como o predador persegue sua presa.
— Com licença.
Comigo a vida sempre tendia a ser tirana. Uma das primeiras coisas que
estavam listadas para entrada do jantar quase me fez sufocar. Um nó se fez
em minha garganta mais depressa que um piscar de olhos. Lá estava escrito
numa fonte bonita: Porridge. Que, por acaso, era o melhor – e único – prato
que Max preparava para mim. Ele fez tantas vezes em minha vida.
— Thomas?
— Vou ao banheiro.
Saí com uma pressa exagerada, no caminho esbarrei num garçom e quase
caí. Tranquei-me em uma das cabines, não parecia muito limpa, mas só fiquei
lá o tempo necessário para o choro cessar. Seria sempre assim? O nó na
garganta, o aperto no peito que me virava do avesso, a dor que me queimava,
a sensação de perder o ar, a falta dele...
Será que toda vez que eu fosse a algum lugar e lembrasse dele seria
assim?
Não sabia. Bati minha testa na parede de ferro da cabine, uma, duas,
cinco vezes. Até sentir qualquer dor física, qualquer coisa que me distraísse
da falta que ele me fazia. Eu não queria esquecê-lo, de jeito nenhum, mas me
apegaria a qualquer coisa que pudesse aliviar o meu tormento.
— Tudo bem, não importa. Todo mundo tem dias ruins, mas não há nada
que uma boa comida não resolva. — Ele disse, não estava magoado comigo e
isso foi um alívio.
Ele estava sendo legal desde que me viu e eu não estava retribuindo.
Olhei para ele envergonhado, mas o olhar que ele me deu em resposta foi
como um dar de ombros, não me absolvia nem me condenava.
Quando nosso jantar chegou, me surpreendi ao perceber que o ensopado
de batatas fez eu me sentir em casa, só o cheiro dele despertou no estômago a
fome que minha mente bloqueava. Comemos tudo, não deixei ele pagar tudo
sozinho, então dividimos a conta e saímos pela noite irlandesa na direção de
nossa casa.
***
Olha só quem está de volta! — Duane gritou quando nos ouviu entrar. Ele
estava esparramado no sofá com um olhar desconfiado, logo nós percebemos
Elijah saindo de debaixo do mesmo cobertor e se endireitando. Os dois nos
deram sorrisos amarelos que bastaram para entendermos que tínhamos
atrapalhado algo.
Tentei decorar algumas das palavras que ele dizia para perguntar o que
significavam, mas acabei dormindo.
Capítulo 3
À Primeira Vista
EU NÃO SABIA O QUE ESPERAR DO MEU PRIMEIRO DIA DE
AULA NA universidade. Estava afastado de atividades acadêmicas havia um
tempo. Desde que me formei em Heaven Wood, antes de tudo aquilo
acontecer.
— O que acha?
— Está ótimo.
Eu havia acordado cedo para desfazer minhas malas que já estavam secas
e separar algo "usável" para o primeiro dia de aula. Então vesti minha camisa
branca simples, uma calça preta justa, os coturnos cor de café e uma pulseira
de couro marrom que trazia como pingente uma ágata verde envolta
cuidadosamente como se fosse um ovo, Drake me deu antes partir, segundo
ele, simbolizava proteção e pertenceu a sua mãe. Disse que não funcionou
com ela, mas talvez funcionasse comigo. Era a primeira vez que eu a usava.
Peguei minha mochila velha, estava cheia de bótons das minhas bandas e
séries favoritas, a pendurei de lado e saí com Konstantin. Duane e Elijah
tinham saído antes de nós, ainda havia comida na mesa, mas não tínhamos
tempo.
— O que você espera do nosso primeiro dia de aula? — Ele me
perguntou conforme andávamos na direção do prédio principal.
Konstantin se deixou ser levado por mim, que não queria sentar na frente
como a maioria dos alunos, então ficamos na sexta fileira, um local bem
discreto, tudo o que eu precisava. Levou alguns minutos até tudo estar pronto,
então alguns representantes sentaram nas várias cadeiras da mesa.
— E daí?
Foi nesse momento em que percebi que muitos dos calouros que estavam
sentados ao meu redor mereciam muito mais estar onde eu estava. Cursar
medicina era um desejo meu, um sonho, porém distante. E o sonho estava
realizado, eu estava sentado num salão belíssimo numa cerimônia de
recepção dos novos alunos, mas assim que vi o olhar de Konstantin para o
homem na mesa que não passava de um estranho para mim, percebi que
realizar o sonho era fácil, difícil seria mantê-lo. Eu estava matriculado, e
depois? Me sentia um peixe fora d'água, não conhecia ninguém, tudo o que
eu sabia era que a UC possuía um dos melhores cursos de medicina, só isso.
O tal doutor começou a falar sobre a honra de estarmos ali, que não
tínhamos noção da dimensão daquela ocasião e de repente eu comecei a me
sentir pequeno, uma formiga em meio a dezenas de humanos, se não tivesse
cuidado poderia ser pisado.
Fiquei de pé.
— Tenho claustrofobia.
— Não! Fique e ouça tudo, depois você me conta o que rolou aqui, eu
estarei lá fora tomando um ar.
Resolvi sentar no gramado também, o dia estava tranquilo e o sol não era
forte, pelo contrário, ele era agradável em contraste com a brisa fria. Sentei
longe da entrada, próximo à sombra. Fiquei lá, em um momento que podia
ser de reflexão, mas não estava refletindo, eu apenas não queria pensar em
nada e estava conseguindo, mas o celular vibrou em meu bolso. Era Drake.
— Mano, você não dá notícia há dois dias! — Ouvir a voz dele era tão
reconfortante que me deu vontade de chorar.
Ele suspirou.
— Ok, já entendi. Você quer ficar sozinho e tal, mas eu não liguei para
falar de você. Tenho uma grande notícia! — Disse, parecia realmente ser algo
bom.
Levei alguns segundos para processar o que ele havia dito, mas logo
comecei a sorrir junto com ele, era uma notícia maravilhosa. Ele merecia
muito a aprovação, ele precisava disso.
— Não, não diga isso. Liverpool é uma universidade incrível! Estou tão
orgulhoso de você!
— Não é para tanto. Partirei na sexta e acho que nos falaremos cada vez
menos depois disso. — Ele falou preocupado.
— Certo, foi bom falar com você. Nunca pensei que diria isso, mas sinto
sua falta aqui.
— Eu também sinto, mas não vamos começar com essa coisa gay, não é?
— Falei sorrindo.
Sua pele era corada, tinha o cabelo castanho claro na altura do ombro,
usava uma camisa de manga longa com botões abertos até a altura do peito
onde os pingentes de um colar encostavam em seus pelos. Sua calça era jeans
com alguns rasgos. Era um pouquinho mais alto que eu e tinha o corpo
atlético natural. A barba, aparentemente, tinha crescido há pouco tempo e
seus olhos... eram cinzentos, um tom único, eram olhos de prata e me
encaravam com irritação.
— Você é um idiota ou algo do tipo? — Disse com sua voz grave, ficou
com a sobrancelha erguida esperando uma resposta, enquanto eu apenas o
encarava confuso.
— Idiota?
— Estava bisbilhotando.
— Não, não estava, apenas peguei o que derrubei, e caiu aberto, então
não tinha como não olhar. Desculpe.
— Eu não sei quem você é, mas acho que é bom começar a olhar por
onde anda.
***
O bloco era o mais distante do campus, era mais longe que nossa casa,
mas chegamos lá antes do horário do almoço e fizemos um tour demorado
por todos os laboratórios que usaríamos durante o curso, me deu até certo
ânimo perceber que não faltariam tarefas para me manter ocupado.
No horário do almoço fomos liberados e aproveitamos para almoçar no
restaurante do Centro do Estudantes, que era um prédio lindo cuja fachada de
todos os andares era de vidro transparente, assim dava para ver o interior, era
como um shopping, possuía área de lazer, galerias, restaurante, bar e outras
coisas. Não fizemos amizade com nossos colegas, não por sermos antipáticos
ou algo do tipo, mas por percebermos que para eles não éramos colegas,
éramos adversários, estávamos entrando numa competição. Não havia na
universidade o mesmo clima do colegial, essa era apenas mais uma das
minhas ilusões.
A comida, infelizmente, não era tão boa, mas tanto eu quanto Konstantin
estávamos famintos, então comemos sem reclamar e logo em seguida
corremos para a biblioteca para reservar alguns dos livros que usaríamos no
semestre antes que alguém os reservasse, mas chegando lá percebemos a
grandiosidade do local, o acervo era imenso, então estávamos livres desse
problema.
Seguimos de volta para Highfield por volta das três da tarde, quando
abrimos a porta, eu tive a sensação de que quase podia chamar a Ceatha de
casa.
Capítulo 4
Grupo de Apoio
ACORDEI UM POUCO MAIS CEDO NA TERÇA PARA DAR
TEMPO DE comer, Konstantin estava no banho enquanto eu terminava de
fazer ovos mexidos. Aparentemente Elijah e Duane ainda estavam dormindo
ou já tinham saído. Quando terminei, coloquei os ovos junto com pães,
torradas, bolachas e outras coisas que encontrei no armário. A geladeira
estava quase vazia, foi tudo o que pude fazer.
— Ele não vai se importar, isso aqui está uma porcaria. Já ouviu falar em
sal? Argh...
Largamos por volta das quatro da tarde e nos dirigimos à secretaria, onde
nos entregaram nossos cartões magnéticos que nos davam passe livre em
praticamente todo o campus. Junto com ele, recebemos nosso horário, o login
do sistema acadêmico e eu, o cartão do grupo de apoio com endereço, contato
e uma pequena foto com rostos felizes.
— Infelizmente.
***
— Obrigado.
Era um parque grande, repleto de árvores, entre elas pinheiros, o que dava
um charme a mais, havia um museu em algum lugar ao leste, a grama era
perfeitamente aparada, havia um lago redondo, com uma fonte de um lado e
no outro uma ponte.
— Olá, claro que posso. Você seguirá por essa trilha, no final dela há
duas áreas para piqueniques e encontros do tipo, tem uma vista linda do rio.
Você verá um grupo reunido debaixo de um grande cipreste.
— Obrigado.
Não tive outra alternativa, sentei-me entre eles. Todos sorriam, seus
sorrisos pareciam forçados, mas eram sinceros. Me queriam lá. Todos
estavam vestidos casualmente, dando a impressão de que me arrumei demais.
Passei a olhá-los um por um, uma garota magricela, um rapaz tristonho, uma
mulher descabelada, a próxima pessoa que vi fez meu coração bater mais
forte.
O rapaz não sorria, parecia querer estar ali tanto quanto eu.
Assenti.
— Não.
Ignorei a fala da garota, que contava algo sobre não conseguir dormir há
semanas por estar ansiosa demais por conta da pressão dos pais, do namoro
complicado e do curso. Ela começou a chorar enquanto falava, e eu estava
apenas rezando para aquilo acabar, mas a garota falou pelo que me pareceu
uma eternidade.
— Estou muito apertado, tentei segurar, mas não está dando. Posso ir ao
banheiro?
Assenti e saí dali o mais depressa que pude sem querer parecer
desesperado para me afastar. Já estava voltando à trilha principal quando
percebi os passos que me seguiam, olhei para trás e lá estava ele, Rixon Lenn
James.
Parei de andar. Como ele podia ser tão sem coração? Estava chamando de
medíocres pessoas que estavam apenas tentando resolver seus conflitos
interiores, fiquei mais irritado, mas logo percebi que eu não era muito
diferente dele. Tinha me segurado para não revirar os olhos na maior parte
das apresentações.
Não havia sinal dele quando entrei, então fiquei um tempo na cabine
esperando o tempo passar. Que graça teria ele saber dos meus motivos para
ter que comparecer ao grupo? O que ele pensaria se eu dissesse que estava ali
por que minha mãe era uma vadia, por que todos mentiram para mim, e
principalmente por ser culpado pelo acidente de Max? Aquele grupinho
parecia oferecer mais lamentações que apoio.
Fui até a pia, lavei a mão, observei o pouco sangue desaparecer na água,
então lavei meu rosto e me encarei no espelho. Queria quebrá-lo também.
Mentir era a minha única saída, não esperava que ele caísse no meu blefe,
pois ele parecia bastante esperto, mas caiu.
Não voltei para o grupo, como ele adivinhara. Saí do parque e fui para a
Ceatha me sentindo pior do que quando saí. Não falei com ninguém, me
tranquei no quarto, deitei na cama, me enrolei até o pescoço, estava com o
velho sentimento de abandono, meu coração doía. Pensei em Max, queria
estar com ele, mais que qualquer coisa.
Até quando?
Capítulo 5
Fim de Semana
QUANDO O MEU PRIMEIRO FIM DE SEMANA CHEGOU, EU
ESTAVA atolado de assuntos para estudar, além de relatórios e outras
coisinhas. Konstantin e eu passamos parte da noite na biblioteca e o sábado
inteiro de cara nos livros. Já passava das oito da noite quando Duane e Elijah
desceram bem produzidos, dava para sentir o perfume deles de longe.
— Prontos?
— Mas...
— Sem essa. Vocês são calouros, tem um mundo novo para descobrir.
Precisam aproveitar, antes que a universidade tome 100% do seu precioso
tempo, pois acredite, ela faz isso. — Elijah aconselhou.
Bem, até que eles tinham razão, talvez nós estivéssemos nos precipitando,
talvez devêssemos aproveitar mais um pouco. Eu não queria sair, mas Duane
era impossível, eu já havia percebido isso nele, então não discuti mais.
Konstantin estava bem mais bonito, ele era antenado sobre o que as
pessoas estavam vestindo, assim como Duane, mas quando os encontrei no
hall, nenhum deles pareceu se incomodar com meu estilo "sem graça". O
próprio Elijah também não parecia se preocupar com moda. Usava jeans, um
tênis baixo e uma camisa regata alongada que deixava parte de seus músculos
à mostra.
— Nem vem. Da última vez que você disse algo assim, nós quase
batemos o carro. Ela virá. — Duane assegurou.
Uma espécie de jipe surgiu entre os carros comuns, tocava Spice Girls
bem alto, parou no acostamento, nele estavam três garotas, a motorista era
Elise, que não parou de cantar Wannabe para nos cumprimentar.
Elijah abriu a porta do motorista e empurrou ela para o outro banco,
parecia irritado por ela dirigir levemente bêbada e chamar tanta atenção.
Duane se ajeitou com ela no banco do carona já se juntando à cantoria, eu e
Konstantin nos apertamos com as duas garotas no banco de trás.
Cork, à noite, parecia um sonho. Era realmente linda como dizia num site
de buscas que pesquisei antes de vir. O trânsito não estava fraco, mas era
calmo, passamos por uma ponte antiga, a lua dava um brilho quase sensual ao
rio escuro. Passamos por algumas ruas cujas casas me lembravam cenários de
Harry Potter.
O lugar parecia bem tradicional por fora, havia algumas mesas na calçada
e pessoas bebendo e comendo petiscos enquanto conversavam, o prédio era
de esquina, o que o deixava com um aspecto triangular.
Nós entramos, o clima lá dentro era abafado, a decoração era feita com
fotos antigas, citações de escritores famosos e até pinturas que iam de
Michael Collins à John F. Kennedy. Havia mesas, sofás e pufes por todos os
lados. O balcão estava cheio, pessoas da nossa faixa etária pediam cerveja e
os mais diversos drinks.
— Ali, rápido!
— Uma coca diet, por favor. — Disse Elijah interrompendo Duane, que o
olhou incrédulo.
A garçonete saiu, as garotas que vieram com Elise logo saíram também,
tinham um pub melhor para ir, segundo elas. Então ficamos em cinco. A
bebida chegou rápido e a comida veio em seguida.
Era o orgulho irlandês falando por ele, Duane estava realmente ofendido
com o comentário de Konstantin, que simplesmente murmurou um
"desculpe".
— Não esquenta com isso Konstantin, Duane é bem patriota e esse lugar
aqui é como um santuário da noite irlandesa para ele. — Elijah explicou.
— Isso, sem contar que ele faz arquitetura e design. — Elise completou,
nós rimos.
Lenn não parecia ser muito receptivo, foi o rapaz no teclado quem deu
boa noite à plateia pouco interessada. Ele ainda não tinha me visto, e eu torci
para que não visse até que tivesse terminado de tocar, assim eu poderia
observá-lo em segurança, longe daquele olhar.
Os outros na mesa nem pareciam ter percebido que ele estava no palco,
seria cotidiano? Não havia outra explicação, afinal ele era tão interessante,
por que ninguém parecia se interessar? Ou melhor, por que eu estava tão
interessado?
— Uau, já sabe até o nome dele. Sim, às vezes eu lhe forneço uns doces.
— Elise respondeu sorrindo, mas parou ao ver a reprovação no olhar do
irmão.
