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Prólogo

Adeus
EU JÁ NÃO SABIA MAIS O QUE FAZER. COMO PODERIA
ESCAPAR DE toda a dor? A dor da verdade, a dor da decepção ao descobrir
que tudo aquilo em que eu acreditava não passava de uma farsa premeditada.
A única verdade em tudo era meu amor por Max, mas nem a isso eu podia me
segurar mais.

Era uma tarde ensolarada de verão em Cambridge quando entrei em casa,


nada ali me parecia mais acolhedor e não era só por termos nos mudado de
Heaven Wood para uma casa bonita que não tinha nada a ver conosco. Havia
muito mais por trás disso.

Fui até o quarto de Edward, ele devia estar de repouso após o transplante
de rim, mas já havia voltado à faculdade e, de certa forma, a ausência dele
facilitava um pouco as coisas para mim. Abri a gaveta de sua escrivaninha e
tirei todos os papéis, eu sabia que o que eu procurava estaria lá e não
demorou muito para encontrar.

Cerca de cinco envelopes de faculdades distintas, incluindo Cambridge,


mas esta era a última para qual eu escolheria me submeter à admissão, eu não
queria estar perto de ninguém. Olhei os outros quatro envelopes:
Universidade de Londres, Compton, Oxford e Liverpool. Antes de tudo
acontecer, Drake e Edward mandaram cartas de admissão em meu nome e
por incrível que pareça, eu fui aceito em todas elas para o curso de medicina,
mas eu não iria a lugar algum enquanto Max estivesse em coma.

Todos acharam um desperdício, mas não podiam me obrigar.

A Universidade Compton ficava na Irlanda, era a mais distante das cinco


instituições e ao ler a carta, percebi que o prazo terminaria em dois dias.
Ainda havia tempo, talvez eu ainda pudesse me livrar de tudo.

Naquele mesmo dia, marquei um encontro num café com Karola, Drake e
Henry, um lugar onde mamãe não nos ouviria. Eles eram os únicos com
quem eu ainda falava. Contei-lhes o meu desejo de me matricular e ir embora
o mais depressa possível, Karola ficou relutante, mas Drake e Henry
aparentemente me entenderam, ou pelo menos respeitaram minha decisão. O
peso que eu estava carregando nas costas era maior do que eu poderia
suportar.

— Você tem certeza disso? — Karola perguntou me olhando nos olhos de


uma forma profunda como nunca havia feito antes.

— Sim, eu tenho.

Nem pensei duas vezes antes de responder.

— Denise e Eddie não vão concordar muito com isso. — Drake lembrou.

Eu dei de ombros.

— Depois do que eles fizeram, o que acham ou deixam de achar pouco


importa. Eu só quero ir embora, não consigo nem olhar nos olhos deles...

— E quanto a Max? Vai mesmo deixá-lo? — Henry perguntou.

Foi como se ele tocasse em uma ferida aberta.

— Ele não vai a lugar algum, vai? Já se passou um mês e nem sinal de ele
acordar. Não perdi as esperanças, não o amo menos por isso, mas não posso
mais ficar aqui. Está sendo muito difícil acordar todos os dias e conviver com
a verdade. — Admiti.

Queria estar tão seguro quanto as palavras que saíam da minha boca.

— Se você tem certeza que quer isto, eu posso ajudá-lo com a parte
financeira. — Henry disse por fim.

Tive vontade de me jogar em seus braços e agradecer eternamente. Meu


cunhado era, sem dúvida, a melhor pessoa que já havia entrado em nossas
vidas, mas em vez disso apenas fechei os olhos e respirei fundo para manter o
controle, tudo era motivo para eu desabar.
— Cara, não gosto muito disso de você sair por aí sozinho, mas se vai te
fazer bem, mano, então você tem meu apoio. Logo eu também estarei indo.
— Drake disse, estava sério.

Agradeci a ele com o olhar.

— Então vamos correr contra o tempo. Se não quiser perder o prazo, terá
que embarcar amanhã.

***

Eu ainda não tinha falado com a Sra. Dodger desde que havia descoberto
a farsa entre nossas famílias, ela era tão vítima quanto eu, mas eu não queria
reabrir suas feridas, as minhas por si só já bastavam. Então fiquei em silêncio
quando entrei no leito de Max. Sentei ao lado dela, já era um hábito nosso.

Observei aquele corpo desacordado, seus traços que eu conhecia tão bem.
Estremeci, ele estava emagrecendo. Tão vulnerável, dependente de várias
máquinas que não paravam de ecoar diferentes zumbidos. Todas elas o
mantinham vivo.

— Olá Thomas.

A Sra. Dodger ergueu a cabeça sem ânimo. Sorri para ela, mas era algo
vago, mais como um movimento de lábio desprovido de qualquer alegria. Ela
suspirou e se endireitou na poltrona, fez menção para que eu sentasse ao seu
lado e eu o fiz.

— Você e Max possuíam uma relação muito... forte, não é Thomas? —


Ela perguntou tomando minha mão com delicadeza, falava como se
caminhasse por um campo minado.

Hesitei por um momento, mas fiquei tranquilo de repente. O Sr. Dodger


estava distante e eu tinha certeza que com ela eu podia falar abertamente.

— Sim, nós até fizemos um pacto de sangue. E, por favor, não fale como
se ele estivesse morto, nós não possuíamos, nós possuímos uma relação muito
forte.
Ela pareceu me ignorar, mas não tirou os olhos dos meus.

— Thomas querido, eu quero que me escute bem. Eu entendo tudo o que


vocês tinham, ou tem, mas olhando do ponto de vista médico, ele pode
demorar muito a acordar. Por mais que me doa dizer isso, Max pode nem
chegar a acordar. Você não pode desperdiçar sua vida numa espera
angustiante e incerta. — Ela colocou um braço ao meu redor. — Você é
muito jovem para estar passando por tudo isso. Eu entendo, e ele vai
entender...

Eu comecei a chorar. Devido ao que aconteceu no passado, ela deveria


me odiar, mas era a pessoa mais compreensiva e a única que me entendia
perfeitamente. Por isso chorei sentindo seu abraço e ela me manteve assim
por alguns minutos.

Resfoleguei antes de conseguir falar qualquer coisa.

— Eu ficaria, mas não consigo olhar para minha mãe ou para meu irmão.
Isso está além do que consigo suportar, sempre acordo desejando que o dia
acabe. Eu não queria que fosse assim, não queria deixar Max, eu prometi...

— Thomas, você fez o que pôde, pare de se culpar. Não me admira que
você tenha sido o único a ficar aqui, nunca o deixou. Max era muito popular,
mas os amigos que ele tinha não eram amigos como você...

Senti o meu peito arder.

— A senhora pode não gostar do que vou dizer, mas o que eu e Max
tivemos, temos, é muito mais forte e intenso que uma amizade. Nós
compartilhamos um...

— Um amor singular. Não precisa ser um gênio para perceber isso. Eu sei
que sempre fui ausente na vida dele, mas os pais conhecem os filhos, eu
sempre soube como ele era e também, apesar dos pesares, sempre me senti
feliz e grata por ele poder contar com você quando eu e Mark não estávamos
por perto. Eu sei que ele te ama muito, sempre amou. E só posso lamentar por
você ter que passar por isso, você é tão jovem, não merecia.
Ficamos pensativos por uns instantes.

— Eu estou partindo para a Irlanda amanhã, gostaria de me despedir.

— É claro. Leve o tempo que precisar, estarei lá fora. — Ela concordou.

Ela saiu lentamente e eu fiquei de pé, me aproximei dele e segurei sua


mão com cuidado.

— Max, eu preciso partir. Sentirei sua falta mais que tudo. — Resfoleguei
— Estou indo para Cork, na Irlanda, farei o curso dos meus sonhos, embora
minha vida seja um pesadelo. Algumas coisas ruins aconteceram, erros que
os nossos pais cometeram que atingem diretamente a nós dois, mas você não
precisa saber disso agora, apenas descanse. Estou indo viver o presente
sabendo que o terei no futuro. Eu o amo, você nem imagina o quanto me faz
falta. A vida é uma droga sem você. Está tudo muito difícil para mim, e sei
que pode piorar, mas peço que continue assim, estável, continue bem e
evolua aos poucos, não desista! Você estando bem, eu também estarei. Estou
indo enquanto você se recupera, mas eu te prometo Max, que eu vou voltar.
Independentemente do que aconteça, eu estarei aqui para testemunhar tudo.
Eu te amo, sempre vou te amar.

Fui acabando com o espaço entre nossos rostos, encostei meus lábios em
sua testa pálida. Eu era o calor e ele o frio.

Dei uma última olhada nele, fechei a porta do quarto e com lágrimas nos
olhos abracei a Sra. Dodger uma última vez, depois procurei a saída do
hospital. Não tornaria a vê-lo tão cedo, pensei.

***

Sempre ouvi dizer que despedida era uma coisa difícil de suportar. Eu,
particularmente já havia passado por algumas. Despedi-me do meu pequeno
irmão em seu leito de morte, despedi-me de Heaven Wood, do colégio, mas a
questão era que eu estava prestes a me despedir de tudo, da minha "família",
do meu país, do amor da minha vida. Max Dodger, o cara com quem eu
sempre sonhei dividindo um apartamento, um sorriso, uma cama, o cara com
quem eu me casaria e viveria o meu "felizes para sempre". Talvez
pudéssemos ter um cachorro ou um gato para chamar de Steve, acordaríamos
lado a lado todos os dias e quando eu acordasse na madrugada após um
pesadelo, ele estaria lá abraçado a mim para garantir que tudo estava bem,
que com ele eu estaria seguro. Mas tudo isso não passava de um sonho
bobo...

O pior de tudo era a incerteza do estado de Max, não tínhamos como


saber se um dia ele acordaria, ou quais seriam suas sequelas. Tudo o que eu
queria era vê-lo abrir os olhos naquele leito e me chamar de Tomtom.

Já fazia alguns – longos – minutos que me tranquei no banheiro do


aeroporto. Foi o único lugar onde consegui acalmar meus pensamentos. Eu
estava tão nervoso e assustado, que vomitei até não restar mais nada dentro
de mim. Sentei no sanitário e chorei, eu não queria ter que ir embora, queria
ter uma escolha que não envolvesse deixá-lo, mas uma vez ouvi alguém dizer
que quando a gente perde alguém, a gente acaba se perdendo, e era isso que
estava acontecendo, eu estava me perdendo.

— Mano, você não pode passar a vida trancado no banheiro, seu voo
parte em alguns minutos. — Drake disse, estava à minha espera do outro lado
da porta.

Respirei fundo, mas não tentei falar. Minha voz se quebraria e eu voltaria
a chorar. Eu só não conseguia entender o motivo pelo qual a vida insistia em
me ferrar. Devia haver um milhão de idiotas piores que eu no mundo inteiro,
mas tudo só dava errado comigo.

— Eu não queria ir...

Destranquei a porta e saí, percebi que não estávamos sozinhos, mas


àquela altura pouco importava se algum desconhecido visse meu estado
deplorável. Drake pareceu sensibilizado, pois me abraçou. Sem
estranhamento, ele me abraçou e deixou que eu me segurasse ao seu corpo
firme. Então ele me afastou e segurou firmemente meu rosto com as duas
mãos. Encarei seus olhos, eram iguais aos meus, exceto pela visível tristeza e
decepção.

— Você é muito importante para mim, mano. Depois das coisas que
passamos juntos, a última coisa que eu queria na vida agora era que
ficássemos distantes, mas eu sei que se você continuar aqui, vai acabar
morrendo ou se matando. Seus olhos não brilham como antes, seu corpo está
magro, tão pálido quanto um cadáver. Você não dorme, pois tem pesadelos,
não se alimenta, pois não tem fome. Nem sequer presta muita atenção no que
acontece ao seu redor. Eu sei que Max era o seu mundo, mas o mundo não se
resume a Max, se é que me entende. Você acabou de fazer dezoito, tem uma
vida inteira pela frente, assim como eu. Se não quer encontrar outro cara,
tudo bem, ninguém está te pedindo isso, mas Tom... você precisa viver! Ele
vai continuar à sua espera, se reabilitando para quando você voltar. E já
chega de chorar, eu não quero ser contagiado com a sua emoção colorida.

Ele me soltou, encarei o chão. Eu tinha ouvido tanta coisa, entre elas, o
que eu considerava as piores de se ouvir, principalmente por que eu já as
havia ouvido após a morte de Michael: você vai se curar, você vai ficar bem,
tudo vai dar certo.

Estavam todos blefando, nada daria certo. Na verdade, nunca vi algo dar
tão errado. Eu nunca ficaria bem e, principalmente, nada nunca iria curar a
maldita dor que me dilacerava inteiro por todos os segundos de cada minuto,
de cada hora, de cada dia estúpido. Exceto, se ele acordasse...

— E se eu não estiver lá quando ele acordar, ou se...

— Se você pensar muito nisso, nunca vai sair daqui. Passaria a vida
vegetando junto a ele num leito de hospital. Eu não desejaria isso. Você é
muito inteligente, vai estudar e levar uma vida normal. Você conseguiu
aprovações incríveis, então... pelo menos tente. Um semestre ou dois no
máximo, mas tente. Por mim, por você, pelo Max. — Drake insistiu.

Assenti, afinal eu já havia tomado minha decisão.

No alto-falante, uma moça com voz mecânica anunciou meu voo. Drake
jogou um braço ao meu redor e me arrastou pelo saguão até o embarque,
onde encontrei Karola e Henry.

Abri um sorriso para eles, me forçando a parecer bem.


— Pensei que ia desistir. — Karola disse ao me abraçar.

— Não.

Afastei-me.

— Se cuide Tom, você pode contar comigo para o que precisar. — Disse
Henry com seu tom responsável que me soava como um pai, que nunca tive.

Nos abraçamos de forma atrapalhada.

— Vou sentir saudade de todos. — Aleguei.

Abracei Drake por último e foi quando o larguei que vi a figura de


Edward se aproximando, ele acabara de chegar. Tinha uma mão na barriga,
como se estivesse cansado pelo esforço. Parte de mim queria abraçá-lo, outra
parte não queria vê-lo nem pintado de ouro.

Drake começou a tentar contê-lo, mas não foi preciso. Antes que ele
chegasse perto o bastante para fazer o que planejava, eu fui embora sem olhar
para trás.

Meu voo ia de Londres à Cork, com uma conexão em Dublin. Assim que
me despedi e encontrei meu assento no avião, junto à janela, senti o estômago
embrulhar. Queria me trancar em outro banheiro para chorar ou vomitar um
pouco mais, mas não podia.

Quis ignorar a cidade ficando para trás conforme o avião decolava, então
fechei a proteção da janelinha, fechei os meus olhos e comecei a repassar na
mente algumas lembranças.

Primeiro, quando Edward apareceu sorrindo no hospital. Tinha um


envelope em mãos e um sorriso enorme iluminando seu rosto. Eram respostas
das universidades para as quais ele me inscreveu sem me consultar. Todas
elas eram universidades conceituadas, muito concorridas, mas eu não sentia a
mínima vontade de ingressar em qualquer uma. Eddie abriu aquele maldito
envelope e anunciou minhas aprovações, mamãe estava ao seu lado,
obviamente. O que eles não esperavam, era a minha reação. Eu recusei, os
ameacei, disse que sairia de casa e moraria no hospital se eles insistissem,
enfim, eu bati o pé. E acabou funcionando.

Eu não sairia de perto de Max por nada. Talvez até pudesse aceitar um
emprego ruim, faria alguns cursos... enfim, deixá-lo estava fora de questão,
mas isso foi antes de eu descobrir a verdade.

Algumas semanas após o acidente, Max teve mais uma complicação.


Seus rins estavam falhando e se isso ocorresse, logo outros órgãos falhariam.
Ele precisava de um transplante urgente, mas com isso veio outro problema.
Stela era hipertensa, além de ter outros inúmeros problemas de saúde, Mark
era diabético e fumante, o que já os desclassificavam instantaneamente da
liste de doadores. Para a doação ser feita com a urgência necessária, era
preciso que o doador fosse parente de até quarto grau do receptor. Stela era
filha única, os irmãos de Mark moravam na Grécia e jamais abandonariam
suas vidas boêmias e egoístas para ajudar um parente, por mais próximo que
ele fosse.

Perguntei se eu poderia ser doador, mas não poderia sem uma ordem
judicial. Levaria semanas para conseguirmos uma. Além disso, precisaríamos
fazer vários exames para determinar a compatibilidade e, por fim, ainda
haveria riscos maiores de rejeição.

Mas não acabou por aí, quando questionei a Sra. Dodger sobre o que ela
pretendia fazer para contornar a situação, ela simplesmente me obrigou a me
afastar. Disse que sabia o que fazer, mas eu precisaria dar um tempo a ela,
aos dois. Eu tinha sorte de poder estar ali todos os dias, então não me opus.
Aceitei.

Voltei para Cambridge e passei alguns dias em nossa casa monótona.


Mamãe basicamente vivia para as tarefas domésticas, Edward para a
universidade, Karola para Henry e vice-versa e Drake para me "bajular".

Até deixei de pensar no meu próprio umbigo e tive algumas conversas


com ele sobre seu futuro. Edward também o tinha ajudado com as cartas de
admissões e ele aguardava ansioso pela resposta, queria estudar música em
qualquer lugar que o aceitasse. Eu sabia que ele seria aceito.
As coisas foram ficando estranhas em casa a partir do momento em que
percebi a ausência de Edward, ele alegava estar muito ocupado com seus
trabalhos, mas eu o conhecia bem o suficiente para identificar a mentira em
seu tom de voz ou até mesmo em seus olhos. Ele então avisou que passaria
alguns dias fora e se foi, coisa que nunca tinha feito.

Mamãe, que – assim como eu – nunca foi boa em esconder suas aflições,
andava muito nervosa, cheia de olheiras, com uma alegria forçada e olhos
vermelhos. Karola nunca estava em casa, Drake andava desconfiado e eu não
tinha notícias de Max há um bom tempo e cansei de esperar. Tinha medo de
que eles estivessem escondendo uma piora ou até a morte dele.

E aproveitando-me de uma distração de ambos, saí de casa cedo, antes


que acordassem. Voltei à Londres e fui barrado na recepção do Grand
Hospital. Me desesperei, é claro, comecei a chorar, xinguei todo mundo e fui
colocado para fora pelos seguranças, mas não saí de lá e fiz um inferno até
que a Sra. Dodger finalmente apareceu com uma expressão cansada e liberou
minha passagem. Até me senti culpado por aborrecê-la quando ela já tinha
que lidar com tantas coisas, mas foi necessário.

— Então? Desculpe, mas eu acho que a senhora me deve uma explicação.

Não sei como tive coragem de dizer isso para ela, mas disse.

— É um pouco complicado...

— Ele morreu? — Questionei curioso e com medo da resposta.

— Não, ele está bem.

— Não é complicado, então. — Concluí.

Mas eu estava bem enganado. Sempre achei que minha vida era
complicada, mas até aquele momento eu nem fazia ideia do quanto ela podia
ser pior.

Stela Dodger contou-me que Max havia passado pelo transplante e que
tudo ocorreu incrivelmente bem. Fez certo mistério ao falar sobre o doador e
eu percebi logo de cara. Insisti outra vez, disse que queria conhecê-lo e
agradecer pessoalmente. Ela relutou, mas sabia que eu encontraria uma forma
de fazer isso sozinho, então cedeu, mas antes me disse uma coisa que eu
nunca esquecerei.

— Se é isso que você quer Thomas, não vou impedi-lo. Mas saiba que
sua vida vai mudar completamente assim que você o ver.

— Estou preparado. Nada pode ser pior que perder Max.

Porém eu estava completamente enganado. Stela me guiou pelos


infindáveis corredores até a sala onde o tal doador repousava, prestes a
receber alta. Preparei meu melhor sorriso para quando o visse, mas quando a
enfermeira autorizou nossa entrada, quem estava sobre o leito era Edward,
meu irmão.

***

— Senhor, precisa de algo?

A aeromoça interrompeu meu devaneio. Ela empurrava um daqueles


carrinhos repletos de comidas com gosto de nada.

— O que preciso você não tem. — Falei de forma brusca.

Ela sorriu forçadamente, o sorriso típico de quem só não lhe desfere um


soco por que é paga para aturar babacas. E eu estava me portando como um.

— Tenho água, suco de frutas, biscoito de leite, balas e bolinho de


laranja. Tem certeza de que não posso ajudá-lo? — Ela insistiu.

Algo nela me lembrou Loren, talvez tenha sido a falsidade na voz ou seu
cabelo incrivelmente parecido com o dela, não sei... respirei fundo.

— Sim, tenho certeza.

Respondi me segurando para não dizer "sim, a menos que você possa
trazer meu Max de volta!". Ela sorriu mais uma vez e seguiu seu rumo.
Decidi abrir a proteção da janela, Londres já não podia ser vista lá embaixo,
senti outro embrulho no estômago, tudo o que eu via eram as nuvens. Logo
cheguei à conclusão de que minhas raízes haviam sido arrancadas.

Fechei os olhos e fiz uma pequena prece, só não sei bem a quem.

"Max, eu te digo adeus agora, mas em breve estarei te dizendo um oi, e


ouvirei sua resposta. Eu te amo, voltarei assim que puder."
Capítulo 1
Cork
FIQUEI DESLUMBRADO COM DUBLIN, ERA TÃO LINDA COMO
NOS catálogos que li enquanto estava no avião. Aterrissamos e passamos
alguns minutos no aeroporto, tudo o que vi da cidade foi pela janela. Logo
embarquei novamente, o voo mais curto, porém tão chato quanto o anterior.

Eu vi Max, nós estávamos no Heaven Park e o dia estava incomumente


ensolarado, estávamos próximos da balaustrada, jogando migalhas de pão
para os corvos. Ele estava sem camisa e os raios de sol davam certo brilho à
sua pele bronzeada.

— Eu te amarei para sempre — ele disse.

Eu sabia que era verdade, podia sentir. Estava prestes a responder, mas
uma gota de sangue escorreu de seu nariz, ele tossiu e logo começou a
vomitar, jorros de um sangue grosso e escuro, quase preto. Quis ajudá-lo,
mas era tarde, ele caiu no precipício.

Acordei, a aeromoça estava me cutucando.

— Com licença senhor, nós chegamos — disse-me sorrindo.

***

Desembarquei no Aeroporto Internacional de Cork por volta das três da


tarde, estava nublado, mas o clima estava agradável, não era frio como na
Inglaterra. O aeroporto era lindo e não faltavam táxis à espera de passageiros
no lado de fora.

Tomei um deles e apontei para a Universidade de Cork no mapa que


imprimi do site da instituição, mas logo percebi que ele entendia meu inglês
perfeitamente, o que foi um alívio. Saltei no que deveria ser a Rodovia
College, mas após andar muito arrastando duas malas e tentando não me
perder, percebi que o taxista havia me deixado do lado oposto, na Rodovia
Ocidental e eu teria que adentrar o campus e procurar o departamento de
dormitórios para confirmar minha chegada.

Comecei a andar antes que escurecesse ou a chuva caísse. O suor já


escorria da minha testa. Saí da rodovia, entrei numa rua de apartamentos e ao
longe já podia ver alguns blocos, no fim da rua havia uma ponte sobre o Rio
Lee, que, pelo que eu pude ver no mapa, cortava o campus. Continuei
andando, não sabia ao certo para que lado ir. Os mapas, às vezes, só servem
para nos confundir ainda mais.

Senti uma vontade imensa de ligar para Edward, era ele quem me salvaria
em uma situação como a em que eu me encontrava, mas eu não podia falar
com ele. E levaria tempo até que eu conseguisse.

Uma gota de chuva caiu em meu nariz e foi como um déjà vu. Eu sabia o
que viria depois dela, pois já havia acontecido.

A chuva que caiu em seguida não me assustou, pelo contrário, foi como
uma boa recepção. Ela era algo que eu conhecia intimamente, uma velha
amiga. Não me movi, deixei que me tocasse, mas as lembranças que vieram
com ela trouxeram o sentimento de perda outra vez.

Caminhávamos na direção da trilha quando o sol nos surpreendeu,


surgiu tímido entre as nuvens roxas que se afastaram brevemente. Os raios
aqueceram nossas faces por um momento poético que poderia ter durado
para sempre. Cheguei a fechar os olhos para sentir o calor, mas senti o leve
toque da mão de Max em minha bochecha em vez disso.

Encontrei seus olhos, verdes como o mar revolto. Max me encarava com
a mesma intensidade.

— Tinha uma abelha em seu rosto — disse ele parecendo um tanto sem
graça, antes que eu pudesse questionar.

Uma nuvem traiçoeira cobriu o sol, transformando o céu, antes


arroxeado, num manto escuro carregado de um pranto que logo cairia sobre
nossas cabeças.
— Acho melhor irmos, antes que...

Nem sequer terminei a frase, uma gota grossa e gelada caiu em meu
nariz, seguida por outras e logo a chuva despencou e nos atingiu sem
piedade.

Então era isso. Estava chovendo, mas ele não estava comigo. Sentei na
calçada e continuei debaixo da chuva, me senti totalmente abandonado.
Talvez estivesse caindo a ficha de que eu estava sozinho num lugar estranho,
longe da minha zona de conforto, se é que pode ser chamada assim.

Eu fugi, estava realmente sozinho. E por isso chorei, a chuva me trazia


certo conforto, era como um abraço e abraços têm esse poder quando se está
triste ou se tem muita coisa guardada.

Estar perdido no campus não era o maior dos meus problemas, por isso
joguei o mapa molhado na linha de água que escorria pelo acostamento, eu
estava me perdendo de mim. Para que isso não ocorresse, eu precisaria
encarar as sombras que me rodeavam, e não eram poucas. Tudo começou a
desandar quando Max me deixou, será que ele ainda me amaria se soubesse
que fui embora?

— An bhfuil tú caillte?

Alguém falou, mas não pude compreender. Continuei onde estava,


encarando o chão. — Está perdido? — Traduziu, dessa vez eu o encarei.

— Eu não preciso de ajuda.

— Ok, tudo bem. Mas você está perdido? — Repetiu.

— Parece que estou?

O observei da cabeça aos pés. Estava irritado por ele ter me tirado da
conexão que tive com a chuva, ou talvez eu só estivesse enlouquecendo. Era
óbvio que eu estava perdido, mas de que importava a ele?

O rapaz era da minha altura, pele clara e rosada, olhos verdes suaves,
cabelo desgrenhado, vestia um casaco preto e jeans, era magro e
aparentemente meigo. Sua voz era grave demais, algo que não parecia
combinar com o resto. Além disso, ele tinha um sotaque estranho, não era
irlandês, eu já havia ouvido irlandeses antes, ele devia ser de outro país. Ele
não parou de me encarar.

— Me escute, sei que estou parecendo um louco, sou calouro e você


também deve ser. Eu estou à procura de alguém então como você se chama?

— Thomas Thompson.

— Ah, perfeito! Você caiu do céu, é o nosso novo inquilino. No seu


informativo, qual o nome do lugar onde vai ficar? — Ele perguntou curioso,
parecia empolgado.

— Ceatha, algo assim.

— Então é você mesmo, vamos logo!

Havia sinceridade em seus olhos e eu não tinha escolha. Podia ficar na


chuva por horas ou acabar me perdendo outra vez na tentativa de encontrar o
departamento correto. Era uma questão de necessidade.

— Onde fica?

— Perto. Só temos que ir por ali, então seguiremos até o cruzamento da


Rodovia College e entramos na Rua Highfield — contou.

Assenti, ele parecia hesitante, faltava algo a me contar, mas pouco me


importavam os detalhes, eu só precisava de um lugar para dormir, pelo menos
por uma noite, até eu me situar.

— Não quero te apressar nem nada, mas está caindo um dilúvio e logo vai
escurecer, podemos pegar um resfriado. Então, se você não se importa, pode
decidir logo?

Fiquei de pé e peguei minhas malas encharcadas, mas não falei nada. Ele
se ofereceu para carregar uma delas e eu deixei, andamos debaixo da chuva,
contornamos um prédio e fomos por uma estrada de pedestres reta que dava
para o cruzamento da famigerada Rodovia College. Esperamos o semáforo
liberar nossa passagem, então atravessamos e entramos na Rua Highfield, que
era uma ruazinha calma, havia carros estacionados no acostamento e também
em algumas garagens das inúmeras casas idênticas. Algumas delas tinham
placas com nomes em latim, irlandês e inglês, vi a placa da Ceatha no portão
da casa, era a terceira de três casas exatamente iguais, até a cor era a mesma.
Se não fosse a placa, eu me confundiria. Sobre o nome havia entalhado em
madeira, havia um arco-íris.

— Chegamos — o garoto anunciou sorrindo, embora seus olhos


demonstrassem nervosismo.

Ele abriu o portão de ferro cuja tintura descascava e gesticulou para que
eu entrasse. A chuva já não era tão forte, a casa era pequena, mas era bonita
em seu estilo irlandês comum.

Quando entramos, a primeira coisa que vi foi a bagunça. O lugar parecia


um chiqueiro, embora não cheirasse mal. O garoto estava vermelho de
vergonha, entrei hesitante e esperei próximo à porta. No térreo havia uma
cozinha com sala divididas apenas por uma bancada de granito, havia uma
escada no pequeno hall, uma porta para – o que eu deduzi ser – o banheiro
social e outra para a área de serviço, além de um pequeno espaço de estudos
com uma escrivaninha caindo aos pedaços, um computador velho e uma
prateleira cheia de livros. Havia casacos pendurados nos ganchos e duas
mochilas jogadas no carpete manchado.

Um rapaz muito bonito estava cozinhando, era loiro e possuía um topete


sexy, suas feições eram bem demarcadas, estava de samba-canção e com uma
camisa branca de botões, que por acaso estavam abertos até o peito.

O outro também era bonito, tinha um topete parecido com o do outro


rapaz, mas era mais bem elaborado e seu cabelo era castanho, tinha
sobrancelhas perfeitas, os lábios brilhantes e a pele de porcelana, impecável.
Ele tinha um ar de superioridade. Vestia um conjunto de moletom cor de
cocô com estampa de unicórnio, daqueles que ficariam horríveis em qualquer
pessoa, mas nele qualquer coisa ficaria perfeita. Quando nos percebeu, ele
veio até nós com um olhar especulativo, como se tentasse me farejar.

— Então a boneca russa voltou do passeio, esse é o tal Thomas? — Ele


perguntou.

O outro rapaz também percebeu nossa presença, então deixou a cozinha e


veio também, mas ele parecia ser mais gentil.

— É ele mesmo, estava perdido e eu o encontrei.

Os dois rapazes encaram o outro que me trouxe, incrédulos. Ele parecia


estar encrencado, mas logo os outros sorriram para ele.

— Você conseguiu mais um membro? — Perguntou o de cabelo castanho


com a voz aveludada.

O rapaz russo assentiu.

— Ótimo, mas onde estão os meus bagels?

— É que começou a chover e...

— Eu não acredito que você esqueceu os meus bagels! — O rapaz de


cabelo castanho falou irritado.

O loiro pôs a mão em seu ombro.