— Meu querido cunhado é uma bicha chatinha, não é novidade ele não
gostar do rapaz, mas uma coisa é certa: aquele ali é problema.
Não respondi, não queria que eles pensassem que eu estava mesmo a fim
dele. Era errado, Max estava em coma por minha culpa, eu não podia me
interessar por ninguém, ainda assim ele despertava minha atenção.
Bebi mais enquanto os outros tagarelavam sobre qualquer coisa que não
prestei atenção por estar, ainda, observando Lenn James, que cantava tão bem
minhas canções favoritas dos Beatles. Então depois de cantar Hey Jude ele
parou, não se despediu, apenas saiu do pequeno palco cedendo o violão para
outro rapaz que eu mal havia percebido estar ali.
Foi ao ficar de pé que ele me viu, seus olhos encontraram os meus e foi
como se duas pedras estivessem se chocando. Seus lábios não se moveram,
mas eu podia jurar que ele estava sorrindo.
O lugar era mais peculiar que o andar de baixo, era tradicional, parecia
uma taverna. Era decorado com vários instrumentos genuínos da Irlanda,
havia barris empilhados no mesmo tom brilhante da madeira das prateleiras
repletas de vários uísques, das mesas e cadeiras antigas, até do balcão. O piso
era um pouco mais gasto, as paredes eram de tijolinhos prensados. Tudo
muito polido e envernizado, um perfeito ambiente rústico. A movimentação
em cima era um pouco menor, apenas umas cinco mesas estavam ocupadas e
no balcão cerca de três pessoas afogavam suas mágoas.
Procurei por ele e logo o vi sentado sozinho numa mesa afastada,
segurava seu cigarro com elegância, estava me esperando, não havia dúvida.
Sentei ao seu lado e comecei a tossir ao sentir o cheiro da erva que recheava
seu cigarro.
— Não sou.
— Prove.
— Thomas, você está bêbado! Que cheiro é esse? O que você deu a ele?
— Duane perguntou para Lenn, que agora sorria cinicamente.
— Vamos embora Thomas, acho que já deu por hoje. — Duane disse e
estava tentou me puxar pela mão para que eu levantasse, porém Lenn o
afastou.
— Acho que ele é adulto o suficiente para decidir quando deve partir.
— E eu acho que ele até seria, se você não o tivesse drogado com essas
merdas que você usa, seu viciado imbecil!
Elijah empurrou Lenn, que avançou outra vez e lhe desferiu um soco no
rosto e logo estavam rolando pelo par, derrubaram duas mesas, Duane se
jogou sobre eles, não para apartar, mas para defender Elijah.
Todos ali tinham parado para assistir a confusão que eu achei que não iria
acontecer. Com a ajuda dos garçons, Konstantin conseguiu separá-los, eu só
conseguia observar parado num canto enquanto tudo parecia girar em minha
cabeça. Duane e Elijah estavam preocupados um com o outro, verificando o
prejuízo, Lenn apenas saiu do bar com um olho roxo, nem se preocupou em
pelo menos me dizer tchau.
Capítulo 6
Cores Mortas
NO CAMINHO DE VOLTA, ELISE NÃO PARAVA DE
RESMUNGAR POR ter perdido a confusão, ela tinha saído antes para pegar
o carro e tudo o que viu foi o segurança nos enxotando do pub.
— Duane...
— Não exagera, foi só um soco. Mas se você sempre reagir assim, acho
que vou me meter em brigas mais vezes. — Elijah disse e o beijou.
— E eu amo, você.
Já estava bem perto do amanhecer, eu já conseguia ver as nuvens
começando a clarear quando chegamos à Ceatha. Não estava mais tão bêbado
quanto antes, mas assim que saí do jipe meu estômago se revirou e eu me
curvei para vomitar ali mesmo na calçada.
Senti a mão de alguém nas minhas costas, logo vi que era Konstantin me
dando algum suporte. Pus tudo para fora e limpei a boca com as costas da
mão. Me afastei do toque de Konstantin, eu não estava tão mal assim.
— Obrigado.
— O soco que ele recebeu causou esse hematoma, não acho que gelo vá
ajudar a fazê-lo sumir, talvez se você for à farmácia e...
— Vocês podem ir dormir, Du não vai parar enquanto não tiver certo de
que estou bem. — Disse Elijah, ele tirou a camisa e deitou no colo do outro.
— Não é uma boa hora Thomas, você pode ir dormir, podemos conversar
sobre isso depois. — Disse Elijah.
Eu assenti, não poderia fazer nada para mudar a confusão que causei,
como sempre. Mas por mais que parecesse errado, eu estava preocupado com
Lenn James, será que ele estava bem? Estaria em casa ou ainda na rua? Eu
não tinha nem o número do celular dele, ou melhor, não sabia nem se ele
tinha celular.
Mas o que eu estava pensando? Essa curiosidade não poderia ser algo
bom para mim, afinal eu tinha Max e, mesmo que ele não estivesse mais
presente, eu não podia traí-lo de nenhuma forma.
***
Nós dormimos por toda a manhã e só acordamos por que Elijah bateu na
porta para anunciar o almoço, já passava das duas da tarde. Nós descemos,
Konstantin usava uma calça de moletom e uma camisa regata branca, eu
estava com um calção de seda e uma camisa folgada.
— Você vai lavar a louça comigo hoje. — Duane disse para mim, eu
assenti. Lavar louça não era uma grande tarefa, eu poderia até fazer sozinho
se ele quisesse descansar ou fazer qualquer outra coisa.
Pude sentir seu olhar em mim, mas continuei focado nos pratos.
— Eu não o conheço, você não me conhece, tudo bem, mas eu quero que
entenda uma coisa. A Ceatha significa muito para mim, pode parecer
bobagem, mas não é. Aqui é a minha segunda casa há exatos quatro anos, eu
sou presidente desse lugar, tenho feito de tudo para mantê-lo de pé, sabe por
quê? Porque vocês são a minha família aqui.
— Não, olhe para mim. — Duane falou com tanta seriedade que obedeci.
— Seja lá o que te aconteceu, nunca é tarde demais. Não seja só mais um
calouro bobinho que se envolve com o lobo mau, você é melhor que isso —
aconselhou.
Retribuí seu olhar, ele tinha boas intenções, eu podia sentir em sua
expressão que queria me ajudar, mas como ele poderia saber que Lenn era o
lobo mau? Nem todo mistério leva o expectador a um assassino.
— Pare, são águas passadas. Só não faça Elijah se machucar outra vez,
ele é tudo para mim. Sei que soa brega, nunca sequer disse a ele... enfim.
***
Eu não o vi por mais dois dias, e isso só aumentava minha vontade de vê-
lo. As aulas pareciam cada vez mais interessantes, mas eu não conseguia
prestar muita atenção, estaria ferrado se não fosse por Konstantin.
Então mais uma quarta-feira chegou e quando a última aula acabou passei
na Ceatha com Konstantin, troquei de roupa e saí correndo para o Parque
Fitzgerald. O belo lugar já não me parecia tão estranho, era até familiar. Eu
estava atrasado para a reunião, mas ninguém pareceu se importar quando me
juntei ao círculo, no centro dele estava Lenn, que não me viu chegar por estar
de costas. Estava frente a frente com Patrick, o líder do grupo, já tinham
começado.
— Então você acha que a sensação é boa, não passa pela sua cabeça que
isso te machuca? — Patrick perguntou.
— É claro que vai. — Lenn sorriu. — Todos vocês me julgam, posso ver
em cada olhar. Estão me julgando por achar uma maneira de tornar a vida
suportável, mas não jugam seus próprios problemas ridículos, como
compulsão por comida, compras ou até mesmo um cara...
— Iludir idiotas, é para isso que o grupo serve. Eu não sou idiota Patrick,
se a instituição não me obrigasse a participar desse circo, eu nem estaria aqui.
Lenn parecia estar revoltado com algo, ficou de pé e se virou para nós,
me viu e pareceu um pouco surpreso, embora não fosse fácil decifrá-lo. Ele
saiu do círculo, pegou a bolsa que estava na grama e saiu apressado, os outros
apenas o observavam. Lenn tinha razão, eles o estavam julgando.
Segui o impulso outra vez, quase corri para não o perder de vista, ele já
estava fora do parque quando o alcancei. Estava usando jeans rasgados e uma
camisa azul clara, o vento balançava seu cabelo, ele tirou um cigarro da
carteira e o acendeu.
— Lenn...
— Você sabe, eu sou encrenca, alguém já deve ter dito. — Ele disse
tomando o cigarro de volta, então sorriu, mas estava encarando a rua, em vez
de mim.
— Deveria.
***
Nosso professor, o Dr. Dawson, um senhor que não devia ter mais de
cinquenta anos, era bem compreensível. Ele pediu que nos acomodássemos
em nossos lugares e nos alertou, poderíamos passar mal, desmaiar ou ter
crises de choro, pediu para ficarmos calmos e disse que se tivéssemos algum
desses sintomas, não era motivo para vergonha, pois sempre acontece.
— Repitam comigo: "Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre
o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas
almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o
agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por
certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou
um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado
uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o
sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a
humanidade que por ele passou indiferente.".
— Estão prontos? Não, ninguém está pronto para o que vem a seguir, mas
sejam fortes, temos muito a aprender hoje.
Quando ele retirou o lençol que cobria a mesa, estavam dispostas sobre
ela o que ele chamava de peças, que eram partes do corpo humano, havia
ossos de membros diferentes, alguns ainda unidos aos ligamentos, músculos e
pele, tinha coloração amarelada que lembrava podridão, mas o único cheiro
em todo o ambiente era o do formol.
Konstantin deu de ombros e saiu. Resolvi que era dia de ligar para a
família, eles estavam respeitando o espaço que pedi, mas deviam querer
notícias minhas. Eu não podia continuar sendo um cretino, além disso, eu
sentia falta de Drake, Karola e até do Henry.
— Cara, eu estou ótimo. Não sei se você lembra, mas já me mudei, estou
em Liverpool levando uma vida boêmia às custas do nosso querido cunhado.
— Contou.
Eu ri.
— Imagino que sim, aqui também é legal. Eu vou desligar agora, preciso
ver como estão as coisas em nossa casa.
Desligamos.
— Nunca achei que diria isso, mas é bom ouvir sua voz irmãzinha.
— Bem, por onde eu começo? Vou me casar! Henry pediu minha mão à
mamãe e ela a concedeu, com direito a anel caro e tudo, se entrasse mais no
seu Facebook teria visto. Deixe-me ver o que mais... ah! Max continua
estável, não teve mais problemas desde o transplante e Loren apareceu para
vê-lo, mas foi expulsa de lá pela mãe dele, você devia ter visto. O Velho está
bem doente, mamãe sempre o visita, parece que os dois fizeram as pazes. E
Edward também está noivo, lembra daquela ensossa com quem ele tinha um
rolo? Pois é, parece que ela o fisgou...
— Não quero saber nada dele. Fale mais sobre o casamento, quando será?
— É meio cedo para dizer uma data, mas queremos que aconteça no
início do próximo ano, janeiro ou fevereiro. O que você acha? — Perguntou,
ela estava bem animada com isso.
***
— Não entendo. — Foi como se meu cérebro desse um nó. Me virei para
a Sra. Dodger. — A senhora disse que o transplante só seria feito se
conseguissem encontrar um parente próximo...
— Era disso que eu estava falando Thomas, daqui para frente, você
nunca mais vai ver a vida como antes. — A Sra. Dodger respondeu me
olhando, parecia triste, exausta.
Olhei para Edward, ele estava prestes a chorar, ele não era do tipo que
chorava, como eu. Ele sempre soube controlar suas emoções.
Criei coragem para levantar, não sabia bem o que queria fazer com meu
fim de semana, mas como não queria sair com ninguém, fui até o centro de
estudantes, almocei no pequeno restaurante de lá e fiquei de cara nos livros
até anoitecer, quando resolvi voltar à Ceatha.
— Você não vai acreditar! Consegui dois ingressos para o Holi One!
— Bem, não interessa o que eles dizem, é amanhã e você vai comigo! —
Konstantin decidiu.
— Mas o festival já é uma confusão, não tem desculpa, não aceito não
como resposta. Alguém me deu esses ingressos esperando que eu vá, e eu não
posso ir sem você. Thomas, você não privaria um amigo de viver uma
história de amor, não é mesmo?
Filho da mãe!
— Ok, eu vou! — Deixei que ele vencesse pelo meu cansaço, eu não
tinha mais muita paciência para pessoas insistentes, e também não tinha nada
a perder.
Ou tinha?
***
— É?
Fiquei pensando sobre o que ele disse e logo me senti um pouco culpado
por ser o amigo chato da história, o que vai à festa e não se diverte, então
decidi que faria o possível para me divertir com ele, afinal é para isso que
servem os amigos, não?
— Ei, você pode ir encontrar o seu príncipe encantado, eu vou ficar bem
sozinho.
— Estou com meu celular, e nós dois sabemos voltar para casa, se não me
encontrar por aqui quando a festa acabar, pode ir.
Ele não tinha certeza se era uma boa ideia, mas assentiu e saiu, e eu
continuei lá com minha garrafa de cerveja na mão, sabia que não demoraria
mais que uma hora ali.
Seus olhos cinzas me fitaram, mas antes que eu conseguisse ter qualquer
reação, alguém esbarrou em mim e acabei caindo no chão.
Será que existe uma forma menos óbvia de ser tão desastrado?
— Você não olha por onde anda?! — Um rapaz bradou, ele segurou meu
braço com força e levantou meu braço tão bruscamente quanto o espaço
permitia.
— Você precisa prestar mais atenção. — Ele falou apertando ainda mais
o meu braço e o virou para minhas costas como se fosse torcê-lo. Me
contorci.
Ele já estava atraindo a atenção de quem estava por perto, mas alguém
interveio e não foi um segurança do local. Um único golpe o fez cair na
grama suja e eu quase fui junto. Olhei para cima e vi Lenn, foi ele quem
desferiu o golpe.
Achei que a confusão só iria piorar depois daquilo, mas ele segurou no
meu braço e me puxou apressadamente para longe dali. Saí aos tropeços, ele
cheirava à erva. Passamos pelas mesas de piquenique e continuou me
puxando até chegarmos ao pequeno bosque, logo percebi que ali não servia
apenas para fumar, vários casais aproveitavam a privacidade e escuridão do
local. Fomos até o fim do espaço onde havia um muro, ele me jogou contra
ele.
— Está tentando se machucar outra vez? — Perguntou irritado.
Não consegui encontrar nada para dizer, por um momento me passou pela
cabeça todas aquelas festas que acabaram da mesma forma, uma briga por
minha causa, depois eu me refugiava em algum lugar seguro, que sempre foi
o banheiro, depois a pessoa errada sempre aparecia.
Já era noite, não sei quanto tempo restava para o festival acabar, mas eu
queria ir embora, eu queria sair dali com ele.
Olhei para sua mão estendida, se eu a segurasse, não teria volta. Olhei
para ele outra vez, estávamos tingidos das mais variadas cores, mas naquele
momento eu queria ver as verdadeiras cores que habitavam nele.
Ele acompanhou o refrão, mas logo parou. Entramos numa rua deserta e
minutos depois ele parou diante de um casarão velho, uma placa no portão
dizia "Scornach Diabhail". O lugar parecia mais uma daquelas casas de filme
de terror que uma irmandade.
— Incluindo você?
— Certamente.
— Tem certeza do que está fazendo? Você ainda pode voltar, depois que
passar por esta porta... não tem volta. — Ele disse ao abri-la.
Pelo seu tom, ele não estava brincando, mas eu também não.
— Há um tempo você disse que havia formas melhores de me machucar...
eu quero que me mostre...
Ele entrou, acendeu a luz fraca e esperou que eu também entrasse para
trancar a velha porta. O quarto era bagunçado, havia roupas pelo chão, assim
como alguns livros. Na escrivaninha havia um notebook, a pasta preta que eu
derrubei quando o conheci e várias folhas amassadas, a cama de casal estava
desforrada, o violão estava sobre ela. Lenn entrou na outra porta que dava
acesso ao banheiro e voltou com uma caixinha de madeira, parecia ainda
mais tenso.
Não sabia o que era aquilo, nem se era seguro, mas eu não daria para trás,
estava cansado de ser o garotinho pateticamente frágil.
Eu estava tremendo, ele percebeu quando pegou o meu braço, mas não
disse nada. Deu um beijo na dobra do meu cotovelo, olhou atentamente em
busca de uma veia e apetou meu braço para que ela saltasse. Senti a picada
da agulha, então ele injetou metade do líquido em mim, depois retirou a
agulha e injetou o restante nele mesmo.