— Calma Du, ele é só um calouro. Nós precisamos dele e ele trouxe mais
um, assim poderemos manter a Ceatha por mais um ano. Eu vou comprar
seus malditos bagels — decidiu.

— Tudo bem, mas vocês dois estão molhados, esperem aí, eu vou pegar
toalhas. Elijah, lembra qual o meu sabor favorito?

— Claro que lembro Du.

Elijah era o loiro, o de cabelo castanho era Du.

Elijah pegou seu casaco, um guarda-chuva no cesto e saiu, o outro subiu


para buscar as toalhas. Eu fiquei com o outro garoto e as malas no hall.

— Eu sou Konstantin, aquele é Duane, o presidente da Ceatha e o loiro é


o Elijah, os dois eram namorados, mas terminaram há um tempo pelo que
entendi, mas continuam dormindo juntos, mas isso não vem ao caso. Como
você gosta de ser chamado?

— Thomas, ou apenas Tom.

Konstantin sorriu, mas logo escapou dele um espirro. O tal Duane voltou
com as toalhas.

— Tirem suas roupas, eu vou colocá-las na máquina de lavar. Konstantin,


você toma banho no banheiro social, eu vou mostrar a você onde fica o
banheiro lá de cima. Geralmente só eu e o Elijah o usamos, mas abrirei essa
exceção. — Disse-nos.

Tirei minha calça e enrolei a toalha ao meu redor, então tirei a camisa.
Konstantin fez o mesmo, ele entrou no banheiro do térreo, Duane levou
nossas roupas até a área de serviço e voltou para me levar até o banheiro.

— Suas malas estão encharcadas, eu vou arranjar algo para você vestir,
amanhã nós daremos um jeito nelas. — Ele disse.

Eu não falei nada. Duane saiu, eu fechei a porta do pequeno banheiro,


liguei o chuveiro e tomei um banho frio, lento. Era uma tentativa de me
revigorar, recuperar as energias gastas no voo. Eu precisava dormir, meus
olhos e minha cabeça suplicavam por isso, e meu estômago se revirava, só
assim percebi que também estava faminto.

Deixei a água escorrer por meu corpo, me causando arrepios, estava


tentando manter a cabeça vazia, longe da Inglaterra, da minha família, de
Max...

Ouvi vozes cochichando do outro lado da porta.

— Não consigo ver nada, acho que você deveria entrar, ele está
demorando. — Disse Duane.

— Eu? Mas...

— Nada de "mas", você o trouxe. Ele é sua responsabilidade e se ele


roubar minhas coisas, quem vai pagar é você!

Desliguei o chuveiro, os comentários de Duane até me fizeram sorrir. Eu


causara uma impressão errada com minha chegada. Me enrolei outra vez e
abri a porta pegando-os de surpresa.

— Onde posso me trocar? — Perguntei. Eles tentaram disfarçar,


pareceram aliviados por eu – aparentemente – não ter ouvido sua conversa.

— Vem, eu te mostro.

Konstantin, o garoto mais gentil que eu conhecia até então, me levou ao


pequeno quarto, que possivelmente seria o meu novo lar por alguns anos. Eu
não sabia se estava preparado para isso, mas não tinha escolha. Quando você
resolve fugir, você tem que aceitar as consequências.
Capítulo 2
Ajuda
O BELÍSSIMO DUANE ME EMPRESTOU O SEU ROUPÃO, DISSE
QUE EU tivesse cuidado com ele, pois foi caríssimo. Eu não sabia muito o
que fazer, estava sentado na cama que foi designada a mim, ao lado dela
estava a de Konstantin, o quarto era basicamente isso, duas camas com
criados-mudos, dois closets, uma janela para a rua. Por outro lado, o rapaz
meigo parecia cuidar bem do seu cantinho, pois não havia nenhum sinal de
bagunça, tudo estava em seu devido lugar.

— Eu vou tirar as minhas coisas do closet do seu lado. Como eu dormia


sozinho aqui, pude ficar com todo o espaço. — Konstantin explicou, mas eu
não estava me importando muito.

— Obrigado.

— Está tudo bem com você?

Ele me encarou com certa preocupação. Olhei para o chão, não era muito
bom em mentir, mesmo para estranhos. Por sorte, ele não insistiu, saiu do
quarto. Me deixou sozinho. Fui até a janela, abri as cortinas e vi a rua, as
casinhas iguais, os prédios da universidade ao longe, pessoas apressadas indo
e vindo, aquela seria a minha realidade, a minha nova vida.

Ouvi o burburinho dos três na cozinha conforme descia a escada.

— Conseguiu arrancar alguma informação da Carrie? — Duane


perguntava curioso.

— Carrie? — Konstantin respondeu confuso.

— Sério? Você morava na Rússia ou em outro planeta? Quem não é


capaz de reconhecer uma simples referência ao clássico do Stephen King?
— Nem todo mundo é fã de Carrie, a estranha. Acredito que haja outros
títulos melhores na obra dele. — Elijah entrou na conversa.

Houve um momento de silêncio.

— Você adora ficar contra mim. — Duane concluiu, estava visivelmente


irritado.

— Não me venha com essa Du, não estou contra você, só estou dizendo
que...

Os três se calaram quando eu apareci lentamente. Não os olhei nos olhos,


apenas entrei na pequena cozinha. Duane, apesar de ser todo excêntrico, foi
gentil e puxou uma cadeira para que eu sentasse. Eu o fiz, os outros três
sentaram comigo à pequena mesa.

Eles prepararam um jantar digno, na mesa havia um ensopado de linguiça


e batatas, boxty, champ, arroz branco, feijão, bagels e pães, além de café, chá
e suco de laranja.

— Fique à vontade. — Disse Konstantin. Então comecei a me servir, meu


estômago não me permitiu fazer cerimônia, tratei de colocar um pouco de
tudo.

Konstantin também se serviu, e Duane estava colocando em seu prato


praticamente o dobro do que eu coloquei no meu.

— Pensei que estivesse de dieta. — Elijah disse para ele, que deu de
ombros.

— Meu personal disse que preciso ganhar um pouco de massa —


Justificou.

— Sei...

Havia um clima estranho pairando sobre a mesa e eu sabia que era por
conta da minha presença inesperada, porém nós comemos em silêncio, até
toda a comida se extinguir e Duane e Elijah discutirem sobre as calorias que
havia em um pão, enquanto Konstantin revirava os olhos.
— Bem... precisamos saber quem você é. Tudo o que sabemos até agora é
que se chama Thomas, correto?

— Thomas Thompson, ou só Tom.

— Já um progresso. Então Tom, você já sabe que eu sou Duane,


presidente desta irmandade, sou irlandês, Elijah é da Austrália e Konstantin
da Rússia, agora vou te fazer algumas perguntas...

— Ok.

— Não, você não vai fazer isso de novo. — Elijah o repreendeu, mas ele
ignorou.

— Continuando, Tom, quero saber sobre sua sexualidade, seu estado


civil, se é soropositivo ou portador de alguma doença, principalmente
sexualmente transmissível, se é rico, de onde vem e o que vai cursar.

Respirei fundo, senti minhas bochechas queimarem, mas não estava tão
constrangido.

— Eu também sou gay, estou solteiro, não sou soropositivo, nem tenho
doença alguma. Não sou rico e venho de Cambridge, Inglaterra. Estou aqui
para cursar medicina e para fugir do meu passado.

Eles me encaram aturdidos.

— Eu também vou fazer medicina. — Konstantin disse todo feliz.

— Uau, então você tem uma coisa comum com todos nós. Somos todos
fugitivos do passado. Mas a pergunta que não quer calar, você matou alguém
para estar aqui?

Paralisei, sabia que era apenas uma brincadeira, mas minhas mãos
começaram a tremer, eu as escondi sob a mesa enquanto pensava no que
poderia responder, eu não havia matado alguém, mas alguém quase morreu
por minha causa.
— Não se importe Tom, ele só está brincando. O Du nasceu para fazer
piadas e atormentar os calouros. — Elijah disse para me tranquilizar.

— É claro...

Sorri, mas por dentro eu estava caindo num abismo.

***

Acordei no quarto estranho, ainda não conseguia vê-lo como o meu


quarto. Meu colega me observava assustado, meu corpo estava encharcado de
suor, sentia-me sufocado. Não tive nenhum pesadelo, dormi como uma pedra
por causa do cansaço, mas ainda assim me sentia mal. Algo me devorava
lentamente por dentro, não sei se era saudade, esperança ou culpa. Eu havia
quebrado uma promessa, um pacto. Não sabia quando veria Max sorrir outra
vez, me iluminando como um sol, não sabia quando o veria me chamar de
Tomtom ou quando sentiria arrepios simplesmente por ele me tocar.

O meu futuro se resumia à incerteza de um "se".

Eu deveria ter ficado com Max, talvez se eu tivesse tentado mais... não. A
quem eu estava tentando enganar? O peso da verdade, às vezes, é maior do
que se pode suportar. E eu havia descoberto que fui enganado desde que
nasci, que minha vida era uma farsa. Minha família de estruturas frágeis já
não podia mais ser considerada uma família, o vilão era o mocinho e os
mocinhos eram os verdadeiros vilões.

A verdade era que a partir do momento em que entrei no avião, eu me


arrependi. Mas eu não conseguiria permanecer em casa por muito tempo.
Encarar a farsa nos olhos da mamãe, mais ainda a culpa nos olhos de Edward.
Talvez no futuro eu os perdoasse, mas no momento eu não estava preparado
para o perdão.

— Ei Thomas, Tom. Você está trêmulo, suando frio... está tudo bem?

Só quando ouvi a voz grave lembrei que Konstantin ainda estava na cama
ao lado com os olhos pregados em mim. O lado ruim de dividir um quarto
com alguém.
— Estou bem, não se preocupe — menti.

Tomei café com Konstantin, aparentemente os outros dois tinham coisas


para fazer no domingo, Konstantin ficou arrumando o que a casa e eu passei a
maior parte do dia dormindo, aleguei estar ainda cansado da viagem, mas
estava cansado da vida.

Teria dormido até a segunda-feira se não fosse por Konstantin me


cutucando.

— O que você quer?

— Calma, desculpa. É que precisamos comparecer ao prédio principal,


vão confirmar nossas matrículas entre outras coisas. Não quero ir à noite.

Eu tinha sido ignorante com ele sem motivo, Konstantin tinha razão. Não
íamos querer sair tarde, se já podíamos nos perder de dia, imagina à noite.

— Ok, fico pronto em cinco minutos.

Tomei um banho rápido, aproveitando-me do silêncio causado pela


ausência de Elijah e Duane, tentei pôr a cabeça no lugar, mas talvez eu já a
tivesse perdido há tempos. Saí e me arrumei em pouco tempo, peguei os
documentos necessários para a confirmação da matrícula e da minha estada
na Ceatha e desci.

Konstantin já estava pronto, então saímos de Highfield e fomos andando


pela animada Rodovia College até o prédio principal que era um famoso
cartão postal da cidade, sua grandiosidade era impressionante, tinha um
formato de U quadrado e ficava a três quarteirões de distância, minutos
depois chegamos. Fomos direto para a ala oeste descrita no mapa, o interior
do prédio era uma junção de arquitetura medieval com irlandesa moderna.
Havia muitos calouros, muitos mesmo, a maior diversidade que eu já tinha
visto.

Nos dirigimos à secretaria responsável, assinamos alguns documentos e


termos, inclusive pude resolver o problema da minha residência, a secretária
fez uma careta ao ver o nome Ceatha no meu formulário, mas não disse nada,
apenas me confirmou. Konstantin tinha terminado com a secretária do lado,
havia certa de cinquenta delas, eu estava prestes a sair quando a Sra. Murphy
(olhei seu nome no crachá) me pediu para esperar.

— Fomos informados de que você passou por um trauma recente, e pelo


bem da instituição e do seu rendimento, você fará parte do grupo de ajuda do
departamento de psicologia. — Ela disse me entregando um cartão.

Konstantin me encarava aturdido, devia estar amando ter mais uma


informação sobre mim.

— Desculpe senhora, não estou entendendo.

— A universidade tem um programa de ajuda a pessoas que sofrem ou


sofreram de algum trauma, é mais ou menos como alcoólicos anônimos, não
se preocupe, você vai gostar de lá. — Explicou.

— Mas eu não quero.

— Então receio que eu precise cancelar a sua matrícula. O


acompanhamento psicológico é obrigatório para bolsistas na sua situação,
então a menos que...

— Obrigado.

Eu não me sentia grato. Estava fervendo de raiva por dentro. Aquilo com
certeza tinha sido um plano de Edward para me fazer sentir melhor, mas era a
última coisa que eu precisava. Busquei meu celular no bolso, mas lembrei
que tudo o que me pertencia ainda estava na mala, eu só havia tirado de lá a
roupa que vestia. Eu ligaria para ele e o mandaria se ferrar.

— Você está bem?

— Não, não estou. Droga! Vocês têm que parar de me perguntar se estou
bem. Eu nunca vou estar.

Assim que acabei de falar, percebi que tinha me alterado em meio a


dezenas de calouros, e estava sendo grosso com Konstantin mais uma vez.
Pude sentir seu olhar em minhas costas conforme eu seguia andando para
fora daquele maldito prédio, mas não ousei olhar para trás até ter saído.

Konstantin estava bem atrás de mim.

— Desculpe, ok? Acho que entendi, não vou mais te aborrecer. Você se
importa se passarmos no Smallows? Não é longe e eles têm um cardápio
muito bom, o jantar é por minha conta.

— Sem problema. — Concordei para me redimir.

Dizer que não havia problema quando se tratava de mim era uma ousadia.
Os problemas me perseguiam como o predador persegue sua presa.

Fomos por um caminho diferente e, de fato, o lugar era bem próximo. Um


pequeno restaurante, era bem típico, nada de especial. Havia uma janela em
frente à mesa que escolhemos. Por ela eu pude ver a rua pacata, a iluminação
era fraca e por ser domingo o movimento era fraco. Mais um belo dia de
verão estava indo embora.

— Com licença.

O garçom nos trouxe os cardápios. Konstantin sorriu para ele, eu apenas


peguei o meu e comecei a ler, não tinha ideia do que queria comer, na
verdade eu nem queria.

Comigo a vida sempre tendia a ser tirana. Uma das primeiras coisas que
estavam listadas para entrada do jantar quase me fez sufocar. Um nó se fez
em minha garganta mais depressa que um piscar de olhos. Lá estava escrito
numa fonte bonita: Porridge. Que, por acaso, era o melhor – e único – prato
que Max preparava para mim. Ele fez tantas vezes em minha vida.

— Thomas?

A voz grave com sotaque russo me tirou do transe, Konstantin me


encarava preocupado. Queria fazer a pergunta que eu odiava, mas não o fez.
E eu estava prestes a desmoronar na frente de um estranho, e o pior: em
público.

— Vou ao banheiro.
Saí com uma pressa exagerada, no caminho esbarrei num garçom e quase
caí. Tranquei-me em uma das cabines, não parecia muito limpa, mas só fiquei
lá o tempo necessário para o choro cessar. Seria sempre assim? O nó na
garganta, o aperto no peito que me virava do avesso, a dor que me queimava,
a sensação de perder o ar, a falta dele...

O sentimento de impotência me consumia por tanto tempo, a culpa voltou


outra vez e tudo o que eu podia fazer era chorar. Eu não passava de um
covarde chorando em outro país, tentando fugir da realidade, mas ela me
engolia cada vez mais.

Será que toda vez que eu fosse a algum lugar e lembrasse dele seria
assim?

Não sabia. Bati minha testa na parede de ferro da cabine, uma, duas,
cinco vezes. Até sentir qualquer dor física, qualquer coisa que me distraísse
da falta que ele me fazia. Eu não queria esquecê-lo, de jeito nenhum, mas me
apegaria a qualquer coisa que pudesse aliviar o meu tormento.

Saí e lavei o rosto. No espelho vi meus olhos vermelhos, uma pequena


mancha de pancada se formou no meio da minha testa. Logo se transformaria
em hematoma, mas pouco me importava. Me recompus o máximo que pude,
voltei à mesa. Konstantin me encarava confuso, mas não disse nada sobre
meu pequeno surto.

— Você demorou, então eu pedi duas porções de Dublin Coddle, dois


cafés e pãezinhos.

— Obrigado, e me desculpe por ser grosso. É que...

— Tudo bem, não importa. Todo mundo tem dias ruins, mas não há nada
que uma boa comida não resolva. — Ele disse, não estava magoado comigo e
isso foi um alívio.

Ele estava sendo legal desde que me viu e eu não estava retribuindo.
Olhei para ele envergonhado, mas o olhar que ele me deu em resposta foi
como um dar de ombros, não me absolvia nem me condenava.
Quando nosso jantar chegou, me surpreendi ao perceber que o ensopado
de batatas fez eu me sentir em casa, só o cheiro dele despertou no estômago a
fome que minha mente bloqueava. Comemos tudo, não deixei ele pagar tudo
sozinho, então dividimos a conta e saímos pela noite irlandesa na direção de
nossa casa.

***

Olha só quem está de volta! — Duane gritou quando nos ouviu entrar. Ele
estava esparramado no sofá com um olhar desconfiado, logo nós percebemos
Elijah saindo de debaixo do mesmo cobertor e se endireitando. Os dois nos
deram sorrisos amarelos que bastaram para entendermos que tínhamos
atrapalhado algo.

— Vocês se perderam? — Elijah perguntou para evitar qualquer conversa


sobre o que eles estavam fazendo.

— Só estávamos no Smallows. — Konstantin respondeu.

— Bateu a cabeça? — Duane percebeu a mancha em minha testa.

Balancei a cabeça negativamente e segui para o quarto, Konstantin me


seguiu e trancou a porta. Tirei minha camisa e a joguei de lado, abri a janela e
deitei na cama. O quarto estava abafado, logo a brisa da rua começou a
entrar.

Konstantin estava separando suas roupas para o primeiro dia de aula


quando um toque simples e irritante de bip começou a ecoar de seu aparelho.
Ele atendeu aborrecido, mas estava falando em russo, era estranho, gutural e
eu não entendia nada, mas ele parecia triste.

Tentei decorar algumas das palavras que ele dizia para perguntar o que
significavam, mas acabei dormindo.
Capítulo 3
À Primeira Vista
EU NÃO SABIA O QUE ESPERAR DO MEU PRIMEIRO DIA DE
AULA NA universidade. Estava afastado de atividades acadêmicas havia um
tempo. Desde que me formei em Heaven Wood, antes de tudo aquilo
acontecer.

— O que acha?

Konstantin se movia de forma engraçada em frente ao espelho grande que


ficava atrás da porta. Queria saber minha opinião sobre seu look. Estava
perfeitamente vestido em uma camisa azul de botão com estampa florida
microscópica, um colar com uma cruz, calça branca com tênis casual preto.
Para completar, o cabelo estava impecável, pegou sua bolsa de alça, pôs o
broche com o brasão da universidade, que era uma forma de identificarem os
calouros até que recebêssemos nossos cartões magnéticos. Resumindo, ele
estava muito bonito, ele era muito bonito.

— Está ótimo.

Ele sorriu satisfeito.

Eu havia acordado cedo para desfazer minhas malas que já estavam secas
e separar algo "usável" para o primeiro dia de aula. Então vesti minha camisa
branca simples, uma calça preta justa, os coturnos cor de café e uma pulseira
de couro marrom que trazia como pingente uma ágata verde envolta
cuidadosamente como se fosse um ovo, Drake me deu antes partir, segundo
ele, simbolizava proteção e pertenceu a sua mãe. Disse que não funcionou
com ela, mas talvez funcionasse comigo. Era a primeira vez que eu a usava.

Peguei minha mochila velha, estava cheia de bótons das minhas bandas e
séries favoritas, a pendurei de lado e saí com Konstantin. Duane e Elijah
tinham saído antes de nós, ainda havia comida na mesa, mas não tínhamos
tempo.
— O que você espera do nosso primeiro dia de aula? — Ele me
perguntou conforme andávamos na direção do prédio principal.

— Muitas informações que não vou conseguir digerir, professores


esnobes, colegas antipáticos e veteranos metidos prontos para nos humilhar.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Nossa! Como você é pessimista, eu só pensava em fazer novos


amigos.

Não respondi, eu não pensava em fazer novos amigos, embora já tivesse


criado lasso com ele e os outros garotos da Ceatha. Criar laços implicava em
decepcionar as pessoas que fazem parte deles, eu não queria decepcionar
ninguém, muito menos fingir ser alguém que não era.

Só queria tentar sobreviver por um semestre, tentar ficar em paz e "curtir"


a minha solidão e nostalgia sem ser incomodado, nada mais.

O campus estava animado, os calouros estavam por todos os lados.


Fomos para a ala norte, num salão chamado Aula Maxima, eu não sabia o
motivo do nome, mas ao entrar, percebi que era um local especial para
cerimônias. Havia fileiras com inúmeras cadeiras de madeira que me
pareceram bem antigas, os alunos estavam apressados em encontrar um bom
lugar. Diante do pequeno palco havia uma mesa elegante com seis cadeiras
que se pareciam com tronos, técnicos ajustavam o equipamento de som.

Konstantin se deixou ser levado por mim, que não queria sentar na frente
como a maioria dos alunos, então ficamos na sexta fileira, um local bem
discreto, tudo o que eu precisava. Levou alguns minutos até tudo estar pronto,
então alguns representantes sentaram nas várias cadeiras da mesa.

Duas senhoras e quatro senhores, todos eles eram doutores e plaquinhas


sobre a mesa diziam o que cada um deles era. Professor disso, coordenador
daquilo, diretor de departamento, enfim. O que ficava na quinta cadeira foi o
primeiro a falar, tagarelou sobre o sonho de se tornar médico e todo aquele
blábláblá que eu já conhecia. Enquanto eu ignorava, Konstantin prestava
atenção como se cada palavra que saía da boca dele fosse importante.

— Você está tão estranho encarando ele assim — comentei.

— Claro que estou, é o Dr. Cárthaigh.

— E daí?

— E daí que aquele homem é uma lenda da neurocirurgia!

Foi nesse momento em que percebi que muitos dos calouros que estavam
sentados ao meu redor mereciam muito mais estar onde eu estava. Cursar
medicina era um desejo meu, um sonho, porém distante. E o sonho estava
realizado, eu estava sentado num salão belíssimo numa cerimônia de
recepção dos novos alunos, mas assim que vi o olhar de Konstantin para o
homem na mesa que não passava de um estranho para mim, percebi que
realizar o sonho era fácil, difícil seria mantê-lo. Eu estava matriculado, e
depois? Me sentia um peixe fora d'água, não conhecia ninguém, tudo o que
eu sabia era que a UC possuía um dos melhores cursos de medicina, só isso.

O tal doutor começou a falar sobre a honra de estarmos ali, que não
tínhamos noção da dimensão daquela ocasião e de repente eu comecei a me
sentir pequeno, uma formiga em meio a dezenas de humanos, se não tivesse
cuidado poderia ser pisado.

Fiquei de pé.

— Aonde você vai? — Konstantin perguntou curioso.

— Tenho claustrofobia.

— Mas essa sala é enorme! Tudo bem, eu vou com você...

— Não! Fique e ouça tudo, depois você me conta o que rolou aqui, eu
estarei lá fora tomando um ar.

Não esperei ele concordar, apenas saí e tentei passar despercebido.


Esbarrei nas pernas de algumas das pessoas sentadas conforme ia na direção
da saída, logo eu estava do lado de fora.
O gramado grandioso que ficava no centro do grande U estava impecável.
Verdinho, perfeitamente aparado, ele era dividido em quatro grandes
quadrados do mesmo tamanho. Não havia mais tanta gente ali fora, só
algumas pessoas fumando num canto, e alguns alunos sentados no gramado
com seus livros e/ou lanches, me senti um pouco melhor. Obviamente eu não
era claustrofóbico, era só mais uma mentira das tantas que eu ainda diria para
não ter que me explicar.

Resolvi sentar no gramado também, o dia estava tranquilo e o sol não era
forte, pelo contrário, ele era agradável em contraste com a brisa fria. Sentei
longe da entrada, próximo à sombra. Fiquei lá, em um momento que podia
ser de reflexão, mas não estava refletindo, eu apenas não queria pensar em
nada e estava conseguindo, mas o celular vibrou em meu bolso. Era Drake.

— Mano, você não dá notícia há dois dias! — Ouvir a voz dele era tão
reconfortante que me deu vontade de chorar.

— Desculpe Drake, eu ia ligar, mas aconteceram tantas coisas aqui...

— Vou fingir que acredito.

— Não lembra o que eu falei sobre espaço pessoal?

Ele suspirou.

— Ok, já entendi. Você quer ficar sozinho e tal, mas eu não liguei para
falar de você. Tenho uma grande notícia! — Disse, parecia realmente ser algo
bom.

— Sou todo ouvidos.

— Eu fui aceito no curso de música da Universidade de Liverpool!

Levei alguns segundos para processar o que ele havia dito, mas logo
comecei a sorrir junto com ele, era uma notícia maravilhosa. Ele merecia
muito a aprovação, ele precisava disso.

— Cara, eu nem sei o que dizer! Te daria um abraço, se pudesse.


— É ótimo, sei que não é Cambridge, Oxford ou Cork, mas...

— Não, não diga isso. Liverpool é uma universidade incrível! Estou tão
orgulhoso de você!

— Não é para tanto. Partirei na sexta e acho que nos falaremos cada vez
menos depois disso. — Ele falou preocupado.

Me senti um pouco culpado, eu tinha pensado muito em mim nas últimas


semanas, nem sequer havia cogitado as consequências da minha decisão para
os outros. Eu não estava lá para festejar com Drake, e eu era a pessoa com
quem ele mais se dava bem.

— Isso não é um problema. A distância não muda nada, você é meu


irmão. Nós nos veremos nas férias ou algo assim. — Aleguei.

— Certo, foi bom falar com você. Nunca pensei que diria isso, mas sinto
sua falta aqui.

— Eu também sinto, mas não vamos começar com essa coisa gay, não é?
— Falei sorrindo.

Ouvi ele sorrir de volta, desligamos e lá estava eu sozinho outra vez.

Os estudantes começaram a sair do prédio, era hora de levantar para


encontrar Konstantin. Levantei apressado, mas ao fazer isso me choquei
contra alguém que estava passando por trás, quase caí sentado, mas me
equilibrei. Porém, derrubei uma pasta que o rapaz carregava. Antes de pedir
desculpas, a peguei, estava aberta e não pude ignorar o que havia nela. Era
uma espécie de portfólio, as páginas abertas continham uma partitura de
violão com anotações, uma composição com o título Interrupted e a foto de
um garotinho. O rapaz puxou a pasta das minhas mãos abruptamente, só
então eu realmente o vi.

Sua pele era corada, tinha o cabelo castanho claro na altura do ombro,
usava uma camisa de manga longa com botões abertos até a altura do peito
onde os pingentes de um colar encostavam em seus pelos. Sua calça era jeans
com alguns rasgos. Era um pouquinho mais alto que eu e tinha o corpo
atlético natural. A barba, aparentemente, tinha crescido há pouco tempo e
seus olhos... eram cinzentos, um tom único, eram olhos de prata e me
encaravam com irritação.

— Você é um idiota ou algo do tipo? — Disse com sua voz grave, ficou
com a sobrancelha erguida esperando uma resposta, enquanto eu apenas o
encarava confuso.

— Idiota?

— Estava bisbilhotando.

— Não, não estava, apenas peguei o que derrubei, e caiu aberto, então
não tinha como não olhar. Desculpe.

Ele continuou me observando intensamente.

— Eu não sei quem você é, mas acho que é bom começar a olhar por
onde anda.

O rapaz colocou a pasta debaixo do braço e me deu as costas. Continuei


parado olhando ele se afastar. Quem ele pensava que era para tratar alguém
assim? Minhas bochechas estavam queimando, olhei em volta e percebi que
algumas pessoas tinham visto meu pequeno desastre.

***

Encontrei Konstantin minutos depois, não comentei nada. Apenas


seguimos a multidão de calouros que andava apressadamente na direção do
bloco de Ciências da Saúde, que ficava a quase cinco quarteirões de distância.
Achei que não teríamos aula, mas Konstantin contou que iam nos apresentar
as salas e os laboratórios para nos familiarizarmos, ele continuou tagarelando
conforme andávamos na mesma direção que a multidão.

O bloco era o mais distante do campus, era mais longe que nossa casa,
mas chegamos lá antes do horário do almoço e fizemos um tour demorado
por todos os laboratórios que usaríamos durante o curso, me deu até certo
ânimo perceber que não faltariam tarefas para me manter ocupado.
No horário do almoço fomos liberados e aproveitamos para almoçar no
restaurante do Centro do Estudantes, que era um prédio lindo cuja fachada de
todos os andares era de vidro transparente, assim dava para ver o interior, era
como um shopping, possuía área de lazer, galerias, restaurante, bar e outras
coisas. Não fizemos amizade com nossos colegas, não por sermos antipáticos
ou algo do tipo, mas por percebermos que para eles não éramos colegas,
éramos adversários, estávamos entrando numa competição. Não havia na
universidade o mesmo clima do colegial, essa era apenas mais uma das
minhas ilusões.

A comida, infelizmente, não era tão boa, mas tanto eu quanto Konstantin
estávamos famintos, então comemos sem reclamar e logo em seguida
corremos para a biblioteca para reservar alguns dos livros que usaríamos no
semestre antes que alguém os reservasse, mas chegando lá percebemos a
grandiosidade do local, o acervo era imenso, então estávamos livres desse
problema.

Seguimos de volta para Highfield por volta das três da tarde, quando
abrimos a porta, eu tive a sensação de que quase podia chamar a Ceatha de
casa.
Capítulo 4
Grupo de Apoio
ACORDEI UM POUCO MAIS CEDO NA TERÇA PARA DAR
TEMPO DE comer, Konstantin estava no banho enquanto eu terminava de
fazer ovos mexidos. Aparentemente Elijah e Duane ainda estavam dormindo
ou já tinham saído. Quando terminei, coloquei os ovos junto com pães,
torradas, bolachas e outras coisas que encontrei no armário. A geladeira
estava quase vazia, foi tudo o que pude fazer.

— Bem-vindo à vida universitária, onde estamos sempre falidos e


estressados demais...

Uma garota entrou na cozinha, usava meias, sutiã e calcinha de


borboletinhas, era magra, alta e bem pálida, o cabelo loiro curto na altura dos
ombros estava bagunçado e ela parecia estar de ressaca.

— Quem diabos é você? — Perguntei enquanto ela já se sentava à mesa e


começava a devorar tudo.

— A Taylor Swift da Austrália.

Ela continuou comendo como se eu nem estivesse ali.

— O café da manhã era para o meu amigo...

— Ele não vai se importar, isso aqui está uma porcaria. Já ouviu falar em
sal? Argh...

Quem diabos era aquela garota?

Konstantin desceu e não pareceu surpreso ao vê-la ali tomando conta da


cozinha como se fosse uma moradora, ele nem se importou ao vê-la comendo
nossa refeição, em vez disso, riu. Eu o encarei como quem pedia uma
explicação.
— Esta é a Elise, a irmã hippie-doida do Elijah ou algo assim. Eles são
gêmeos, não percebeu? — Movi a cabeça negativamente, como eu
perceberia? Eles tinham sexos diferentes. — Você se acostumará com ela.

Ele falava como se já fosse um veterano, mas chegara à Ceatha apenas


cinco dias antes de mim.

— Ok, mas ela comeu nosso café da manhã — aleguei.

— Tudo bem, a gente passa no café da avenida.

Nós passamos lá e minutos depois estávamos entrando atrasados no nosso


bloco, eu com meu copão premium de latte e ele sugando as últimas gotas do
seu macchiato. O dia inteiro foi ainda mais louco que o primeiro, tivemos
nossa primeira aula de anatomia geral, seguida por bioquímica e outras. Era
muita informação para absorver.

Largamos por volta das quatro da tarde e nos dirigimos à secretaria, onde
nos entregaram nossos cartões magnéticos que nos davam passe livre em
praticamente todo o campus. Junto com ele, recebemos nosso horário, o login
do sistema acadêmico e eu, o cartão do grupo de apoio com endereço, contato
e uma pequena foto com rostos felizes.

— Você vai precisar de acompanhamento psicológico? — Konstantin


perguntou ao me ver observando o cartão.

— Infelizmente.

Nele dizia que as reuniões aconteciam nas quartas-feiras às quatro da


tarde. Eu jogaria o cartão fora, mas se não comparecesse às reuniões seria
expulso, então apenas o guardei no bolso.

— Você não vai me perguntar o motivo? — Falei para Konstantin, que


não parecia tão curioso, o que era estranho.

— Todos nós temos os nossos traumas e não queremos que ninguém


saiba deles até que tenhamos vontade de contar. Então, a menos que você
queira me contar, não quero saber. — Disse ele.
— Não quero contar.

Ele assentiu, voltamos para casa.

***

Se eu tinha que participar de tamanha babaquice, pelo menos não queria


causar má impressão. Quando a quarta-feira chegou, assim que saí da última
aula com Konstantin, corremos até a Ceatha, tomei um banho rápido,
controlei meus cachos, fiz a barba – ou alguns pelinhos aleatórios que nascem
de quando em quando –, vesti uma calça jeans justa que herdei de Edward,
uma camisa de botão com estampa quadriculada preta, cinza e branca e os
velhos coturnos de sempre.

— Está bonito. — Konstantin disse quando entrei no hall. Ele estava


sentado na escrivaninha fazendo algumas pesquisas.

— Obrigado.

Saí sozinho, já conhecia boa parte do campus, o curso de Psicologia era


no bloco de Ciências da Saúde, o mesmo em que eu estudava, mas as
reuniões do tal grupo aconteciam no Parque Fitzgerald que, segundo o mapa,
ficava ao lado da Arena Mardyke na Rodovia Ocidental e ambos pertenciam
à UC.

Sabendo disto, e com o google maps aberto no celular para caso de


dúvida, cruzei o campus, refazendo o caminho pelo qual segui quando
cheguei à universidade pelo lado errado. Tirei meu cartão magnético do bolso
e passei tranquilamente na catraca da entrada, um recepcionista sorridente de
uniforme verde me entregou um catálogo do parque, que comecei a folhear e
ver as descrições detalhadas de cada local.

Fiquei fascinado no instante em que entrei, o Heaven Park não chegava


nem aos pés do Fitzgerald.

Era um parque grande, repleto de árvores, entre elas pinheiros, o que dava
um charme a mais, havia um museu em algum lugar ao leste, a grama era
perfeitamente aparada, havia um lago redondo, com uma fonte de um lado e
no outro uma ponte.

Um rapaz com a mesma farda do recepcionista passou por mim, resolvi


perguntar-lhe em que local o grupo se reunia.

— Com licença, você pode me dizer onde o grupo de apoio psicológico


se reúne?

— Olá, claro que posso. Você seguirá por essa trilha, no final dela há
duas áreas para piqueniques e encontros do tipo, tem uma vista linda do rio.
Você verá um grupo reunido debaixo de um grande cipreste.

— Obrigado.

Segui o caminho orientado por ele, ainda maravilhado com a beleza do


parque. Algumas pessoas estavam sentadas na grama, lendo, observando o
rio, namorando, comendo e fumando, do outro lado avistei o grande cipreste
e um círculo de pessoas vestidas de branco, todas sentadas na grama. A
princípio eu quis voltar para a Ceatha, mas o líder me olhou e apontou para
mim, logo todos estavam olhando e instantaneamente abrindo um lugar em
seu círculo.

Não tive outra alternativa, sentei-me entre eles. Todos sorriam, seus
sorrisos pareciam forçados, mas eram sinceros. Me queriam lá. Todos
estavam vestidos casualmente, dando a impressão de que me arrumei demais.
Passei a olhá-los um por um, uma garota magricela, um rapaz tristonho, uma
mulher descabelada, a próxima pessoa que vi fez meu coração bater mais
forte.

Era ele, o rapaz de olhos cinzentos em que esbarrei no gramado do prédio


principal, com quem quase tive uma discussão. Ele estava mesmo ali e eu
quase não acreditei, afinal ele não parecia ser o tipo que participa dessas
reuniões, se é que existe um tipo.

O rapaz não sorria, parecia querer estar ali tanto quanto eu.

— Thomas, certo? — O líder perguntou.


Deviam tê-lo avisado da minha chegada. Apenas assenti, queria ignorar
todos aqueles olhares em mim, logo senti minhas bochechas queimarem.

— Seja bem-vindo ao Saol, farei uma breve apresentação do nosso grupo


e já que é sua primeira vez, cada membro se apresentará para você, não se
assuste. Apenas os ouça e, caso se sinta à vontade para falar sobre o seu
problema, poderá falar. Do contrário, apenas os ouça, não temos pressa.
Entendido?

Assenti.

— Meu nome é Patrick, sou a cabeça do grupo. O Saol aceita pessoas


com qualquer tipo de problema, temos o intuito de fazer vocês reconhecerem
que precisam de ajuda e juntos poderemos procurar a saída do problema de
cada um, sem julgamentos. Estamos aqui apenas para apoiar e encontrar uma
saída desde que o membro se comprometa a participar regularmente das
reuniões...

Engraçado ele falar isso, já que a instituição praticamente me obrigou a


participar.

— Temos algumas regras: a primeira é o silêncio, quando uma pessoa


fala, os outros escutam, não desenvolvem conversas paralelas. A segunda é a
regra da primeira pessoa, falo da "minha" experiência, o que "me" faz sofrer e
o que faço para escapar disso. A terceira é o respeito, não vou condenar ou
consertar os outros, vou apenas falar da minha experiência para que
aprendam com ela e ouvirei a experiência dos outros para que eu também
aprenda com eles. A quarta e última regra é a do sigilo, o que é dito aqui, fica
aqui. Não comentamos nada do que acontece nas reuniões. Alguma dúvida?
— Ele perguntou ao terminar sua explicação.

— Não.

— Ótimo Thomas, antes de conhecer o resto do grupo, apresente-se! —


Patrick me encorajou.

Fiquei ainda mais corado.


— Meu nome é Thomas Thompson, tenho dezoito anos, sou da Inglaterra
e estudo medicina.

Todos me encaravam como se esperassem que eu pudesse contar algo


mais interessante que apenas a minha resposta mecânica, mas eu não me
importava. Não tinha a mínima vontade de compartilhar a minha desgraça
com os outros. De que forma isso poderia ser útil?

— Ok, Daniel, comece.

— Sou Daniel, tenho depressão e estou no grupo há seis meses, desde o


dia em que tentei tirar minha própria vida.

— Sou Flora, fui diagnosticada com codependência anulativa. Eu


desenvolvi uma dependência emocional muito forte em relação ao meu ex-
namorado, o Richard — ela sorriu ao dizer o nome dele, mas algo a fez se
recompor e o sorriso morreu. — É por isso que estou aqui.

— Sou Kendrik, baixa autoestima, crise de pânico e outras coisinhas...

Comecei a ignorar o que os outros diziam e passei a observar o rapaz de


olhos cinzentos, que não parava de me encarar. Retribuí, e acho que o venci,
pois ele desviou o olhar, mas sorriu ao fazer isso. Estava vestindo uma
camisa branca de gola V, calça e coturno negro, bem diferente dos outros,
que estavam mais despojados com shorts e chinelos de dedo. Eu queria que
chegasse logo a vez dele.

— Michelle, tenho crises de ansiedade muito fortes...

— Ramón, compulsividade financeira...

Mais quatro pessoas falaram, então chegou a vez dele.

— Rixon Lenn James, dependente químico. — Foi tudo o que disse.

Não parecia envergonhado ao falar isso, logo percebi que ninguém


parecia se envergonhar de seus problemas, talvez o grupo funcionasse.
Continuamos nos olhando enquanto outras pessoas falavam.
— Terminadas as apresentações, vamos dar continuidade. Quem vai
querer falar hoje? — Patrick perguntou animado. Só então percebi que ele
segurava um bastão com chocalho esquisito feito de algum material
reciclado. Parecia um brinquedo.

Várias pessoas levantaram as mãos, eu e Rixon fomos os únicos que


permaneceram quietos.

— Michelle. — Patrick disse e passou-lhe o bastão. — Esse é o bastão da


palavra, quem segura ele tem a palavra em suas mãos e os outros devem
ouvi-lo com respeito.

Assenti, embora continuasse achando tudo aquilo uma tremenda idiotice.

Ignorei a fala da garota, que contava algo sobre não conseguir dormir há
semanas por estar ansiosa demais por conta da pressão dos pais, do namoro
complicado e do curso. Ela começou a chorar enquanto falava, e eu estava
apenas rezando para aquilo acabar, mas a garota falou pelo que me pareceu
uma eternidade.

Já estava quase anoitecendo e eu não aguentava mais ouvir aquela garota


chorona falar, então levantei e fui até Patrick, me aproximei para cochichar
em seu ouvido.

— Estou muito apertado, tentei segurar, mas não está dando. Posso ir ao
banheiro?

— Sim, mas volte logo.

Assenti e saí dali o mais depressa que pude sem querer parecer
desesperado para me afastar. Já estava voltando à trilha principal quando
percebi os passos que me seguiam, olhei para trás e lá estava ele, Rixon Lenn
James.

— Por acaso está me seguindo?

— Você não vai ao banheiro. Está indo embora.

— Como sabe? Ou melhor, isso não é da sua conta! — Respondi, mas


soou defensivo demais.

Ele riu. Odiei sua risada.

— Estou louco para saber o motivo de você estar fazendo parte do


clubinho dos medíocres.

Parei de andar. Como ele podia ser tão sem coração? Estava chamando de
medíocres pessoas que estavam apenas tentando resolver seus conflitos
interiores, fiquei mais irritado, mas logo percebi que eu não era muito
diferente dele. Tinha me segurado para não revirar os olhos na maior parte
das apresentações.

— Clubinho dos medíocres, isso não te torna um medíocre também? —


Perguntei.

— Claro, somos todos medíocres, eu você e aqueles que estão lá.

Tentei identificar a origem de seu sotaque, não era irlandês, britânico,


nem australiano, de onde era aquele estranho?

— Você ainda não disse o motivo de estar no Saol...

— O que te faz achar que vou dizer? Eu nem te conheço — retruquei.

Ele riu de novo, tinha um tom de desdém. Continuei a andar e ele me


seguiu, eu não conhecia o local e não queria que ele me seguisse pelo
campus, sabe-se lá que tipo de doença mental ele tinha, então vi a placa
indicando a direção dos banheiros e segui para lá.

Não havia sinal dele quando entrei, então fiquei um tempo na cabine
esperando o tempo passar. Que graça teria ele saber dos meus motivos para
ter que comparecer ao grupo? O que ele pensaria se eu dissesse que estava ali
por que minha mãe era uma vadia, por que todos mentiram para mim, e
principalmente por ser culpado pelo acidente de Max? Aquele grupinho
parecia oferecer mais lamentações que apoio.

Não pude me conter, comecei a sentir a raiva me dominar, a tristeza, as


mágoas, soquei a parede até meu punho começar a sangrar. Então saí, mas lá
estava ele sentado na bancada de mármore com um cigarro aceso na mão.
Parecia tão rude, daquele tipo que afasta as pessoas só com o olhar, mas ao
mesmo tempo ele era tão lindo.

Rixon expeliu a fumaça e a observou calmamente como se estivesse


deixando escapar de sua boca uma obra de arte, tinha algumas olheiras sob os
olhos cinzentos e mortos que me encararam. Por um momento eu até esqueci
que estava sangrando.

— Você ainda está me seguindo.

— Não, só quero saber o motivo — respondeu.

Fui até a pia, lavei a mão, observei o pouco sangue desaparecer na água,
então lavei meu rosto e me encarei no espelho. Queria quebrá-lo também.

— Não vou dizer.

Ele desceu da bancada e ficou atrás de mim, assustado me ergui e virei de


frente para ele, estávamos muito próximos. Aqueles olhos persuasivos
tentavam me convencer, mas eu não cairia no seu truque. Ele tragou o cigarro
mais uma vez, expeliu a fumaça em meu rosto e riu.

— Do que está rindo?

— Só estou imaginando o motivo. Deixe-me criar o seu perfil. Você é um


daqueles garotos mimados que tem tudo o que deseja, uma família perfeita e
rica, irmãos maravilhosos, empregados ao seu dispor e um chihuahua
chamado Fifi, está aqui por que é gay, uma forma de se rebelar contra seus
pais controladores...

— Errou feio, eu só tenho... um tumor, no cérebro. É maligno, tenho


pouco tempo de vida. Em resumo, é uma droga. Satisfeito?

Mentir era a minha única saída, não esperava que ele caísse no meu blefe,
pois ele parecia bastante esperto, mas caiu.

— Você fala tão naturalmente sobre isso...


— A gente se acostuma, sabe?

— Peço desculpas, mas sou obrigado a dizer que há formas melhores de


se machucar. — Ele encarou o punho que eu acariciava.

Depois simplesmente saiu. Me senti um pouco culpado por contar uma


mentira tão absurda. Quem dera fosse verdade, assim eu morreria e
encontraria o descanso no paraíso de que tanto falam, ou no inferno, se é que
isso tudo existe.

Não voltei para o grupo, como ele adivinhara. Saí do parque e fui para a
Ceatha me sentindo pior do que quando saí. Não falei com ninguém, me
tranquei no quarto, deitei na cama, me enrolei até o pescoço, estava com o
velho sentimento de abandono, meu coração doía. Pensei em Max, queria
estar com ele, mais que qualquer coisa.

Até quando ele ficaria em coma? Até quando eu não o teria?

Até quando?
Capítulo 5
Fim de Semana
QUANDO O MEU PRIMEIRO FIM DE SEMANA CHEGOU, EU
ESTAVA atolado de assuntos para estudar, além de relatórios e outras
coisinhas. Konstantin e eu passamos parte da noite na biblioteca e o sábado
inteiro de cara nos livros. Já passava das oito da noite quando Duane e Elijah
desceram bem produzidos, dava para sentir o perfume deles de longe.

— Vão sair? — Perguntou Konstantin.

— Não, me arrumei para passar o sábado em casa...

Elijah riu da grosseria dele, eu quase ri também.

— O que estão fazendo? Qual o motivo de não estarem prontos? —


Duane perguntou incrédulo.

Eu e Konstantin nos entreolhamos.

— Prontos?

— É sábado! Vocês são loucos? Quem fica em casa no sábado à noite


estudando quando se tem uma cidade inteira para explorar? — Duane
continuou.

— Para não sermos reprovados, talvez? — Respondi.

Elijah riu, Duane puxou a tomada do computador.

— Vão se arrumar, vocês têm trinta minutos.

— Mas...

— Sem essa. Vocês são calouros, tem um mundo novo para descobrir.
Precisam aproveitar, antes que a universidade tome 100% do seu precioso
tempo, pois acredite, ela faz isso. — Elijah aconselhou.

Bem, até que eles tinham razão, talvez nós estivéssemos nos precipitando,
talvez devêssemos aproveitar mais um pouco. Eu não queria sair, mas Duane
era impossível, eu já havia percebido isso nele, então não discuti mais.

Alguns minutos depois eu desci, estava pronto. Escolhi uma camisa


branca com estampa dos Beatles, uma jaqueta jeans aberta por cima, uma
calça preta, os coturnos e a pulseira que ganhei de Drake.

Konstantin estava bem mais bonito, ele era antenado sobre o que as
pessoas estavam vestindo, assim como Duane, mas quando os encontrei no
hall, nenhum deles pareceu se incomodar com meu estilo "sem graça". O
próprio Elijah também não parecia se preocupar com moda. Usava jeans, um
tênis baixo e uma camisa regata alongada que deixava parte de seus músculos
à mostra.

Saímos da Ceatha e andamos apressadamente pela Rodovia College,


achei que estivéssemos em busca de um táxi, mas Duane deixou claro que
não passavam muitos táxis disponíveis por ali.

Então ficamos esperando por algum amigo de Duane perto do café.

— Acho que ela se esqueceu de nós, não é melhor chamarmos um Uber?


Está ficando tarde e tenho medo de sermos assaltados... — Elijah disse.

— Nem vem. Da última vez que você disse algo assim, nós quase
batemos o carro. Ela virá. — Duane assegurou.

Eu e Konstantin nos limitamos a esperar calados. Ficamos na calçada por


uns vinte minutos, tínhamos sorte que era sábado e toda a rodovia estava
movimentada, não parecia haver risco de assalto.

Uma espécie de jipe surgiu entre os carros comuns, tocava Spice Girls
bem alto, parou no acostamento, nele estavam três garotas, a motorista era
Elise, que não parou de cantar Wannabe para nos cumprimentar.
Elijah abriu a porta do motorista e empurrou ela para o outro banco,
parecia irritado por ela dirigir levemente bêbada e chamar tanta atenção.
Duane se ajeitou com ela no banco do carona já se juntando à cantoria, eu e
Konstantin nos apertamos com as duas garotas no banco de trás.

— Dá para baixar esse som? — Elijah perguntou gritando.

— Não! — As meninas e Duane responderam juntos. Eles estavam


levando à sério a interpretação da música.

Cork, à noite, parecia um sonho. Era realmente linda como dizia num site
de buscas que pesquisei antes de vir. O trânsito não estava fraco, mas era
calmo, passamos por uma ponte antiga, a lua dava um brilho quase sensual ao
rio escuro. Passamos por algumas ruas cujas casas me lembravam cenários de
Harry Potter.

— Para onde vamos? — Perguntei.

— Ao The Oliver Plunkett. É um pub bem legal, você vai gostar. —


Disse uma das garotas. Não me esforcei para ser simpático com ela, nem
sequer respondi. Apenas fiquei ansioso para chegarmos logo ao tal lugar.

O Centro de Cork ficava há cerca de quinze minutos da universidade, era


lá que se localizava o Oliver, além de outras dezenas de pubs. As ruas eram
estreitas, feitas para pedestres, então Elise deixou o carro uma quadra antes e
seguimos andando.

O lugar parecia bem tradicional por fora, havia algumas mesas na calçada
e pessoas bebendo e comendo petiscos enquanto conversavam, o prédio era
de esquina, o que o deixava com um aspecto triangular.

Nós entramos, o clima lá dentro era abafado, a decoração era feita com
fotos antigas, citações de escritores famosos e até pinturas que iam de
Michael Collins à John F. Kennedy. Havia mesas, sofás e pufes por todos os
lados. O balcão estava cheio, pessoas da nossa faixa etária pediam cerveja e
os mais diversos drinks.

Dos alto-falantes um jazz ecoava suavemente, todos pareciam muito bem


aconchegados.

— Onde vamos sentar? — Konstantin perguntou olhando ao redor, não


parecia ter mesas disponíveis, mas no mesmo instante duas pessoas que
ocupavam uma delas se levantaram.

— Ali, rápido!

Nós fomos rápido à mesa, nos sentamos e em questão de segundos uma


bela garçonete apareceu com um sorriso incrivelmente branco.

— Nós vamos querer filetes de frango, batatas picantes, uma rodada de


cerveja, e amendoins.

— Uma coca diet, por favor. — Disse Elijah interrompendo Duane, que o
olhou incrédulo.

— Algo mais? — A garçonete perguntou com seu sotaque irlandês.

— Por enquanto, é só.

A garçonete saiu, as garotas que vieram com Elise logo saíram também,
tinham um pub melhor para ir, segundo elas. Então ficamos em cinco. A
bebida chegou rápido e a comida veio em seguida.

— Este lugar não é meio antiquado? — Konstantin perguntou. Duane


colocou seu copo de cerveja na mesma, parecia ofendido.

Nos entreolhamos, Elise e Elijah já estavam rindo.

— Antiquado? Você disse mesmo isso? Se você olhar com um pouco


mais de atenção, vai perceber que este lugar está repleto de fatos históricos
sobre Cork. Por exemplo, as paredes do teto são revestidas com uma coleção
de quadros antigos, fotos, e citações irlandesas interessantes. Este lugar
"antiquado" tem várias linhas de poemas, canções em irlandês antigo nas
paredes, para todo lado que você olhar terá algo interessante para ver ou ler,
além dos frequentadores mais interessantes ainda. Isso sem falar no Frisky
Whiskey, um bar maravilhoso que fica no primeiro andar, consegue ser mais
interessante e "antiquado" que aqui, ele conta com especialistas que escolhem
o melhor uísque de acordo com o gosto do cliente. Então boneca russa, pense
duas vezes antes de julgar um lugar incrível como esse.

Era o orgulho irlandês falando por ele, Duane estava realmente ofendido
com o comentário de Konstantin, que simplesmente murmurou um
"desculpe".

— Não esquenta com isso Konstantin, Duane é bem patriota e esse lugar
aqui é como um santuário da noite irlandesa para ele. — Elijah explicou.

— Isso, sem contar que ele faz arquitetura e design. — Elise completou,
nós rimos.

Naquele momento eu senti um pouco de alegria, estava bebendo e me


divertindo com as pessoas que me acolheram. A ignorância de Konstantin
serviu para mostrar que Duane não era superficial como parecia.

Tive um pensamento rápido, não sei se servia de consolo ou para me


deixar mal, era que naquela noite não haveria confusão, como sempre havia
quando eu resolvia me divertir em Heaven Wood. Não haveria Max para
brigar por mim ou qualquer outra coisa parecida, o lugar era totalmente
civilizado apesar de ter muita gente visivelmente bêbada.

Foi quando a música parou e acenderam as luzes do palquinho que eu


percebi a presença dele. Lenn James estava sentado em um banquinho,
segurava o violão com uma mão, com a outra ajustava a altura do suporte do
microfone, ao lado dele outro rapaz arrumava algo no teclado.

Então ele era cantor?

Lenn não parecia ser muito receptivo, foi o rapaz no teclado quem deu
boa noite à plateia pouco interessada. Ele ainda não tinha me visto, e eu torci
para que não visse até que tivesse terminado de tocar, assim eu poderia
observá-lo em segurança, longe daquele olhar.

Quando começaram a tocar aquela melodia familiar, me arrepiei.

— Don't let me down, Don't let me down... — Ele começou a cantar.


Sua voz era fascinante, assim como todo o resto nele, mas o que me fez
ter um pequeno choque não foi seu timbre, mas sim o fato de ele estar
cantando os Beatles no mesmo dia em que resolvi usar minha camisa da
banda.

Os outros na mesa nem pareciam ter percebido que ele estava no palco,
seria cotidiano? Não havia outra explicação, afinal ele era tão interessante,
por que ninguém parecia se interessar? Ou melhor, por que eu estava tão
interessado?

Quando a música acabou, eles iniciaram A Day in the Life, continuei


paralisado observando como um fã observa seu ídolo.

— O que ele tem? — Ouvi Elise perguntar aos meninos.

— Ele é da Inglaterra e o seu amigo estranho está tocando Beatles, deve


ter algo a ver. — Elijah respondeu.

Virei-me para eles.

— Lenn é seu amigo?

— Uau, já sabe até o nome dele. Sim, às vezes eu lhe forneço uns doces.
— Elise respondeu sorrindo, mas parou ao ver a reprovação no olhar do
irmão.

Continuei a encará-la, não sabia ao certo o que perguntar, ou se devia


perguntar.

— Conheço esse olhar. — Konstantin disse começando a sorrir.

— Você está a fim dele! — Elise concluiu.

— Não! Não estou, eu já tenho alguém...

Todos na mesa me encaravam graças ao comentário e eu, obviamente,


estava ficando cada vez mais vermelho.

— Não vou com a cara dele. — Duane concluiu.


— Você não vai com a cara de ninguém — rebateu Elijah.

Elise tomou um gole grande da sua cerveja antes de falar.

— Meu querido cunhado é uma bicha chatinha, não é novidade ele não
gostar do rapaz, mas uma coisa é certa: aquele ali é problema.

Não respondi, não queria que eles pensassem que eu estava mesmo a fim
dele. Era errado, Max estava em coma por minha culpa, eu não podia me
interessar por ninguém, ainda assim ele despertava minha atenção.

Bebi mais enquanto os outros tagarelavam sobre qualquer coisa que não
prestei atenção por estar, ainda, observando Lenn James, que cantava tão bem
minhas canções favoritas dos Beatles. Então depois de cantar Hey Jude ele
parou, não se despediu, apenas saiu do pequeno palco cedendo o violão para
outro rapaz que eu mal havia percebido estar ali.

Foi ao ficar de pé que ele me viu, seus olhos encontraram os meus e foi
como se duas pedras estivessem se chocando. Seus lábios não se moveram,
mas eu podia jurar que ele estava sorrindo.

Lenn saiu de lá e foi na direção do corredor que levava aos banheiros e à


escada para o Frisky Whiskey. Não sei de onde tirei coragem, principalmente
depois das cenas estranhas que protagonizamos juntos, mas levantei e disse
para os outros que iria ao banheiro, mas não ia. Não, a menos que ele
estivesse lá. Ele havia subido a escada, soube quando ouvi a porta lá em cima
bater, segui nessa direção e ao entrar no outro bar, foi como se eu fosse
transportado para a Idade Média.

O lugar era mais peculiar que o andar de baixo, era tradicional, parecia
uma taverna. Era decorado com vários instrumentos genuínos da Irlanda,
havia barris empilhados no mesmo tom brilhante da madeira das prateleiras
repletas de vários uísques, das mesas e cadeiras antigas, até do balcão. O piso
era um pouco mais gasto, as paredes eram de tijolinhos prensados. Tudo
muito polido e envernizado, um perfeito ambiente rústico. A movimentação
em cima era um pouco menor, apenas umas cinco mesas estavam ocupadas e
no balcão cerca de três pessoas afogavam suas mágoas.
Procurei por ele e logo o vi sentado sozinho numa mesa afastada,
segurava seu cigarro com elegância, estava me esperando, não havia dúvida.
Sentei ao seu lado e comecei a tossir ao sentir o cheiro da erva que recheava
seu cigarro.

— Você é fraco — disse e quase riu.

— Não sou.

— Prove.

— Como? — Perguntei aturdido. Ele estendeu a mão para que eu pegasse


seu cigarro, foi quando notei hematomas na dobra de seu braço.

— Eu não vou fumar maconha. — Decidi.

— Como eu disse, você é fraco.

Cedi à sua provocação, traguei o maldito cigarro com vontade e não me


engasguei. Expeli a fumaça em seu rosto e não contive o riso de deboche, ele
pareceu contrariado, mas logo seus lábios se curvaram num sorriso de canto.

Minutos depois eu estava bêbado, já tinha perdido a conta de quantos


cigarros dividi com ele, tinha provado vários tipos uísques por sua influência,
nem sabia o motivo de ter feito isso, afinal eu mal sentia a diferença de um
para o outro, todos eram extremamente fortes. Era como se eu quisesse
apenas impressioná-lo, deixar claro que eu não era um calouro bobo e
inseguro.

— Então você está aqui!

Konstantin apareceu com Duane e Elijah, eles pareciam chateados. Tinha


tanta névoa na minha mente que eu apenas sorri para eles, nem sabia o que
dizer ou se eu tinha que dizer algo.

— Thomas, você está bêbado! Que cheiro é esse? O que você deu a ele?
— Duane perguntou para Lenn, que agora sorria cinicamente.

— Eu estava apenas apresentando a ele os melhores uísques do bar. —


Disse Lenn ainda sorrindo, Duane continuou encarando-o irritado. —
Marijuana talvez...

Elijah estava alerta atrás de Duane, Konstantin ao lado deles apenas me


encarava e girava os olhos.

— Vamos embora Thomas, acho que já deu por hoje. — Duane disse e
estava tentou me puxar pela mão para que eu levantasse, porém Lenn o
afastou.

— Acho que ele é adulto o suficiente para decidir quando deve partir.

— E eu acho que ele até seria, se você não o tivesse drogado com essas
merdas que você usa, seu viciado imbecil!

Lenn se levantou e avançou em Duane, mas Elijah se pôs entre eles.

— Encoste um dedo nele e você já era!

Os dois passaram alguns minutos frente a frente como dois cachorros


antes iniciarem uma briga. Konstantin e eu nos aproximamos para tentar
amenizar o problema, mas àquela altura já não tinha como.

Elijah empurrou Lenn, que avançou outra vez e lhe desferiu um soco no
rosto e logo estavam rolando pelo par, derrubaram duas mesas, Duane se
jogou sobre eles, não para apartar, mas para defender Elijah.

— Aon troideanna i mo bharra! — O homem por trás do balcão, que


imaginei ser o dono do bar, gritou.

Todos ali tinham parado para assistir a confusão que eu achei que não iria
acontecer. Com a ajuda dos garçons, Konstantin conseguiu separá-los, eu só
conseguia observar parado num canto enquanto tudo parecia girar em minha
cabeça. Duane e Elijah estavam preocupados um com o outro, verificando o
prejuízo, Lenn apenas saiu do bar com um olho roxo, nem se preocupou em
pelo menos me dizer tchau.
Capítulo 6
Cores Mortas
NO CAMINHO DE VOLTA, ELISE NÃO PARAVA DE
RESMUNGAR POR ter perdido a confusão, ela tinha saído antes para pegar
o carro e tudo o que viu foi o segurança nos enxotando do pub.

— Duane...

— Não Thomas, nós vamos conversar quando chegarmos em casa.

Ele estava bem chateado. O efeito dos uísques já começava a passar


conforme passávamos pelas ruas de Cork. Elise dirigia, ao lado dela ia
Konstantin com uma expressão neutra. Ao meu lado no banco de trás estava
Duane que não parava de fazer carinhos em Elijah.

— Você está bem mesmo? Se não estiver, podemos passar numa


emergência para verificar esse machucado no seu rosto...

— Não exagera, foi só um soco. Mas se você sempre reagir assim, acho
que vou me meter em brigas mais vezes. — Elijah disse e o beijou.

— Nem brinca com isso, eu não me perdoaria se algo mais sério te


acontecesse.

— Quando ele te empurrou foi como se ele tivesse me insultado, fiquei


cego de raiva...