Fiquei deitado na cama, parado como uma estátua. Era como se esperasse
a morte chegar. Lenn apagou a luz, voltou e deitou ao meu lado. Por algum
tempo comecei a pensar no que Max, Eddie, mamãe, Drake e o Velho
achariam se soubessem do que eu estava fazendo, mas antes de começar a me
martirizar e sentir arrependimento senti algo mudando dentro de mim.
— Lenn, estou sentindo! — Falei sorrindo, mas quase não ouvia minha
própria voz, eu estava entrando em outra dimensão, uma dimensão alegre
onde os sentidos eram incrivelmente aguçados.
Enquanto estava deitado, via o mundo girar devagar, não sabia se estava
no quarto ou vagando pelo espaço, só enxergava a escuridão e naquele
momento ela não parecia perigosa.
***
Minha respiração estava lenta quando abri os olhos, minha cabeça doía,
parecia uma ressaca dez vezes mais forte que as convencionais. Eu estava
muito sonolento, não tinha a menor coragem de me mover. Logo percebi que
eu estava na banheira de Lenn, ele estava cuidando de mim.
— O que aconteceu?
— Ah Tomtom, não seja burro. Ninguém tem que se desculpar por ficar
doente, eu vou cuidar de você — Max disse sorrindo.
— Você não precisa fazer isso, a água está congelante — falei, mas ele
não me deu ouvidos.
— Por isso mesmo, eu sou o corpo quente que vai te passar calor para
ajudar com isso. Vai ser um pouco estranho, mas o que eu não faço por
você? — Disse ele.
Max entrou comigo, me segurando para não cair por conta da superfície
lisa da banheira, me arrepiei dos pés à cabeça ao entrar em contato com a
água. Nos endireitamos, Max sentou e fez com que eu sentasse à sua frente,
repousando as costas em seu tórax quentinho, quase deitado sobre seu corpo.
E foi assim que senti a dor voltar como um tsunami, trouxe de volta
minha angústia, reabriu as feridas, eu devia estar chorando, mas ainda estava
um pouco perdido, senti como se estivesse voando, abri os olhos e me vi na
cama, mas acabei adormecendo de novo. O sono, às vezes, é o melhor refúgio
e depois de tanto tempo, para mim, ele continuava sendo.
***
— Calma! É que ontem eu, por acaso, encontrei o Lenn James... e acabei
vindo para o apartamento dele, eu estou com uma ressaca horrível. O que
você disse para Duane?
Revirei os olhos.
— Eu estou bem, ok? Só não diga que eu estive com o Lenn, sairei daqui
assim que ele aparecer.
— Então vocês dormiram juntos e ele tinha ido embora quando você
acordou? Isso parece um daqueles romances em que a donzela é enganada.
Desliguei o celular e abri sua pasta, havia versos soltos entre uma página
e outra e então encontrei a composição: Interrupted, que era muito profunda,
falava sobre a dor de perder alguém. Mais um dos tantos mistérios de Lenn,
mas eu estava muito cansado, deixei a pasta como estava e me joguei na
cama. Lembrei vagamente de ter vomitado, mas o quarto estava limpo, talvez
Lenn tivesse cuidado de tudo. Que vergonha! Fiquei imaginando a cara de
Eddie se me visse nesse estado, ele ficaria tão chateado, era isso mesmo que
eu queria, não era?
Era reconfortante ouvir sua voz, mas as boas sensações já tinham sumido
do meu corpo, estava tudo lá outra vez, inclusive a mágoa que eu ainda sentia
pela traição dele.
Desliguei.
Capítulo 9
Lembranças Ruins
A GARGANTA DO DIABO NÃO FICAVA TÃO LONGE DA
CEATHA, MAS não deixei que Lenn me levasse até lá em seu Chevy
chamativo. Em vez disso, pedi que me deixasse no cruzamento e segui a pé.
O clima entre nós estava estranho, não por parte dele, que já devia estar muito
acostumado a se drogar, mas sim por mim. Ainda estava mal mental e
fisicamente, além da vergonha que sentia.
Ninguém estava em casa, respirei aliviado, assim não tinha que dar
explicações, ainda tinha que lavar a roupa suja do pó do festival, mas elas
podiam esperar. Deixei a roupa de molho na área de serviço e fiquei
transitando só de cueca, afinal todos estavam estudando mesmo. Abri a
geladeira e tomei toda a água da jarra, mas continuei com sede. Devia ser
efeito colateral da droga, que por falar nisso, eu nem sabia qual era.
Aproveitei meu sono por toda a tarde, mas acordei com o barulho quando
Duane e Elijah chegaram brigando por um bagel, segundos depois Konstantin
entrou no quarto e jogou sua pasta sobre a cama, onde sentou e começou a
desamarrar os cadarços.
— Olha só quem apareceu! A trouxa do ano, não acredito que você não
seguiu meu conselho e dormiu com aquele idiota — Ironizou.
— Você só o chama de idiota por que ele não quis comer esse seu rabinho
magro.
— Que audácia! Ouviu isso Elijah? Sua irmãzinha está causando intrigas
aqui.
— Se importam de nos dar licença? Minha cabeça vai explodir com todo
esse barulho — falei.
— Desculpe, eu tive que contar. Então... quer dizer que você dormiu com
o esquisitão?
— Por falar nisso, você perdeu uma porrada de coisas nas aulas de hoje,
mas amanhã tem anatomia e vamos estudar o crânio...
Konstantin percebeu que eu não estava no clima para tagarelar com ele,
ou não tinha o menor interesse em nada do que ele fosse me contar, então foi
tomar banho, se arrumou e saiu.
***
— Não olhe agora, mas o Matteo está vindo na nossa direção... — Disse
Konstantin ficando vermelho instantaneamente.
Eu não sabia disfarçar, olhei para o rapaz que vinha caminhando, parecia
empolgado. Vestia uma calça branca justa, uma camisa de gola V e no lugar
de livros, tinha uma tela em mãos. Seu cabelo era liso num tom loiro-escuro,
estava perfeitamente alinhado para trás com uma tonelada de gel.
Olhei várias vezes para a rua, esperava que o Chevy Malibu passasse, mas
claro que isso não aconteceu. A vida real, infelizmente, não funciona como
nos filmes e a minha então... parece ser baseada em desencontros.
— Bem... eu faço aqui tudo o que não podia fazer no meu país, um beijo
em público como o que dei em Matteo segundos atrás seria o suficiente para
ser espancado. Então sim, eu sou bem desinibido. — Explicou.
Nós oramos seguindo a voz do professor, que logo depois nos fez ficar de
pé ao redor da mesa, o mais próximo que o espaço permitia.
O professor segurou na testa de uma delas com uma mão e com a outra
pegou uma pinça.
— Max! Cara, você tem que parar! Edward reduz a velocidade! — Gritei
para ele, mas nenhum dos dois parecia me ouvir.
— Max, para!
— O quê?!
Cara! Tentei gesticular, mas ele não olhava para frente, só olhava para
mim.
— Max o caminhão!
Ele olhou para frente, o motorista freou bruscamente e tentou desviar,
mas o acertou. Max foi arremessado para longe, o caminhão tombou perto
de nós, Eddie também desviou e freou bruscamente, mas o Audi deslizou no
asfalto molhado, deu um giro de trezentos e sessenta graus e bateu em outro
carro, enfim paramos.
Eddie tirou mamãe, Drake saiu sozinho, os três ilesos, exceto pelo susto.
Os estranhos em que batemos também estavam bem, Eddie me levantou, mas
me senti estranhamente tonto.
— Acho que machuquei meu braço... — falei ao sentir a dor, mas logo
lembrei do motivo do acidente. — Max!
— Não!
— Não vá Max, por favor! Eu te amo tanto Max, fique comigo! Droga!
— Max...
Meu grito cortou o céu, uma chuva fina começou a cair e depois disso
minha vida nunca mais foi a mesma.
***
— Você não pode fazer isso com a gente! Foi um baita susto, eu fui
criado para sempre esperar o pior, fiquei pensando como seria se você
morresse...
Era bom estar rodeado de pessoas que queriam o meu bem, mas com essa
sensação veio um aperto no peito, a lembrança de acordar no hospital com o
braço numa tipoia, o conforto de ter a família por perto. Elijah, Konstantin e
Duane, embora fossem queridos, não eram minha família.
— Parece que está tudo ok, você sente alguma dor? — Ela perguntou
incerta.
— Onde dói?
— Eu faltei à aula hoje para ficar aqui com você. Os meninos também,
estávamos todos apreensivos...
— Bem, pode até ser, mas você chorou praticamente a madrugada inteira
e nós nem sabemos o motivo. Acho que seria justo pelo menos nos contar. —
Ele foi direto, não achei que fosse capaz.
O pior era que ele tinha razão. Konstantin, em conjunto com Elijah e
Duane, me receberam muito bem na Ceatha sem ao menos saber quem eu era.
Até o momento eles não sabiam quase nada sobre mim, era justo contar a eles
o meu tormento.
Eu não estava gostando do rumo que tudo estava tomando. Até então,
estava até feliz por ser apenas o Thomas Thompson, um calouro de medicina
do interior da Inglaterra perdido em Cork, nada mais. Eu sabia que, a partir
do momento em que eu lhes contasse o que havia se passado alguns meses
atrás, eles não me olhariam da mesma forma. Eu voltaria a ser o Tomtom, o
rapaz de coração partido, o quebrador de promessas.
— Que cara é essa? Você não está indo para a forca, anime-se, sente-se
conosco, vamos ter uma festa do pijama — disse Duane tentando me animar.
— Uma festa do pijama não tem que ser à noite? — Elijah perguntou.
— Cala a boca!
— Seu nome era Max Dodger, o cara mais sensacional que já pensei em
conhecer. Ele era o meu mundo, era tudo o que eu precisava para viver. Eu
respirava seu ar, degustava seu sabor, sentia o toque de sua pele, só
enxergava aqueles olhos verdes... Max tinha um sorriso que eu costumava
chamar de sorriso-sol, isso é meio idiota, eu sei, mas quando ele sorria era
como um sol, pois iluminava tudo ao seu redor.
"Tudo mudou quando percebi que estava apaixonado por ele, não
consegui entender o que sentia, ele era meu melhor amigo, não fazia sentido
eu cair de amores por ele, mas esse sentimento só aumentava mais a cada dia.
Foi quando uma vadia loira apareceu...
— Sempre há uma vadia loira. — Konstantin comentou sorrindo, sorri de
volta, mas brevemente.
— A vadia é filha do prefeito e arruinou tudo. Fui arrastado por Max até
o aniversário dela, ele sentia muito desejo por essa vadia e por isso insistiu
muito para que eu o acompanhasse. Ela e sua amiga tinham planos para a
noite, e isso incluía a nós dois. No meio da festa elas nos arrastaram para o
quarto, eu já estava muito bêbado...
"Eu não queria, não mesmo, mas Max queria mais que tudo possuir a
rainha das líderes de torcida... foi o nosso primeiro beijo, o dia mais feliz da
minha vida. A forma sincera como ele pediu que eu confiasse nele, e de
repente seu corpo pressionou o meu. Eu senti que ele não estava fazendo
aquilo apenas pela condição para ficar com Loren, tinha algo mais, era como
concretizar desejos reprimidos, mas ela nos interrompeu no ápice e o tomou
de mim... depois disso nossa relação nunca mais foi a mesma.
— Muita coisa aconteceu. Fui ameaçado por Loren, ela havia tirado fotos
da noite em seu quarto e usou isso para me afastar dele, depois disso foram
muitas brigas e alguns encontros, ele não entendia o porquê de eu ter me
afastado e também estava magoado.
— Ele...?
Pus a xícara na mesinha e esperei por mais perguntas, mas todos pareciam
muito chocados para perguntar.
— Difícil não chega nem perto. Passei um tempo no hospital com ele, eu
não queria sair de lá por nada, para o caso de ele acordar. Eu tinha feito uma
promessa, um pacto, de que nunca o deixaria, mas foi depois do acidente que
descobri um segredo da minha família que nos atingia diretamente.
— Foi quando decidi partir. Não conseguia olhar para eles todos os dias
sabendo que mentiram para mim. Sabendo que o troglodita do meu pai tinha
razão para nos odiar... minha vida inteira era uma fraude, uma mentira. Não
consegui ficar, não consegui manter a promessa que fiz a Max. Agora estou
aqui, longe de todo mundo e sozinho.
— Tolinho, você não está sozinho. Você é uma cor do nosso arco-íris
agora, você tem a nós. — Disse Duane.
***
— Não existe coisa mais clichê que isto — falei sorrindo, ele estava sobre
meu corpo.
Empurrei-o para o lado e fiquei sobre seu corpo, o que me trouxe à mente
meus antigos jogos de imobilização com Max na trilha do parque. Mudei de
humor num piscar de olhos, me levantei e comecei a andar.
— Onde?
Lenn ficou me encarando com os olhos cinzentos mais claros que nunca,
talvez fosse a chuva, ela escorria por seu rosto, já encharcara seu cabelo.
Ele bufou.
— Bem, você que sabe. O Halloween é no sábado, aqui está meu número.
— Disse entregando-me um papel encharcado — Caso resolva ir é só me
ligar. E não esqueça da fantasia...
Foi embora.
Não havia possibilidade de ter uma conversa com ele num chat, ou eu iria
até ele ou teria que ligar, mas o que eu diria? "Oi Lenn, aqui é o Tom, você
pode me buscar no seu carro perfeito, eu vou!" Que idiota.
***
— Sei lá, fico mais sombrio assim. É tipo aquela banda americana
"Korn".
— Você não ficaria sombrio nem se aderisse ao estilo gótico. Aceite esse
fardo.
Estava prestes a dizer que precisava ir a algum lugar quando meu celular
tocou.
Eu ri.
— Eu consigo tudo o que quero e não queria esperar você ter a decência
de me ligar. Por falar nisso, eu quero que você vá ao Halloween comigo e
hoje é 30 de outubro, o que significa que você tem que decidir agora...
***
Convidá-lo tinha sido, sem dúvida, uma má ideia. Konstantin estava tão
animado por viver o seu primeiro Halloween de verdade que não parava de
falar conforme passávamos pelas lojas do centro de Cork.
— Nós fomos convidados de última hora para uma festa à caráter e não
temos o que vestir, será que a senhora poderia nos ajudar com uma solução
simples, rápida...
— E barata. — Completei.
***
Elise chegou com duas amigas e nos obrigou a tirar mais algumas fotos,
depois levou Duane e Elijah, iam à festa de alguma boate, cujo nome não
entendi. Eu e Konstantin trancamos a porta e esperamos nossas caronas em
frente à Ceatha.
O celular dele tocou, ele atendeu e pela sua expressão, percebi que não
eram boas notícias. Quando desligou, parecia um pouco bravo.
— Então você vem conosco, não vai ficar aqui sozinho esperando.
Olhamos ao redor, a rua estava quase deserta, não havia crianças para
brincar de doces e travessuras, já que era uma rua universitária. A decoração
das casas só deixa tudo um pouco mais estranho.
— Ok.
— Lenn também está um pouco atrasado, ele disse que viria às nove, já se
passaram quinze minutos. Devo ligar para ele? — Perguntei ansioso.
Ele desceu do carro e veio ao meu encontro, a cada passo que ele dava
meu coração acelerava um pouco mais.
Ele não me deu um beijo. Eu esperava que ele o fizesse? Talvez. Mas ele
não fez, apenas ficou me encarando com seu olhar penetrante de sempre.
— Vamos lá. Kon vem conosco, a carona dele vai demorar — falei
olhando para Konstantin que me lançou um olhar que dizia "você ficou
louco?".
Partimos.
Na rua havia uma fila enorme de carros, mas em nenhuma daquelas casas
parecia haver uma festa de Halloween, Lenn estacionou o carro na única vaga
que tinha ali.
— Não se deixe enganar pelo silêncio, tenho certeza que está bem
barulhento lá dentro — Ele disse apontando para uma casa mediana com uma
placa de madeira que dizia "bem-vindo ao Cranberries".
Ele fechou a porta, estávamos numa espécie de hall vazio, havia apenas
outra porta, a qual foi aberta e assim fomos atingidos pelo som absurdamente
alto que vinha do interior da irmandade. Estava tocando um remix de You
know I'm no Good da Amy Winehouse, as batidas faziam meu peito tremer.
Revirei os olhos.
— Não esperava vê-lo tão cedo, mas como já chegou, vamos dançar!
Passei direto pelas pessoas e fui até o balcão onde um belo barman fazia
seus truques. Me recostei no balcão e pensei no que beber, mas Lenn
apareceu de repente, como sempre fazia.
— Não sei...
— Vai com calma, isso aí não é cerveja. — Lenn me alertou num tom de
piada, o que me deixou levemente irritado.
— Preciso de mais...
Eu não sabia se deveria, mas a vontade era maior que tudo. Naquela noite
eu precisava ir além dos limites. Lenn me encarou, parecia admirado, então
levantou e foi buscar mais bebida.
Não conhecia ninguém naquela sala, também não fazia ideia de onde
Konstantin podia estar com Matteo. Falei comigo mesmo para relaxar, afinal
eu estava numa festa para me divertir e não me preocupar desnecessariamente
com quem estava muito bem acompanhado.
Lenn voltou com dois copos da mesma bebida e um sorriso tão cínico que
me fazia querer bater em sua cara.
O mundo girava bem devagar, mas antes que nossos lábios se tocassem,
eu virei o rosto para provocá-lo. Lenn segurou meu maxilar e me fez virar de
volta, então me beijou.
— A me levar para sua casa, me fazer sentir tudo aquilo outra vez, depois
vamos transar como se fosse nosso último dia na terra. O que acha?
— Desafio aceito.
***
Lenn puxava meu cabelo com tanta força que fazia minha cabeça ir para
trás.
***
— Thomas... por favor, eu preciso que venha aqui, não sei o que
aconteceu, eu estou confuso. — Ele disse tão rápido que mal pude entender,
estava chorando.
Ouvi seu choro do outro lado, ele não respondeu e isso me deixou
assustado.
Ele dormia como uma pedra, mas acordou quando o puxei pelo pé até cair
da cama. Ele se vestiu tão rápido quanto eu, pegamos o carro. Minha mão
tremia quando liguei de volta, mas Konstantin não atendeu.
— Ele não disse o que aconteceu? — Perguntou Lenn, ainda com cara de
sono.
— Não, mas parecia assustado. Estou com medo do que possa ter
acontecido com ele.
Ele assentiu e desceu, andei até ficar frente a frente com ele e me abaixei.
Olhei em seus olhos, Konstantin me viu, mas não parecia realmente estar
enxergando qualquer coisa.
Não deixei que ele desviasse os olhos, seu silêncio hesitante foi cortado
por mais soluços. Eu queria abraçá-lo e começar a chorar, mas um instinto de
proteção me atingiu, eu tinha que tirá-lo dali.
— Ok, olhe para mim! Nós vamos resolver isso, tudo bem? Eu vou te
levar comigo... — Parei para respirar fundo, estava sendo extremamente
difícil me manter firme vendo-o daquela forma — Nós vamos resolver isso.
Venha...
— Alguém o agrediu.
Olhei para Konstantin, com a cabeça em meu colo. Ele estava muito
abalado para ter que lidar com outras pessoas.
***
Concluí quer era tudo culpa minha. Se eu não tivesse ido à maldita festa,
talvez ele também não fosse. O levei para o banheiro de Lenn e tranquei a
porta. Sua expressão era de medo constante, apesar de estar seguro.
— Kon, por favor, eu quero que seja sincero comigo... Matteo fez isso
com você? — Perguntei.
Não consegui evitar que uma lágrima escapasse do meu olho, mas
ignorei.
— Eu não sei... ele estava e não estava lá, havia outros — Ele disse
voltando a chorar, estava confuso.
Ele começou a tossir e não demorou muito a vomitar, ainda tinha que
lidar com o fato de estar de ressaca. Eu já nem lembrava que também estava.
Quando ele parou, limpei sua boca com a toalha de rosto, tirei sua camisa.
Ele tremia, sob a luz forte do banheiro eu vi os hematomas em suas costas e
peito, além de arranhões.
Tirei sua calça, ignorei sua parte íntima, o ajudei a entrar com cuidado na
banheira e me ajoelhei do lado de fora. Ajudei a se limpar, a se secar, o
enrolei na toalha e o coloquei sentado na cama.
— Claro.
— Obrigado.
Ele saiu. Minha cabeça estava explodindo de dor, procurei por algum
comprimido e não encontrei. Konstantin estava encarando a bagunça perto da
cama, quando olhei naquela direção vi a seringa e as outras coisas espalhadas
pelo chão, mas não era o momento para dar explicações.
— Não!
— Eu disse não!
— Você pergunta por que não? Thomas, isso tudo parece um pesadelo, se
eu for à polícia todo mundo vai saber e só vai piorar... eu não quero virar um
alvo para quem quer que tenha me espancado — disse, parecia ter certeza do
que dizia.
— Ok.
Ele obedeceu, um pouco mais tranquilo. Fui até Lenn, que estava sentado
na calçada com seu cigarro, tomei dele e traguei.
— Muito ruim? — Perguntou.
— Pode parar, ele é seu amigo. Precisava de ajuda. Está tudo bem.
— O que vamos fazer Lenn? Ele não quer ir à polícia, nem ao hospital.
Tem medo de virar alvo e que acabe ocorrendo de novo...
— Desculpe, mas ele tem razão. Não é a primeira vez que algo assim
acontece em um campus universitário. Infelizmente é frequente, e os
responsáveis jamais assumiriam, ainda mais a vítima sendo um homossexual,
ele tem sorte de não ter ocorrido algo pior. Acredite. Estou aqui há mais
tempo, isso é a coisa certa a fazer, pelo menos por enquanto.
Lenn disse que era a coisa certa, mas parecia tão errado para mim. Fui até
o mercado mais próximo, comprei água mineral, suco de uva e bagels, o que
me lembrou Duane instantaneamente.
Ele saberia como lidar com a situação, mas ao procurar nos bolsos,
percebi que havia deixado o celular. Voltei e fui ver como ele estava, o
encontrei ainda deitado. Lenn saiu para encontrar um amigo, pedi que ele
ficasse de olho, caso encontrasse Matteo.
Respirei fundo, estava um pouco sem jeito por ter sido pego no flagra.
Meu celular tocou, Duane estava retornando a ligação que não completei.
***
Lenn chegou por volta do meio-dia e nos levou para a Ceatha, me despedi
dele com um aceno, provavelmente só voltaríamos a nos ver na próxima
reunião do grupo de apoio. Duane e Elijah estavam fora, aproveitando o
domingo.
— Lembrar disso será doloroso para você, mas eu preciso saber o que
aconteceu lá Kon.
— Konstantin...
Tudo parecia incrivelmente errado. Konstantin não quis comer, lhe dei
remédio para dor, fechei a janela do quarto e o deixei descansar. Fiz dois
sanduíches para aquietar meu estômago, lavei a louça relembrando tudo
aquilo e foi aí que uma ideia súbita me veio à cabeça.
— O que diabos...
— Repito, eu não tive culpa Thomas. Assim que eu puder, irei visitá-lo.
— Não. A partir de hoje, você vai ficar bem longe de Konstantin. Você já
o machucou o suficiente.
***
Respirei fundo por vezes seguidas enquanto voltava para a Ceatha, foi
quando uma figura me chamou atenção na rua quase deserta. O garoto era um
pouco mais baixo que eu, era mais forte, tinha pele dourada e o cabelo curto.
Era ele, tive certeza quando o avistei de longe, não tinha como não ser Max.
Ele estava prestes a se cobrir na esquina, mas eu apressei o passo até estar
correndo, quando cheguei perto o suficiente eu pus a mão em seu ombro,
fazendo-o se virar para mim, podia até sentir o perfume. Mas aqueles olhos
não eram verdes, o perfume não era o mesmo. O rapaz me encarou com
hostilidade.
Nem esperei por sua resposta, apenas dei meia-volta e saí dali o mais
depressa que pude, me sentia pior que antes. Eu devia estar enlouquecendo,
não via outra explicação.
Seja nos filmes ou na vida real, o banheiro sempre pareceu ser o local
perfeito para desmoronar. E eu desmoronei. A tristeza me dominou por
completo, havia tanta coisa acontecendo, eu estava tão distraído que não tive
tempo para me sentir tão mal como estava. Bastou uma semelhança, uma
confusão e então a ficha caíra. Não importava o quanto eu tentasse me sentir
bem, nunca conseguiria, não até que Max acordasse. Eu nunca conseguiria
seguir em frente sem ele.
***
— Tomtom, você até que é bem forte para um nerd sedentário — Max
disse enquanto se empenhava inutilmente em se soltar. Sua voz parecia tão
distante agora.
Saí de cima dele e estendi a mão para ajudá-lo a se erguer, mas em vez
disso, ele a tomou e me puxou com força, caí sobre ele.
Max tentou avançar outra vez, mas eu me joguei sobre ele. Assim
começamos uma luta desengonçada e nisso escorregamos pela lama até o
fim da trilha que já estava bem perto, ela deu lugar ao asfalto duro do
estacionamento.
***
Como pude fazer isso? Será que um dia ele vai me perdoar?
— Thomas, você está bem? Já faz um tempão que você está aí...
Às vezes, você tenta se esforçar, faz disso uma obsessão, pois sabe que se
não o fizer, não conseguirá seguir em frente, sobreviver. Porém, basta uma
lembrança do passado e tudo o que você tinha conquistado até então parece
escorrer entre seus dedos. Era assim que eu me sentia enquanto tentava abafar
meu choro no travesseiro.
***
***
A pele de Max era tão quente e macia, suas mãos ousadas passeavam por
meu peito nu, ele desceu da orelha para o queixo lentamente, nossas ereções
se comprimiam, eu não conseguia ignorar o fato de que aquilo realmente
estava acontecendo! Será que ele também gostava de mim como eu gostava
dele?
Max mordeu meu lábio inferior de forma leve, pressionou seu corpo com
mais força contra o meu, fazendo meus pensamentos se confundirem, tudo o
que eu queria era seu toque, seu cheiro...
A música parecia estar ainda mais distante, como se não houvesse tempo
e espaço. Era apenas uma melodia perdida em outra dimensão.
Tudo era excitante numa escala inimaginável, criei coragem e com uma
ousadia que normalmente eu não possuía inverti nossas posições, fiquei
sobre Max como se estivesse em um dos nossos jogos de imobilização. Dessa
vez, foi a minha mão que invadiu seu espaço íntimo. Max respirava
pesadamente, deixou escapar alguns gemidos quase impossíveis de ouvir ao
sentir minha mão abraçar sua rigidez. Ao mesmo tempo, nós nos beijávamos
com uma urgência que incendiava a cama.
Depois ficou sobre mim, outra vez. Estava chegando ao ápice, mal
conseguia falar.
***
— Eu quero me desculpar...
— Não, eu preciso. Fui grosseiro com vocês ontem e não foi legal. Me
desculpem. É que eu tenho alguns problemas, às vezes eles me atingem com
muita força e aquilo acontece, eu não quero que levem para o lado pessoal.
Vocês são ótimos e tudo mais, não quero perder nossa amizade. — Falei com
sinceridade.
Eles falaram novamente que estava tudo bem, e realmente estava. Pelos
menos para eles, pois tudo voltou ao normal nos dias que se seguiram. Eu não
conseguia prestar muita atenção nas aulas, mas pelo menos estava
frequentando.
— Então...
Ele pensou por um momento, mas não se opôs. Pelo contrário, ele tomou
minha mão e apenas disse:
Eu estava com Lenn, ele tinha a única coisa que me fazia sentir melhor e
eu estava usando desde que cheguei, de forma moderada, embora a vontade
de me drogar ficasse maior a cada dose.
Me entrelacei ao seu corpo quente com toda força que tinha, seu corpo nu
era o refúgio perfeito para mim, eu poderia passar o dia inteiro deitado em
sua cama.
— Não sei, mas se não se importa, não quero voltar para a Ceatha hoje —
sussurrei.
Ele sorriu.
— É que você não parece o tipo de cara que gosta muito de companhia.
Lenn puxou meu cabelo para me fazer erguer um pouco a cabeça, então
me beijou.
— Não pergunte muito, nós vamos pegar um trem em Dublin e sair por
aí. Vou te mostrar um lugar que conheço e tenho certeza que você vai gostar.
É melhor do que ficar chapado nesse quarto velho.
Concordei.
E nossa farsa deu certo. Ele conseguiu pegar os tickets para todo o fim de
semana pela metade do preço graças a um discurso bem plausível sobre
reconhecimento dos homossexuais como um casal e, após um olhar enojado
da atendente, disse que se não concordassem, isso viria a público e acabaria
num tribunal. Simples assim.
— Mas foi você mesmo quem disse para eu não soltar até que você
dissesse — falei envergonhado, tentei soltar minha mão da dele, mas ele a
prendeu.
— Tão rápido?
— Há outro lugar que você precisa conhecer, é mais belo que esse. — Ele
começou a me puxar para longe da água, onde deixamos nossas coisas.
— Well, I've been afraid of a changing cause I've built my life around
you... but times makes you bolder, children get older and I'm getting older,
too...
***
Alguns minutos depois, o trem entrou numa espécie de túnel, quando saiu
dele, vislumbrei o desfiladeiro, de um lado estava a montanha e do outro
estava o oceano escuro sob o céu cinzento. O sol parecia tímido entre as
nuvens, as ondas batiam com força contra as pedras abaixo de nós.
— A praia de pedra, vamos caminhar pela orla, aposto que você nunca
viu algo tão bonito, e o inverno não vai demorar muito a chegar, então
aproveite a vista...
Não era como se eu estivesse apaixonado por ele, mas quando Lenn
segurava minha mão, era como se eu estivesse curado. Não havia mais
sofrimento, incerteza, eu me sentia verdadeiramente seguro.
Nossa caminhada não demorou muito, ele tinha razão sobre a beleza da
orla da praia de Bray, era um dos lugares mais lindos que eu já vi, se não era
o mais lindo. A praia não era como as convencionais, em vez de areia, era
repleta de pedrinhas.
Ele riu, e era um sorriso sincero. Coisa rara de ver em seu rosto.
Lenn soltou minha mão e foi na direção da bela linha horizontal formada
pelas pedrinhas brancas e cinzentas. Ele colocou o violão no chão com
cuidado, tirou os sapatos e a camisa. Não estava exatamente frio, porém a
água devia estar bem gelada, mas isso não o parou. Praticamente não havia
banhistas, só algumas pessoas caminhando pela orla.
Antes de entrar ele olhou para trás, era como um convite, mas eu me
limitei a observá-lo. Ele deixou as ondas molharem até o seu tornozelo, se
abaixou e com as mãos em forma de concha pegou um pouco de água do mar
e molhou o rosto e o cabelo, então percebeu que eu não estava muito a fim de
me molhar e retornou. Forrou a camisa para e sentar e pôs o violão no colo,
me aproximei e sentei ao seu lado sem me preocupar em sujar a roupa.
— Trust I seek and I find in you, every day for us something new, open
mind for a diferent view and nothing else matters...
— Talvez você queira dar uma volta pelo Bray Head — ele sugeriu.
Tudo aquilo me lembrou uma música que naquele momento fez sentido.
Lenn James me puxou para si com força e me ergueu até eu sentar sobre a
barreira. Envolvi minhas pernas ao redor de sua cintura e meus braços em seu
pescoço. Uma culpa destruidora me ameaçava por dentro, mas a ignorei. Pelo
menos naquele instante.
Era típico dele não falar nada, mas naquele momento ele tinha razão. Não
precisávamos firmar compromisso ou dar nome ao que tínhamos. Nos
beijamos um pouco mais e passamos algum tempo ali enquanto ele fumava,
então descemos para procurar uma pousada.
Não queria dizer adeus a tudo aquilo, mas é a vida. O paraíso foi feito
para ser visitado e não habitado.
— Melancólico, desesperado?
— Raro — respondi.
Capítulo 15
É Difícil Dizer Adeus
LENN ME DEIXOU NA CEATHA, JÁ PASSAVA DAS NOVE DA
NOITE E eu estava exausto por conta das horas em que passamos nos trens.
Por mim, eu não teria voltado tão cedo, mas meus materiais para as aulas da
segunda estavam lá, então era o certo a se fazer.
— Não, não. Insuficiência respiratória, ele já era bem velhinho, pelo que
entendi.
Elijah pigarreou.
Não havia muito o que fazer, senão consolá-lo. Então nos sentamos ao
seu lado, seguramos sua mão, o abraçamos e dissemos o quanto sentíamos
pela sua perda. Eu nunca conheci os meus avós, então não entendia muito
bem o motivo de ele estar tão abalado, mas como amigo, ofereci meu apoio.
— Tenho que ir para casa... — Duane disse ficando de pé.
— Não, não tem. Está tarde, você vai esperar até amanhã. — Elijah disse
com a voz firme.
— Du, ele tem razão. Você não pode sair assim no meio da noite. Se não
conseguir dormir, não durma. Estaremos aqui — Konstantin afirmou.
Eu assenti.
— Está vendo? Assim que amanhecer, eu chamo Elise e ela trará algum
carro, então iremos para Dublin encontrar sua família — decidiu Elijah.
Elijah já havia acertado tudo com a irmã, e assim que amanheceu ela
apareceu em um Citroën preto que, segundo ela, pegou emprestado com uma
amiga. Konstantin optou por ficar, afinal ele era a pessoa mais indicada para
fazer as anotações nas aulas. Eu não sei bem o que pensei, mas escolhi ir com
eles.