— Não vamos relembrar aquilo, eu odeio violência — Duane falou se


aninhando no corpo dele.

Por um momento eu os invejei.

— E eu amo, você.
Já estava bem perto do amanhecer, eu já conseguia ver as nuvens
começando a clarear quando chegamos à Ceatha. Não estava mais tão bêbado
quanto antes, mas assim que saí do jipe meu estômago se revirou e eu me
curvei para vomitar ali mesmo na calçada.

— Eca! — Duane resmungou.

Senti a mão de alguém nas minhas costas, logo vi que era Konstantin me
dando algum suporte. Pus tudo para fora e limpei a boca com as costas da
mão. Me afastei do toque de Konstantin, eu não estava tão mal assim.

— Obrigado.

— Hasta la vista baby! — Disse Elise, ainda visivelmente bêbada,


buzinou e partiu, Elijah gritou dizendo que tomasse cuidado, mas ela já
estava longe.

Entramos, Duane foi até a geladeira e preparou uma compressa de gelo,


em seguida sentou no sofá com Elijah e ficou pressionando no machucado.

— O soco que ele recebeu causou esse hematoma, não acho que gelo vá
ajudar a fazê-lo sumir, talvez se você for à farmácia e...

— Não lembro de ter pedido sua opinião de estudante de medicina,


boneca russa. — Duane fez Konstantin calar a boca.

— Vocês podem ir dormir, Du não vai parar enquanto não tiver certo de
que estou bem. — Disse Elijah, ele tirou a camisa e deitou no colo do outro.

Konstantin foi para o nosso quarto, eu continuei ali por um momento, em


silêncio, apenas observando a relação que os dois tinham. Por mais que
vivessem implicando um com o outro, bastou uma briguinha de bar e lá
estavam como o casal mais perfeito do mundo. Isso deve ser amor, mas não
sei, o amor é uma droga da qual não tenho provado há tempos.

— Eu quero me desculpar. — Falei, me sentindo mais envergonhado que


antes.

— Não é uma boa hora Thomas, você pode ir dormir, podemos conversar
sobre isso depois. — Disse Elijah.

Eu assenti, não poderia fazer nada para mudar a confusão que causei,
como sempre. Mas por mais que parecesse errado, eu estava preocupado com
Lenn James, será que ele estava bem? Estaria em casa ou ainda na rua? Eu
não tinha nem o número do celular dele, ou melhor, não sabia nem se ele
tinha celular.

Mas o que eu estava pensando? Essa curiosidade não poderia ser algo
bom para mim, afinal eu tinha Max e, mesmo que ele não estivesse mais
presente, eu não podia traí-lo de nenhuma forma.

— Você está pensando demais. — Disse Konstantin, tinha acabado de


sair do banho. — Em que está pensando?

— Em alguém que deixei para trás...

Peguei minha toalha e saí do quarto, eu já sentia o calor da manhã, um


banho gelado talvez me fizesse muito bem.

***

Nós dormimos por toda a manhã e só acordamos por que Elijah bateu na
porta para anunciar o almoço, já passava das duas da tarde. Nós descemos,
Konstantin usava uma calça de moletom e uma camisa regata branca, eu
estava com um calção de seda e uma camisa folgada.

Os dois já pareciam ter voltado ao normal, Duane estava se


empanturrando com um prato enorme de boxty, nem parecia o rapaz irritado
de antes, estava até um pouco sorridente.

Nos juntamos a ele e comemos como se não houvesse amanhã.

— Você vai lavar a louça comigo hoje. — Duane disse para mim, eu
assenti. Lavar louça não era uma grande tarefa, eu poderia até fazer sozinho
se ele quisesse descansar ou fazer qualquer outra coisa.

Quando terminamos, Elijah arrastou Konstantin para o campus alegando


precisar dele para uma pesquisa na biblioteca, embora fosse domingo.
Duane começou a jogar os restos no lixo e eu retirei a mesa, levando tudo
para a pia com cuidado para não tropeçar e derrubar tudo no chão, o que era
bem a minha cara. Comecei a lavá-los, Duane voltou com mais alguns
recipientes e se pôs do meu lado com um pano na mão.

— Se você quiser descansar ou algo assim, eu posso fazer isso sozinho —


sugeri.

— Lavar a louça tem outro significado no meu vocabulário, quer dizer


"vamos conversar". — Explicou.

Pude sentir seu olhar em mim, mas continuei focado nos pratos.

— Eu não o conheço, você não me conhece, tudo bem, mas eu quero que
entenda uma coisa. A Ceatha significa muito para mim, pode parecer
bobagem, mas não é. Aqui é a minha segunda casa há exatos quatro anos, eu
sou presidente desse lugar, tenho feito de tudo para mantê-lo de pé, sabe por
quê? Porque vocês são a minha família aqui.

Lhe passei alguns pratos e ele foi secando.

— Você sabe o que significa Ceatha?

— Não, mas quero saber.

— Ceatha, em irlandês, significa arco-íris. Um fenômeno simbólico que


diz muito sobre quem nós somos. Não sei se você percebeu, mas somos todos
gays aqui, o arco-íris é um dos nossos símbolos, por sua diversidade de cores,
suas diferentes nuances convivendo em harmonia. Nós somos o arco-íris, não
deixe que ele te escureça.

Fingi ignorar sua metáfora, embora ela fosse muito pertinente.

— Talvez seja tarde, minhas cores já estão mortas.

— Não, olhe para mim. — Duane falou com tanta seriedade que obedeci.
— Seja lá o que te aconteceu, nunca é tarde demais. Não seja só mais um
calouro bobinho que se envolve com o lobo mau, você é melhor que isso —
aconselhou.

Retribuí seu olhar, ele tinha boas intenções, eu podia sentir em sua
expressão que queria me ajudar, mas como ele poderia saber que Lenn era o
lobo mau? Nem todo mistério leva o expectador a um assassino.

— Obrigado Duane, vou me lembrar disso. E me desculpe pela confusão


no bar...

— Pare, são águas passadas. Só não faça Elijah se machucar outra vez,
ele é tudo para mim. Sei que soa brega, nunca sequer disse a ele... enfim.

***

Eu não o vi por mais dois dias, e isso só aumentava minha vontade de vê-
lo. As aulas pareciam cada vez mais interessantes, mas eu não conseguia
prestar muita atenção, estaria ferrado se não fosse por Konstantin.

Então mais uma quarta-feira chegou e quando a última aula acabou passei
na Ceatha com Konstantin, troquei de roupa e saí correndo para o Parque
Fitzgerald. O belo lugar já não me parecia tão estranho, era até familiar. Eu
estava atrasado para a reunião, mas ninguém pareceu se importar quando me
juntei ao círculo, no centro dele estava Lenn, que não me viu chegar por estar
de costas. Estava frente a frente com Patrick, o líder do grupo, já tinham
começado.

— Então você acha que a sensação é boa, não passa pela sua cabeça que
isso te machuca? — Patrick perguntou.

— Sim, machuca. Mas se elimina qualquer sentimento ruim, como


arrependimento, angústia ou remorso, ainda que por pouco tempo, é um
preço justo a pagar — Lenn respondeu, sua voz era confiante, o que parecia
deixar Patrick aborrecido.

— Se você pensa assim... não vou te julgar.

— É claro que vai. — Lenn sorriu. — Todos vocês me julgam, posso ver
em cada olhar. Estão me julgando por achar uma maneira de tornar a vida
suportável, mas não jugam seus próprios problemas ridículos, como
compulsão por comida, compras ou até mesmo um cara...

— Rixon, por favor, o grupo foi criado para...

— Iludir idiotas, é para isso que o grupo serve. Eu não sou idiota Patrick,
se a instituição não me obrigasse a participar desse circo, eu nem estaria aqui.

Lenn parecia estar revoltado com algo, ficou de pé e se virou para nós,
me viu e pareceu um pouco surpreso, embora não fosse fácil decifrá-lo. Ele
saiu do círculo, pegou a bolsa que estava na grama e saiu apressado, os outros
apenas o observavam. Lenn tinha razão, eles o estavam julgando.

— Vamos continuar, quem é o próximo a sentar no centro? Talvez você


Thomas?

— Eu vou atrás dele, desculpe.

Segui o impulso outra vez, quase corri para não o perder de vista, ele já
estava fora do parque quando o alcancei. Estava usando jeans rasgados e uma
camisa azul clara, o vento balançava seu cabelo, ele tirou um cigarro da
carteira e o acendeu.

— Lenn...

Ele parou e virou-se para mim.

— O que foi? Veio ver a aberração de perto? — Perguntou. Ele tragou e


depois expeliu fumaça daquela forma única.

— Já vejo uma todos os dias quando estou em frente a um espelho —


aleguei. Ele riu. Aproveitei para chegar mais perto, tomei o cigarro de sua
mão e fumei.

— Que ousado. Você devia ir.

— E por que eu deveria?

— Você sabe, eu sou encrenca, alguém já deve ter dito. — Ele disse
tomando o cigarro de volta, então sorriu, mas estava encarando a rua, em vez
de mim.

Não sei se deveria, mas eu sorri de volta.

— Eu não acredito no que falam.

— Deveria.

— Talvez eu é que seja encrenca. — Sugeri.

E assim ele se foi caminhando devagar na luz morna do sol vespertino.


Não o segui, embora quisesse. Em vez disso fiquei observando, seu jeito de
andar, a forma como os braços se moviam a cada passo que ele dava, a
postura impecável. Ele era tão enigmático que, por mais clichê que fosse, eu
queria desvendar cada pedaço dele.

***

Entramos no laboratório após o almoço. Não sabíamos bem o que ia


acontecer, estávamos nervosos, Konstantin chegava a tremer. Tudo o que nos
disseram foi que teríamos nossa primeira aula prática de anatomia, ou seja,
nós teríamos contatos com cadáveres.

Nosso professor, o Dr. Dawson, um senhor que não devia ter mais de
cinquenta anos, era bem compreensível. Ele pediu que nos acomodássemos
em nossos lugares e nos alertou, poderíamos passar mal, desmaiar ou ter
crises de choro, pediu para ficarmos calmos e disse que se tivéssemos algum
desses sintomas, não era motivo para vergonha, pois sempre acontece.

O laboratório era bem intimista, apesar de espaçoso, não era como as


salas de aulas enormes onde ficamos distantes dos professores. Haviam
colocado assentos próximos ao palco da altura de um degrau onde estava o
Dr. Dawson e de frente para ele uma mesa de metal coberta com um lençol
branco.

— Antes de começarmos, quero dizer que, acima de tudo, devemos


respeito às peças que manuseamos. Não devemos brincar, temos que levar a
sério o que fazemos aqui e ter consciência de que nelas já existiu vida. Por
isso, lhes apresento a Oração ao Cadáver Desconhecido, vocês devem
aprendê-la e dizê-la sempre antes de manusear um corpo, não importa a sua
crença. Entenderam até aqui? — Ele perguntou. O professor parecia
estranhamente comovido enquanto falava.

Nós assentimos, havia cerca de trinta alunos na sala.

— Repitam comigo: "Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre
o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas
almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o
agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por
certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou
um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado
uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o
sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a
humanidade que por ele passou indiferente.".

Ao terminarmos a oração, todos se sentiam profundamente tocados.


Konstantin enxugava discretamente uma lágrima, assim como grande parte
dos alunos presentes.

— Estão prontos? Não, ninguém está pronto para o que vem a seguir, mas
sejam fortes, temos muito a aprender hoje.

Quando ele retirou o lençol que cobria a mesa, estavam dispostas sobre
ela o que ele chamava de peças, que eram partes do corpo humano, havia
ossos de membros diferentes, alguns ainda unidos aos ligamentos, músculos e
pele, tinha coloração amarelada que lembrava podridão, mas o único cheiro
em todo o ambiente era o do formol.

O Dr. Dawson começou a nos fazer perguntas usando as peças de acordo


com o que tínhamos estudado na teoria. Como era a primeira aula prática, nós
apenas conhecemos as peças, podendo tocá-las com devido cuidado e
respeito, duas garotas saíram correndo para vomitar e um garoto quase
desmaiou, mas no fim, tudo ocorreu bem.

Nós saímos do nosso bloco pouco antes do anoitecer.


— Me sinto esquisito. — Konstantin disse enquanto caminhávamos até a
Ceatha.

— Eu também, nós estávamos manuseando cadáveres, isso é bem


perturbador.

E era verdade, não tinha como fugir do choque do primeiro contato, eu


tinha lido na internet como funcionava uma aula de anatomia, mas ler
histórias que ninguém sabe se é verdade é bem diferente de vivenciar.

— Nós podíamos passar no centro de estudantes hoje, para nos distrair


um pouco.

— É, por que não? — Concordei.

Quando chegamos no cruzamento da rodovia, esperamos que o sinal


fechasse para atravessarmos, foi quando um carro se destacou entre todos os
outros.

Nunca entendi muito de carros, mas eu reconheceria de longe a beleza


inconfundível de um Chevy Malibu 1964. Era como um sonho de consumo
para o Velho Thomas, eu sabia todos os detalhes dele de cor. Era um
conversível raríssimo, o que passava era preto perolado, incrivelmente
conservado, o sinal fechou e ele parou para que passássemos, só então
percebi quem era o motorista: Lenn James, em carne e osso.

Quando seus olhos cinzentos encontraram os meus foi como se o mundo


estivesse todo em câmera lenta, mas eu e Konstantin atravessamos, o sinal
abriu e ele foi embora naquele mar de automóveis.
Capítulo 7
As Verdadeiras Cores
DUAS SEMANAS SE PASSARAM SEM MAIORES
ACONTECIMENTOS, Lenn James estava faltando às reuniões das quartas-
feiras e eu não fazia ideia de onde achá-lo, fui apenas na esperança de que ele
também fosse. Olhei a hora no meu celular quando acordei, já passava das
dez horas, dia 24 de outubro.

— Estamos indo ao Fitzgerald fazer um piquenique à beira do lago, não


quer ir conosco? — Konstantin disse, já devia estar de pé há mais tempo,
estava terminando de se arrumar.

— Não obrigado, prefiro ficar aqui dormindo.

Konstantin deu de ombros e saiu. Resolvi que era dia de ligar para a
família, eles estavam respeitando o espaço que pedi, mas deviam querer
notícias minhas. Eu não podia continuar sendo um cretino, além disso, eu
sentia falta de Drake, Karola e até do Henry.

Liguei para Drake primeiro.

— E aí mano! Não esperava que fosse me ligar. — Disse, parecia feliz.

— Oi Drake, como você está?

— Cara, eu estou ótimo. Não sei se você lembra, mas já me mudei, estou
em Liverpool levando uma vida boêmia às custas do nosso querido cunhado.
— Contou.

Eu ri.

— Drake! Henry é um cara legal, não devemos abusar da boa vontade


dele, afinal ele não tem obrigação de bancar a nós dois e mesmo assim o faz
— lembrei.
— Não se preocupe, é brincadeira. Estou me dedicando, tudo aqui tem
sido um sonho...

— Imagino que sim, aqui também é legal. Eu vou desligar agora, preciso
ver como estão as coisas em nossa casa.

— Ok, não suma.

Desligamos.

Procurei por Karola na agenda e liguei, já esperava sua recepção irritada.

— Olha só quem lembrou que tem uma irmã! — Disse indignada.

— Nunca achei que diria isso, mas é bom ouvir sua voz irmãzinha.

— Eu sei que é! Brincadeira, eu estava preocupada com você Tom, não


ligou uma vez sequer para mim ou Henry...

— Eu avisei que precisaria de espaço. Toda vez que falo com um de


vocês morro de saudades depois. Não quero ter vontade de voltar, então... já
que liguei, pode me contar as novidades? — Tentei convencê-la, e parece que
funcionou.

— Bem, por onde eu começo? Vou me casar! Henry pediu minha mão à
mamãe e ela a concedeu, com direito a anel caro e tudo, se entrasse mais no
seu Facebook teria visto. Deixe-me ver o que mais... ah! Max continua
estável, não teve mais problemas desde o transplante e Loren apareceu para
vê-lo, mas foi expulsa de lá pela mãe dele, você devia ter visto. O Velho está
bem doente, mamãe sempre o visita, parece que os dois fizeram as pazes. E
Edward também está noivo, lembra daquela ensossa com quem ele tinha um
rolo? Pois é, parece que ela o fisgou...

Eu queria ignorar a menção ao nome de Max, só de pensar nele meu


coração se apertava de medo, culpa e principalmente de saudade.

— Não quero saber nada dele. Fale mais sobre o casamento, quando será?

— É meio cedo para dizer uma data, mas queremos que aconteça no
início do próximo ano, janeiro ou fevereiro. O que você acha? — Perguntou,
ela estava bem animada com isso.

Me senti feliz por ela.

— Ótimo, estarei de férias, poderei comparecer.

— É claro que sim.

Ouvi no fundo a voz de mamãe perguntando se ela estava falando


comigo, então, antes que aquilo virasse uma tentativa dela para falar comigo,
desliguei. Ainda doía lembrar.

***

Eu não entendi quando vi Edward repousando naquele leito, como diabos


ele poderia ser compatível com Max?

— Não entendo. — Foi como se meu cérebro desse um nó. Me virei para
a Sra. Dodger. — A senhora disse que o transplante só seria feito se
conseguissem encontrar um parente próximo...

— Era disso que eu estava falando Thomas, daqui para frente, você
nunca mais vai ver a vida como antes. — A Sra. Dodger respondeu me
olhando, parecia triste, exausta.

Olhei para Edward, ele estava prestes a chorar, ele não era do tipo que
chorava, como eu. Ele sempre soube controlar suas emoções.

— Tom, eu vou te contar tudo, fique calmo. — Edward disse, estava um


pouco grogue.

— Ficar calmo? Não me peça para ficar calmo, eu só quero entender o


que está acontecendo aqui!

A Sra. Dodger saiu do quarto, eu estava quase gritando, me sentindo


traído, mesmo que ainda não entendesse o que aquilo queria dizer.

— Tom... o Max é meu meio-irmão.


***

Criei coragem para levantar, não sabia bem o que queria fazer com meu
fim de semana, mas como não queria sair com ninguém, fui até o centro de
estudantes, almocei no pequeno restaurante de lá e fiquei de cara nos livros
até anoitecer, quando resolvi voltar à Ceatha.

Elise estava esparramada no sofá só de calcinha e sutiã assistindo com


Duane, Elijah preparava a refeição na cozinha e Konstantin o ajudava, mas
parou instantaneamente e foi ao meu encontro quando me viu chegar.

— Você não vai acreditar! Consegui dois ingressos para o Holi One!

— Não faço ideia do que seja isso. — Confessei.

— É um festival bem legal onde todo mundo fica se sujando com pó


colorido e dançando ao som de diferentes DJ's, eu vou todo ano, eu gosto. —
Disse Elise, intrometida.

— Você gosta de qualquer lugar onde todos possam ficar bêbados e se


esfregar numa espécie de dança do acasalamento. — Elijah protestou.

Duane começou a rir.

— Bem, não interessa o que eles dizem, é amanhã e você vai comigo! —
Konstantin decidiu.

— Não sei se é uma boa ideia, todas as minhas saídas acabam em


confusão...

— Mas o festival já é uma confusão, não tem desculpa, não aceito não
como resposta. Alguém me deu esses ingressos esperando que eu vá, e eu não
posso ir sem você. Thomas, você não privaria um amigo de viver uma
história de amor, não é mesmo?

Filho da mãe!

— Ok, eu vou! — Deixei que ele vencesse pelo meu cansaço, eu não
tinha mais muita paciência para pessoas insistentes, e também não tinha nada
a perder.

Ou tinha?

***

Konstantin passou a manhã inteira do domingo se arrumando, eu vesti


apenas uma calça jeans clara, uma camisa cinza e os coturnos de sempre. Ele
não parava de tagarelar enquanto estávamos no ônibus, foi até um alívio
quando descemos no Kiltegan Crescent, um bairro pouco habitado, mas havia
inúmeros terrenos e entre eles estava o extenso gramado onde o festival
aconteceria. A fila era imensa, mas nós não tínhamos pressa para entrar. Já
dava para ouvir a música que vinha de lá, embora ainda fosse cedo.

— Eu nunca poderia ir a um festival desse na Rússia. — Konstantin falou


de repente.

— É?

— Considerariam isso como um festival para gays e lá você sabe como é,


um país homofóbico, demonstre quem você é e seja agredido, preso ou
morto, ou as três coisas de uma vez. É basicamente isso.

Fiquei pensando sobre o que ele disse e logo me senti um pouco culpado
por ser o amigo chato da história, o que vai à festa e não se diverte, então
decidi que faria o possível para me divertir com ele, afinal é para isso que
servem os amigos, não?

Depois de quarenta minutos na fila, entramos e eu fui direto comprar


cervejas.

— Parece que alguém se animou... — Konstantin disse quando lhe passei


uma.

— Se você não pode com o inimigo, junta-se a ele.

Fizemos uma espécie de brinde e começamos a circular, o lugar ainda não


estava totalmente cheio, mas já havia muita gente, a maioria usava branco
para se colorir quando houvessem as explosões de cores. A área onde
estávamos ficava longe dos dois palcos e nela estava a roda-gigante, as
barracas de bebida e comida, algumas mesas de piquenique e banquinhos, do
outro lado ficavam os banheiros químicos. Havia ainda uma pequena área
como um bosque temático para os fumantes.

— Não entendo bulhufas dessas músicas irlandesas. — Konstantin falou


com a voz elevada por conta da música.

— Temos que praticar mais o idioma.

Konstantin comprou mais cervejas quando as nossas acabaram e nessa


brincadeira, vinte minutos depois tínhamos tomado dez latas e eu já me sentia
diferente. O primeiro DJ já estava tocando e nós estávamos longe da
multidão. Ele não parava de mexer no celular, parecia ansioso.

— Ei, você pode ir encontrar o seu príncipe encantado, eu vou ficar bem
sozinho.

— Tem certeza? Mas e se eu não te achar depois? — Perguntou.

— Estou com meu celular, e nós dois sabemos voltar para casa, se não me
encontrar por aqui quando a festa acabar, pode ir.

Ele não tinha certeza se era uma boa ideia, mas assentiu e saiu, e eu
continuei lá com minha garrafa de cerveja na mão, sabia que não demoraria
mais que uma hora ali.

Já começava a anoitecer fui comprar um refrigerante para ajudar a tirar a


névoa da minha mente. Abri espaço entre as pessoas que pareciam ter surgido
do nada, tudo já estava completamente lotado, por todos os lados mal havia
espaço para se mover, então depois de comprar minha Pepsi resolvi voltar
pelo canto, seguindo pelas barras de proteção do local. O gramado estava
úmido e eu levei alguns escorregões ao passar, tropecei na grama e percebi
que naquele pequeno pedaço havia lama, meus pés estavam afundando, fui na
direção da multidão, me pressionando contra tantos corpos dançantes, estava
tentando contornar um grupo de hippies chegar à área menos movimentada
quando o vi.
Tão belo, como sempre. Usava jeans, uma camisa regata, não tinha
calçado nos pés, em uma mão estava o cigarro, na outra um cantil do que
imaginei ser uísque.

Seus olhos cinzas me fitaram, mas antes que eu conseguisse ter qualquer
reação, alguém esbarrou em mim e acabei caindo no chão.

Será que existe uma forma menos óbvia de ser tão desastrado?

— Você não olha por onde anda?! — Um rapaz bradou, ele segurou meu
braço com força e levantou meu braço tão bruscamente quanto o espaço
permitia.

O encarei, parecia um ogro, aposto que era jogador de basquete ou


qualquer outro esporte, tinha mais pessoas com ele e foi olhando ao redor que
percebi que eu o fiz derrubar a bebida quando caí.

— Desculpe... — Falei ao mesmo tempo em que tentava me soltar, mas


ele continuava me segurando com força. — Você está me machucando, por
favor me solte... — Pedi, morrendo de medo.

— Você precisa prestar mais atenção. — Ele falou apertando ainda mais
o meu braço e o virou para minhas costas como se fosse torcê-lo. Me
contorci.

Ele já estava atraindo a atenção de quem estava por perto, mas alguém
interveio e não foi um segurança do local. Um único golpe o fez cair na
grama suja e eu quase fui junto. Olhei para cima e vi Lenn, foi ele quem
desferiu o golpe.

Achei que a confusão só iria piorar depois daquilo, mas ele segurou no
meu braço e me puxou apressadamente para longe dali. Saí aos tropeços, ele
cheirava à erva. Passamos pelas mesas de piquenique e continuou me
puxando até chegarmos ao pequeno bosque, logo percebi que ali não servia
apenas para fumar, vários casais aproveitavam a privacidade e escuridão do
local. Fomos até o fim do espaço onde havia um muro, ele me jogou contra
ele.
— Está tentando se machucar outra vez? — Perguntou irritado.

Eu estava com as costas pressionadas contra o muro e Lenn na minha


frente, a poucos centímetros. Um de seus braços me prendia ali, tinha um
olhar raivoso e o maxilar pressionado com força.

Não consegui encontrar nada para dizer, por um momento me passou pela
cabeça todas aquelas festas que acabaram da mesma forma, uma briga por
minha causa, depois eu me refugiava em algum lugar seguro, que sempre foi
o banheiro, depois a pessoa errada sempre aparecia.

Lenn desistiu de me pressionar e acendeu um cigarro. Eu não devia nem


ter saído de casa.

— Desculpe — falei dando de ombros e saí por onde entramos.

Atravessei a entrada do bosque, ouvi o DJ anunciar algo, todos


começaram a contagem regressiva, não entendi, continuei andando sem rumo
no meio da multidão, mas uma mão se juntou à minha e me puxou para si, a
contagem acabou no número 1 e uma chuva de pó colorido invadiu tudo ao
nosso redor, como uma explosão de arco-íris, uma música começou a tocar e
todos pulavam enquanto se sujavam.

Lenn me encarou, seus olhos cinzentos eram magníficos, nós éramos os


únicos parados no meio da multidão em polvorosa, mas não parecia errado.
Ele agiu inesperadamente e me beijou como se fosse a última coisa que faria
na vida. Ainda que uma pequena parcela de culpa pressionasse minha mente,
eu retribuí na mesma intensidade.

Já era noite, não sei quanto tempo restava para o festival acabar, mas eu
queria ir embora, eu queria sair dali com ele.

— Venha comigo. — Ele disse quando nos soltamos. Mesmo que eu


quisesse dizer não, o que não era o caso, aquele olhar teria me convencido a
ir.

Olhei para sua mão estendida, se eu a segurasse, não teria volta. Olhei
para ele outra vez, estávamos tingidos das mais variadas cores, mas naquele
momento eu queria ver as verdadeiras cores que habitavam nele.

Segurei sua mão.


Capítulo 8
Um Pouco de Paz?
RIXON LENN JAMES ERA O NOME DO CARA MAIS MISTERIOSO
DE Cork e eu estava ao seu lado num antigo Chevy dividindo um cigarro ao
som de Johnny Cash. Não podia deixar de observá-lo dirigir, suas feições
nunca pareciam relaxar, ele era sempre tenso e quase não sorria, encarava a
rodovia à nossa frente, mal piscava, estava me levando para o seu recanto.

— What have I become, my sweetest friend? Everyone I know goes away


in the end...

Ele acompanhou o refrão, mas logo parou. Entramos numa rua deserta e
minutos depois ele parou diante de um casarão velho, uma placa no portão
dizia "Scornach Diabhail". O lugar parecia mais uma daquelas casas de filme
de terror que uma irmandade.

— Bem-vindo à Garganta do Diabo, dizem que muitos pervertidos


moram aqui e por isso deram esse nome, mas a verdade é que são apenas
alunos das artes, ou seja, cada um com sua peculiaridade. — Lenn explicou
enquanto saímos do carro.

— Incluindo você?

— Certamente.

Ele colocou a capota e o fechou, então destrancou o portão da irmandade,


nós entramos. O hall estava escuro, ele não acendeu nenhuma luz, pegou
minha mão e me puxou pela escada, guiou-me até o terceiro e último andar.

— Tem certeza do que está fazendo? Você ainda pode voltar, depois que
passar por esta porta... não tem volta. — Ele disse ao abri-la.

Pelo seu tom, ele não estava brincando, mas eu também não.
— Há um tempo você disse que havia formas melhores de me machucar...
eu quero que me mostre...

— Então, seja bem-vindo.

Ele entrou, acendeu a luz fraca e esperou que eu também entrasse para
trancar a velha porta. O quarto era bagunçado, havia roupas pelo chão, assim
como alguns livros. Na escrivaninha havia um notebook, a pasta preta que eu
derrubei quando o conheci e várias folhas amassadas, a cama de casal estava
desforrada, o violão estava sobre ela. Lenn entrou na outra porta que dava
acesso ao banheiro e voltou com uma caixinha de madeira, parecia ainda
mais tenso.

— Não se assuste, você vai entender depois que provar.

Nos sentamos em sua cama, ele colocou o violão cuidadosamente do


outro lado. Abriu a caixa e eu tentei parecer o mais tranquilo possível
conforme ele colocava os materiais na cama.

Um saquinho contendo um pó que tinha uma coloração entre bege, uma


seringa, uma colher que já devia ter sido queimada várias vezes e um
isqueiro.

— Eu não sei se deveria...

— Não pode voltar atrás, eu avisei. — Ele disse, pegou o pó e colocou


um pouco sobre a colher.

— Mas eu nunca fiz isso antes.

— Não se preocupe, isso vai eliminar suas dores, independentemente de


quais sejam — garantiu.

Ele cuidadosamente ergueu um pouco a colher e acendeu o isqueiro,


colocando-o debaixo para que derretesse o pó. Enquanto isso acontecia, eu
ficava mais nervoso, e se aquilo tivesse um efeito colateral? Se eu morresse
de parada cardíaca ou qualquer coisa assim?

Não sabia o que era aquilo, nem se era seguro, mas eu não daria para trás,
estava cansado de ser o garotinho pateticamente frágil.

— Está no ponto, pegue a seringa.

Obedeci, peguei a seringa e a enchi com o líquido da colher, ele colocou


as coisas de volta na caixa e pediu que eu me deitasse.

— Você está prestes a ter a melhor experiência da sua vida. — Disse-me,


parecia animado até.

Eu estava tremendo, ele percebeu quando pegou o meu braço, mas não
disse nada. Deu um beijo na dobra do meu cotovelo, olhou atentamente em
busca de uma veia e apetou meu braço para que ela saltasse. Senti a picada
da agulha, então ele injetou metade do líquido em mim, depois retirou a
agulha e injetou o restante nele mesmo.

Fiquei deitado na cama, parado como uma estátua. Era como se esperasse
a morte chegar. Lenn apagou a luz, voltou e deitou ao meu lado. Por algum
tempo comecei a pensar no que Max, Eddie, mamãe, Drake e o Velho
achariam se soubessem do que eu estava fazendo, mas antes de começar a me
martirizar e sentir arrependimento senti algo mudando dentro de mim.