Janelas de carros tem esse efeito, nos deixa pensativos. Conforme tudo
vai passando diante dos nossos olhos é como se a vida trouxesse uma linha
do tempo de lembranças. Lembranças às quais eu preferia ignorar, pois me
traziam dor e dor era a última coisa que eu estava disposto a sentir.
O tempo não queria passar. As três horas que passamos naquele carro
foram as horas mais longas da minha vida. Ao chegar em Dublin, Duane deu
as coordenadas a Elise para que ela nos levasse até sua casa. Alguns, longos,
minutos depois, entramos no bairro de East Wall, num quarteirão de casas
simples, porém espaçosas.
A casa era grande, simples, porém bem cuidada. Havia um jardim fértil
repleto de diferentes flores. Pelos carros estacionados na rua, entendemos que
os parentes já haviam chegado. Saímos do carro e acompanhamos Duane
para dentro da casa, ele não bateu na porta, apenas entrou.
— Muito bem Philip, esta é minha irmã Elise, e este é nosso amigo
Thomas.
— É um prazer conhecê-los.
— Nós provavelmente vamos ficar até tudo acabar, você pode ajudá-los a
se acomodar? Eu não estou muito bem...
— Aquela é a Joanne, a Sra. Leachlainn. Mãe dele. Eles não se dão muito
bem. Acho melhor eu ir lá e tirar o Duane de perto dela antes que eles
comecem a discutir...
— Acho que é um pouco tarde para isso — Elise disse. Ouvimos Duane
aumentar o tom de voz.
— Então é por isso que você está aqui?! É claro que é por isso, você não
tem coração... só pensa em dinheiro.
— Pais, qual gay não tem problema com os seus? — Pensei alto.
— Eu, meus pais são ótimos. Houve um tempo em que papai plantava
maconha, ele que me ensinou como tragar direito sem me engasgar. Quando
Elijah se assumiu, nós fizemos piadas dele por uma semana, e foi isso.
Nenhum aborrecimento. Ah! Esqueci de mencionar que minha mãe é doida
de pedra, pior que eu...
Philip voltou com taças de vinho tinto, fiquei agradecido por ele ter
chegado, assim não teria que ouvir mais das tagarelices de Elise.
— Hum...
***
O Sr. Leachlainn devia ter sido alguém muito querido, pois depois das
duas da tarde começou a brotar gente de todos os lugares. Irmãos e seus
familiares, amigos, conhecidos, colegas de trabalho do passado, vizinhos,
parceiros do Country Club e etc. Resumindo, a casa ficou cheia.
Não discuti.
— O que foi? Coma tudo o que puder hoje, a gente nunca sabe se vai
estar vivo amanhã — disse quando nos pegou a encarando, então percebeu
que tinha feito uma piada sobre morte e ficou congelada.
Alguns minutos depois, a Sra. Leachlainn ergueu uma taça com água e
deu batidinhas nela com a faca, fazendo o tilintar ecoar pela sala de jantar.
Ela pigarreou, sua expressão era dura, não sei se eu estava me deixando levar
pela primeira – má – impressão que tive dela, mas o sorriso que ela deu antes
de começar a falar era mais falso que qualquer coisa que eu já tinha visto.
— O que é tão engraçado Duane? Não acho que este seja o momento
ideal para dar o seu showzinho. — Disse o pai dele.
Duane riu mais, eu já estava querendo me retirar, mas então ele parou.
— Querido, seu avô se foi. Entendemos sua reação, mas sua mãe deve
estar sofrendo como você ou até mais. Não é o momento para ressentimentos
— disse uma senhora simpática que devia ser tia de Duane.
— Depois de quatro longos anos... ela resolve retornar aqui e fingir que
não me abandonou no momento que mais precisei dela, isso é no mínimo
curioso.
— Eu nunca te abandonei!
— Nós nunca te abandonamos, você que escolheu levar essa vida — o pai
de Duane completou.
Encarei Elijah, tentei lhe dizer com o olhar que desse um jeito em Duane,
fizesse ele parar antes que aquilo virasse uma confusão maior, eu já havia
passado por várias situações do tipo e não queria participar de mais uma
depois de tanto tempo. Elijah apenas me encarou de volta e deu de ombros,
eu sabia que ele queria fazer algo, mas não estava ao seu alcance. Duane era
um furacão, ele só pararia quando achasse que era a hora.
— Não, ainda não terminei. Eu preciso falar tudo que está entalado aqui
há tanto tempo!
— Venha comigo.
Duane começou a chorar, tentou discutir com Elijah, mas ele o levou para
cima e assim que eles sumiram das nossas vistas, estávamos constrangidos
demais para voltar a comer como se nada tivesse acontecido.
***
Elijah não deixou Duane sozinho nem por um instante, sempre abraçado a
ele, lhe fazendo carinho, lhe dando o apoio que ninguém mais poderia dar.
Apesar de triste e melancólico, era algo lindo de testemunhar.
Philip foi o primeiro a ir lá, ele falou sobre como o avô era um homem
maravilhoso, a mãe de Duane e outros filhos do falecido se pronunciaram,
um colega do golfe e um vizinho também o elogiaram.
Não acharam que houvesse mais alguém a falar, mas Duane ficou de pé e,
cheio de lágrimas nos olhos e um lenço na mão, seguiu para o altar.
Ele encarou o teto da bela igreja enquanto mais algumas lágrimas caíam.
Pigarreou para ajustar a voz e respirou fundo.
— É difícil estar aqui. O vovô era uma daquelas pessoas que parecem
eternas. Ele era tão bom, tão sensível e doce. Recebi dele o carinho que nunca
recebi dos meus pais ou de qualquer pessoa no mundo. Ele me abrigou em
sua casa quando fui expulso por ser quem eu era, alguns... — ele olhou
diretamente para os pais — acharam que eu era uma abominação, mas o vovô
nunca achou que houvesse algo errado comigo. Nunca me olhou com outros
olhos. Meu avô foi a pessoa mais incrível que já existiu e é uma pena que ele
não esteja mais aqui, eu gostaria que ele comparecesse à minha formatura
este ano, infelizmente não será possível, mas eu sempre vou levá-lo comigo.
Em minhas boas lembranças, em meu coração...
Ele saiu do altar ainda mais triste, Elijah o amparou. Então seguimos para
o cemitério, onde ele foi sepultado ao som de aplausos em homenagem à
incrível pessoa que ele sempre foi.
Querida Joanne,
Na condição de seu pai, estou muito decepcionado com você. Talvez você
se surpreenda, mas a verdade é que você estava certíssima quando disse que
há "uma vergonha" na família Leachlainn, mas está equivocada quanto a
quem é.
A única "abominação" que vejo nessa história é você ter expulsado seu
próprio filho de casa pelo simples fato de ele ter lhe contado que é gay. Um
pai expulsar o filho de casa, na minha humilde opinião de ancião, é o
verdadeiro ato que vai "contra a natureza".
Seu filho não escolheu ser gay, ele nasceu assim e nunca vai mudar.
Você, por outro lado, escolheu ser retrógrada, fanática e mente limitada.
Então, aproveitando que estamos nessa "onda" de repudiar os filhos,
acredito que usarei o momento para lhe dizer adeus. Agora tenho um neto
(como os gays costumam dizer) "fabuloso" para criar e não terei tempo para
uma filha burra e sem coração, então adeus.
— Acho que faltarei ao grupo de apoio então, a semana será bem corrida
— respondi.
— Não, aquele lugar é uma farsa. Não creio que ajude em nada.
***
Não entendia bem o motivo, não sabia se tinha algo a ver com a morte de
Michael, ou se tudo o que aconteceu conosco ao longo da vida me deixou a
impressão de que minha família estava morta, não de verdade, é claro, mas
talvez a alegria, a união...
Pensar neles fez a saudade me atingir como uma flecha envenenada, não
matava rapidamente, mas espalhava a dor. Decidi então ligar para Karola,
depois ligaria para Drake e tudo ficaria bem.
Tinha que ficar, ignorar a saudade é sempre mais difícil que sentir.
Fui para o quarto quando terminei de jantar, abri a janela, observei a noite
amena em Cork, sentei na cama e disquei o número dela. Chamou sem parar
e caiu, disquei de novo e no terceiro toque ela atendeu.
— E o Max?
— O Max, bem... não sei se eu deveria te contar isso, mas sei que você
vai acabar descobrindo de qualquer forma.
— Estou com medo do que pode ser, mas me conte. Seja o que for, eu
aguento, já tenho suportado tanta coisa...
Konstantin apareceu em nossa sala em cima da hora. Por sorte, não deu
tempo de me perguntar nada, apenas começamos a responder as nossas
provas sem qualquer tipo de contato. Infelizmente eu não conseguia me
concentrar em nada, estava suando frio, só pensava em Max, Loren grávida,
nosso futuro, o que seria dele?
— Não é bem assim, mas você sabe se ele está aí? — Perguntei.
— São nove da manhã cara, ele deve estar na aula — ela concluiu, então
desceu a escada num rebolado trôpego.
Foi quando estava perto do almoço que o avistei com alguns colegas,
todos pareciam típicos boêmios, filhinhos de papai, mas ele não.
— Acho que eu não devia ter dado, você está ficando viciado Thomas. —
Respondeu irritado.
Como eu explicaria para ele que minha vida estava desabando mais uma
vez e que só ele tinha o remédio?
— Lenn eu recebi uma notícia ruim e eu não estou sabendo lidar com
isso, fui mal na prova, preciso relaxar. Juro que te deixarei em paz e não
voltarei mais aqui, mas, por favor, me dê mais!
***
Sentei na cama, de frente para ele. Uma notícia ruim a mais não faria
diferença na minha vidinha ridícula.
— Eu procurei o Matteo.
Eu queria estapeá-lo.
— Kon, ele é um idiota, ou melhor, não sei quem é mais idiota entre
vocês dois! Você sabe bem disso, não merece perdão nenhum. Se não fosse
por ele, talvez não tivessem te espancado — justifiquei.
— Ei! Você está mais traumatizado que eu. Eu fui agredido, então eu
decido a quem perdoar ou não, mas achei que você, como meu amigo, me
apoiaria...
— Você vai voltar para aquele imbecil Konstantin, eu nunca vou apoiar
isso. Não depois do que ele te fez! — Me exaltei.
— Escuta Konstantin, cuidado com o que você fala. Não fale do que não
entende. O que ele oferece ameniza minha dor — contei.
— Vá para o inferno!
Peguei minha carteira e saí do quarto bufando, nervoso. Ele não tinha o
direito de falar assim comigo. Tinha? Fui até a esquina e comprei um maço
de cigarros, não era algo que eu costumava fazer, mas ultimamente era assim
que eu sobrevivia: fazendo coisas que não devia. Voltei para a Ceatha, mas
não entrei. Sentei na calçada, em vez disso.
— O que você está fazendo aqui fora? — Duane perguntou, ele e Elijah
me encaravam com uma curiosidade divertida.
— Respirando.
Eles se entreolharam.
— Com toda essa fumaça, fica meio difícil hein? — Elijah disse sorrindo.
— Vamos entrar, eu trouxe torta de frango.
Assenti e entrei com eles, voltei ao quarto para guardar minhas coisas,
quando me aproximei da porta ouvi a conversa de Kon e, possivelmente,
Matteo.
Entrei no quarto assim que ele ficou em silêncio, guardei minhas coisas e
saí. Duane foi chamá-lo para jantar. Nós nos sentamos à mesa, embora não
quiséssemos nos ver. Elijah e Duane não paravam de nos analisar, sabiam
que algo estava errado, pois não estávamos tagarelando, mas não disseram
nada.
— Oi.
— Ei, eu acho que fui um pouco grosso com você esses dias. Estava meio
estressado com umas coisas que poderei te contar hoje, se você aceitar sair
comigo. E aí?
Corri para checar, quando abri a porta ele estava lá sorrindo de pé.
Desligamos os celulares, ele me deu um abraço esquisito e me beijou
rapidamente.
— Vá trocar de roupa e traga algumas com você. Quero que fique lá em
casa por todo o fim de semana. — Ele falou com autoridade.
Puxei Lenn para dentro, o beijei com mais força, então o deixei sentado
na sala e fui me preparar. Ignorei a presença de Konstantin no quarto.
Arrumei uma pequena mochila com roupas, coisas necessárias e desci.
— Vamos lá — falei.
***
— Não quando eles pedem como exigência para a audição pelo menos
uma demo de uma canção autoral e eu não tenho nenhuma pronta — ele
tomou a bebida toda de uma só vez. — Mais um, por favor!
Eu devia estar paralisado, encarando ele com cara de idiota. Uma das
maiores gravadoras de toda Europa estava de olho em seu trabalho e ele
estava chateado por não ter uma demo?
— Você tem que correr... antes que eles se interessem por outro. E Lenn,
você sabe que há mais garotos bons no campus.
— Eu sei, eu sei! Mas como vou conseguir compor algo genuíno com
toda essa pressão sobre mim?
Assim que fechei a boca, olhei para um dos sofás num canto do pub e o
vi. Matteo estava lá protagonizando cenas quentíssimas com outro garoto. Na
verdade, estavam apenas se beijando, mas aquilo parecia mais uma preliminar
para o ato principal.
Uma fúria me dominou, aquela velha fúria que não aparecia há semanas,
e tomou conta dos meus atos. Quando dei por mim, estava indo na direção
deles com tanta pressa que quase tropecei nos próprios pés.
Joguei minha bebida nos dois, o que causou espanto em todos que
estavam ao redor.
— Não é da sua conta. Por que não cuida da própria vida, han? — Gritou
mais alto que eu.
O rapaz que estava com ele se afastou, então éramos só nós dois e a
pequena plateia.
— Seu desgraçado! Você causou tudo aquilo, foi perdoado e ainda brinca
com os sentimentos dele. Isso não se faz, seu canalha!
— Onde você estava? Por que não nos separou? — Perguntei irritado.
— Sim...
— Eu preciso ir à Dublin, não sei quanto tempo vou ficar. Preciso te levar
de volta à Ceatha, não tenho tempo a perder — explicou.
Mas, apesar de suas palavras, não parecia que ele queria ir embora.
Estava agarrado junto a mim. Era uma boa sensação em meio a tantas ruins.
Compreendi. Até tive vontade de ir junto, ver como isso funciona, mas
sabia que estaria atrapalhando, distraindo Lenn do seu foco. Ou eu estava
sendo convencido demais ao achar isso? Não sabia a resposta, afinal, apesar
de mais aberto comigo, Lenn continuava sendo um enigma.
Pedi que ele me deixasse no café algumas ruas antes, eu não queria voltar
à Ceatha imediatamente. Pedi um chai e cookies com gotas de chocolate.
Apreciei a vista da janela. A cidade sob um céu nebuloso, como a minha
mente. Talvez eu deveria ter escolhido um lugar mais ensolarado para
estudar, será que faria alguma diferença? Com certeza, não.
Tomei o chai quentinho, estava incrivelmente bom, ou era a minha fome
que falava por mim.
Elijah foi o primeiro a acordar. Desceu usando apenas uma cueca folgada,
ficando instantaneamente constrangido quando percebeu que eu havia
acordado antes.
Ele pegou uma caixa de cereais especiais e depositou numa tigela, depois
pegou o leite, misturou tudo e veio sentar perto de mim.
— Está melhorando aos poucos, mas ele aguentou muita coisa na vida.
Sei que vai superar isso também. Logo terminaremos nossos cursos. —
Pausou para colocar uma colher cheia na boca — Estive pensando em pedi-lo
em casamento, mas não sei se ele vai reagir bem... — confessou temeroso.
— Só senti amor uma vez, por uma única pessoa. Por ele, e ainda sinto.
Não sei se isso vai mudar algum dia, tenho quase certeza que não.
Concordei em silêncio.
Silêncio esse que foi quebrado quando Konstantin desceu a escada e foi
até a mim como um carro desgovernado, ou até mesmo um furacão.
Fiquei de pé.
— Você é um idiota! Ele só estava com amigos, não tem nada demais em
sair com amigos.
— Como você pode ser tão burro Kon? Ele está te traindo, ele faz isso
todos os dias sem qualquer remorso! — Desisti de ser educado, era melhor
jogar tudo sobre ele.
Infelizmente, eu levei um soco em resposta. Que deve ter doído mais nele
que em mim. A raiva estava me dominando também, tentei avançar, mas
Elijah se pôs entre nós.
Não pude acreditar que ele estava mesmo dizendo aquilo. Foi como um
golpe fatal, mas eu não era mais o Tom antigo, que ficava calado e chorava.
— Por que eu ia querer roubar o seu namorado espancador?!
— Talvez... por que aquele viciado doentio que te droga não esteja sendo
mais o suficiente para você? — Ele cuspiu as palavras em mim, o
arrependimento desapareceu.