Foi como se eu tomasse um banho de felicidade, e a água que fluía


restaurava cada pedaço quebrado dentro de mim. Culpa, mágoa, raiva... não
existia mais nada que fosse ruim, meu coração estava intacto, preenchido. Eu
não sabia se aquilo era real, era quase como estar bêbado, mas o álcool não
era nada comparado àquilo.

— Lenn, estou sentindo! — Falei sorrindo, mas quase não ouvia minha
própria voz, eu estava entrando em outra dimensão, uma dimensão alegre
onde os sentidos eram incrivelmente aguçados.

Ele se moveu na cama colocando seu corpo sobre o meu. Estávamos


pegando fogo, podia sentir sua excitação pressionando a minha.

— Eu vou te quebrar ao meio, Thompson...

— O que está esperando?


Lenn me apertou com força, depois me beijou. Um desejo sobrenatural
pareceu ascender dentro de mim. Puxei sua camisa com urgência, revelando
uma tatuagem sutil de batimentos cardíacos em suas costelas. Deixei que
minhas unhas arranhassem suas costas. Ele me fez sentar e arrancou minha
camisa também, mordeu meu pescoço, meu lábio e meus mamilos.

Troquei nossas posições, tirei o resto da minha roupa e também a dele.


Lenn me penetrou sem nenhum tipo de preliminar, doeu, mas aquela dor era
fascinante. Era como estar em outro mundo. Ele estocava sem pena, me
fazendo gritar, suas mãos firmes em mim o tempo inteiro, elas também
machucavam, mas era bom.

A cama tremia com o nosso movimento, fazendo um barulho estranho


contra o gasto piso de linóleo.

Gozamos rapidamente na primeira vez, mas ainda estávamos muito


excitados para parar, fizemos de novo e de novo até estarmos cansados
demais para nos mover. Ao contrário do que costumava acontecer, não
ficamos abraçados e dormimos. A cama estava molhada de suor e sêmen
assim como nós, o quarto inteiro tinha um cheiro de sexo impregnado.

Enquanto estava deitado, via o mundo girar devagar, não sabia se estava
no quarto ou vagando pelo espaço, só enxergava a escuridão e naquele
momento ela não parecia perigosa.

Perdi totalmente a noção do tempo também, devia ter se passado horas


quando comecei a sentir náuseas. Cambaleei para fora da cama e tentei seguir
na direção do banheiro, mas estava tudo escuro e o mundo continuava
girando devagar. Vomitei no chão sujando a mim mesmo e quando achei que
estava acabando, vomitei mais e mais, parecia nunca acabar, apertei minha
barriga com os braços, mas era inútil.

Quando o vômito finalmente cessou, eu me sentia fraco demais para me


mover. Adormeci onde estava, vagando pelo espaço escuro da minha própria
mente.

***
Minha respiração estava lenta quando abri os olhos, minha cabeça doía,
parecia uma ressaca dez vezes mais forte que as convencionais. Eu estava
muito sonolento, não tinha a menor coragem de me mover. Logo percebi que
eu estava na banheira de Lenn, ele estava cuidando de mim.

— O que aconteceu?

— É normal se sentir estranho no início, mas logo vai passar. Não se


preocupe, eu vou cuidar de você...

Eu vou cuidar de você, a frase instantaneamente me transportou para uma


lembrança do passado.

Eu estava passando o fim de semana na casa de Max e havia adoecido.

— Calma, você tem duas opções: a primeira é que eu preciso passar


água fria pelo seu corpo, assim ela vai evaporar e isso vai ajudar sua
temperatura a voltar ao normal; a segunda é você tomar um banho gelado.
Pelo menos é o que diz na internet. — Explicou.

Eu não sabia o que dizer, me sentia constrangido e tinha medo dele


perceber. Me irritava um pouco o fato de Max sempre querer ter o controle
sobre tudo.

— Desculpe. — Foi a única coisa em que pensei em responder.

— Ah Tomtom, não seja burro. Ninguém tem que se desculpar por ficar
doente, eu vou cuidar de você — Max disse sorrindo.

Suas palavras eliminaram as minhas preocupações. Eu devo ter ficado


como um idiota ao ouvi-lo. Ele me levou ao térreo, apoiado em seu ombro, o
banheiro social era o que possuía a maior banheira da casa. Eu tive
calafrios enquanto Max me ajudava a tirar a roupa, seu toque quente me
acertava como flechas afiadas. Ele encheu metade da banheira com água
fria e colocou alguns sais relaxantes, em seguida tirou a sua roupa.

— Você não precisa fazer isso, a água está congelante — falei, mas ele
não me deu ouvidos.
— Por isso mesmo, eu sou o corpo quente que vai te passar calor para
ajudar com isso. Vai ser um pouco estranho, mas o que eu não faço por
você? — Disse ele.

Max entrou comigo, me segurando para não cair por conta da superfície
lisa da banheira, me arrepiei dos pés à cabeça ao entrar em contato com a
água. Nos endireitamos, Max sentou e fez com que eu sentasse à sua frente,
repousando as costas em seu tórax quentinho, quase deitado sobre seu corpo.

Encostei minha cabeça em sua clavícula e virei o rosto um pouco para o


lado, podia sentir o perfume doce em seu pescoço e o arranhar de sua barba
por fazer. Ele era quente e acolhedor como uma chama em meio a nevasca.

— Você é tão frágil Tomtom — sussurrou em meu ouvido enquanto com


uma esponja macia fazia a água dançar sobre meu peito.

— Todo mundo é frágil. Você também é, só não sabe disso ainda. —


Murmurei, tudo aquilo parecia tão surreal que eu estava quase dormindo.
Ignorara por completo o frio da água, tudo o que importava era o corpo
quente que me abraçava pelas costas.

Talvez estivesse no paraíso... ou fosse apenas um delírio febril, não sei.


Acabei dormindo.

E foi assim que senti a dor voltar como um tsunami, trouxe de volta
minha angústia, reabriu as feridas, eu devia estar chorando, mas ainda estava
um pouco perdido, senti como se estivesse voando, abri os olhos e me vi na
cama, mas acabei adormecendo de novo. O sono, às vezes, é o melhor refúgio
e depois de tanto tempo, para mim, ele continuava sendo.

***

Meu celular tocava incessantemente em algum lugar do quarto. Abri os


olhos e me senti péssimo, olhei em volta, o quarto era pouco familiar, mas
logo lembrei que eu tinha saído do festival com Lenn, mas onde ele estava?
Continuei olhando ao redor, eu estava sozinho.

Me sentindo um trapo saí da cama, aproveitei para vagar pelo quarto e


observar as coisas sobre a escrivaninha. Eu estava completamente nu,
encontrei o celular no bolso da minha calça que estava no chão. Era
Konstantin, havia trinta e duas chamadas perdidas, eram duas horas da tarde,
liguei de volta.

— Graças a Deus! Onde você está? Eu já estava quase ligando para a


polícia...

— Calma! É que ontem eu, por acaso, encontrei o Lenn James... e acabei
vindo para o apartamento dele, eu estou com uma ressaca horrível. O que
você disse para Duane?

— Que você se perdeu de mim, e me mandou mensagem dizendo que não


se preocupasse, que estava bem. Mas eu não gosto de mentir Thomas, não
estava conseguindo me concentrar na aula, achando que algo ruim tinha
acontecido com você. — Contou, parecia realmente preocupado.

Revirei os olhos.

— Eu estou bem, ok? Só não diga que eu estive com o Lenn, sairei daqui
assim que ele aparecer.

— Então vocês dormiram juntos e ele tinha ido embora quando você
acordou? Isso parece um daqueles romances em que a donzela é enganada.

— Não se preocupe, não serei a donzela. Depois nos falamos, estou


acabado.

Desliguei o celular e abri sua pasta, havia versos soltos entre uma página
e outra e então encontrei a composição: Interrupted, que era muito profunda,
falava sobre a dor de perder alguém. Mais um dos tantos mistérios de Lenn,
mas eu estava muito cansado, deixei a pasta como estava e me joguei na
cama. Lembrei vagamente de ter vomitado, mas o quarto estava limpo, talvez
Lenn tivesse cuidado de tudo. Que vergonha! Fiquei imaginando a cara de
Eddie se me visse nesse estado, ele ficaria tão chateado, era isso mesmo que
eu queria, não era?

Peguei meu celular e disquei o número de Edward, eu não estava nervoso


ou qualquer coisa do tipo, mas minhas mãos tremiam, o clima parecia
insuportavelmente quente, mas quando abri a única janela do quarto imundo
vi que estava frio e chovia.

— Tom? Thomas, é você?

Era reconfortante ouvir sua voz, mas as boas sensações já tinham sumido
do meu corpo, estava tudo lá outra vez, inclusive a mágoa que eu ainda sentia
pela traição dele.

Desliguei.
Capítulo 9
Lembranças Ruins
A GARGANTA DO DIABO NÃO FICAVA TÃO LONGE DA
CEATHA, MAS não deixei que Lenn me levasse até lá em seu Chevy
chamativo. Em vez disso, pedi que me deixasse no cruzamento e segui a pé.
O clima entre nós estava estranho, não por parte dele, que já devia estar muito
acostumado a se drogar, mas sim por mim. Ainda estava mal mental e
fisicamente, além da vergonha que sentia.

Ninguém estava em casa, respirei aliviado, assim não tinha que dar
explicações, ainda tinha que lavar a roupa suja do pó do festival, mas elas
podiam esperar. Deixei a roupa de molho na área de serviço e fiquei
transitando só de cueca, afinal todos estavam estudando mesmo. Abri a
geladeira e tomei toda a água da jarra, mas continuei com sede. Devia ser
efeito colateral da droga, que por falar nisso, eu nem sabia qual era.

O pior foi perceber que eu continuava sem o número de Lenn, talvez


fosse melhor assim. Meu estômago estava se revirando como se nele
houvesse um monstro inquieto, mas se eu comesse ia acabar vomitando mais,
então apenas subi, tomei outro banho e me joguei na cama, já tinha perdido
as aulas do dia, o que mais podia fazer?

Aproveitei meu sono por toda a tarde, mas acordei com o barulho quando
Duane e Elijah chegaram brigando por um bagel, segundos depois Konstantin
entrou no quarto e jogou sua pasta sobre a cama, onde sentou e começou a
desamarrar os cadarços.

— E aí, como você está? — Perguntou desconfiado.

— Muito bem, obrigado.

Duane apareceu na porta do quarto só de cueca.

— Olha só quem apareceu! A trouxa do ano, não acredito que você não
seguiu meu conselho e dormiu com aquele idiota — Ironizou.

Elise apareceu logo atrás dele.

— Você só o chama de idiota por que ele não quis comer esse seu rabinho
magro.

— Que audácia! Ouviu isso Elijah? Sua irmãzinha está causando intrigas
aqui.

— Você que a convidou, agora aguente. — Elijah gritou do outro quarto.

Todas aquelas vozes pareciam tão altas, minha cabeça doía.

— Se importam de nos dar licença? Minha cabeça vai explodir com todo
esse barulho — falei.

Duane pareceu irritado, como se tivesse sido insultado em sua própria


casa, mas empurrou Elise para fora do quarto e bateu a porta com força, o
barulho continuou do lado de lá.

— Desculpe, eu tive que contar. Então... quer dizer que você dormiu com
o esquisitão?

— Bem, nós fizemos mais que dormir...

Nós dois rimos.

— Eu conheci melhor o rapaz, ele se chama Matteo e é italiano. Um


veterano das artes, vou encontrá-lo em alguns minutos, vai ficar bem sem
mim? Precisa de algo? Um comprimido, algo do tipo?

— Vá se divertir, eu só quero dormir eternamente.

— Por falar nisso, você perdeu uma porrada de coisas nas aulas de hoje,
mas amanhã tem anatomia e vamos estudar o crânio...

Konstantin percebeu que eu não estava no clima para tagarelar com ele,
ou não tinha o menor interesse em nada do que ele fosse me contar, então foi
tomar banho, se arrumou e saiu.

***

Para me redimir pelo dia faltado, acordei cedinho na terça-feira. Preparei


o café para todos, comi antes que eles levantassem, deixei minha parte do
dinheiro das despesas na caixinha e fui para o meu bloco. Já havia vários
alunos, eu entrei na sala e revisei algumas coisas antes que o professor
chegasse. Konstantin não demorou muito a aparecer, ele era um aluno bem
mais dedicado que eu.

— Você madrugou, hein? — Disse ao sentar ao meu lado.

— Tentando recuperar o tempo perdido...

— Vou te ajudar com isso.

Ele abriu o notebook e começou a me explicar o que tinham visto nas


aulas anteriores, me mandando copiar suas anotações. O professor chegou
pontualmente, enquanto ele aprofundava sua fala sobre o sistema digestório,
comecei a prestar mais atenção nas pessoas ao nosso redor. Nem todos eram
tão antipáticos como pensei na primeira vez em que os vi, algumas eram até
comuns demais. Notei em seus rostos algo que também havia no meu: medo,
nervosismo, inconstância. Ninguém parecia saber do seu futuro, a única
certeza era a de que metade da turma, ou mais, desistiria do curso antes
mesmo de chegar ao fim dele. Foi pensando nisso que percebi que eu não
queria ser um deles.

Apesar de todas as dificuldades que enfrentei e continuava enfrentando, e


ainda que eu estivesse longe de casa, já se passara um mês e eu continuava
vivo, então talvez houvesse esperança, talvez eu pudesse seguir com isso, por
mais que a vida se arrastasse dramática e melancolicamente.

Quando a aula acabou fomos correndo comprar sanduíches de peito de


peru e refrigerantes na cantina, fomos para o lado de fora e sentamos no
gramado à sombra de um álamo solitário.

— Não olhe agora, mas o Matteo está vindo na nossa direção... — Disse
Konstantin ficando vermelho instantaneamente.

Eu não sabia disfarçar, olhei para o rapaz que vinha caminhando, parecia
empolgado. Vestia uma calça branca justa, uma camisa de gola V e no lugar
de livros, tinha uma tela em mãos. Seu cabelo era liso num tom loiro-escuro,
estava perfeitamente alinhado para trás com uma tonelada de gel.

— Buongiorno! — Ele disse e já foi sentando ao nosso lado. Deu um


beijo em Konstantin e olhou para mim.

— Este é o Thomas Thompson, meu amigo — Konstantin disse.

— Matteo Vilfredo. — Disse ao me estender a mão. A apertei.

Então Konstantin já me considerava seu amigo, isso me lembrou


instantaneamente do passado, quando os amigos de Max se tornaram meus
amigos, ainda que fossem um monte de idiotas, era legal ter amigos, por
outro lado, não havia nenhuma Loren na Irlanda.

Matteo e Konstantin iniciaram uma conversa só deles, tentando me incluir


para que eu não ficasse constrangido, peguei um dos livros do curso na minha
bolsa e fingi estar lendo para deixá-los mais à vontade.

Olhei várias vezes para a rua, esperava que o Chevy Malibu passasse, mas
claro que isso não aconteceu. A vida real, infelizmente, não funciona como
nos filmes e a minha então... parece ser baseada em desencontros.

Ouvimos o sinal soar, Konstantin se despediu do seu amado com um


beijo quente, eu fui na frente, não queria ser testemunha daquilo, já bastava o
tempo em que fui o castiçal que segurava as velas para os outros.

— Você é bem desinibido. — Comentei quando ele me acompanhou,


continuava com as bochechas coradas.

— Bem... eu faço aqui tudo o que não podia fazer no meu país, um beijo
em público como o que dei em Matteo segundos atrás seria o suficiente para
ser espancado. Então sim, eu sou bem desinibido. — Explicou.

— É isso aí! — Ergui a mão e ele bateu com a sua.


Nunca tinha parado para pensar como era a vida dele lá, na verdade eu
não sabia quase nada dele, talvez por isso eu ainda não conseguisse vê-lo
como um amigo. De qualquer forma, decidi que não o repreenderia por nada,
devia ser horrível viver em um país onde é proibido ser você mesmo, além
disso, ele não estava fazendo nada errado.

Seguimos para a aula prática de anatomia, o Dr. Dawson já nos esperava


com aquele ar de superioridade inquestionável, ele era, sem dúvida, muito
sábio. Estava diante da mesa com aquela expressão de pesar.

— Olá pessoal, vão se aproximando da mesa, a aula de hoje será um


pouco mais impactante, mas quando se sentirem incomodados lembrem
sempre que estamos aprendendo com os mortos como salvar vidas!
Comecemos pela oração.

Nós oramos seguindo a voz do professor, que logo depois nos fez ficar de
pé ao redor da mesa, o mais próximo que o espaço permitia.

— Hoje nós aprenderemos um pouco mais sobre os músculos da face!

Quando o Dr. Dawson retirou a coberta a atmosfera ao nosso redor ficou


tensa. Era inevitável, pois sobre a mesa estava a metade de uma cabeça e ao
lado dela mais duas cabeças, quando digo cabeça, não falo apenas dos ossos
do crânio, mas cabeças reais de pessoas, com pele, músculos e tudo mais.
Uma delas tinha até parte do pescoço, tinha uma coloração marrom.

O professor segurou na testa de uma delas com uma mão e com a outra
pegou uma pinça.

— Podemos observar aqui, os abaixadores do lábio inferior. — Ele disse


puxando o músculo com a pinça e fazendo a boca se mexer.

Ele continuou a explicar os outros músculos, dando puxadinhas com a


pinça para não nos deixar dúvidas, mas a medida em que ele movia a cabeça
de um lado para outro, comecei a me sentir estranho. Meu estômago revirava,
suor frio escorria da minha testa e meu coração descompassou, era um sinal
de que as lembranças ruins estavam voltando.
***

Estávamos deixando Heaven Wood. Do banco do motorista, Eddie baixou


a janela, deixando o frio entrar de repente. Olhei para entender o porquê de
ele ter feito aquilo, foi quando percebi que o motoqueiro, na verdade, era
Max.

Meu coração disparou diante do que via, estávamos a mais de cem


quilômetros por hora, baixei minha janela também.

— Max! Cara, você tem que parar! Edward reduz a velocidade! — Gritei
para ele, mas nenhum dos dois parecia me ouvir.

Eu enlouqueci, no que diabos ele estava pensando? Que era o super-


homem?

— Não vá embora Tomtom, eu te amo! — Seu grito abafado pelo


capacete viajou até meus ouvidos.

— Max, para!

— Eu já sei de tudo, Amanda me contou, eu não ligo para nada disso!

— Max o caminhão! — Gritei de volta, mas ele estava me encarando.

Um caminhão se aproximava na contramão.

— O quê?!

Cara! Tentei gesticular, mas ele não olhava para frente, só olhava para
mim.

— Não estou entendendo! — Gritou outra vez.

Todos no carro começaram a gritar para ele, eu praticamente me


esgoelei, mas o vento e a velocidade em que estávamos parecia levar minha
voz para outro lugar.

— Max o caminhão!
Ele olhou para frente, o motorista freou bruscamente e tentou desviar,
mas o acertou. Max foi arremessado para longe, o caminhão tombou perto
de nós, Eddie também desviou e freou bruscamente, mas o Audi deslizou no
asfalto molhado, deu um giro de trezentos e sessenta graus e bateu em outro
carro, enfim paramos.

Eu estava sem o cinto de segurança e o impacto havia me jogado para lá


e para cá, o que me fez cair por cima do braço. Eddie e mamãe foram salvos
pelos cintos e airbags, Drake estava paralisado, mas bem. Meu nariz
começou a sangrar e meu braço doía, me ergui um pouco e abri a porta com
dificuldade, rastejei para fora, caí deitado no asfalto gelado entre os
estilhaços da janela, os carros esfumaçavam.

Eddie tirou mamãe, Drake saiu sozinho, os três ilesos, exceto pelo susto.
Os estranhos em que batemos também estavam bem, Eddie me levantou, mas
me senti estranhamente tonto.

— Acho que machuquei meu braço... — falei ao sentir a dor, mas logo
lembrei do motivo do acidente. — Max!

Comecei a correr cambaleante na direção do caminhão, que estava


tombado no meio da rodovia, ele tinha pequenas chamas, mas o motorista
conseguiu sair, corri o mais depressa que pude e quando ultrapassei o
maldito caminhão vi o que não deveria, a moto estava estraçalhada, havia
pedaços dela por todos os lados.

Eu precisava ver Max!

— Max! — Gritei novamente, mas não tinha resposta.

Curiosos começaram a se amontoar, e eu já ouvia sirenes ao longe. Foi


quando olhei de relance e percebi algo no acostamento alguns metros à
frente. Lá estava o corpo de Max desfalecido, tão frágil, parecia estar
inconsciente.

— Não!

Gritei ainda mais, Eddie me alcançou e me segurou, mas me desvencilhei


e corri para perto dele, seus olhos estavam abertos, mas sem brilho. Me
ajoelhei diante dele.

— Não vá Max, por favor! Eu te amo tanto Max, fique comigo! Droga!

Eddie impediu que eu o tocasse. Seu capacete estava rachado e o sangue


brotava sem parar de algum lugar atrás de sua cabeça. Mamãe gritava para
chamarem uma ambulância, mas certamente já tinham feito isso. Drake
começou a vomitar.

Me desesperei, Eddie me puxou para longe com a ajuda de dois


estranhos, enquanto eu me debatia para continuar perto dali, perto dele.

— Max...

Meu grito cortou o céu, uma chuva fina começou a cair e depois disso
minha vida nunca mais foi a mesma.

***

Quando voltei à realidade, estava no chão. Meus colegas já estavam me


socorrendo, causei um alvoroço na sala, algo que parecia incomodar o
professor. Continuei me sentindo mal enquanto Konstantin e outro rapaz me
levavam à enfermaria. Tudo passou como um borrão, devo ter adormecido ou
desmaiado, não sei.

Quando acordei continuava na enfermaria, ao meu lado estava


Konstantin, que segurava minha mão, numa poltrona velha estavam Elijah e
Duane, os três tinham o mesmo olhar de preocupação que se acendeu quando
perceberam que eu estava acordado.

— Graças a Deus! — Konstantin disse dando mil beijos na minha mão.

— Eu vou chamar a enfermeira. — Elijah disse e saiu.

Duane ficou de pé e veio até mim.

— Você não pode fazer isso com a gente! Foi um baita susto, eu fui
criado para sempre esperar o pior, fiquei pensando como seria se você
morresse...

Eu tive que rir.

Era bom estar rodeado de pessoas que queriam o meu bem, mas com essa
sensação veio um aperto no peito, a lembrança de acordar no hospital com o
braço numa tipoia, o conforto de ter a família por perto. Elijah, Konstantin e
Duane, embora fossem queridos, não eram minha família.

Comecei a chorar de saudade.

— O que foi? Não está se sentindo bem? — Konstantin perguntou


ficando alerta instantaneamente. — Está vendo Duane? Você não pode
chegar falando essas coisas, ele acabou de...

— Não é isso... — Busquei fôlego entre um soluço e outro. — Eu sinto


falta da minha família, mais do que nunca — continuei chorando.

Os dois se aninharam ao meu lado na estreita cama.

Elijah voltou com a enfermeira e ela me examinou rapidamente.

— Parece que está tudo ok, você sente alguma dor? — Ela perguntou
incerta.

Assenti, Konstantin limpou as lágrimas do meu rosto.

— Onde dói?

Pus a mão sobre meu peito e chorei ainda mais.

— Então devemos te encaminhar para o cardiologista imediatamente.

— Não, você não entendeu — Disse Duane, que havia compreendido. —


A dor dele não é física.
Capítulo 10
Euforia
MEU CELULAR HAVIA TOCADO DEZ VEZES ENQUANTO EU
DORMIA, mas só descobri isso quando finalmente acordei às dez da manhã e
vi o nome de Edward na tela. Eu já estava no quarto da Ceatha, logo fui
recobrando a memória e lembrei de tudo que havia acontecido no dia
anterior, me senti no fundo do poço.

Eu tinha surtado ao ver um crânio, que tipo de médico eu seria?

— Eu faltei à aula hoje para ficar aqui com você. Os meninos também,
estávamos todos apreensivos...

— Que susto Konstantin! Eu não te vi aí.

Ele estava sentado em sua cama me observando, como fez no primeiro


dia em que acordei aqui.

— Desculpe, não quis te assustar. Só estava...

— Preocupado, eu sei. Não precisa, eu estou bem. Não sou uma


bonequinha de porcelana — falei bruscamente, me levantei, percebendo que
estava com a mesma roupa de ontem.

Konstantin revirou os olhos, logo percebi que eu estava sendo um babaca


outra vez, mas já era tarde e eu não estava exatamente com o melhor humor
para ter paciência.

— Bem, pode até ser, mas você chorou praticamente a madrugada inteira
e nós nem sabemos o motivo. Acho que seria justo pelo menos nos contar. —
Ele foi direto, não achei que fosse capaz.

O pior era que ele tinha razão. Konstantin, em conjunto com Elijah e
Duane, me receberam muito bem na Ceatha sem ao menos saber quem eu era.
Até o momento eles não sabiam quase nada sobre mim, era justo contar a eles
o meu tormento.

— Ok, mas eu posso tomar um banho antes? — Perguntei desanimado.

Konstantin sorriu e se levantou.

— Claro, não demore. Eles prepararam um café da manhã caprichado.

Eu não estava gostando do rumo que tudo estava tomando. Até então,
estava até feliz por ser apenas o Thomas Thompson, um calouro de medicina
do interior da Inglaterra perdido em Cork, nada mais. Eu sabia que, a partir
do momento em que eu lhes contasse o que havia se passado alguns meses
atrás, eles não me olhariam da mesma forma. Eu voltaria a ser o Tomtom, o
rapaz de coração partido, o quebrador de promessas.

Enquanto tomava banho, um fato inquestionável veio à tona: eu saí de


Heaven Wood para deixar o passado para trás, pois era uma bagagem pesada
demais para carregar, queria focar apenas no presente, porém o passado não
me largava, estava na minha mente, no meu coração, nas minhas dores, trazia
à tona também as incertezas do futuro. A verdade é que não importa o que
você faça, não existe uma forma de apagar da mente o que aconteceu.

Vesti um pijama qualquer, o dia estava estranhamente frio. Duane já


havia me alertado sobre as mudanças climáticas repentinas de Cork. A chuva
já caía quando eu desci até a cozinha. Eles tinham afastado os sofás,
encheram a sala de colchões e almofadas e na mesinha de centro estava a
refeição. Fui até eles encarando o chão.

— Que cara é essa? Você não está indo para a forca, anime-se, sente-se
conosco, vamos ter uma festa do pijama — disse Duane tentando me animar.

Os outros dois encararam ele.

— Uma festa do pijama não tem que ser à noite? — Elijah perguntou.

— Cala a boca!

Sentei ao lado de Konstantin, pus café na xícara de porcelana que já não


tinha mais asa e tomei. Não sentia fome, mas belisquei um ou dois pãezinhos
enquanto eles comiam sem parar.

Quando terminei, me deitei no colchão e fiquei encarando o teto. A vida


era mesmo uma pregadora de peças. Eles terminaram também e se
acomodaram pelos colchões. Duane deitou-se por trás de Elijah e o agarrou,
aninhando-se próximo à nuca, não pude deixar de notar o sentimento no ar.

— Antes de tudo eu quero dizer que se vocês querem mesmo saber da


minha vida, vão ter que prometer que não vão me tratar diferente. Eu odeio
ser o coitadinho e não vou admitir isso vindo de vocês. — Falei.

Me sentei para vê-los melhor, todos assentiram.

Comecei a buscar as palavras certas para começar a narrar a tragédia que


era minha vida, mas logo percebi que não existiam palavras certas, então
comecei.

— Seu nome era Max Dodger, o cara mais sensacional que já pensei em
conhecer. Ele era o meu mundo, era tudo o que eu precisava para viver. Eu
respirava seu ar, degustava seu sabor, sentia o toque de sua pele, só
enxergava aqueles olhos verdes... Max tinha um sorriso que eu costumava
chamar de sorriso-sol, isso é meio idiota, eu sei, mas quando ele sorria era
como um sol, pois iluminava tudo ao seu redor.

"Max sempre foi o popular da escola, o capitão do time, o bem-nascido,


tinha muitos seguidores, mas ninguém o conhecia tão bem quanto eu. Só eu
sabia de suas fraquezas, da carência que sentia pela ausência dos pais e até
algumas inseguranças por baixo da máscara de popular. Era eu quem sempre
estava lá por ele, meu dia não era dia se eu não acordasse com a buzina do
seu jipe ou de sua moto me chamando no gramado da minha casa, ou mesmo
quando eu não acordava a tempo e ele vinha até o quarto para me apressar.

"Tudo mudou quando percebi que estava apaixonado por ele, não
consegui entender o que sentia, ele era meu melhor amigo, não fazia sentido
eu cair de amores por ele, mas esse sentimento só aumentava mais a cada dia.
Foi quando uma vadia loira apareceu...
— Sempre há uma vadia loira. — Konstantin comentou sorrindo, sorri de
volta, mas brevemente.

— A vadia é filha do prefeito e arruinou tudo. Fui arrastado por Max até
o aniversário dela, ele sentia muito desejo por essa vadia e por isso insistiu
muito para que eu o acompanhasse. Ela e sua amiga tinham planos para a
noite, e isso incluía a nós dois. No meio da festa elas nos arrastaram para o
quarto, eu já estava muito bêbado...

"Elas começaram a se agarrar pedindo que observássemos, se beijavam e


trocavam carícias, então pararam e lançaram um tipo idiota de desafio. Nós
teríamos que fazer o mesmo caso quiséssemos transar com elas.

"Eu não queria, não mesmo, mas Max queria mais que tudo possuir a
rainha das líderes de torcida... foi o nosso primeiro beijo, o dia mais feliz da
minha vida. A forma sincera como ele pediu que eu confiasse nele, e de
repente seu corpo pressionou o meu. Eu senti que ele não estava fazendo
aquilo apenas pela condição para ficar com Loren, tinha algo mais, era como
concretizar desejos reprimidos, mas ela nos interrompeu no ápice e o tomou
de mim... depois disso nossa relação nunca mais foi a mesma.

— O que aconteceu depois? — Duane perguntou.

Eu pus mais café e tomei um gole antes de continuar. Não me sentia à


vontade contando a história, não sabia o quão longe conseguiria ir sem
desabar.

— Muita coisa aconteceu. Fui ameaçado por Loren, ela havia tirado fotos
da noite em seu quarto e usou isso para me afastar dele, depois disso foram
muitas brigas e alguns encontros, ele não entendia o porquê de eu ter me
afastado e também estava magoado.

"Quando o ano acabou e eu estava prestes a me mudar para Cambridge


ele descobriu tudo. Eu já havia saído de casa, estávamos na estrada no carro
do meu irmão e Max tentou nos alcançar para dizer que me amava e não se
importava com o resto, mas colidiu com um caminhão, nosso carro bateu em
outro, machuquei o braço, mas mal sentia, meu coração doía muito mais, eu
saí cambaleando para ver o estado dele, o motorista do caminhão estava bem,
mas Max não estava...

Pausei para controlar o nó em minha garganta.

— Ele...?

— Não, ele não morreu. Quando o vi entrei em choque, estava


esparramado no chão e seu capacete estava rachado, um rio de sangue jorrava
de algum lugar atrás de sua cabeça... então ele fechou os olhos e nunca mais
abriu. Está em coma.

Pus a xícara na mesinha e esperei por mais perguntas, mas todos pareciam
muito chocados para perguntar.

— Não deve ser fácil aguentar tudo isso...

— Difícil não chega nem perto. Passei um tempo no hospital com ele, eu
não queria sair de lá por nada, para o caso de ele acordar. Eu tinha feito uma
promessa, um pacto, de que nunca o deixaria, mas foi depois do acidente que
descobri um segredo da minha família que nos atingia diretamente.

"Max precisava de um rim com urgência, pois o dele estava falhando e, se


acontecesse, acarretaria uma falência múltipla, para o transplante ocorrer com
a urgência necessária, precisavam de um doador compatível que fosse um
parente próximo, não parecia haver ninguém disponível, mas algo estranho
aconteceu. A mãe de Max me mandou para casa e disse que precisava ficar
um tempo sozinha com o filho, eu não pude dizer não. Porém, meu irmão
viajou repentinamente, minha mãe vivia desconfiada e foi quando comecei a
ligar os pontos.

"Decidi ir ao hospital de surpresa, soube que Max já havia recebido um


rim e quando fui conhecer o doador, descobri que era o meu irmão. Fique
confuso, como ele poderia doar e eu não? Foi quando pela primeira vez em
anos não mentiram. Edward era meio-irmão de Max, pois minha mãe teve um
caso com o pai dele no passado e desse caso nasceu ele.

— Espera um momento, estou confuso. Se seu irmão é filho do pai de


Max, isso não te torna irmão dele também? — Elijah perguntou.
— Não. Minha mãe teve Edward com o Sr. Dodger, isso o torna meio-
irmão das duas partes, no caso eu e Max, mas isso não nos afeta, continuamos
não sendo parentes.

— Agora está claro...

Continuei me sentindo muito exposto, mas não parei.

— Foi quando decidi partir. Não conseguia olhar para eles todos os dias
sabendo que mentiram para mim. Sabendo que o troglodita do meu pai tinha
razão para nos odiar... minha vida inteira era uma fraude, uma mentira. Não
consegui ficar, não consegui manter a promessa que fiz a Max. Agora estou
aqui, longe de todo mundo e sozinho.

Não consegui mais segurar, voltei a chorar. Me sentia tolo,


envergonhado, mas os três vieram ao meu encontro e me deram um abraço
coletivo.

— Tolinho, você não está sozinho. Você é uma cor do nosso arco-íris
agora, você tem a nós. — Disse Duane.

***

Precisei visitar o departamento de psicologia se quisesse continuar nas


aulas de anatomia prática, que eram essenciais para minha formação. Fui
sincero com a psicóloga, que mais parecia uma daquelas tias extremamente
fofas e amorosas. Contei sobre minha história com Max e as lembranças que
vieram à tona quando vi o professor manuseando aquela cabeça. Ela atestou
como consequências naturais, devido ao que eu sofri no passado, disse que eu
poderia voltar à aula se me sentisse pronto, senão teria que esperar um pouco
mais, mas eu falei disse que estava preparado e realmente me sentia um
pouco melhor, depois da conversa que tive com os meninos, da forma como
me acolheram, mais uma vez.

Fiquei tentado a pedir para sair do grupo de apoio que, aparentemente,


não surtia efeito algum, mas sabia que ela recusaria e sabia também que se eu
saísse, veria Lenn com menos frequência, ou talvez nem o visse mais.
Por isso, na quarta-feira me vesti um pouco mais despojadamente e fui ao
Fitzgerald me sentindo quase feliz. Não estava sorrindo como um bobo
apaixonado nem nada do tipo, mas me sentia mais leve.

O clima estava abafado, cheguei em silêncio e me sentei ao lado de Lenn


James no círculo. Ele vestia uma camisa de botão cinza e calça jeans, não
mostrou nenhuma reação ao me ver, apenas me deu um olhar de esguelha.
Uma garota gordinha falava sobre sua compulsão por sexo, não conseguia
lembrar do nome dela. Queria ter algum tipo de conversa com Lenn, mas
devíamos respeito ao grupo, nada de cochichos, nada de interrupções.

Patrick estava prestes a iniciar sua parte de aconselhamento quando gotas


grossas de chuva começaram a cair sobre nós.

— Continuamos na semana que vem! — Disse e começou a correr para se


amparar assim como todos os outros.

Eu fiz o mesmo, mas não corri na direção da barraca de sorvete, já estava


todo molhado, era tarde para isso. Lenn me acompanhou, pegou minha mão e
deu um puxão, o que me fez girar na grama então molhada e escorregadia,
caímos juntos.

— Não existe coisa mais clichê que isto — falei sorrindo, ele estava sobre
meu corpo.

— A vida é um eterno clichê, meu caro. — Disse e me beijou. Não se


incomodava com algum público que viéssemos a ter?

Empurrei-o para o lado e fiquei sobre seu corpo, o que me trouxe à mente
meus antigos jogos de imobilização com Max na trilha do parque. Mudei de
humor num piscar de olhos, me levantei e comecei a andar.

— Eu soube que você passou mal...

— Se tem uma coisa que não preciso, é da sua pena.

Lenn me acompanhou outra vez e me fez parar.

— Não sinto pena de ninguém, além de mim. Na verdade, estou pouco


me fodendo para isso. Só queria te fazer um convite...

Ele estaria sendo sincero ou queria apenas me conquistar?

— Um convite, sério? — Duvidei, para o que ele me convidaria? O clube


dos desalmados?

— Sim, um convite. Fique tranquilo, não é para um encontro. Quero que


vá comigo ao Halloween no Cranberries. — Falou.

— Onde?

— Cranberries é outra irmandade bem louca da turma de filosofia. Eles


têm uma acústica ótima, não dá para ouvir nada do lado de fora, só quem está
dentro ouve o barulho, é tipo uma bolha. Quero que vá comigo.

Lenn ficou me encarando com os olhos cinzentos mais claros que nunca,
talvez fosse a chuva, ela escorria por seu rosto, já encharcara seu cabelo.

— Não sei se é uma boa ideia Lenn...

Ele bufou.

— Bem, você que sabe. O Halloween é no sábado, aqui está meu número.
— Disse entregando-me um papel encharcado — Caso resolva ir é só me
ligar. E não esqueça da fantasia...

Foi embora.

Encarei o papel em minha mão, o número estava escrito numa caligrafia


trêmula como a minha, logo se apagaria. Eu devia decidir rápido, mas antes
disso precisava sair da chuva.
Capítulo 11
Cranberries
KONSTANTIN ESTAVA COM UM SORRISO DE ORELHA A
ORELHA, tinha sido convidado para a mesma festa que eu e é claro que
estava tentando me convencer a ir de qualquer jeito.

— Eu lavo suas roupas por um mês! — Disse, estava quase se


ajoelhando.

— Konstantin, você já viu o que acontece sempre que...

— Já sei, sempre que você sai acaba em confusão! — Ele revirou os


olhos — Isso é besteira, você fala tanto isso que acaba acontecendo. Você
tem que ir com seu querido Lenn James...

Ele já estava me irritando, se me conhecesse bem saberia que uma das


coisas que eu mais odiava no mundo era gente insistente. De qualquer forma,
ele não ia desistir. Se Konstantin já estava sendo irritante no meio da aula de
ética, imaginei quando chegássemos em casa.

— Ok Konstantin, eu vou se você calar essa maldita boca. E, além de


lavar minhas roupas, você vai fazer minhas pesquisas...

— Combinado! — Falou quase saltitando.

Metade da turma nos encarou, inclusive a professora.

— Senhores, caso não queiram assistir à nossa animada aula, podem se


retirar, garanto que falta não farão aos colegas que querem aprender a não
virarem monstros.

Baixamos a cabeça, de nada adiantaria pedir desculpas, então ela


prosseguiu com a aula e nós prestamos atenção, na verdade enquanto
Konstantin fazia anotações, desbloqueei meu celular no colo, abri o chat e
atualizei minha lista limitada de contatos dez vezes para ver se ele tinha um
perfil, mas não tinha.

Não havia possibilidade de ter uma conversa com ele num chat, ou eu iria
até ele ou teria que ligar, mas o que eu diria? "Oi Lenn, aqui é o Tom, você
pode me buscar no seu carro perfeito, eu vou!" Que idiota.

— Parece que alguém está com a cabeça no mundo da lua...

— Cala a boca! — Empurrei Konstantin para o lado.

Quando a última aula acabou, fomos ao centro de estudantes, nos


reunimos com alguns colegas para organizar um seminário. Eles pareciam
robôs, pessoas frias que só se importavam com notas altas, não se
importavam com as piadinhas sem graça de Konstantin, só queriam terminar
tudo e ir para casa, assim como eu.

***

Já passava das sete da noite quando saímos de lá, passamos pelo


cruzamento movimentado de sexta-feira, quando entramos na nossa rua
percebi que todos já tinham começado as decorações.

— Você devia me chamar de Kon — ele disse de repente.

— Por que eu faria isso?

— Sei lá, fico mais sombrio assim. É tipo aquela banda americana
"Korn".

Tive que rir dele.

— Você não ficaria sombrio nem se aderisse ao estilo gótico. Aceite esse
fardo.

Quando chegamos na porta da Ceatha, Matteo estava esperando por


Konstantin ao lado do seu carro. Se agarraram imediatamente, me deixando
ligeiramente constrangido.
— Doces ou travessuras? — Perguntou provocando-o com mordidinhas
no pescoço.

Estava prestes a dizer que precisava ir a algum lugar quando meu celular
tocou.

— Salvo pelo gongo! — Falei e entrei em casa.

Duane estava desfilando de cueca pela cozinha, preparava alguma comida


experimental. Ouvi o barulho do chuveiro, era Elijah no banho. Tudo estava
perfeitamente normal, então fui ao quarto, era o número dele.

— Ei, aqui é o Thomas!

— Tão animado que soa falso — disse Lenn.

Eu ri.

— Como diabos você conseguiu meu número?

— Eu consigo tudo o que quero e não queria esperar você ter a decência
de me ligar. Por falar nisso, eu quero que você vá ao Halloween comigo e
hoje é 30 de outubro, o que significa que você tem que decidir agora...

— Que cretino! Eu ia ligar sim.

— Não ia Thomas, eu conheço você.

— Não conhece. Eu vou a essa droga de Halloween, mas não me


responsabilizo pelos estragos que venham a acontecer por minha causa.

— O que seria da vida se não nos arriscássemos, hein? Passarei aí


amanhã às nove, acho bom você me surpreender na fantasia. Até mais.

— Não, espera! Eu...

Tarde demais, ele desligou.

Onde diabos eu arrumaria uma fantasia tão em cima da hora? Talvez


Konstantin pudesse me ajudar.

***

Convidá-lo tinha sido, sem dúvida, uma má ideia. Konstantin estava tão
animado por viver o seu primeiro Halloween de verdade que não parava de
falar conforme passávamos pelas lojas do centro de Cork.

As calçadas estavam molhadas, havia chovido durante toda a madrugada,


apesar disso o clima estava abafado. Já passava de uma da tarde quando
encontramos a loja que Duane nos mandou procurar, era pequena, mas bem
bonita. Estava decorada tematicamente com abóboras falsas esculpidas, velas
negras acesas, cortinas pretas, lustres acesos.

— Tá tú Gaeilge? — Perguntou a atendente, eu e Konstantin nos


entreolhamos, como íamos falar com ela? — Não são daqui, ok. Em que
posso ajudá-los?

— Nós fomos convidados de última hora para uma festa à caráter e não
temos o que vestir, será que a senhora poderia nos ajudar com uma solução
simples, rápida...

— E barata. — Completei.

É claro que ela podia.

Quinze minutos depois estávamos de volta às ruas frias do centro de


Cork, cada um com uma sacola contendo suas fantasias de última hora.
Konstantin continuava tão empolgado que até conseguiu me convencer a
passar num Starbucks antes de voltarmos para casa.

Fizemos nosso pedido e poucos minutos depois ele chegou. Comemos


tranquilamente, ainda havia muito tempo. Os olhos de Konstantin brilhavam
conforme ele tagarelava sobre seu namorado e no quanto queria se divertir
com ele. Eu odiava ouvir aquilo, não desejava o mal para meu amigo, mas é
que doía um pouco o ver tão feliz por causa de alguém, mesmo assim ouvi
concordando e dando respostas automáticas, ele estava tão empolgado que
nem percebeu.
Saímos do Starbucks pouco antes das três horas, Konstantin solicitou um
Uber e poucos minutos depois chegamos em casa.

***

No sábado, descemos do quarto às nove em ponto. Duane e Elijah,


fantasiados de Mario Bros e Luigi, nos esperavam para tirarmos todas as
fotos antes de sair, pois, segundo Duane, voltaríamos destruídos.

Posamos em frente à parede branca, todos juntos descontraídos e depois


individualmente. Konstantin estava fantasiado de enfermeiro, com um
daqueles trajes que parecem ser feitos de papel. Eu não tinha escolha senão ir
de viking, sem camisa, com uma saia esquisita, botas e uma capa, tudo de
couro, além de uma espada falsa. Só não sabia como aguentaria o frio, pois
estava praticamente sem roupa.

Elise chegou com duas amigas e nos obrigou a tirar mais algumas fotos,
depois levou Duane e Elijah, iam à festa de alguma boate, cujo nome não
entendi. Eu e Konstantin trancamos a porta e esperamos nossas caronas em
frente à Ceatha.

O celular dele tocou, ele atendeu e pela sua expressão, percebi que não
eram boas notícias. Quando desligou, parecia um pouco bravo.

— Ele disse que vai se atrasar uma hora...

— Então você vem conosco, não vai ficar aqui sozinho esperando.

Olhamos ao redor, a rua estava quase deserta, não havia crianças para
brincar de doces e travessuras, já que era uma rua universitária. A decoração
das casas só deixa tudo um pouco mais estranho.

— Ok.

— Lenn também está um pouco atrasado, ele disse que viria às nove, já se
passaram quinze minutos. Devo ligar para ele? — Perguntei ansioso.

— Não, vai soar desesperado...


Foi então que faróis nos iluminaram e lá estava ele em seu Chevy,
fantasiado de cigano. O estranho, era que combinava muito com ele, talvez
fosse o cabelo. Tinha uma bandana negra na testa, a camisa de botões estava
aberta até o peito.

Ele desceu do carro e veio ao meu encontro, a cada passo que ele dava
meu coração acelerava um pouco mais.

— Ainda dá tempo de desistir. — Konstantin cochichou, cheguei a rir,


mas Lenn já estava perto demais.

Ele não me deu um beijo. Eu esperava que ele o fizesse? Talvez. Mas ele
não fez, apenas ficou me encarando com seu olhar penetrante de sempre.

— Você vai passar o resto da noite aqui parado ou vem comigo? —


Perguntou, eu acharia que ele foi um pouco rude se não o conhecesse.

— Vamos lá. Kon vem conosco, a carona dele vai demorar — falei
olhando para Konstantin que me lançou um olhar que dizia "você ficou
louco?".

Lenn James assentiu, e se dirigiu ao carro. Sentei no banco do carona e


Konstantin no banco de trás, estava um pouco nervoso, mas acima de tudo
estava chateado com Matteo.

Partimos.

Na rua havia uma fila enorme de carros, mas em nenhuma daquelas casas
parecia haver uma festa de Halloween, Lenn estacionou o carro na única vaga
que tinha ali.

— Chegamos? — Perguntei desconfiado, não havia sinais de festa


alguma.

— Não se deixe enganar pelo silêncio, tenho certeza que está bem
barulhento lá dentro — Ele disse apontando para uma casa mediana com uma
placa de madeira que dizia "bem-vindo ao Cranberries".

Saímos do carro, eu e Konstantin nos entreolhamos. Aquilo parecia muito


estranho, Lenn falou em irlandês com um garoto que estava sentado na frente
da casa e ele marcou nossos pulsos com uma tinta florescente, então nos
deixou entrar.

Ele fechou a porta, estávamos numa espécie de hall vazio, havia apenas
outra porta, a qual foi aberta e assim fomos atingidos pelo som absurdamente
alto que vinha do interior da irmandade. Estava tocando um remix de You
know I'm no Good da Amy Winehouse, as batidas faziam meu peito tremer.

— Como isso pode acontecer? — Konstantin perguntou, sua expressão


era uma mescla de surpresa e alegria.

Havia gente por todo lado, pessoas sentadas conversando


civilizadamente, metade ali fumava, o ar cheirava a cigarro e álcool, muitos
dançavam com seus copos nas mãos. As janelas estavam fechadas com
blackouts que garantiam o segredo da festa.

— Níveis de acústica. Ela foi implantada em cada centímetro deste lugar.


Uma bomba poderia explodir aqui dentro e ninguém ouviria. — Lenn
explicou. — Já volto.

Ele entrou no meio da multidão e por lá desapareceu, olhei para


Konstantin, que sorria numa direção que logo percebi ser onde estava Matteo
vestido de Jack Sparrow, ele veio ao nosso encontro.

— Ragazzi! O que estão achando da festa? — Disse e agarrou Konstantin


imediatamente, lhe deu um beijo.

Revirei os olhos.

— Acabamos de chegar — Konstantin respondeu sem se soltar dele.

— Não esperava vê-lo tão cedo, mas como já chegou, vamos dançar!

Konstantin me lançou um olhar hesitante, não queria me deixar só, mas o


encorajei a ir, embora tivesse acabado de perceber que Matteo era um
mentiroso. Ele havia dito que só poderia ir buscá-lo em uma hora, pois estava
ocupado, mas lá estava ele dançando e bebendo. Porém, eu não ia estragar a
noite deles, se Konstantin não se importava com isso, eu também não deveria.

Passei direto pelas pessoas e fui até o balcão onde um belo barman fazia
seus truques. Me recostei no balcão e pensei no que beber, mas Lenn
apareceu de repente, como sempre fazia.

— É só pensar no diabo, que ele aparece...

— Então você estava pensando em mim? Que fofo. — Zombou e eu ri de


volta. — O que vai beber?

— Não sei...

— Carl, você poderia preparar duas doses do seu maravilhoso monsey


para nós? — Ele pediu com gentileza, já devia conhecer o barman, pois
piscaram um para o outro.

Fingi encarar o chão enquanto o rapaz preparava nossos drinks. Lenn


estava cem vezes mais sexy que o normal naquela fantasia.

— Aqui está — O barman disse entregando-nos dois copos longos com


uma bebida translúcida coberta por uma fina camada de algo vermelho como
sangue e canudos metálicos.

Pegamos nossos copos, Lenn segurou minha mão e me guiou na direção


do primeiro andar. Havia pessoas se pegando pela escada e corredores,
entramos numa sala um pouco mais reservada, havia apenas cerca de quinze
pessoas nela. Sentamos no chão como a maioria ali fazia.

Tomei um gole da bebida e quase me engasguei. Era bem mais forte do


que o que eu costumava beber, me queimou por dentro, cada parte do corpo.

— Vai com calma, isso aí não é cerveja. — Lenn me alertou num tom de
piada, o que me deixou levemente irritado.

Eu havia me drogado e ele ainda tinha uma imagem inocente de mim? O


que eu teria que fazer para mudar isso?

Num ato de pura exibição, joguei o canudo de lado, criei coragem e


rapidamente virei o copo, tomando a bebida toda em dois goles. Meus olhos
se encheram de lágrimas, pois tudo em mim ardia por dentro, mas mantive a
pose e encarei Lenn com uma sobrancelha erguida.

As pessoas ao redor tinham reparado em nós, começaram a me aplaudir.

— Rixon Lenn James, eu te desafio a tomar esse copo de uma só vez. —


Falei com uma segurança repentina.

Ele deixou escapar um sorriso nervoso, então ficou de pé e se preparou


para me imitar. As pessoas começaram a bater palmas e gritar encorajando-o.
Eu apenas mantive meus olhos nos dele. Lenn piscou para mim e finalmente
tomou a bebida de uma só vez, era tão sexy que uma pessoa sensível atingiria
o orgasmo só por observá-lo.

Parabenizaram Lenn por sua coragem, então voltaram para suas


conversas paralelas. Sentamos novamente no chão, tudo em mim estava
incendiando, ele acendeu um cigarro e me encarou.

— Não costumo perder desafios, Thomas. — Ele disse pausadamente e


expeliu fumaça em meu rosto.

Não me surpreendi ao perceber que gostei disso.

— Preciso de mais...

Eu não sabia se deveria, mas a vontade era maior que tudo. Naquela noite
eu precisava ir além dos limites. Lenn me encarou, parecia admirado, então
levantou e foi buscar mais bebida.

Não conhecia ninguém naquela sala, também não fazia ideia de onde
Konstantin podia estar com Matteo. Falei comigo mesmo para relaxar, afinal
eu estava numa festa para me divertir e não me preocupar desnecessariamente
com quem estava muito bem acompanhado.

Lenn voltou com dois copos da mesma bebida e um sorriso tão cínico que
me fazia querer bater em sua cara.

— Aqui está — disse sentando ao meu lado.


Ele tomou sua bebida devagar, saboreando o incêndio interior e eu fiz o
mesmo. Tentei desviar dos seus olhos, mas quando não resisti e o encarei de
volta, seu rosto estava a poucos centímetros do meu. Senti seu hálito e
saboreei cada segundo daquela coisa estranha que tínhamos.

O mundo girava bem devagar, mas antes que nossos lábios se tocassem,
eu virei o rosto para provocá-lo. Lenn segurou meu maxilar e me fez virar de
volta, então me beijou.

— Eu te desafio... — comecei a sussurrar.

— Mas nós já estamos bêbados. — Retrucou.

— A me levar para sua casa, me fazer sentir tudo aquilo outra vez, depois
vamos transar como se fosse nosso último dia na terra. O que acha?

Ele me pressionou contra seu corpo.

— Desafio aceito.

***

Num piscar de olhos estávamos em seu quarto na Garganta do Diabo,


Lenn me beijou com voracidade, me pressionando contra a porta enquanto a
trancava com uma das mãos.

— Você precisa me dar o que preciso. — Falei interrompendo nosso


beijo. — Faça eu me sentir bem... — Cochichei. — Por favor Lenn. —
Deixei minha mão escorregar para sua virilha.

Ele não pensou duas vezes, pegou os materiais, eu o ajudei a preparar,


usamos mais que da última vez, então quando já estávamos loucos, jogamos
tudo para o lado. Lenn arrancou minha fantasia, me virou de costas e passou
a barba por minha nuca enquanto suas mãos me agarravam com tanta força
que chegava a doer. Em seguida ele me virou de frente e deitou sobre mim,
tirou a sua fantasia, se abaixou e começou a me beijar, nossas peles quentes
se tocando, ele manipulou meus mamilos e desceu com a boca em meu corpo.
Minha respiração era tão pesada que logo se transformou em gemidos, eu não
me importava mais com os vizinhos, tudo o que importava estava ali na
minha frente...

Lenn puxava meu cabelo com tanta força que fazia minha cabeça ir para
trás.

— Mais forte! — Gritei.

Os movimentos se intensificaram, ele me estocava com força, sem dó. Eu


estremeci, mas ele amenizava a dor com carícias, mordidas, beijos e aquilo
era tão bom que eu poderia passar a minha vida inteira na cama que tremia
com nossos movimentos, quase saindo do lugar. Ele me deu uma leve tapa
atrás e não consegui segurar, me contorci debaixo de seu corpo, perdendo as
forças ao gozar, ele também não segurou mais. Soltou um gemido e logo
caímos de lado em sua cama. Exaustos, suados, sujos, satisfeitos.

Pelo menos naquele momento.

***

Eu me sentia como se um caminhão tivesse me atropelado na madrugada


anterior. Estava nu, a cabeça doía, o estômago se contorcia. Meu corpo estava
todo marcado, havia hematomas leves e marcas de mordidas descendo pelo
meu pescoço, foi o que vi rapidamente no espelho quando levantei apressado
à procura do meu celular que tocava sem parar em algum lugar no chão do
quarto de Lenn. O encontrei no bolso da minha calça, que estava quase na
porta do banheiro. Fiquei tranquilo ao perceber que era só Konstantin, talvez
estivesse preocupado comigo, pensei em não atender, mas ele ligaria a manhã
inteira, então atendi.

— Oi Kon, eu estou bem. Estou na garganta...

— Thomas... por favor, eu preciso que venha aqui, não sei o que
aconteceu, eu estou confuso. — Ele disse tão rápido que mal pude entender,
estava chorando.

Ouvi seus soluços enquanto esperava por uma resposta minha.


— Ok, estou indo, mas diga onde está, o que aconteceu?

— Eu não sei, por favor, Thomas! Me ajude, ainda estou aqui.

— Você dormiu no Cranberries?

Ouvi seu choro do outro lado, ele não respondeu e isso me deixou
assustado.

— Fique onde está, estou indo.

Desliguei o celular e comecei a vestir minhas roupas todo atrapalhado.


Lavei o rosto no banheiro e segurei a vontade de vomitar. Fui até Lenn, ele
dormia como um animal manso, mas eu não tinha como chegar a tempo sem
ele.

— Lenn, acorda! Aconteceu algo com Konstantin, você precisa me levar


ao Cranberries, é urgente!

Ele dormia como uma pedra, mas acordou quando o puxei pelo pé até cair
da cama. Ele se vestiu tão rápido quanto eu, pegamos o carro. Minha mão
tremia quando liguei de volta, mas Konstantin não atendeu.

— Ele não disse o que aconteceu? — Perguntou Lenn, ainda com cara de
sono.

— Não, mas parecia assustado. Estou com medo do que possa ter
acontecido com ele.

— Não fique, logo vamos descobrir.

Ele tirou a mão da marcha e a deixou repousar sobre a minha. Me fazendo


parar de tremer.
Capítulo 12
Confusão
PARAMOS EM FRENTE AO CRANBERRIES, TIVE MEDO DO QUE
EU encontraria quando entrasse, mas, ainda assim, segui com Lenn. Para
nossa surpresa, a porta não estava trancada, o lugar estava bagunçado, um
cheiro forte de cigarro e bebidas alcoólicas, não parecia mais convidativo
como na noite passada.

Apesar da escuridão, a irmandade não estava vazia. Os moradores deviam


estar em coma alcoólico em seus quartos e não acordariam tão cedo, também
havia algumas pessoas dormindo aqui e ali junto aos seus próprios vômitos.
Procuramos no térreo e não havia sinal de Konstantin. Resolvemos procurar
no outro andar, e foi aí que eu o vi.

Estava de camisa e cueca, sentado no meio do corredor abraçando os


joelhos, parecia transtornado. Ele nem se moveu quando me aproximei, o que
será que tinha acontecido?

— Lenn, acho melhor você esperar lá embaixo...

Ele assentiu e desceu, andei até ficar frente a frente com ele e me abaixei.
Olhei em seus olhos, Konstantin me viu, mas não parecia realmente estar
enxergando qualquer coisa.

— O que aconteceu com você? — Sussurrei.

Konstantin abriu a boca e a fechou em seguida, não disse coisa alguma,


apenas continuou me encarando. Estava amedrontado, olhou para o lado e
começou a chorar.

— Você pode me falar Kon, não tenha medo...

Ele ergueu a camisa, apesar da meia-luz, pude ver vários hematomas em


seu corpo. Ele ergueu o rosto e só então percebi um pequeno corte no lábio,
— Matteo fez isso com você? — Sussurrei incrédulo, era mais uma
afirmação que uma pergunta.

— Não sei, não me lembro...

Não deixei que ele desviasse os olhos, seu silêncio hesitante foi cortado
por mais soluços. Eu queria abraçá-lo e começar a chorar, mas um instinto de
proteção me atingiu, eu tinha que tirá-lo dali.

— Ok, olhe para mim! Nós vamos resolver isso, tudo bem? Eu vou te
levar comigo... — Parei para respirar fundo, estava sendo extremamente
difícil me manter firme vendo-o daquela forma — Nós vamos resolver isso.
Venha...

Ajudei Konstantin a ficar de pé. Ele cheirava a suor, cigarro e álcool,


ajudei-o a vestir a calça, apoiei seu corpo contra o meu, ele deixou escapar
gemidos de dor enquanto eu o levava para baixo.

— O que aconteceu com ele? — Lenn perguntou quando nos viu, se


juntando a mim imediatamente.

— Alguém o agrediu.

O colocamos no banco de trás, eu sentei com ele.

— Para o hospital? — Lenn perguntou ao dar partida.

Olhei para Konstantin, com a cabeça em meu colo. Ele estava muito
abalado para ter que lidar com outras pessoas.

— Não. Vamos para o seu quarto, ele precisa de um banho. Então


decidiremos o que fazer...

***

Concluí quer era tudo culpa minha. Se eu não tivesse ido à maldita festa,
talvez ele também não fosse. O levei para o banheiro de Lenn e tranquei a
porta. Sua expressão era de medo constante, apesar de estar seguro.
— Kon, por favor, eu quero que seja sincero comigo... Matteo fez isso
com você? — Perguntei.

Não consegui evitar que uma lágrima escapasse do meu olho, mas
ignorei.

— Eu não sei... ele estava e não estava lá, havia outros — Ele disse
voltando a chorar, estava confuso.

As perguntas podiam esperar.

— Ok, eu vou cuidar de você. Não se preocupe com nada...

Ele começou a tossir e não demorou muito a vomitar, ainda tinha que
lidar com o fato de estar de ressaca. Eu já nem lembrava que também estava.

Quando ele parou, limpei sua boca com a toalha de rosto, tirei sua camisa.
Ele tremia, sob a luz forte do banheiro eu vi os hematomas em suas costas e
peito, além de arranhões.

Tirei sua calça, ignorei sua parte íntima, o ajudei a entrar com cuidado na
banheira e me ajoelhei do lado de fora. Ajudei a se limpar, a se secar, o
enrolei na toalha e o coloquei sentado na cama.

Lenn estava sentado no tapete com um cigarro na mão.

— Você pode me emprestar uma roupa para ele?

— Claro.

Konstantin não precisou da minha ajuda para se vestir, ainda estava


trêmulo, mas conseguiu.

Lenn se aproximou e cochichou.

— Eu vou dar espaço a vocês, estarei lá fora fumando se precisar.

— Obrigado.
Ele saiu. Minha cabeça estava explodindo de dor, procurei por algum
comprimido e não encontrei. Konstantin estava encarando a bagunça perto da
cama, quando olhei naquela direção vi a seringa e as outras coisas espalhadas
pelo chão, mas não era o momento para dar explicações.

— Konstantin, nós precisamos prestar queixa...

— Não!

— Mas você não pode deixar por isso mesmo...

— Não! Eu não vou à delegacia — falou exaltado.

No que diabos ele estava pensando? Se ele foi agredido, precisava


denunciar. Não podia deixar por isso mesmo.

— Kon, você está em choque... eu entendo, mas precisamos.

— Eu disse não!

— Por que não?!

— Você pergunta por que não? Thomas, isso tudo parece um pesadelo, se
eu for à polícia todo mundo vai saber e só vai piorar... eu não quero virar um
alvo para quem quer que tenha me espancado — disse, parecia ter certeza do
que dizia.