— Seu imbecil! Continue com ele, sendo traído. E, quem sabe, levando
mais algumas surras da turma dele! Eu só queria te ajudar, mas agora foda-se!
— Eu tenho uma solução para isso. — Disse ele. — Ele não fazia parte da
irmandade, fui eu quem o trouxe. Talvez ele deva ir embora — Kon disse
firmemente.
— Não! Ninguém vai embora, somos adultos. Não é assim que se resolve
as coisas. — Elijah se intrometeu.
— Ok!
— Sim, mas quem disse isso não era uma defensora dos fracos e
oprimidos, como eu! — Rebateu.
Não estava?
Capítulo 18
Bad Trip
ELISE PODIA ATÉ SER UMA PATRICINHA AUSTRALIANA
PERDIDA NA Irlanda, mas a irmandade onde ela morava era uma tremenda
bagunça. Havia roupas espalhadas por todos os lados, louça suja e muita
poeira. Por sorte o lugar era enorme, mas ainda assim muitas garotas estavam
dormindo pelos cantos, seja sofá, tapete ou até mesmo o chão.
— Elise! Pelo amor de Shamrock, nós não já falamos mil vezes sobre as
regras de não trazer garotos aqui? — Disse a mais alta.
A outra riu.
— Fica fria Janele! Não está na cara que ele é gay? — Elise respondeu.
— Ok, ok! Ele só precisa de um lugar para ficar por uma noite ou duas,
ou o ano todo, não sei. Ele está na fossa, e daquelas bem profundas! Vamos
Thomazinho...
***
Elise me fez prometer que iria com elas à tal Caverna, e eu não pude
recusar. Primeiro, porque seria feio, já que ela estava me abrigando. E
segundo, porque a última coisa que eu queria era passar uma noite de
domingo sozinho e depressivo numa casa enorme e vazia.
Então quando o relógio marcou nove horas, todas estavam prontas. Elise
me arranjou uma roupa "descolada" que algum cara tinha esquecido lá. Ao
que parecia, ela não dava muita bola para a regra de não levar caras para sua
república.
Estava muito frio, o vento gelado soprava em nossas faces sem dó. Uma
das garotas iluminava o caminho com o celular. A trilha acabou numa parede
imensa com uma porta de ferro, eu estava começando a ficar assustado, então
Elise tomou a frente, bateu com força na porta até que um homem abriu, ele
era alto como uma montanha, tinha a pele negra, um sorriso incrivelmente
perfeito.
Ela passou algumas notas para a mão dele, que as contou, em seguida
tirou um pacotinho do bolso e deu a Elise, então liberou nossa passagem para
dentro da caverna.
Estávamos numa espécie de hall com uma luz verde, havia outra porta
grande, já era possível ouvir a música que vinha de dentro.
Elise abriu o pacote com cuidado e tirou uma cartela com tabletes finos
com desenhos infantis, até um tolo como eu saberia que se tratava de LSD ou
algo do tipo. Fiquei alerta.
— O que é? — Perguntei.
As meninas riram.
Quando fui dizer novamente que não iria usar aquilo, ela foi mais rápida e
colocou na minha boca, então era tarde demais.
Entramos.
Estava tocando uma música muito conhecida, talvez uma das minhas
favoritas, mas eu estava tão louco que não conseguia reconhecer. Os altos e
baixos da melodia pareciam confusos, a voz do vocalista era muito grave, o
que me fez lembrar do Smeagol, então ficou muito aguda, tanto que era como
se beliscassem meus tímpanos.
— Você foi embora Tomtom! — Ele disse num tom acusativo. Estava
chorando, eu o tinha magoado.
— Tomtom, o que está dizendo? Eu não sirvo mais para você assim? Eu
te amava tanto...
Comecei a correr, corri sem parar entre as árvores, mal sentia o chão sob
meus pés. Eu não sabia para onde estava indo, mas não podia ficar ali. Max
estava me acusando, com razão, eu não podia ficar. O que eu diria para ele?
Estava suando muito, mal conseguia enxergar onde estava, sentia meu
coração batendo com força, achei que ele fosse cair, segurei meu peito. Havia
duas pedras altas, entre elas uma espécie de abrigo, foi lá onde me deitei.
***
Quando abri os olhos, já era manhã. Minha cabeça doía, toquei minha
testa e percebi que havia sangue seco e ferimentos até à bochecha. Pelo
cheiro, descobri que eu havia urinado nas calças. Estava descalço, entre duas
pedras, na chuva. Não reconheci o lugar, estava muito frio e eu fiquei
apavorado.
Tentei lembrar do que aconteceu na noite anterior, mas estava tudo uma
confusão de imagens coloridas. Decidi sair dali e procurar alguém que
pudesse me ajudar. O celular não estava no meu bolso, eu estava ferrado.
Eu te amava tanto...
Repeti algumas vezes seu nome até perceber o que estava fazendo. Eu
devia estar louco. Max estava a milhares de quilômetros longe de mim, em
coma.
— Thomas!
Ouvi alguém chamar o meu nome, mas era apenas um chamado muito
baixo, que se repetiu. Seria coisa da minha cabeça ou alguém estava
realmente me chamando? O que era real?
— Thomas! Por que não me respondeu? — Olhei para trás e quem estava
lá era Lenn James.
— Lenn...
Ele se ajoelhou próximo a mim, e me puxou para si. Foi um abraço tão
apertado que fiquei sem ar.
— Eu me perdi Lenn...
— Está tudo bem agora, não se preocupe — ele me abraçou mais forte.
Eu chorei tanto que precisava parar para resfolegar.
Cork estava envolta num nevoeiro, Lenn logo me disse que era típico do
início de dezembro. Ele estava sendo tão prestativo. Quando me trouxe no
domingo, tornou-se superprotetor, não deixou que ninguém me visse, só Elise
tinha me visto quando ele me levou até o carro, meus pensamentos ainda
eram confusos, mas me lembro de ter visto ele discutindo com ela e a
mandando embora.
Depois disso, ele me levou para sua "casa", me deu banho, teve paciência
com meus devaneios e meu choro interminável, me deu chá, me alimentou e
ficou abraçado comigo na cama até eu pegar no sono. Assim eu me senti bem
melhor, apesar da vergonha. Mostrar nossos lados podres um para o outro
parecia algo natural.
— Não sei... talvez seja medo do que pode acontecer. A minha vida é
uma bola de neve de desgraças, tenho medo de que eles vasculhem o meu
passado, caso eu consiga o contrato...
— Eu sei Thomas, só não me sinto à vontade para falar disso. Ainda não.
— Tudo bem.
Tomei outro banho, mas ainda assim minha aparência era terrível, eu
havia batido minha cabeça em algum lugar, o que me deixou uma escoriação
do canto da testa até à bochecha, isso sem contar os hematomas nos joelhos e
nas costas, além de olheiras imensas.
Quando saí do banho, percebi que eu não tinha roupas comigo. Tudo que
me pertencia estava na Ceatha, mas Lenn foi mais rápido e já havia separado
uma roupa dele para eu vestir.
— Vista-se, nós vamos dar uma volta. Não é todo dia que as aulas são
suspensas por conta da névoa. — Ele disse e saiu para me esperar lá fora.
***
— Não, sou só eu. Jerry foi socorrido e chegou com vida no hospital, mas
não resistiu aos ferimentos. Ele era só uma criança... e eu um adolescente.
Tentei buscar consolo em meu pai, mas ele me virou as costas e nada disse.
Dias depois de eu completar dezoito anos, ele me deu uma grande quantia em
dinheiro e mandou eu sumir de sua vida. Foi isso, esse é o meu passado
obscuro. Você ainda gosta de mim?
Percebi que ele tentava soar engraçado, mas tudo isso causava nele uma
grande dor. Ele era muito forte, tanto que nem deixava as lágrimas caírem
dos olhos.
— Você é o oceano.
— Agora imagine que meu coração é uma blitz. Você estava andando por
aí em alta velocidade. Se vamos seguir em frente com isso que nós temos, me
diga, você está habilitado e parará ou fugirá?
— Digamos que eu fui um louco que passou direto, mas acabou sendo
apanhado — falei sorrindo.
— Acho que é suficiente. Então, às margens do Rio Lee, você aceita ser
algo meu? Dizer namorado, soa muito piegas.
— Agora que você não está mais parecendo um zumbi do The Walking
Dead, está na hora de voltar para sua irmandade e resolver seu problema com
os garotos.
— Eles ficaram muito preocupados com você. Aposto que Elise sofreu
nas mãos deles. Embora seja merecido.
— Não, ela não tem culpa de nada, eu sou adulto. Não teria usado, se não
quisesse...
— Ok, mas você tem que ir lá. Você faz parte de uma irmandade, tudo
que acontece com você afeta todos eles e vice-versa, então vamos resolver
logo isso? — Insistiu.
Revirei os olhos.
Ele pôs o braço sobre meus ombros e assim seguimos andando pelas ruas
do centro.
***
— Elise! — Chamei.
Eles riram.
Não foi uma conversa fácil, Duane fez Konstantin me pedir desculpas e
eu a ele, nós nos desculpamos por ter dito todas aquelas – verdades – coisas
desnecessárias e por brigarmos, coisa que não devia acontecer na irmandade
sob qualquer hipótese. Depois conversamos sobre a agressão que Konstantin
sofreu, ele disse que já havia superado, que não passara de um mal-entendido,
o que era uma grande mentira, mas eu e Lenn também mentimos quando
fomos questionados sobre sermos viciados. Ele, que mente bem melhor que
eu, disse que só usamos uma vez por conta do estresse, mas que depois disso
prometemos nunca mais usar, e o grupo nos ajudava com esse problema.
Duane pegou carona na conversa sobre o grupo e decidiu que falaria com
a coordenadora de seu curso, para poder participar algumas vezes para
superar o luto pelo avô. Eu não o queria lá, nem Lenn, mas não tínhamos
desculpas para fazê-lo mudar de ideia, então quando a quarta-feira chegou, lá
estávamos nós, nos sentando em círculos no gramado do Parque Fitzgerald
debaixo do grande cipreste.
— Olá Tom...
— Você não o ouviu? Se manda! — Disse ele num tom que mais parecia
um rosnado.
***
— Tom, apenas me escute, ok? Depois você pode falar o que quiser, mas
por enquanto só me escute. — Pediu, apesar de irritado, concordei em
silêncio. — Você era muito distraído para perceber quando descobri, foi
pouco antes de me formar. Por isso eu fiz o possível para entrar em
Cambridge, assim eu ficaria longe da mamãe, do nosso pai, de todo mundo.
Estando longe, eu não precisaria ter que olhar para você todos os dias
sustentando uma mentira...
— Mas mesmo assim você sustentou essa mentira Eddie, por todo esse
tempo...
— Tem uma coisa que eu não consigo entender. Se a Sra. Dodger sabia
de tudo isso, como ela poderia aceitar nossa amizade? Eles até compareceram
à nossa casa!
— Amor, Tom. Todo mundo sabe o quanto Max era solitário, passou a
infância cercado por babás, os pais nunca estavam em casa. Você era tudo
para ele, Stela nunca deixaria que alguém privasse Max disso, por isso ela
fazia esses sacrifícios, tudo por Max.
— Sim, eu vou...
Deixei-me sorrir, as coisas estavam dando certo para ele também. Nossa
conversa me fez perceber que talvez ele tenha sofrido mais que qualquer um
com todo esse drama sobre as costas. Decidi absolvê-lo.
— Quando você parte? — Perguntei, não por que tinha pressa que ele
partisse, mas para ver como podíamos aproveitar sua pequena estadia.
— Amanhã eu tenho aula o dia inteiro, mas estarei livre à noite. Caso
queira me apresentar sua noiva, podemos sair para jantar...
Eu ri.
— Você não vai começar a bancar o psicólogo para cima de mim, não é?
Nós rimos, pedimos mais cafés, conversamos um pouco mais. Era tão
bom tê-lo perto de mim. De repente eu já nem lembrava mais da mágoa que
tinha guardado ao sair da Inglaterra. Ele continuava sendo meu irmão mais
velho, meu espelho, e eu sempre ia amá-lo, pois irmãos não foram feitos para
se odiar.
— Eu senti sua falta Eddie, só estava cego de raiva. Espero que possa me
desculpar. — Falei envergonhado.
— Tudo bem Tom. Não há o que perdoar, nós dois erramos. Nos vemos
amanhã!
— Sim, preciso contar umas histórias peculiares para sua noiva. Até
amanhã então.
— Você nunca nos disse que tinha um irmão tão lindo! — Duane me
acusou. Estava deitado no colo de Elijah, Konstantin estava ao lado deles.
— Está brincando? Ele é uma versão melhor de você! Mais alto, com um
corpão, se veste bem e tem um carro incrível, e aqueles olhos azuis? Vocês
tinham que ver os olhos dele!
— Lamento por sua desilusão. Agora vai me dizer o que houve com seu
irmão?
— Encontro de casais? Hum... ainda não cheguei nesse nível. Quem sabe
num futuro distante?
E por mais que eu me envergonhe de dizer isto, meia hora depois saímos
do banheiro da biblioteca, desajeitados, roupas amassadas, cabelos
bagunçados e marcas no pescoço.
— Você é muito insano! — Falei conforme íamos para saída, ele me deu
uma tapa na bunda.
— Lenn!
Porém tive uma pequena surpresa ao entrar em casa e ver uma espécie de
reunião entre Edward, Konstantin, Elijah e Duane. Os quatro me encararam
como se estivessem vendo uma alma penada.
— Eu sabia que tinha algo de errado com você Tom. Tive que recorrer
aos seus amigos...
— Vocês não...
— Tom, você está metido com drogas! Diga que isso não é verdade, por
favor.
Eu não estava acreditando que eles contaram tudo para Edward, ele
levaria isso para toda a família e logo minha vida se tornaria um pesadelo,
tive uma vontade absurda de chorar, mas me segurei. Lenn pegou minha mão
e a apertou.
— Eu tive que lidar com muita coisa quando cheguei aqui...
— Você teve que lidar com muita coisa? Sério Thomas? Há tantas outras
formas de lidar com os problemas e você, que sempre foi tão inteligente,
recorre às drogas? Logo você! Um prodígio! — Edward já elevara a voz.
Lenn estava inquieto ao meu lado, mas eu sabia que ele não se meteria em
nossa discussão, assim como os meninos que assistiam nosso show no sofá.
— Você nunca teve que acordar com vontade de morrer Edward, você
nunca teve que lidar com essa droga de culpa que me consome por dentro, me
dilacera, me mata um pouco a cada dia, essa angústia, essa incerteza, você
nunca precisou lidar com nada disso! Então não me julgue! A droga que você
repudia é o que tem me mantido de pé, ela leva embora toda essa dor...
— Ela não leva embora apenas isso Tom, ela leva seu brilho, sua saúde,
sua vida. Olhe só para você! Está magro, cheio de olheiras, parece um
viciado. O que você está fazendo Tom?
— Pare de me dizer o que fazer! Como você mesmo disse, eu sou adulto
agora. Tudo o que faço é responsabilidade minha, então se eu quiser acabar
com a minha vida assim, é problema meu!
— Ótimo, assim será mais fácil. Agora vai embora, não quero te ver tão
cedo!
Duane ficou de pé também, Elijah tentou detê-lo, mas ele se livrou.
— Sim, absoluta.
— Olha, não se preocupa. Não vou ficar aqui para sempre, amanhã
mesmo eu vou procurar um lugar...
— Não diga isso. Nós vamos dar um jeito, só é muita pressão sobre mim.
Não gosto de ser pressionado.
Eu sabia que havia algo em seu portfólio, porém era certo mencionar? E
se ele não gostasse da ideia pelo fato de eu tê-lo bisbilhotado? O olhei
inquieto.
— Lenn, eles estão procurando por algo genuíno, certo? Então o que é
mais genuíno que a dor?
— Não me pergunte como, mas eu sei que você tem uma canção chamada
Interrupted, ela é muito pessoal, como esse agente diz... é genuína! Se você a
usar, vai conquistar qualquer um.
— É, talvez eu tenha...
Ficamos nos encarando por um tempo sem nada dizer, éramos dois
azarados na vida, deitados numa cama para lamentar todas as desgraças que
sempre nos aconteciam. Lembrei de Edward com os garotos na Ceatha, o que
instantaneamente me deixou muito irritado.
— Não Lenn... — Deixei minha mão descer até sua virilha e a apalpei. —
Isso é golpe baixo!
Logo ele estava sobre mim, tirou sua roupa e a minha. Transar não era
bem o que eu tinha em mente, mas com tantos eventos ruins acontecendo que
mal tinha? Me entreguei a ele pela milésima vez e no fim, quando estávamos
suados, sujos e com cheiro de sexo, ele pegou seus utensílios e preparou uma
dose para nós.