O que eu podia fazer, senão concordar?

— Ok.

— Você não pode contar para ninguém, promete?

— Eu prometo — falei, embora não soubesse se manteria a promessa. —


Fique calmo, deite, eu vou pegar algo para você comer...

Ele obedeceu, um pouco mais tranquilo. Fui até Lenn, que estava sentado
na calçada com seu cigarro, tomei dele e traguei.
— Muito ruim? — Perguntou.

— Ele vai ficar bem. Desculpe te envolver nisso...

— Pode parar, ele é seu amigo. Precisava de ajuda. Está tudo bem.

Encostei minha cabeça em seu ombro, ele já tinha percebido do que se


tratava.

— O que vamos fazer Lenn? Ele não quer ir à polícia, nem ao hospital.
Tem medo de virar alvo e que acabe ocorrendo de novo...

— Desculpe, mas ele tem razão. Não é a primeira vez que algo assim
acontece em um campus universitário. Infelizmente é frequente, e os
responsáveis jamais assumiriam, ainda mais a vítima sendo um homossexual,
ele tem sorte de não ter ocorrido algo pior. Acredite. Estou aqui há mais
tempo, isso é a coisa certa a fazer, pelo menos por enquanto.

Lenn disse que era a coisa certa, mas parecia tão errado para mim. Fui até
o mercado mais próximo, comprei água mineral, suco de uva e bagels, o que
me lembrou Duane instantaneamente.

Ele saberia como lidar com a situação, mas ao procurar nos bolsos,
percebi que havia deixado o celular. Voltei e fui ver como ele estava, o
encontrei ainda deitado. Lenn saiu para encontrar um amigo, pedi que ele
ficasse de olho, caso encontrasse Matteo.

Konstantin só quis água, comi um bagel e tentei agir naturalmente, peguei


o celular e fui para o banheiro. Procurei Duane na agenda e disquei, mas
Konstantin começou a bater na porta.

— Por favor, não conte a eles...

Respirei fundo, estava um pouco sem jeito por ter sido pego no flagra.
Meu celular tocou, Duane estava retornando a ligação que não completei.

— Se você contar, vou dizer a eles que está se drogando. — Ameaçou.

Fiquei completamente aturdido, como ele podia ter a coragem de me


ameaçar? Eu só estava tentando ajudar. Peguei o celular, Duane ficaria
preocupado se eu não atendesse, mas abri a porta antes.

— Oi Duane, desculpe se te acordei. Só liguei para dizer que eu e


Konstantin estamos bem, vamos chegar um pouco tarde, não se preocupe.

— Até parece que eu me importo. — Disse e desligou. Mas ele se


importava sim.

Respirei fundo, Konstantin ainda me encarava.

— Eu não vou contar, mas você precisa me dizer exatamente o que


aconteceu, ou não vou te ajudar. — Falei decidido.

***

Passamos grande parte da manhã no quarto de Lenn, eu arrumei a


bagunça que tínhamos feito, enquanto Konstantin ficou na cama dormindo,
ou pelo menos tentando, só ele sabia o que se passava em sua mente naquele
momento.

Lenn chegou por volta do meio-dia e nos levou para a Ceatha, me despedi
dele com um aceno, provavelmente só voltaríamos a nos ver na próxima
reunião do grupo de apoio. Duane e Elijah estavam fora, aproveitando o
domingo.

Ajudei Konstantin a subir a escada, talvez eu estivesse exagerando, mas


mesmo assim o fiz. Sentamos em nossas camas de frente um para o outro.

— Lembrar disso será doloroso para você, mas eu preciso saber o que
aconteceu lá Kon.

— Ok! — Disse irritado, seus olhos estavam vermelhos, ele respirou


fundo antes de começar. — Não lembro muito bem, mas nós nos separamos,
então fui dançar com Matteo e ele me apresentou a alguns amigos, todos eles
me trataram como se eu fosse uma criança ou algo assim, não lembro bem
porque no momento eles me deram bebidas, fiquei um pouco relutante, mas
Matteo me encorajou a tomar, disse que a noite seria nossa e após tomar
comecei a ficar mais solto... — Konstantin parou um pouco, apertava os
lábios trêmulos. — Eu bebi mais e mais, devia ter alguma droga naquilo.
Matteo disse que buscaria mais bebida, mas ele sumiu, devem ter se passado
horas e ele não voltou, então os garotos me convenceram a ir para um quarto,
deixei que eles me conduzissem, mas quando entrei... eles trancaram a porta e
não me deixaram mais sair.

— Konstantin...

— Isso é tudo que eu lembro, eu estava muito bêbado. Então acordei


confuso e todo dolorido naquele corredor, tive medo que eles voltassem. Eu
não poderia ligar para os meus pais, você era o que eu tinha mais próximo de
uma família, por isso te liguei...

Sentei em sua cama e o envolvi nos meus braços.

Mas ao mesmo tempo, um sentimento de ódio me invadiu. Matteo era o


culpado, nada disso teria acontecido se ele não tivesse deixado Konstantin
sozinho. Tem que ser muito covarde para espancar alguém, ainda mais
estando em maior número.

Tudo parecia incrivelmente errado. Konstantin não quis comer, lhe dei
remédio para dor, fechei a janela do quarto e o deixei descansar. Fiz dois
sanduíches para aquietar meu estômago, lavei a louça relembrando tudo
aquilo e foi aí que uma ideia súbita me veio à cabeça.

Matteo precisa pagar pelo que fez.


Capítulo 13
Terrível Engano
EU NÃO PODIA PEDIR AJUDA A NINGUÉM, SERIA ERRADO DA
MINHA parte meter alguém em outra confusão. Ignorei o contato de Lenn
James no visor do meu celular e segui em frente, não sabia se ele estaria em
casa, mas assim mesmo fui caminhando lentamente pelos bairros
universitários do campus.

Cruzei com pouquíssimas pessoas pelo caminho até os apartamentos de


White Castle, onde os alunos mais ricos que não ficavam em repúblicas
moravam. Graças a Konstantin eu tinha descoberto que ele mora no
apartamento 133, bloco D. Fui direto para lá, só precisei do cartão magnético
para ter acesso ao local facilmente.

Demorei um pouco para localizar o apartamento dele, nunca fui muito


bom com direções, por isso nunca me interessei em aprender a dirigir,
provavelmente me perderia sempre que saísse para longe de casa. Bati na
porta três vezes e ninguém atendeu, bati outra vez e mais uma vez até que a
porta foi aberta bruscamente e quem apareceu não era quem eu estava
esperando, mas sim uma garota enrolada num lençol.

— Em que posso ajudá-lo?

— Desculpe, este é o apartamento de Matteo Vil...

— Vilfredo. Sim, este é o apartamento dele. Em que posso ajudar? —


Repetiu, ela pareceu-me defensiva demais.

Pigarreei antes de falar.

— É particular, preciso falar com ele — respondi com um daqueles


sorrisos de falso carisma.

Ela sorriu de volta, mais falsa que eu.


— Bem... ele não está no momento, mas eu digo que você esteve...

Antes que ela terminasse, ouvi ruídos dentro do apartamento e não me


contive. Empurrei a porta fazendo a garota recuar e entrei como um valentão
destemido, porém não tinha ideia do que faria.

Matteo estava completamente nu e não pareceu incomodado com a minha


presença, apenas me olhou com aquela cara de canalha e sorriu sem qualquer
indício de vergonha.

— Ragazzo! Que surpresa agradável, quer se juntar a nós?

Não consegui conter o ódio que me invadiu naquele momento, me atirei


sobre ele e lhe desferi um belo soco em sua cara sorridente e teria continuado
se a garota não me afastasse.

— Pare com isso, você é louco? — Ela gritou.

— O que diabos...

— Você é um completo imbecil. Isso é pelo que você causou a


Konstantin! — Gritei de volta. Tentei me livrar da garota, mas ela me agarrou
e impediu que eu avançasse outra vez.

Matteo fez uma cara de confusão, com certeza estava fingindo.

— Não sei do que você está falando.

— Não sabe? Seus amiguinhos não contaram bateram nele? Como o


deixaram no chão frio daquele corredor imundo!

Consegui empurrar a garota e me atirei sobre ele novamente. Nos


garramos entre socos e pontapés, até cansarmos. Ficamos deitados no chão,
ofegantes.

— Por que você deixou que isso acontecesse? — Falei resfolegando.

— Thomas, ele não era minha responsabilidade, nós nem somos


namorados, só estávamos saindo... não tinha como adivinhar que se eu saísse
da festa fariam isso com ele.

— Vocês são patéticos! — A garota disse e foi para o quarto irritada.

Continuei ofegando no chão.

— Ele não merecia Matteo, não merecia...

— Repito, eu não tive culpa Thomas. Assim que eu puder, irei visitá-lo.

Soquei seu abdômen dessa vez e me levantei.

— Não. A partir de hoje, você vai ficar bem longe de Konstantin. Você já
o machucou o suficiente.

***

Eu saí dos apartamentos de cabeça erguida, com ódio nos olhos e um


sorriso desdenhoso por ter quebrado a cara daquele imbecil como acontece
nos filmes.

Respirei fundo por vezes seguidas enquanto voltava para a Ceatha, foi
quando uma figura me chamou atenção na rua quase deserta. O garoto era um
pouco mais baixo que eu, era mais forte, tinha pele dourada e o cabelo curto.
Era ele, tive certeza quando o avistei de longe, não tinha como não ser Max.

Ele estava prestes a se cobrir na esquina, mas eu apressei o passo até estar
correndo, quando cheguei perto o suficiente eu pus a mão em seu ombro,
fazendo-o se virar para mim, podia até sentir o perfume. Mas aqueles olhos
não eram verdes, o perfume não era o mesmo. O rapaz me encarou com
hostilidade.

— Desculpe, achei que fosse um conhecido...

Nem esperei por sua resposta, apenas dei meia-volta e saí dali o mais
depressa que pude, me sentia pior que antes. Eu devia estar enlouquecendo,
não via outra explicação.

Assim que entrei na Ceatha, ignorei os comentários de Duane, que já


havia chegado, e fui direto para o banheiro.

Seja nos filmes ou na vida real, o banheiro sempre pareceu ser o local
perfeito para desmoronar. E eu desmoronei. A tristeza me dominou por
completo, havia tanta coisa acontecendo, eu estava tão distraído que não tive
tempo para me sentir tão mal como estava. Bastou uma semelhança, uma
confusão e então a ficha caíra. Não importava o quanto eu tentasse me sentir
bem, nunca conseguiria, não até que Max acordasse. Eu nunca conseguiria
seguir em frente sem ele.

Tirei a roupa, liguei o chuveiro e sentei debaixo dele, deixando a água


levar tudo, ou pelo menos tentando fazer com que ela levasse, pois a cada
minuto meu choro se intensificava e as lembranças se tornavam mais fortes.

***

Estávamos no parque, em mais um de nossos jogos de imobilizar, Max


pegou uma porção de lama e jogou em meu cabelo, em protesto eu fiquei
sobre ele, sentei em seu abdômen prendendo pernas e braços. O imobilizei.

— Tomtom, você até que é bem forte para um nerd sedentário — Max
disse enquanto se empenhava inutilmente em se soltar. Sua voz parecia tão
distante agora.

Encostei o rosto dele na lama como punição e ri.

— Vai se render Max? — Perguntei fazendo uma imitação trôpega seu


sorriso sem-vergonha.

— Ok, você venceu a batalha — ele admitiu ofegando.

Saí de cima dele e estendi a mão para ajudá-lo a se erguer, mas em vez
disso, ele a tomou e me puxou com força, caí sobre ele.

— Você venceu a batalha, não a guerra!

Suas roupas estavam enlameadas, a camisa perdeu alguns botões,


deixando grande parte de seu peitoral à mostra. Eu tentei não olhar, me
refugiando em seus olhos verdes, mas não aguentaria por muito mais tempo.
Tentei sair, mas fui pego de surpresa: em um pulo ágil – que só um atleta
seria capaz de dar – Max inverteu as posições.

Com ele sobre meu corpo, eu estava de costas na lama fria e só


conseguia rezar para que Max não descesse um pouco mais do meu abdômen
e chegasse a perceber uma protuberância significativa, porém involuntária,
em minha virilha.

As gotas de chuva serpenteavam pelo pescoço de Max e escorregavam


pelo peito. Eu podia sentir o calor repentino em meio ao frio, minhas
bochechas queimavam. Fiz um esforço imenso para retomar o foco, mas era
tudo tão excitante! Quando as pernas de Max vacilaram, eu o empurrei para
o lado, mesmo que na verdade eu quisesse agarrá-lo.

Max tentou avançar outra vez, mas eu me joguei sobre ele. Assim
começamos uma luta desengonçada e nisso escorregamos pela lama até o
fim da trilha que já estava bem perto, ela deu lugar ao asfalto duro do
estacionamento.

Ficamos sérios por um instante, com os olhos sustentados um no outro,


eu não consegui decifrar o que seus olhos diziam e temia que Max
percebesse o que diziam os meus.

— Acho que venci — Max disse com um sorriso convencido que me


derretia por dentro. Ele se levantou.

— Venceu nada, mas como sou um bom amigo, podemos considerar um


empate.

***

Aproveitei o momento das lembranças para me tocar ao mesmo tempo em


que chorava. Era ridículo, mas era como se assim ele estivesse mais próximo.
Porém logo percebi que nada mudara, e parei. Max continuava em coma, do
outro lado do mar, eu o deixei...

Como pude fazer isso? Será que um dia ele vai me perdoar?
— Thomas, você está bem? Já faz um tempão que você está aí...

Era Duane preocupado. Esse é o problema de ter amigos, eles sempre


aparecem quando você quer ficar sozinho.

— Já estou saindo! — Gritei de volta tentando manter a voz "normal".

Fui para o quarto ignorando os olhares de Duane e Konstantin que


estavam no corredor fingindo que não estavam falando sobre o que poderia
ter acontecido comigo. Fui para o quarto, mas não vesti uma roupa, apenas
me deitei na cama e puxei o cobertor até cobrir minha cabeça totalmente.

Às vezes, você tenta se esforçar, faz disso uma obsessão, pois sabe que se
não o fizer, não conseguirá seguir em frente, sobreviver. Porém, basta uma
lembrança do passado e tudo o que você tinha conquistado até então parece
escorrer entre seus dedos. Era assim que eu me sentia enquanto tentava abafar
meu choro no travesseiro.

***

Já estava anoitecendo quando Duane entrou no quarto com Elijah e


Konstantin, que já nem parecia estar tão abalado com o que aconteceu.
Talvez ele fosse mais forte do que eu pensava. Ele foi espancado por um
grupo de estranhos, mas era eu quem estava pirando.

— Thomas... estamos preocupados com você — Disse Duane.

— Não precisam ficar preocupados, eu estou bem. Estou ótimo! Só quero


ficar sozinho...

Obviamente, eu estava mentindo. Em meu interior era como se estivesse


ocorrendo um incêndio, e o fogo me queimava, não havia nada que pudesse
apagar. Nada que pudesse fazer a dor passar. Nenhuma palavra amiga me
anestesiaria, se eu procurasse por isso, teria ficado em Cambridge.

— Ok, mas se precisar de algo, qualquer coisa...

— Eu estou bem, ok? — Falei, sendo mais grosseiro do que pretendia,


mas funcionou. Eles me deixaram em paz.
Depois que saíram, chorei até dormir.

***

A pele de Max era tão quente e macia, suas mãos ousadas passeavam por
meu peito nu, ele desceu da orelha para o queixo lentamente, nossas ereções
se comprimiam, eu não conseguia ignorar o fato de que aquilo realmente
estava acontecendo! Será que ele também gostava de mim como eu gostava
dele?

Max mordeu meu lábio inferior de forma leve, pressionou seu corpo com
mais força contra o meu, fazendo meus pensamentos se confundirem, tudo o
que eu queria era seu toque, seu cheiro...

Houve uma breve tensão seguida de um desejo incontrolável, mas eu


estava incerto se devia ou não encostar meus lábios nos dele, um turbilhão
de pensamentos surgiu me dominando, mas enquanto eu decidia, Max agiu.

Quando ele me beijou foi como uma explosão, nossas línguas se


encontraram numa dança sensual naturalmente ritmada. Fogos de artifício
estouraram dentro de mim, se eu o beijava com vontade, ele retribuía em
dobro.

Arranquei a camisa de Max sem me preocupar com os botões. Ele desceu


por meu corpo dando beijos e foi mais longe que isso, começou a desabotoar
a minha calça e deixou que sua mão invadisse minha cueca.

Minha respiração se converteu em gemidos, nunca provei algo tão


poderoso antes. Passei minhas unhas por suas costas e ele se contorceu
também, depois subiu outra vez buscando o meu beijo e o encontrou.

Parecia que já tínhamos feito mil vezes, e naquele momento eu queria


que já tivéssemos feito.

As meninas nem pareciam estar no quarto, eu senti que eu e Max éramos


o centro de tudo naquela cama. Pensei ter visto clarões, mas eu devia estar
apenas muito emocionado ou chapado ao ponto de ver estrelas, ou podiam
ser relâmpagos da tempestade que se formava lá fora, o que importava? Max
estava ali, me desejando como eu sempre o desejei.

A música parecia estar ainda mais distante, como se não houvesse tempo
e espaço. Era apenas uma melodia perdida em outra dimensão.

Segurei o rosto de Max e encarei seus olhos verdes por um longo


instante, vi surpresa, desejo e compreensão naquele olhar. Podíamos amar
sem culpa, pois parecia ser recíproco. Aproveitei para beijá-lo de novo com
todo o meu desejo.

A visão continuava turva, pisquei para enxergá-lo melhor e ele estava


sorrindo.

Tudo era excitante numa escala inimaginável, criei coragem e com uma
ousadia que normalmente eu não possuía inverti nossas posições, fiquei
sobre Max como se estivesse em um dos nossos jogos de imobilização. Dessa
vez, foi a minha mão que invadiu seu espaço íntimo. Max respirava
pesadamente, deixou escapar alguns gemidos quase impossíveis de ouvir ao
sentir minha mão abraçar sua rigidez. Ao mesmo tempo, nós nos beijávamos
com uma urgência que incendiava a cama.

— Max, eu... — sussurrei quando suas mãos firmes apertaram minhas


nádegas e ele fez eu tirar minha calça.

Depois ficou sobre mim, outra vez. Estava chegando ao ápice, mal
conseguia falar.

Entre beijos, mãos (nem um pouco) bobas, arranhões e mordidas, eu


podia sentir o que estava vindo e não demoraria muito até que minha
granada explodisse, afinal ela já havia sido jogada há bastante tempo.

Porém, subitamente, as mãos que me rodeavam sumiram...

***

Acordei excitado, estava suado. Sentei na cama e olhei ao redor, eu ainda


estava no mesmo quarto de antes, em Cork, na Ceatha. Konstantin dormia na
cama ao lado. Foi só outro daqueles sonhos inoportunos com lembranças do
passado, meu coração batia descompassado. Foi tudo tão real...

Estava amanhecendo, eu não conseguiria mais dormir, então levantei,


tomei um banho e preparei o café da manhã. Era o mínimo que eu poderia
fazer após ter sido grosseiro com eles. De novo.

Quando levantaram e começaram a descer, não comentaram nada, mas


quando estávamos os quatro à mesa, eu resolvi falar. Não era justo deixá-los
sem entender o meu surto.

— Eu quero me desculpar...

— Cara, não precisa. Nós entendemos — Elijah disse.

— Não, eu preciso. Fui grosseiro com vocês ontem e não foi legal. Me
desculpem. É que eu tenho alguns problemas, às vezes eles me atingem com
muita força e aquilo acontece, eu não quero que levem para o lado pessoal.
Vocês são ótimos e tudo mais, não quero perder nossa amizade. — Falei com
sinceridade.

Eles falaram novamente que estava tudo bem, e realmente estava. Pelos
menos para eles, pois tudo voltou ao normal nos dias que se seguiram. Eu não
conseguia prestar muita atenção nas aulas, mas pelo menos estava
frequentando.

Na quarta-feira, quando saí da última aula e me dirigi ao Fitzgerald, me


sentia tão vazio por dentro, não importava quantas vezes eu sorrisse. Foi ao
me juntar ao grupo e encontrar Lenn James sentado entre o círculo de débeis
mentais que encontrei algum conforto. Eu ainda não estava pronto para
contar minha história, e para eles tudo bem, eu podia levar o tempo que
precisasse, quando a reunião acabou, Lenn me acompanhou à saída, como
sabia que faria.

— Então...

— Preciso da sua ajuda Lenn. Tem um buraco em meu peito se abrindo


cada vez mais e eu tenho medo que ele me domine, minha vida é uma merda
e só você pode me ajudar — Fui direto, não estava com paciência para
joguinhos.

Ele pensou por um momento, mas não se opôs. Pelo contrário, ele tomou
minha mão e apenas disse:

— Venha comigo, vou te dar o que precisa.


Capítulo 14
A Baleia Solitária
JÁ ERA SÁBADO DE NOVO, KONSTANTIN JÁ TINHA ME
LIGADO incontáveis vezes. Ele estava ignorando meus pedidos para me
deixar em paz. Eu não aparecia na Ceatha desde a quarta-feira, mas deixei o
aviso de que precisava desse espaço, porém Konstantin parecia não entender.

Eu estava com Lenn, ele tinha a única coisa que me fazia sentir melhor e
eu estava usando desde que cheguei, de forma moderada, embora a vontade
de me drogar ficasse maior a cada dose.

— O que vamos fazer hoje? — Lenn perguntou. Ele estava deitado ao


meu lado na cama, o cabelo todo bagunçado e uma cara de ressaca, tudo
culpa da bagunça que tínhamos feito à noite.

Me entrelacei ao seu corpo quente com toda força que tinha, seu corpo nu
era o refúgio perfeito para mim, eu poderia passar o dia inteiro deitado em
sua cama.

— Não sei, mas se não se importa, não quero voltar para a Ceatha hoje —
sussurrei.

Ele sorriu.

— Já falei que você pode ficar durante o tempo que precisar...

Me aninhei mais nele.

— É que você não parece o tipo de cara que gosta muito de companhia.

Lenn puxou meu cabelo para me fazer erguer um pouco a cabeça, então
me beijou.

— Da sua companhia, eu gosto.


Pena que a vida insiste em unir as pessoas em momentos conturbados.
Em outra época, talvez nós pudéssemos ser felizes juntos. Mas, de qualquer
forma, naquele momento não era felicidade que buscávamos, só queríamos
sobreviver ao mundo e talvez por isso nós tenhamos nos aproximado.

Ele levantou abruptamente e vestiu a cueca.

— Eu já sei para onde iremos! Se vista, separe algumas roupas, nós


vamos viajar. — Decidiu.

— Viajar? Para onde?

— Não pergunte muito, nós vamos pegar um trem em Dublin e sair por
aí. Vou te mostrar um lugar que conheço e tenho certeza que você vai gostar.
É melhor do que ficar chapado nesse quarto velho.

Concordei.

Na estação de Cork, pegamos um trem até Dublin, as três horas de


viagem pareceram uma eternidade, mas tínhamos tempo, ainda era cedo.
Descemos na capital irlandesa por volta das dez da manhã.

Entramos na fila da bilheteria na Estação Connolly. Lenn deixou claro


que tudo seria por conta dele e, infelizmente, não tive argumentos suficientes
para vencê-lo e pagar meus próprios tickets.

— Ei Thompson, tickets para casais estão mais baratos. Segure minha


mão e não solte até eu dizer — ele ordenou e entrelaçou sua mão à minha
sem se importar com as dezenas de pessoas ao nosso redor.

E nossa farsa deu certo. Ele conseguiu pegar os tickets para todo o fim de
semana pela metade do preço graças a um discurso bem plausível sobre
reconhecimento dos homossexuais como um casal e, após um olhar enojado
da atendente, disse que se não concordassem, isso viria a público e acabaria
num tribunal. Simples assim.

Ele trazia consigo um violão, eu carregava uma mochila que


compartilhamos, nos sentamos em banquinhos no embarque 22 e esperamos
nosso trem chegar.

— Você não soltou minha mão ainda — ele disse curioso.

— Mas foi você mesmo quem disse para eu não soltar até que você
dissesse — falei envergonhado, tentei soltar minha mão da dele, mas ele a
prendeu.

— Eu ainda não disse — avisou. Eu apenas sorri em resposta.

Passamos um bom tempo em silêncio, ele fumou dois cigarros e eu um.


Lenn foi ao banheiro e voltou, eu era paciente, mas já estava começando a
ficar ansioso. Comecei a tagarelar.

— Então... como é — falei lendo no ticket. — Greystone?

— Legal, mas estive pensando, não precisamos necessariamente ir direto


à Greystone, nossos tickets são para o fim de semana, podemos descer
primeiro em SandyCove, ver a praia. Está quente...

Concordei com um aceno.

Nosso trem finalmente chegou, sentamos nos últimos assentos.


Colocamos a mochila e o violão no assento vazio à nossa frente. Ele começou
a puxar a carteira de cigarros do bolso apertado da calça jeans, mas eu
apontei para a plaquinha de "proibido fumar" e ele desistiu, mas ficou
inquieto. Percebi que Lenn parecia um pouco nervoso, assim como eu estava
ansioso, mas nossas mãos não se soltaram.

Cochilamos juntos por longos minutos. Quando despertei, estava com a


cabeça encostada em seu ombro e ele estava de olhos abertos, encarava a
vista fora da janela arranhada. Me endireitei no assento e observei os campos
de grama alta, já era possível ver o mar ao longe.

— Falta pouco — ele falou baixinho.

Meu estômago estava embrulhado de fome, já era quase meio-dia.

Vinte minutos depois, desembarcamos em SandyCove, que nada mais era


que um povoado. Continuamos andando de mãos dadas pelas ruas simples e
pouco movimentadas, passamos por alguns moradores, a maioria deles era
formada por idosos, que gentilmente acenaram e/ou sorriram. Retribuí a
todos, enquanto Lenn apenas continuava a caminhar encarando o horizonte.

Passamos por casas maiores, quase cinematográficas, algumas tinham


BMWs e outros carros do mesmo nível nas garagens. Então avistamos a
praia, onde havia uma lanchonete e almoçamos. Depois passamos pelo
Museu do James Joyce e caminhamos descalços na praia.

— É hora de ir — Lenn anunciou. Expeliu fumaça e a observou se


desfazer no ar, então me passou o cigarro. As ondas frias molhavam nossos
pés.

— Tão rápido?

— Há outro lugar que você precisa conhecer, é mais belo que esse. — Ele
começou a me puxar para longe da água, onde deixamos nossas coisas.

— Então qual é o próximo destino?

— Os famosos portões do jardim da Irlanda, Bray.

Calçamos nossos sapatos, pegamos nossas coisas e voltamos à estação.


Lá pegamos um novo trem para Bray, um lugar do qual eu não me lembrava
de já ter ouvido falar. O trem seguiu seu caminho e enquanto sobrevivemos
aos pequenos solavancos, Lenn me surpreendeu ao tirar o violão de sua capa
e iniciar uma melodia triste.

Eu apenas o ouvi cantar.

— Well, I've been afraid of a changing cause I've built my life around
you... but times makes you bolder, children get older and I'm getting older,
too...

***

Alguns minutos depois, o trem entrou numa espécie de túnel, quando saiu
dele, vislumbrei o desfiladeiro, de um lado estava a montanha e do outro
estava o oceano escuro sob o céu cinzento. O sol parecia tímido entre as
nuvens, as ondas batiam com força contra as pedras abaixo de nós.

Lenn parou de tocar e guardou o violão, saímos da costa e entramos na


cidade. Descemos na estação e ele não segurou mais minha mão. Em vez
disso, pegou a carteira de cigarros e acendeu um.

— Para onde nós vamos? — Perguntei.

— A praia de pedra, vamos caminhar pela orla, aposto que você nunca
viu algo tão bonito, e o inverno não vai demorar muito a chegar, então
aproveite a vista...

Ele guardou a carteira novamente no bolso e voltou a segurar minha mão.

Não era como se eu estivesse apaixonado por ele, mas quando Lenn
segurava minha mão, era como se eu estivesse curado. Não havia mais
sofrimento, incerteza, eu me sentia verdadeiramente seguro.

Retificando, eu me sentia seguro pensando no presente.

Nossa caminhada não demorou muito, ele tinha razão sobre a beleza da
orla da praia de Bray, era um dos lugares mais lindos que eu já vi, se não era
o mais lindo. A praia não era como as convencionais, em vez de areia, era
repleta de pedrinhas.

— Não falei? Eu poderia passar a eternidade aqui observando essas


ondas...

— Eu faria o mesmo, observando seus olhos. — Eu respondi, livre de


qualquer hesitação.

Ele riu, e era um sorriso sincero. Coisa rara de ver em seu rosto.

Lenn soltou minha mão e foi na direção da bela linha horizontal formada
pelas pedrinhas brancas e cinzentas. Ele colocou o violão no chão com
cuidado, tirou os sapatos e a camisa. Não estava exatamente frio, porém a
água devia estar bem gelada, mas isso não o parou. Praticamente não havia
banhistas, só algumas pessoas caminhando pela orla.
Antes de entrar ele olhou para trás, era como um convite, mas eu me
limitei a observá-lo. Ele deixou as ondas molharem até o seu tornozelo, se
abaixou e com as mãos em forma de concha pegou um pouco de água do mar
e molhou o rosto e o cabelo, então percebeu que eu não estava muito a fim de
me molhar e retornou. Forrou a camisa para e sentar e pôs o violão no colo,
me aproximei e sentei ao seu lado sem me preocupar em sujar a roupa.

Ele começou a tocar lentamente e logo eu reconheci os acordes de


Nothing Else Matters, encostei a cabeça em seu ombro enquanto o ouvia
cantar, o mar estava calmo e ao longe no fim de um píer, havia uma roda
gigante.

— Trust I seek and I find in you, every day for us something new, open
mind for a diferent view and nothing else matters...

Quando a música acabou, éramos só nós outra vez. Ele me encarou


daquela forma desconcertante.

— Talvez você queira dar uma volta pelo Bray Head — ele sugeriu.

Eu concordei, mesmo não fazendo a menor ideia do que era. Voltamos ao


calçadão, continuamos andando em silêncio. Seguimos a linha reta até
entrarmos à beira de um penhasco, a trilha aberta subia pelo monte de pedras.
Me debrucei sobre a pequena parede de pedra e vi a água batendo abaixo de
nós. Continuamos andando até estarmos acima do nível da linha do trem.

De um lado a barreira de pedra e do outro o barranco e o mar como


testemunha.

Tudo aquilo me lembrou uma música que naquele momento fez sentido.

— Me beije forte quando for embora, tristeza de verão... — sussurrei


para mim, mas Lenn escutou e levou à sério.

Lenn James me puxou para si com força e me ergueu até eu sentar sobre a
barreira. Envolvi minhas pernas ao redor de sua cintura e meus braços em seu
pescoço. Uma culpa destruidora me ameaçava por dentro, mas a ignorei. Pelo
menos naquele instante.