***
Vestimos apenas nossas cuecas, antes que a porta fosse derrubada. Então
eu abri e lá estava Edward de prontidão.
— Você não pode obrigá-lo, além disso, eu não vou deixar. — Lenn se
meteu entre nós.
Bem, feliz ou infelizmente, Lenn não é uma das pessoas mais pacientes
do mundo e ao ouvir meu irmão o chamando de marginal, avançou sobre ele,
os dois rolaram pelo velho piso de madeira. Eu não podia intervir, estava com
raiva de Edward, queria ajudá-lo, mas se o fizesse Lenn ficaria irritado, se
ajudasse Lenn o outro também ficaria, então apenas comecei a gritar por
ajuda, mas os outros estudantes dessa irmandade sinistra parecem não se
importar com o que acontece nos quartos vizinhos.
Uma coisa era certa, não voltaria para a Ceatha, tentei lembrar de algum
lugar, mas nada me vinha à mente, então decidi apenas vagar por aí.
Para não atrair atenção, fingi que era água da chuva, fui direto para o
banheiro do primeiro andar me secar, um rapaz saiu deixando seu rastro mau
cheiroso quando entrei. Fui até a última cabine, tirei as porcarias que tinha na
mochila e, apesar de nervoso, comecei a preparar ali mesmo.
Não sabia a quantidade certa que deveria usar, então coloquei o máximo
que achei prudente. Tive dificuldade para encontrar uma veia, mas depois de
três tentativas a encontrei.
— Olá irmãzinha...
— Thomas, não me venha com essa. Estou muito irritada com você!
Edward me contou tudo! Francamente Thomas! Como você pôde? Quer se
transformar no nosso pai?
— Adeus irmãzinha.
— Thomas, você usou algo? Onde você está? Diga agora ou vou colocar
toda a polícia atrás de você!
— Você expôs minha miséria Eddie, repito: vá. Se. Foder. — Desliguei.
Lenn foi o próximo a ligar, com ele eu não podia fazer joguinhos, então
tentei, na minha mente confusa e lerda, me manter sóbrio para falar com ele.
***
Que horas eram? Bem que eu gostaria de saber, não tinha relógio e meu
celular à essa altura já tinha se afogado. Juntei tudo às pressas e saí. Era a
moça da limpeza quem esteve batendo na porta.
Olhei estranho, mas fiquei aliviado por ela não perceber qual era o meu
real vício. Apenas obedeci, saí correndo, já era noite e todas as lojas do
shopping estavam fechadas ou fechando.
— Está bravo?
— Não. Feliz que tenha voltado. Entre Thomas, você está gelado.
E estava mesmo.
Lenn não brigou comigo, não discutiu, nem sequer perguntou onde eu
tinha ido, apenas se preocupou em me preparar um banho quente e pediu
comida para nós dois. Vesti apenas uma cueca folgada e sentei na cama, a
comida não demorou a chegar, comemos o ensopado ali mesmo,
despreocupados.
Nem estava com fome, sentia até um pouco de enjoo, mas comi, depois
escovamos os dentes juntos e deitamos como um casal. Ele me abraçou por
trás, sentir seu calor junto ao meu corpo, mais uma vez, foi a melhor coisa
que me aconteceu num dia tão ruim.
Ele era bom demais para ser verdade, era o meu herói nos dias mais
escuros.
Capítulo 22
Alerta
NO FIM DE SEMANA O QUE REINOU FOI O MARASMO, MAS
PELO menos Edward já tinha me deixado em paz. No domingo usei mais um
pouco do pó com Lenn, ele precisava se inspirar para finalizar a nova música
e eu não quis ficar de fora.
Eu estava andando pelo corredor quando ouvi Kon falando atrás de mim.
Ele me encarou durante as aulas, mas eu fingi que não percebi.
— Thomas, você não pode ficar com raiva de nós por tentar ajudá-lo!
— Eu posso te ajudar.
Parei e fiquei de frente para ele.
A típica chuva irlandesa havia dado uma trégua, mas o céu estava
carregado. A qualquer momento cairia um dilúvio. A biblioteca estava
tranquila, poucas pessoas iam nesse horário. Passei o meu cartão magnético e
fui para o computador mais próximo.
A primeira prova foi demorada, pois tinha uma etapa oral, cuja eu não
devo ter me saído tão mal, a segunda foi mais rápida, apesar de ser uma prova
prática de anatomia, nessa eu me saí bem melhor.
— Você não está com uma boa aparência Sr. Thompson, gostaria de
saber o que está acontecendo com você — a Sra. Gobinet notou.
— Todos nós temos problemas, meu caro. Isso não é desculpa. — Disse o
Sr. Conleth, me interrompendo.
— É fácil falar quando não é com você. Me desculpem se não sou o aluno
dos sonhos, ok? Eu só estou vivendo sob uma forte pressão que não vem de
ninguém, apenas da minha própria mente. Meu pai é um bandido, meu
namorado quase morreu num acidente por minha causa, meu irmão caçula
faleceu, são tantas coisas... — pausei um pouco para respirar. — Não está
sendo fácil. Estou com essa aparência deplorável porque quase não dormi
durante o fim de semana, justamente para tentar recuperar o que perdi. Acho
que até fui bem nas provas de hoje.
— Ok — sussurrei.
***
Entramos no carro, a capota estava levantada, pois a chuva ainda era uma
ameaça forte.
— Não muito. Geralmente cai um pouco de neve perto do natal, mas logo
chove e a neve desaparece — explicou.
— E em Dublin?
— Entendo, mas é uma pena. Achei que aqui nevasse mais que na minha
cidade, mas é exatamente igual. Parece que quanto mais fujo de lá, mais
próximo fico — confessei.
Lenn já tinha checado suas notas e havia passado em tudo com notas
exemplares. Fiz o login no computador da biblioteca e não tive surpresas ao
perceber que havia ficado em três disciplinas e passado por pouco nas outras.
***
Ouvi a voz de Duane e Elijah em algum lugar muito perto. Não olhei para
onde estavam. Se eu tirasse o gibi da frente do rosto, eles me reconheceriam e
seria um drama, então apenas me atentei em ouvi-los.
— Eu também Du, parece que foi ontem que entramos aqui e agora
estamos saindo... e eu quero te fazer um convite.
— Lá vem bomba!
Ele pigarreou.
— Sei que nós não somos mais namorados oficialmente e tal, mas você
sabe que não sei viver sem você. Quero que venha comigo para a Austrália,
você não precisa ficar para sempre, se não quiser. Mas quero que pelo menos
conheça o lugar onde vivo, minha família... quero que se distraia um pouco.
Não vou deixar sua família esquisita te deixar mal ou qualquer coisa do tipo.
Você merece ter paz, seu avô ficaria feliz...
Logo me dei conta de que este seria um natal solitário, mais um em minha
vida. Só salvo o do ano passado que, apesar dos pesares, foi muito bom. Eu
ficaria completamente sozinho na Garganta do Diabo durante este natal. Com
sorte, o diabo acabaria me engolindo...
***
E então o natal chegou, a cidade estava toda decorada, mas não nevou. A
neblina espessa tomava conta das ruas, Lenn estava a quilômetros de
distância. Abri a única janela no quarto, mas o que vi não me alegrou.
Crianças passavam com seus pais, certamente voltavam da igreja, já
passava da meia-noite, com certeza a missa de natal tinha acabado e agora as
pessoas iam às suas casas para cearem, talvez cantarem alguma música do
álbum The Best Christmas Album in the world... Ever! Que o Velho gostava
muito.
Apesar de todo o mal que ele causou a mim e ao resto da família, eu não
podia negar que sentia falta dele. Fiquei pensando em como ele devia se
sentir na cadeia, sozinho em uma data como esta, pois certamente ninguém o
visitaria. Mamãe bem que tentaria, mas Edward e Karola não iam permitir e
no fim, ela acabaria obedecendo.
Do lado de fora, em Heaven Wood, na rua deserta iluminada pela luz dos
postes, flocos de neve começavam a cair, dançando seguindo o movimento do
vento frio.
— Onde está você agora, Max? — Perguntei olhando a lua quase coberta
por nuvens escuras, mas era inútil. Isso poderia soar romântico se ele também
estivesse olhando a lua, mas do lugar onde estava, ele nunca veria.
Fechei a janela, estava muito frio. Procurei por alguma bebida nas coisas
de Lenn e encontrei uma garrafa de Jameson original. Encontrei um copo
quadrado na bancada e não hesitei em colocar uma dose grande, mas antes de
prová-lo, alguém bateu à porta. O deixei lá e fui ver quem era, torcendo para
que fosse Lenn, embora não houvesse a menor chance de ele voltar de Dublin
antes do amanhecer.
Querido Tom,
Sei que tenho pisado na bola com você nas últimas semanas, eu assumo.
Estou aqui para pedir perdão, mas antes que me negue isso, quero que
considere o que passamos juntos, nossa amizade era a melhor coisa que me
aconteceu ao sair de meu país, mas agora é o que mais consome minha
tranquilidade, então, por favor, me perdoe. Vamos deixar as nossas
diferenças de lado e seguir em frente juntos?
PS. Considere também o fato de o meu inglês não ser tão bom quanto
deveria, mas eu arrasei nessa carta.
I cried for you on the kitchen floor... a música de Amy Winehouse nunca
fez tanto sentido quanto naquele momento.
Senti uma necessidade absurda de falar com alguém, estava com raiva de
Edward, mamãe, Karola, mas ainda havia Drake. Ele não me julgaria por
nada, eu tinha certeza que podia contar com ele, mas eu não tinha mais
celular.
Encontrei uma cabine telefônica depois de dobrar à esquina. Corri até ele,
torcendo para que funcionasse, e funcionava. Coloquei uma moeda e disquei
o número dele que eu sabia de cor, mesmo bêbado. Não fazia ideia de que
horas eram em Liverpool, mas sabia que ele me atenderia. Nem demorou
muito.
— Sim, sou eu, Drake, feliz natal! — Falei animado, mas minha voz era
falha.
— Você bebeu?
— Está difícil Drake, eu tenho tentado sobreviver aqui, mas a cada dia
fica mais difícil, não sei se posso aguentar por mais tempo...
— É claro que aguenta mano! Não gosto dessa conversa, você sabe que
pode contar comigo sempre. Não me importo com o que você está se
metendo, apenas saiba que você sempre vai poder contar comigo Tom, venha
para Liverpool se quiser, eu vou cuidar de você e...
— O que é isso Thomas? Uma despedida? Seja o que for que esteja
planejando, não vá em frente. Você tem a mim, eu posso te ajudar, mas não
faça nenhuma besteira, por favor! Você só bebeu demais...
— Não se preocupe com isso Drake, eu só estou bêbado. Você sabe que
posso ser um pouco dramático, de vez em quando.
— E bota dramático nisso!
— O que foi?
Ouvi-lo dizer isso me trouxe um pouco de paz, mas não durou muito.
Comecei a sentir o frio da madrugada, apesar de estar suando, o que
ultimamente acontecia com frequência e só parava quando eu usava o pó.
Eu disse a Drake que estava tudo bem, mas não estava. Só queria deixá-lo
tranquilo.
Injetei em mim, mais de uma vez com algumas pausas. Entrei em transe,
mas não parecia ser o suficiente, eu queria mais, meu corpo pedia por mais, o
máximo que eu pudesse ter, não hesitei.
Corri para fora do quarto, mas minhas pernas falharam e caí no corredor,
virei-me para cima, encarei o teto enquanto minha respiração tornava-se cada
vez mais fraca, o peito ardia. Ouvi algum barulho, mas àquela altura já estava
desorientado, não conseguia lembrar onde estava, tentei gritar por ajuda, mas
minha voz se perdeu na minha mente, que começou a escurecer lentamente.
Entrei em pânico.
Não dei ouvidos a ela, o suor frio escorria por meu corpo e algo dentro
de mim se revirava, o problema não estava apenas em minha cabeça, mas no
corpo todo.
***
Ela estava certa, durante os cinco dias seguintes eu passei por um inferno.
Tinha crises de ansiedade, não parava de suar, chorava muito, me contorcia
de dor, vomitava, não dormia, mal conseguia comer algo, a única coisa que
parecia ser aceito pelo meu organismo – que implorava por uma dose do pó –
foi água. Recebi isto à visita da trindade do curso de medicina da UC, Neil
Fechín, Derry Conleth e Catriona Gobinet em pessoas. Foram três longos
sermões, por sorte eu não estava bem e mal entedia o que eles falavam, mas
no fim de tudo, graças a eles, eu me livrei de problemas maiores com a
polícia.
— Ano novo?
— Hoje é o primeiro dia do novo ano. Desculpe, esqueci que você estava
um pouco perdido no tempo. O rapaz que te trouxe não saiu da sala de espera,
nem mesmo ontem, há mais dois rapazes e uma moça com ele. Não quero ser
inoportuno, mas talvez ajudasse se o senhor permitisse que eles o vissem,
pelo menos por alguns minutos...
Fechei a cara.
— Olá — eu disse.
— Olá Thominhas. Eu não sabia se devia vir, mas é ano novo, você
sabe...
Elise logo nos fez rir com seu jeito brincalhão-irresponsável de ser.
— Fico feliz que esteja melhor Thomas. — Duane disse com olhos
sinceros.
Assenti para eles sem saber o que falar, afinal antes daquilo, nós não
estávamos nos falando, mas Konstantin começou a chorar do nada, dando
altos soluços, cortando o silêncio e surpreendendo a todos nós.
Ele veio até a mim na cama, subiu e me abraçou com tanta força que
chegava a doer. Ele resmungou algo em russo, mas logo voltou a falar nossa
língua, porém não entendemos nada do que ele tentou dizer por cima do
choro.
— Ele nos contou que esteve lá, mas você se irritou por conta do
namorado dele, mas ele o dispensou e resolveu voltar para tentar te convencer
a deixá-lo passar o natal contigo, mas você já estava... enfim, então ele fez o
que podia e chamou a emergência, foi assim que você veio parar aqui.
Ainda me sentia tão humilhado que não podia dizer obrigado por ter me
salvado. Eu não queria ser salvo, seria melhor se ele não tivesse aparecido.
Teria dado um fim a tudo isso, mas ele estava mesmo assustado. Konstantin
se importava comigo, ele era meu amigo, apesar de tudo. Eu jamais o
distrataria.
Então coloquei meu braço ao redor de seu corpo e mantive bem apertado.
***
Eles foram embora ao anoitecer, foi quando Louis retornou para ver se eu
precisava de algo.
— Sim, não podemos dar continuidade ao seu tratamento fora daqui sem
a presença de sua família para conversar com o médico e aceitar o acordo
juntamente com a faculdade, por isso sua mãe e seu irmão estão vindo. Ele
também vetou as visitas de alguém chamado Rixon Jason, algo assim.
— Rixon Lenn James! Ele não pode fazer isso, eu sou maior. Tenho total
controle sobre minha vida, posso decidir quem vem me visitar...
— Desculpe-me Sr. Thompson, mas você teve uma overdose e está num
leito de hospital, o que te torna vulnerável. Seu irmão é o responsável, ele
decide.
— Eu não aceito isso! — Gritei e tentei ficar de pé. Pelo rosto assustado
de Louis, eu sabia que tinha exagerado, mas ainda assim continuei.
Porém, ele injetou algo em mim, o que me deixou calmo antes mesmo de
poder tentar fazer qualquer outra coisa.
Mamãe e Edward.
— Eu não vou recebê-los — falei decidido. Não era mais Louis quem
cuidava de mim pessoalmente, ele certamente estava de folga ou algo do tipo,
não perguntei.
— Com todo respeito, você devia ouvir o absurdo que está dizendo.
***
Eles já tinham tentado me visitar três vezes e não sei o que o enfermeiro
tinha inventado, mas eu tinha certeza de que ele estava me ajudando como eu
havia pedido. Mas a julgar pelo barulho que me despertou naquela tarde
chuvosa de janeiro, meu sossego estava prestes a acabar.
— Podem deixar, eu estou bem. — Falei, afinal ele não desistiria de falar
comigo.
— Você não queria nos ver. Depois de tudo! — Ele parou por um
momento, então se aproximou. — O que diabos nós significamos para você
Thomas? O que eu sou para você? Um brinquedo? Algum objeto? Você
brinca conosco como se não se importasse com o que nós sentimos! — Algo
na expressão dele me deixou assustado.
— Como isso te atinge se eu é que sou filho daquele homem. Eu, não
você! Entenda Thomas, isso nunca teve nada a ver com você!
— Tem a ver com Max, então também me envolve. Você é que está
sendo egoísta!
— Você não tem o direito de me acusar de nada Thomas. Tudo o que tem
feito é se rebelar, fugir. Max, Max, Max. Adivinha? Ninguém se importa! Ele
está lá sendo bem cuidado e tem chances de acordar, enquanto isso você está
aqui transformando sua vida numa grande merda! Existem diferenças entre
tornar a vida suportável e acabar com ela, com certeza você não escolheu a
primeira opção. Você é só mais um de tantos rebeldes sem causa. Thomas, eu
olho para você agora e a única coisa que sinto é vergonha! Vergonha de ser
irmão de alguém como o que você se tornou... aposto que Max sentiria o
mesmo se acordasse.
Eu ainda estava fraco, minhas mãos tremeram ao ouvi-lo, tentei não dar o
braço a torcer, mas eu estava prestes a desabar. Porém, foi ele quem desabou
primeiro.
Fechei os olhos para segurar as lágrimas, mas não adiantou. Ele tinha
razão, se não fosse por isso, eu jamais teria um irmão mais velho tão
maravilhoso quanto ele.
— Você precisa falar com ela e resolver isso Thomas, eu vou chamá-la
— Edward decidiu.
— Edward, espere! — Falei antes que ele saísse. — Venha até aqui —
chamei.
Nos abraçamos.
Nos soltamos.
— O que foi agora Tom? Você não vai desistir de conversar com ela, vai?
— Perguntou começando a ficar incomodado.
— Não é isso. Eu quero que você me prometa que vai deixar Lenn James
me visitar...
— Não posso prometer isso. Ele é uma ameaça à sua saúde, você pode
recair e não vou deixar que isso aconteça — disse decidido.
Revirei os olhos. A última coisa que eu queria era usar o pó, embora meu
corpo inteiro ainda implorasse por isso.
— Eddie, eu preciso falar com ele. Aposto que ele tentou me visitar e não
permitiram, ele deve estar uma fera. Nós temos algo, eu não posso
simplesmente desaparecer. Precisamos conversar, colocar os pingos nos "is"
como dizem. Prometa que vai trazê-lo aqui, é importante — implorei.
— Ok Tom, mas uma coisa de cada vez. Vou chamar a mamãe — disse e
saiu.
***
— Oh querido!
Ela correu até onde eu estava e me deu um abraço de urso, ou melhor, de
mãe-ursa. Me prendeu por um longo momento nos seus braços e achei que
não fosse mais soltar. Eu ficaria assim a vida inteira se fosse possível, mas
assim que acabei de pensar nisso ela se afastou enxugando uma lágrima e
arrastou uma cadeira até minha cama.
— Não vou te dar um sermão por isso, fique tranquilo. Pelo que Edward
tem dito, é você quem deseja fazer isso, então aqui estou...
— Você sabe que quando eu e seu pai nos casamos, éramos bem pobres.
Tínhamos muito amor um pelo outro, mas às vezes só o amor não é
suficiente. Ele tinha dois empregos e ainda assim não estava dando conta de
todas as nossas despesas, foi quando decidi trabalhar.
"No início ele ficou relutante, é claro. Você sabe como seu pai é
antiquado, mas viu que poderíamos viver com menos preocupações se eu
trabalhasse e acabou aceitando. Procurei por anúncios e vi que algumas
famílias em Heavenland Garden precisavam de uma empregada, governanta,
como queira chamar. Fui entrevistada por algumas senhoras esnobes e acabei
indo parar na casa dos Dodger.
"Eles nunca estavam em casa, então não era muito difícil dar conta de
tudo. Mas acontece que durante as férias, Stela não conseguiu encontrar
tempo para voltar para casa, mas Mark conseguiu. Ele passou todo o verão
em casa, o que era muito raro. Mark era um homem bom naquela época, se
sentia muito sozinho, eu também. Seu pai nunca estava em casa. Nós
começamos a nos aproximar, não como patrão e empregada, mas como
amigos, porém um dia eu deixei cair um vaso enquanto espanava a mesinha
de canto da sala e ele veio me ajudar, eu fiquei toda nervosa por ter quebrado
algo, mas Mark me tranquilizou, estávamos tão próximos e... aconteceu. Nós
nos beijamos.
"Houve estranheza por um tempo, depois conversamos e decidimos que
aquilo nunca mais aconteceria, mas eu estava sempre lá e ele também, foi
inevitável. Mark estava no banho e eu achei que ele tinha saído, comecei a
arrumar o quarto quando de repente a porta do banheiro foi aberta e lá estava
ele completamente nu. O que aconteceu depois foi outra coisa inevitável e
não parou de acontecer até que seu pai começou a desconfiar.
"Eu devia estar cega, mas Mark me dava todo o carinho que Thomas
nunca me deu. Seu pai começou a desconfiar, pois eu estava muito distraída e
não... você sabe. Eu não queria fazer amor com seu pai. Negava isso a ele e
esse foi meu maior erro. Certo dia percebi que minha menstruação estava
atrasada e entrei em pânico, contei a Mark e ele não ficou assustado.
Continuamos a ter nossos encontros até que um dia Thomas entrou na casa
sorrateiramente e nos flagrou.
"Seu pai sempre teve um dom de saber como tirar coisas "boas" de
situações adversas, ele teria matado Mark e a mim também se eu não tivesse
revelado que estava grávida.
— Bem... seu pai me deu uma surra, mas acabou ''me perdoando", na
verdade ele só não se separou porque seria um escândalo na cidade. Ele
ameaçou Mark, contou tudo a Stela na primeira oportunidade que teve,
tornando tudo ainda pior.
"Ele criou um acordo estranho em que os Dodger teriam que nos sustentar
pelo resto da vida, além de garantir o futuro de Edward. Eles aceitaram, caso
contrário, seu pai teria anunciado que eu fui estuprada por Mark e isso levaria
a carreira dele e da mulher a baixo. Então seu irmão nasceu e foi a melhor
coisa que me aconteceu, ele não parecia em nada com Mark. Seu pai ficou tão
encantado com ele que acabou deixando tudo de lado, nós voltamos a ter
relações, e acabei engravidando de Karola, depois veio você e foi quando os
Dodger também anunciaram que estavam esperando um bebê.
"Por isso seu pai me tratava tão mal, e eu sempre fui submissa porque me
sentia culpada. Seu Tio Ben me encorajava a largá-lo, dizia que eu podia
levar todos para morar com ele, mas quando pequena, fui ensinada que a
família era a coisa mais importante na vida de uma mulher, sei que são ideias
bem retrógradas, mas eu cresci assim e, para mim, não havia nada mais
importante que nossa família, por isso passei a vida aguentando Thomas,
porque eu havia estragado tudo... depois que Michael cresceu e começou a
desenvolver o problema, eu tive certeza de que aquilo era um castigo por eu
ter sido uma péssima mulher. Aceitei sua morte, pois achei que eu merecia
sentir toda aquela dor.
— Mas isso é um absurdo mãe! Michael não era um castigo, ele era só
uma criança inocente vítima de uma doença rara. Ele não era um castigo.
— Continuo achando que minha vida foi uma mentira mãe. Tudo parece
ter sido premeditado. Minha amizade com Max foi um acordo...
— Podia ter sido querido, mas não foi. Você não deixou que fosse,
quando se envolveu com Max — ela constatou.
Ela enxugou outra lágrima. Sua voz estava um pouco fraca, devia ser
difícil relembrar tudo isso, mas ela não hesitou em continuar.
— Foi pouco antes de se formar. Ele estava procurando um documento e
achou que estivesse no meu quarto, foi quando ele encontrou o contrato do
acordo que o seu pai fez com Mark... ele ficou desolado e se já não tivesse
passado em todas as disciplinas, teria desistido. Nós brigamos, ele ficou
muito, muito mal. Mas nunca quis que ninguém soubesse disso,
principalmente você. Ele quis te proteger disso tudo pelo maior tempo que
conseguisse, pois tinha medo de que você não o visse mais como irmão. Ele
nunca me contou isso, mas eu sei — contou.
— Eu nunca...
— Eu sei, eu sei. Mas o medo faz a gente tomar decisões que não são
movidas pela noção de certo e errado, é apenas instinto. Eu, melhor que
ninguém, entendo bem disso.
— Oh querido, está tudo bem, nós vamos cuidar de você, tudo vai
melhorar logo.
***
Eu tive alguns sonhos bem loucos, o médico responsável pelo meu caso
disse que era normal por eu ainda estar e abstinência. Na maioria deles eu via
Max e conversávamos, mas ele ainda estava morto.
— Sabe, eu estive pensando em tudo que você tinha dito sobre Matteo e
tomei uma decisão — disse de repente. — Eu terminei com ele e descobri
que você tinha razão, ele é patético.
— Lamento, mas ele era mesmo. E como você está se sentindo sobre
isso?
— Nenhum término é fácil, você deve saber. Mas estou bem ou vou ficar.
Ah! Eu quase ia me esquecendo. Te trouxe uma coisa — disse ficando
animado de repente, mas talvez estivesse apenas fugindo do assunto.
Ele abriu sua mochila e tirou uma pequena caixa embrulhada com papel
rosa.
— Claro que precisava, você destruiu o outro. Ah, tem outra coisa. Duane
e Elijah se formarão esta semana. Eles queriam que nós comparecêssemos,
mas acho que você não vai poder ir ainda. Estão vendo a possibilidade de
você fazer suas recuperações aqui...
— Ei, eu tenho uma visita para você Thomas. Aquela que me fez
prometer.
— Claro.
Lenn James mal entrou no pequeno quarto e seu perfume já o inundara.
Eu queria beijá-lo e dizer que senti sua falta, mas ele parecia irritado demais
para aceitar. Estava vestido com algo novo, talvez tivesse feito compras em
Dublin.
— Lenn...
— Eu não tive notícias suas até seu irmão louco entrar no meu quarto me
insultando para pegar todas as suas coisas. Cheguei de Dublin dois dias
depois do ocorrido Thomas, e eu não sabia de nada até te procurar no grupo.
Fiquei desesperado, achei que você fosse morrer.
— Nada disso é culpa minha Lenn, não me deixaram te ver. Dizem que
você é perigoso para o meu tratamento.
— Perigoso, eu? Você só precisava ter dito não, e jamais teria usado.
— Eu sei disso, não te culpo, mas não quero ter uma recaída. Eu
finalmente fiz as pazes com minha família e quero me livrar disso, mesmo
que isso signifique que eu não possa mais te ver — falei.
Doía ter que dizer aquilo, mas precisava ser dito. Eu finalmente tinha
entendido o que aconteceu com minha mãe em seu passado obscuro, havia
entendido também que, como Eddie tentou me dizer tantas vezes, toda a
história não dizia respeito a mim, mas sim a eles.
— Pare Lenn, talvez eu seja mesmo fraco, não tenho vergonha disso. A
única coisa da qual tenho certeza, é que eu não quero me afundar ainda mais
nesse barco — concluí.
— Engraçado, sabe? Eu vim aqui para te dar uma boa notícia. A Hoper
amou minha canção e estamos fechando contrato, sou a aposta deles para este
ano, mas agora... me sinto estranho. Você estragou tudo.
Lenn foi para a saída, mas antes de abrir a porta se virou na minha
direção mais uma vez.
— Você ainda vai ouvir falar muito de mim, Thomas. Tanto, que vai ser
insuportável lembrar que me abandonou, pois eu era a sua melhor opção.
Agora não sou mais nada. Espero que tenha sorte na sua recuperação, ou se
afunde de vez nesta merda.
E foi com uma batida na porta que Rixon Lenn James me disse adeus.
— Você tem certeza de que ficará bem, querido? Não quer ir conosco?
— Não se preocupe mãe. Ficarei bem, agora que fiz as pazes com todo
mundo e estou de volta à Ceatha, logo Elijah e Duane irão embora e serei só
eu e o Konstantin. Ele cuida bem de mim.
— Eu bem que queria, mas tenho três provas finais amanhã e só ficarei de
férias se eu passar — expliquei, mas ele já sabia disso.
— Não vai ser fácil Tom, mas sempre se lembre de quem você é. Te vejo
em breve.
Eles foram andando com suas malinhas até sumirem da minha vista.
Konstantin esperava lá fora, já tentando chamar um táxi para não perdermos
tempo, e ele conseguiu. Assim que o encontrei, já estava pronto para partir.
— Ei, vocês não têm mais aulas, por que estão acordados tão cedo?
— Parece estranho, mas acredite. O avô dele sabia bem o que dizia —
Elijah confirmou.
Kon sentou ao meu lado, encostei minha cabeça no ombro dele.
— Está nervoso?
— Cara, eu não queria que vocês fossem embora. Ainda não me perdoo
por ter perdido as duas formaturas — falei triste.
Assentimos.
***
Foi um dos cafés da manhã mais felizes entre nós e talvez isso tenha me
animado. Havia quatro pessoas na sala quando entrei, o professor já estava
aguardando. Sentei na primeira fila, bem próximo ao professor, minhas mãos
tremiam, mas quando ele entregou a avaliação, respirei fundo e dei o melhor
de mim.
— Ora, ora...
— Drake, mano...
— Olha, eu estou muito bravo com você! Mas fico feliz que finalmente
tenha ligado.
— Estou bem, acho que não vou passar as férias em casa. Estou com
amigos num café, em Liverpool. Encontrei uns loucos como eu e eles
também ficarão por aqui nas férias, então fazemos companhia uns aos outros
— contou.
— Que bom. Hoje estou fazendo umas avaliações, me deseje sorte. Meu
futuro depende disso.
***
— Estou cansado...
Graças ao meu cansaço, pela primeira vez em semanas dormi como uma
pedra. Sem sonhos ou pesadelos, apenas dormi e quando acordei já eram dez
da manhã. Corri para o computador no térreo e me controlei para não dar uma
pancada nele por demorar tanto a ligar.
— Ei, hoje é nosso último dia aqui, acho que devíamos comemorar! —
Disse Duane olhando para Elijah.
Nós, com certeza concordamos. Elijah ligou para Elise, que minutos
depois apareceu com um carro diferente, seu porta-malas estava bem
abastecido com vodcas e várias outras bebidas. Carregamos tudo para dentro,
afastamos os móveis, Duane colocou música no computador e logo
estávamos dançando pela sala.
Não demorou muito a estarem tontos, mas eu tomei apenas água, não
podia beber devido ao tratamento. Além disso, o álcool podia fazer o meu
desejo pela droga voltar mais depressa.
Apesar de ser um tipo de despedida, foi um dos nossos dias mais felizes
juntos.
***
No dia seguinte eles estavam ressacados, Elise levou todos nós para o
aeroporto. Ela não iria junto, ainda tinha alguns semestres na UC antes de se
formar. Ela estava toda chorona por ter que deixar o irmão e, para minha
completa surpresa, Elijah também estava.
— Claro que nos damos, somos gêmeos — Elijah disse abraçando a irmã.
— Apavorado, Thomas.
— Claro, você tem o amor da sua vida ao seu lado. Aproveite, nem todo
mundo tem essa sorte.
Principalmente eu.
— Escutem, você são tudo o que me resta aqui. Eu quero ficar perto de
vocês, assim me sentirei perto do meu irmão. Estive pensando em me mudar
para a Ceatha... vocês estão precisando mesmo de novos membros.
Era uma causa perdida, não havia como contrariar Elise Riley. No fim do
dia ela retornou com cinco malas e exigiu o quarto dos meninos, foi tomando
conta do espaço como se já morasse conosco há anos. Só nos restou aceitar.
***
Hesitei um pouco, mas talvez pudesse ajudar. Não só a mim, mas também
os que me ouviriam. Resolvi aceitar.
"Chegando em Cork, eu estava muito abalado. Sentia uma dor tão forte
dentro de mim, que precisava me bater para amenizar. Foi quando eu me
envolvi com alguém e esse alguém disse que havia outras formas de me
machucar, eu não havia entendido, mas aceitei sua conversa.
Eu tinha lágrimas nos olhos quando terminei o meu resumo dos fatos
pelos quais passei nos últimos dias. Não queria ter que relembrar. Os
membros do grupo bateram palma.
— Ah, você não soube? Ele foi embora. Trancou o curso, deixando
automaticamente o grupo e partiu para Dublin, está fechando contrato com
alguma gravadora grande, pelo que eu soube.
— Que bom, espero que ele tenha sorte — eu disse, me sentindo culpado.
Mas era um desejo sincero, ele merecia ter um pouco de sorte.
***
E foi isso que fiz, saí andando sem rumo, até decidir ir para o Fitzgerald.
No caminho falei com Drake, depois recebi ligações de mamãe, Karola e
Henry. Todos eles pareciam estranhos, como se tivessem armando uma festa
surpresa, o que era impossível, já que eu estava bem longe.
— Claro que não irmãozinho. Jamais esqueceria, por isso estou ligando,
eu e Alyssa te desejamos muito sucesso, e tudo que existir de melhor nesse
mundo, pois você merece.
— A única surpresa que seria tudo isso que você está dizendo seria se...
bem, você sabe. Não quero parecer patético nem nada...