— O que nós temos? — Perguntei curioso, ele beijou meu pescoço.

— Não vamos rotular isso. Apenas sentir...

Era típico dele não falar nada, mas naquele momento ele tinha razão. Não
precisávamos firmar compromisso ou dar nome ao que tínhamos. Nos
beijamos um pouco mais e passamos algum tempo ali enquanto ele fumava,
então descemos para procurar uma pousada.

Combinamos de dormir em Bray e sair cedo para visitar as falésias de


Greystone. Foi uma das poucas vezes em que dormimos juntos sem nos
drogar e foi bem tranquilo. Nós transamos e dormimos em paz.

Na manhã seguinte tomamos café na simples pousada em que nos


hospedamos. Lenn pagou nossa estada e fomos para a estação pegar o trem
para Greystone, que ficava bem perto. Caminhamos pela trilha das falésias,
tiramos algumas fotos e almoçamos num restaurante chique no centro da
cidade.

— É hora de voltarmos à realidade — Lenn avisou quando saímos do


restaurante.

— Não podemos dormir aqui novamente?

— Não, infelizmente levaremos pelo menos cinco horas para estar em


casa, não chegaríamos a tempo de assistir as aulas da manhã — explicou.

Ele tinha razão, concordei em silêncio.

Não queria dizer adeus a tudo aquilo, mas é a vida. O paraíso foi feito
para ser visitado e não habitado.

— Obrigado — falei quando entramos no trem.

— A partir de agora, quando se sentir mal, poderá voltar aqui e descansar


a mente.
De repente, sentados ali nos últimos assentos sozinhos outra vez, lembrei
de uma história que eu tinha lido em algum lugar ou alguém tinha me
contado, eu não sabia bem, mas também fazia sentido naquele momento.

O trem começou a se locomover.

— Sabe Lenn, eu li em algum lugar sobre a baleia mais solitária do


mundo. Ela não é como as outras baleias, pois não tem amigos. Ela não
pertence a nenhum grupo, nem sequer tem um companheiro, um amante,
nunca teve ou terá. Ela é única, seu canto é em uma frequência acima do das
outras baleias e esse é o grande “problema”. Nenhuma outra baleia consegue
ouvi-la, seu canto permanece sem resposta e conforme os anos passam, o
animal se torna mais triste e melancólico, por isso a chamam assim.

— Por que está me contando essa história? — Perguntou sorrindo sem


entender onde eu queria chegar.

— Por que eu acho que você é como ela...

— Melancólico, desesperado?

— Raro — respondi.
Capítulo 15
É Difícil Dizer Adeus
LENN ME DEIXOU NA CEATHA, JÁ PASSAVA DAS NOVE DA
NOITE E eu estava exausto por conta das horas em que passamos nos trens.
Por mim, eu não teria voltado tão cedo, mas meus materiais para as aulas da
segunda estavam lá, então era o certo a se fazer.

Quando abri a porta me deparei com uma cena, no mínimo, curiosa.


Duane estava aos prantos, sentado no sofá, chorava inconsolavelmente
amparado por Elijah de um lado e Konstantin do outro. Os dois me
encararam ao notar minha presença na sala. Posso até estar soando egoísta,
mas fiquei aliviado ao perceber que não seria o centro das atenções naquela
noite.

— O que houve? — Perguntei me aproximando deles.

Konstantin se levantou e me puxou para a cozinha.

— Acabaram de ligar, o avô dele faleceu... — falou baixinho.

— Sério?! Mas foi acidente ou algo assim?

— Não, não. Insuficiência respiratória, ele já era bem velhinho, pelo que
entendi.

Elijah pigarreou.

— Eu posso ouvi-los daqui, sabe? — Duane disse entre soluços.

Não havia muito o que fazer, senão consolá-lo. Então nos sentamos ao
seu lado, seguramos sua mão, o abraçamos e dissemos o quanto sentíamos
pela sua perda. Eu nunca conheci os meus avós, então não entendia muito
bem o motivo de ele estar tão abalado, mas como amigo, ofereci meu apoio.
— Tenho que ir para casa... — Duane disse ficando de pé.

— Não, não tem. Está tarde, você vai esperar até amanhã. — Elijah disse
com a voz firme.

— Mas eu não vou conseguir dormir, de qualquer forma!

— Du, ele tem razão. Você não pode sair assim no meio da noite. Se não
conseguir dormir, não durma. Estaremos aqui — Konstantin afirmou.

Eu assenti.

— Está vendo? Assim que amanhecer, eu chamo Elise e ela trará algum
carro, então iremos para Dublin encontrar sua família — decidiu Elijah.

— Eu não consigo acreditar que isso está acontecendo! No meu último


ano... ele não vai estar na minha formatura. Meu deus...

Duane voltou a chorar.

Elijah já havia acertado tudo com a irmã, e assim que amanheceu ela
apareceu em um Citroën preto que, segundo ela, pegou emprestado com uma
amiga. Konstantin optou por ficar, afinal ele era a pessoa mais indicada para
fazer as anotações nas aulas. Eu não sei bem o que pensei, mas escolhi ir com
eles.

Às seis horas da manhã partimos, Elise ao volante, eu no banco ao seu


lado e Elijah e Duane abraçados no banco de trás. O clima era estranho,
ninguém sabia o que dizer ou como agir. Elise ligou o som e começou a
cantarolar uma música de alguma cantora que não reconheci.

Eu encarava as ruas pela janela.

Janelas de carros tem esse efeito, nos deixa pensativos. Conforme tudo
vai passando diante dos nossos olhos é como se a vida trouxesse uma linha
do tempo de lembranças. Lembranças às quais eu preferia ignorar, pois me
traziam dor e dor era a última coisa que eu estava disposto a sentir.

Digitei uma mensagem para Lenn, antes que a rede caísse.


Estou voltando à Dublin com os garotos, o avô de Duane faleceu. Espero
que esteja bem, te vejo na quarta-feira.

Enviei, dez minutos se passaram e ele não respondeu, então desliguei o


celular para poupar bateria.

O tempo não queria passar. As três horas que passamos naquele carro
foram as horas mais longas da minha vida. Ao chegar em Dublin, Duane deu
as coordenadas a Elise para que ela nos levasse até sua casa. Alguns, longos,
minutos depois, entramos no bairro de East Wall, num quarteirão de casas
simples, porém espaçosas.

— É ali onde estão os carros — Duane apontou.

A casa era grande, simples, porém bem cuidada. Havia um jardim fértil
repleto de diferentes flores. Pelos carros estacionados na rua, entendemos que
os parentes já haviam chegado. Saímos do carro e acompanhamos Duane
para dentro da casa, ele não bateu na porta, apenas entrou.

O movimento lá dentro era bem grande. Algumas pessoas estavam


sentadas na sala, outras em pé aqui e ali. Uma moça varria discretamente o
chão, uma mulher ajeitava lírios na mesinha de canto.

— Duane! — Um rapaz falou alarmado e veio ao seu encontro. Os dois se


abraçaram com força e se consolaram por alguns minutos.

— Como vai Elijah? Olá pessoal. — O rapaz nos cumprimentou.

— Muito bem Philip, esta é minha irmã Elise, e este é nosso amigo
Thomas.

Trocamos apertos de mão.

— É um prazer conhecê-los.

— Nós provavelmente vamos ficar até tudo acabar, você pode ajudá-los a
se acomodar? Eu não estou muito bem...

— Claro, claro! Vá cumprimentar o pessoal, vamos abrir a celebração à


tarde. Venham comigo, vou mostrar o quarto onde vocês poderão ficar. —
Disse Philip. Apesar da perda, ele parecia bem feliz.

Nós fomos com ele ao primeiro andar, colocamos nossa pequena


bagagem no simpático quarto de hóspedes e descemos, ele saiu para pegar
vinho para nós.

— Esses irlandeses são bem estranhos, se algum parente meu morresse eu


ia estar louca de tanto chorar, olha só para eles, todos sorridentes celebrando
— Elise comentou baixinho.

— Parece até que só o Du está sentindo a perda do avô — Elijah


concordou.

Olhei para um lado da sala, lá estava Duane conversando com uma


mulher, parecia irritado. Ela tentava fazê-lo se conter, mas ele começava a se
exaltar.

— Quem será aquela mulher? — Perguntei a Elijah, que já conhecia a


família.

— Aquela é a Joanne, a Sra. Leachlainn. Mãe dele. Eles não se dão muito
bem. Acho melhor eu ir lá e tirar o Duane de perto dela antes que eles
comecem a discutir...

— Acho que é um pouco tarde para isso — Elise disse. Ouvimos Duane
aumentar o tom de voz.

— Então é por isso que você está aqui?! É claro que é por isso, você não
tem coração... só pensa em dinheiro.

Todos já estavam encarando os dois. Elijah correu até lá e segurou no


braço de Duane, cochichou algo em seu ouvido, não sei o que foi, mas
pareceu funcionar. Duane olhou ao redor e viu que estava sendo o centro das
atenções, então deixou que Elijah o guiasse para fora das vistas.

— Pais, qual gay não tem problema com os seus? — Pensei alto.

— Eu, meus pais são ótimos. Houve um tempo em que papai plantava
maconha, ele que me ensinou como tragar direito sem me engasgar. Quando
Elijah se assumiu, nós fizemos piadas dele por uma semana, e foi isso.
Nenhum aborrecimento. Ah! Esqueci de mencionar que minha mãe é doida
de pedra, pior que eu...

Philip voltou com taças de vinho tinto, fiquei agradecido por ele ter
chegado, assim não teria que ouvir mais das tagarelices de Elise.

— Então... você é irmão de Duane?

— Não, embora eu o considere. Somos primos, Deus me livre ser filho da


tia Joanne, aquela mulher é louca, vive no século passado e o tio Morgan é
até legal, mas ele faz tudo que ela ordena, então acaba dando no mesmo.

— Hum...

***

Começamos a nos preparar para a celebração, eu e Elise estávamos


desconfortáveis com a situação, porém havia muito vinho caro a ser servido e
isso já era uma motivação e tanto.

Duane e Elijah trajavam ternos quando descemos. Eu não tinha terno,


então vesti o que mais se aproximava de um, um cardigã preto sobre uma
camisa da mesma cor, calça jeans e os coturnos velhos de sempre. Elise optou
por um vestido simples na altura do joelho, saltos, o cabelo preso e um batom
suave, estava belíssima. Ela não precisava de muito esforço para ficar
deslumbrante.

O Sr. Leachlainn devia ter sido alguém muito querido, pois depois das
duas da tarde começou a brotar gente de todos os lugares. Irmãos e seus
familiares, amigos, conhecidos, colegas de trabalho do passado, vizinhos,
parceiros do Country Club e etc. Resumindo, a casa ficou cheia.

— Heterossexuais, cis, brancos, que família entediante — disse Elise,


estava tomando a décima taça de vinho.

— Elise, se olha no espelho, você é igual a eles — falei.


— Não mesmo, eu sou uma pessoa... diferente.

Não discuti.

Às três da tarde serviram o almoço. A sala de jantar era grande e cabia


cerca de 20 pessoas na mesa. Duane escolheu a cadeira da ponta da enorme
mesa retangular, os parentes mais velhos sentaram nos outros lugares, a mãe
dele na outra ponta. Ele fez questão de manter Elijah bem ao seu lado. Eu e
Elise um pouco mais distante.

Havia mais de quinze pratos diferentes, eu não quis me arriscar muito,


então me contentei com o tradicional boxty e o champ, Elijah seguiu meus
passos, mas Elise colocou um pouco de quase tudo que havia ali.

— O que foi? Coma tudo o que puder hoje, a gente nunca sabe se vai
estar vivo amanhã — disse quando nos pegou a encarando, então percebeu
que tinha feito uma piada sobre morte e ficou congelada.

— Não se preocupe. — Disse Philip, lutando contra um sorriso. Os outros


fingiram não ter prestado atenção.

Alguns minutos depois, a Sra. Leachlainn ergueu uma taça com água e
deu batidinhas nela com a faca, fazendo o tilintar ecoar pela sala de jantar.
Ela pigarreou, sua expressão era dura, não sei se eu estava me deixando levar
pela primeira – má – impressão que tive dela, mas o sorriso que ela deu antes
de começar a falar era mais falso que qualquer coisa que eu já tinha visto.

— Eu gostaria de fazer um brinde ao homem incrível que foi o meu pai!


— Disse olhando para nós, todos atentos.

O silêncio repentino foi quebrado pela risada de Duane, começou como


um sorrisinho e então se transformou em gargalhadas, naquele momento ele
roubou todas as atenções naquela mesa. Elise começou a acompanhá-lo com
risadas mesmo sem saber o motivo, mas Elijah lhe deu uma cotovelada,
fazendo-a parar.

Todos pareciam desconfortáveis, mas ninguém interrompeu seu surto.


— É engraçado sabe... — ele disse, mas não conseguiu conter o riso.

— O que é tão engraçado Duane? Não acho que este seja o momento
ideal para dar o seu showzinho. — Disse o pai dele.

Duane riu mais, eu já estava querendo me retirar, mas então ele parou.

— É engraçado vocês estarem aqui, depois de tudo o que aconteceu.

— Querido, seu avô se foi. Entendemos sua reação, mas sua mãe deve
estar sofrendo como você ou até mais. Não é o momento para ressentimentos
— disse uma senhora simpática que devia ser tia de Duane.

Ele a encarou incrédulo.

— Depois de quatro longos anos... ela resolve retornar aqui e fingir que
não me abandonou no momento que mais precisei dela, isso é no mínimo
curioso.

— Eu nunca te abandonei!

— Nós nunca te abandonamos, você que escolheu levar essa vida — o pai
de Duane completou.

Encarei Elijah, tentei lhe dizer com o olhar que desse um jeito em Duane,
fizesse ele parar antes que aquilo virasse uma confusão maior, eu já havia
passado por várias situações do tipo e não queria participar de mais uma
depois de tanto tempo. Elijah apenas me encarou de volta e deu de ombros,
eu sabia que ele queria fazer algo, mas não estava ao seu alcance. Duane era
um furacão, ele só pararia quando achasse que era a hora.

— Eu escolhi ser gay? É incrível como o nível de ignorância de vocês é


alto, não tem limite. Eu nunca escolhi isso, eu nasci assim, vocês estão
cansados de saber! Parece que aquela carta não foi uma lição suficiente...

— Vamos esquecer tudo isso querido, estamos aqui para celebrar. —


Joanne insistiu.

— Celebrar o que exatamente? A morte do meu avô ou comemorar que


ele deixou uma boa herança? Vocês são todos uns imbecis!

— Du, já chega. — Elijah falou baixinho.

— Não, ainda não terminei. Eu preciso falar tudo que está entalado aqui
há tanto tempo!

— Venha comigo.

Duane começou a chorar, tentou discutir com Elijah, mas ele o levou para
cima e assim que eles sumiram das nossas vistas, estávamos constrangidos
demais para voltar a comer como se nada tivesse acontecido.

O pessoal se reuniu para beber e conversar sobre o falecido, havia gente


pela casa toda, Philip e Elise já tinham tomado tanto vinho que estavam
levemente bêbados contando piadas sobre velórios e rindo de qualquer coisa.
Eles tinham química, o que me fez lembrar de Lenn James, procurei meu
celular no bolso e chequei as mensagens, mas não havia nada.

Me senti perdido, mas continuei lá sentado ao lado deles, tomando longos


goles de vinho sem prestar muita atenção ao meu redor.

As pessoas começaram a partir pouco depois de anoitecer, eu não tinha


muito o que fazer, então me ofereci para lavar a louça. Philip convidou Elise
e eu para passear por Dublin, mas eu sabia que na verdade ele queria ficar a
sós com ela, então recusei educadamente.

A Sra. Leachlainn, que me pediu para chamá-la de Joanne, ficou na


cozinha me ajudando. Eu não era muito de puxar assunto, mas o silêncio no
cômodo era sufocante, então comecei a falar.

— Sinto muito pela perda.

— Obrigada querido. Sinto muito sobre o que ocorreu no almoço. Minhas


diferenças com meu filho parecem ter importância maior para ele que o
falecimento do avô — disse duramente, mas não parecia tão falsa.

— Bem, eu não me sinto confortável em falar sobre Duane. Parece


traição, ele me acolheu na Ceatha quando eu me senti completamente
perdido.

— E você acha que eu me sino confortável com isso? Eu cometi um erro


gravíssimo rapaz. Eu abandonei o meu filho num momento difícil e ele nunca
me perdoará por isso, não há incômodo maior que o arrependimento ou a
falta de perdão. Eu só precisava ter aberto meus braços para ele, mas em vez
disso o expulsei de casa. Meu pai nunca me perdoou por isso e agora... ele
está morto.

Ela me encarava, parecia buscar algum tipo de consolo, uma palavra


amiga ou qualquer coisa do tipo, mas eu não fiz nada disso. Apenas refleti.
Será que minha mãe se sentia assim todos os dias de sua vida por ter
cometido erros no passado? Eu deveria perdoá-la? Eu me sentiria para
sempre culpado e arrependido por ter deixado Max? Ele me perdoaria?

A vida é mesmo incógnita.

***

Ironicamente, quando acordamos na manhã seguinte, o dia estava lindo.


Tão lindo que parecia errado seguirmos numa marcha fúnebre, mas foi isso o
que fizemos. O Sr. Leachlainn era católico, assim como toda a família. O
caixão foi levado para a igreja e nós fomos em seguida no carro de Philip,
que estava discretamente de ressaca e com uma marca roxa no pescoço, assim
como Elise.

Elijah não deixou Duane sozinho nem por um instante, sempre abraçado a
ele, lhe fazendo carinho, lhe dando o apoio que ninguém mais poderia dar.
Apesar de triste e melancólico, era algo lindo de testemunhar.

O padre fez um longo discurso sobre a vida, a travessia e a morte, usou


tantas metáforas que a maioria ali não entendeu quase nada. Estavam na
igreja apenas para seguir o que achavam certo.

— Alguém tem algo a falar? — O padre perguntou após terminar a última


oração.

Philip foi o primeiro a ir lá, ele falou sobre como o avô era um homem
maravilhoso, a mãe de Duane e outros filhos do falecido se pronunciaram,
um colega do golfe e um vizinho também o elogiaram.

— Podemos seguir com o cortejo? — Perguntou o padre após o último


senhor discursar.

Não acharam que houvesse mais alguém a falar, mas Duane ficou de pé e,
cheio de lágrimas nos olhos e um lenço na mão, seguiu para o altar.

Ele encarou o teto da bela igreja enquanto mais algumas lágrimas caíam.
Pigarreou para ajustar a voz e respirou fundo.

— É difícil estar aqui. O vovô era uma daquelas pessoas que parecem
eternas. Ele era tão bom, tão sensível e doce. Recebi dele o carinho que nunca
recebi dos meus pais ou de qualquer pessoa no mundo. Ele me abrigou em
sua casa quando fui expulso por ser quem eu era, alguns... — ele olhou
diretamente para os pais — acharam que eu era uma abominação, mas o vovô
nunca achou que houvesse algo errado comigo. Nunca me olhou com outros
olhos. Meu avô foi a pessoa mais incrível que já existiu e é uma pena que ele
não esteja mais aqui, eu gostaria que ele comparecesse à minha formatura
este ano, infelizmente não será possível, mas eu sempre vou levá-lo comigo.
Em minhas boas lembranças, em meu coração...

Ele saiu do altar ainda mais triste, Elijah o amparou. Então seguimos para
o cemitério, onde ele foi sepultado ao som de aplausos em homenagem à
incrível pessoa que ele sempre foi.

Mais tarde, antes de voltarmos para Cork, sentados no quarto de hóspedes


ouvindo Duane narrar seus momentos ao lado do avô, ele nos mostrou a carta
que marcou sua vida. Seu avô escreveu para Joanne após saber que ela havia
expulsado o filho de casa.

Querida Joanne,

Na condição de seu pai, estou muito decepcionado com você. Talvez você
se surpreenda, mas a verdade é que você estava certíssima quando disse que
há "uma vergonha" na família Leachlainn, mas está equivocada quanto a
quem é.
A única "abominação" que vejo nessa história é você ter expulsado seu
próprio filho de casa pelo simples fato de ele ter lhe contado que é gay. Um
pai expulsar o filho de casa, na minha humilde opinião de ancião, é o
verdadeiro ato que vai "contra a natureza".

Seu filho não escolheu ser gay, ele nasceu assim e nunca vai mudar.
Você, por outro lado, escolheu ser retrógrada, fanática e mente limitada.
Então, aproveitando que estamos nessa "onda" de repudiar os filhos,
acredito que usarei o momento para lhe dizer adeus. Agora tenho um neto
(como os gays costumam dizer) "fabuloso" para criar e não terei tempo para
uma filha burra e sem coração, então adeus.

Caso encontre seu coração, me procure. Com amor, papai.


Capítulo 16
Aquela Velha História
RETORNAR PARA CORK FOI UM ALÍVIO IMENSO. APESAR DE
EU SER uma pessoa bem morta, nunca gostei muito do clima fúnebre,
principalmente depois de ter passado por todo o drama que foi a morte do
meu irmão caçula.

Deixamos Elise em sua república, que mais parecia um chiqueiro.


Quando chegamos na Ceatha, Konstantin nos esperava, preparou um
ensopado para o jantar. Chegamos ao cair da noite, ele não fez as perguntas
idiotas que eu faria se visse meus amigos chegando de um velório. Apenas
puxou as cadeiras e pediu que sentássemos.

Duane ainda estava cabisbaixo, com os olhos vermelhos e o nariz


escorrendo, mas sentou conosco e ficou brincando com a colher enquanto nós
comíamos.

— Amanhã temos provas de anatomia e bioquímica. Tivemos revisão, te


repassarei tudinho. — Kon disse.

— Acho que faltarei ao grupo de apoio então, a semana será bem corrida
— respondi.

— Não vai te prejudicar? — Duane perguntou, finalmente ele conseguiu


entrar em uma de nossas conversas paralelas.

— Não, aquele lugar é uma farsa. Não creio que ajude em nada.

— Estava pensando em participar, para superar o luto, sabe? — Falou


tristonho. Senti muita pena dele, não no sentido ruim da palavra, mas sim no
sentido de não poder fazer nada para deixá-lo melhor.

Pela expressão de Elijah, eu sabia que ele se sentia da mesma forma.


— Bem... talvez seja eu que não tenha jeito. Talvez ajude você — voltei
atrás.

Ele apenas assentiu e tomou um pouco do ensopado quente.

***

Assuntos relacionados à morte sempre me faziam pensar em minha


família. Meu pai criminoso, minha mãe adúltera, meu irmão traidor, meu
irmão bastardo, minha irmã que tomou jeito, meu irmão falecido.

Não entendia bem o motivo, não sabia se tinha algo a ver com a morte de
Michael, ou se tudo o que aconteceu conosco ao longo da vida me deixou a
impressão de que minha família estava morta, não de verdade, é claro, mas
talvez a alegria, a união...

Pensar neles fez a saudade me atingir como uma flecha envenenada, não
matava rapidamente, mas espalhava a dor. Decidi então ligar para Karola,
depois ligaria para Drake e tudo ficaria bem.

Tinha que ficar, ignorar a saudade é sempre mais difícil que sentir.

Fui para o quarto quando terminei de jantar, abri a janela, observei a noite
amena em Cork, sentei na cama e disquei o número dela. Chamou sem parar
e caiu, disquei de novo e no terceiro toque ela atendeu.

— Olha só quem resolveu dar o ar da graça!

— Oi Karol, tudo bem por aí? — Perguntei.

Ela hesitou um pouco.

— Sim, sim. Tudo ótimo! Só estou na correria para ter um casamento


perfeito, eu nem gosto muito de toda essa merda, mas a família do Henry é
muito conservadora, então já viu...

— E os outros, como estão?

— Mamãe continua igual, Henry está ótimo. Eddie já se recuperou da


cirurgia, ele também está noivo daquela colega da faculdade... enfim.

— E o Max?

— O Max, bem... não sei se eu deveria te contar isso, mas sei que você
vai acabar descobrindo de qualquer forma.

Estremeci, e se ele tivesse falecido e ninguém me contou? Eles teriam


essa coragem?

— Estou com medo do que pode ser, mas me conte. Seja o que for, eu
aguento, já tenho suportado tanta coisa...

— Por falar nisso, eu nem perguntei como você está.

— Karol, por favor, conte o que está havendo — pedi.

Ela parou de tentar me enrolar, então ficou em silêncio por um momento.

— É que a Loren está de volta e não voltou sozinha. — Só de ouvir o


nome dela, já fiquei paralisado. — Ela surgiu do nada com uma barriga
protuberante, achamos que ela poderia ter inventado tudo, mas ela está
grávida de quatro meses, nós vimos a barriga, e tudo indica que essa criança é
do Max. Loren não contou antes por que estava assustada, mas não queria
esconder isso da família...

Deixei meu celular escorregar até cair na cama. Estava em choque, só


podia ser brincadeira, mais um dos jogos daquela vadia. Ela não tinha
escrúpulos. Inventar uma coisa dessas ia além de qualquer uma de suas
façanhas, ela se superou. Devia ter engravidado de qualquer outro garoto por
aí e foi abandonada, por isso voltou. Não tinha outra explicação.

Desliguei o celular, fechei a janela, tirei a roupa e me enrolei até a altura


do pescoço. Era óbvio que eu não conseguiria dormir, mesmo tentando
muito, então esperei que Konstantin dormisse e deixei as lágrimas escaparem
num choro silencioso, como sempre fiz.

Assim que amanheceu, fiquei de pé. Tomei um banho gelado e me


arrumei, então saí rumo ao nosso prédio. Ainda era muito cedo, mas já estaria
aberto, então apenas fui. Não queria explicar a ninguém o motivo da minha
tristeza. As dores parecem aumentar quando alguém pergunta por elas.

Konstantin apareceu em nossa sala em cima da hora. Por sorte, não deu
tempo de me perguntar nada, apenas começamos a responder as nossas
provas sem qualquer tipo de contato. Infelizmente eu não conseguia me
concentrar em nada, estava suando frio, só pensava em Max, Loren grávida,
nosso futuro, o que seria dele?

Eu precisava de Lenn, precisava dele o quanto antes. Tentei responder


algumas questões, mas agi por impulso, entreguei a prova quase em branco e
saí correndo dali. Ainda era cedo para encontrar ele no parque, então
continuei correndo na direção de sua casa. Com o péssimo senso de direção,
eu ainda não sabia ao certo como chegar lá sozinho, há tantas ruas no
perímetro do campus que torna fácil fazer com que alguém se perca, mas
àquela altura isso pouco importava. Eu precisava de uma válvula de escape
para meu atordoamento, coisa que só Lenn James podia me oferecer.

No final, encontrar a Garganta do Diabo foi mais fácil do que eu


esperava. Consegui encontrar sem a necessidade de perguntar às pessoas na
rua. Entrei sem bater, a porta estava destrancada, como sempre.

Havia alguns esquisitões fumando ervas em seus narguilés, apenas me


olharam rapidamente e não se incomodaram, eu subi direto para o quarto de
Lenn, não tinha ideia se ele tinha aula àquela hora, apenas fui. Bati, bati e não
tivesse resposta, foi quando uma garota passou pelo corredor.

— Você é o namoradinho do LJ? Hum...

— Não é bem assim, mas você sabe se ele está aí? — Perguntei.

— Parece que você está precisando mesmo de um sonho hein?

Levei alguns segundos para entender o que ela estava insinuando, ou


melhor, o que ela estava dizendo. Era verdade, eu precisava muito da droga,
meu corpo clamava por ela, só de pensar, minha mente já entrava em êxtase,
mas eu não confessaria nada a uma desconhecida.
— Você sabe onde ele pode estar ou não?

— São nove da manhã cara, ele deve estar na aula — ela concluiu, então
desceu a escada num rebolado trôpego.

Peguei meu celular e disquei o número dele, mas só chamava. Mandei


mensagens, mesmo sabendo que ele não responderia. Lenn não é o tipo de
cara que adora enviar e receber mensagens de texto. Com ele era tudo cara a
cara, fazer ligações era uma de suas últimas opções e ele não me respondeu
ou retornou.

Comecei a sentir os espasmos em minhas mãos, logo começariam a


tremer. Eu precisava dele urgentemente, não ficaria esperando para sempre.
Decidi ir até ele, era a única forma que havia para me deixar melhor, era a
única opção, então peguei um táxi até o prédio de artes. Continuei enviando
mensagens de texto e ligando, mas só caía na caixa postal.

Foi quando estava perto do almoço que o avistei com alguns colegas,
todos pareciam típicos boêmios, filhinhos de papai, mas ele não.

— Lenn! — Chamei acenando. Um dos colegas apontou para mim, ele


me viu e não demonstrou nenhuma reação, continuou conversando com os
colegas, só depois de alguns minutos se despediu deles e veio até mim.

Caminhou um pouco apressado e parou à minha frente.

— O que você veio fazer aqui?

— Eu... não sei. Estava desesperado, eu preciso de outra dose —


confessei envergonhado.

— Acho que eu não devia ter dado, você está ficando viciado Thomas. —
Respondeu irritado.

Como eu explicaria para ele que minha vida estava desabando mais uma
vez e que só ele tinha o remédio?

— Lenn eu recebi uma notícia ruim e eu não estou sabendo lidar com
isso, fui mal na prova, preciso relaxar. Juro que te deixarei em paz e não
voltarei mais aqui, mas, por favor, me dê mais!

— Com você me olhando assim, como vou dizer não?

***

Na sexta-feira tivemos as últimas provas e eu fui péssimo, como em todas


as outras. Ainda não conseguia parar de pensar em Loren grávida. Por sorte,
Lenn havia me dado o que eu queria e assim eu consegui ficar um pouco mais
calmo.

— Preciso falar com você — disse Konstantin quando chegamos na


Ceatha. Ainda estávamos a sós.

Sentei na cama, de frente para ele. Uma notícia ruim a mais não faria
diferença na minha vidinha ridícula.

— Eu procurei o Matteo.

— Não acredito que você fez isso!

— Calma Thomas, deixe-me explicar. Eu o encontrei no centro de


estudantes e foi inevitável, ele insistiu para falar comigo até eu me cansar e
permitir. Ele se explicou e eu aceitei suas desculpas, provavelmente nós
voltaremos... — disse tentando conter um sorrisinho bobo.

Eu queria estapeá-lo.

— Kon, ele é um idiota, ou melhor, não sei quem é mais idiota entre
vocês dois! Você sabe bem disso, não merece perdão nenhum. Se não fosse
por ele, talvez não tivessem te espancado — justifiquei.

— Ei! Você está mais traumatizado que eu. Eu fui agredido, então eu
decido a quem perdoar ou não, mas achei que você, como meu amigo, me
apoiaria...

Respirei fundo para não me exaltar.

— Você vai voltar para aquele imbecil Konstantin, eu nunca vou apoiar
isso. Não depois do que ele te fez! — Me exaltei.

— Sério? Então que tal fazermos uma comparação com o seu


namoradinho viciado? Eu nunca tive motivo para apoiá-lo, mas sempre fiquei
do seu lado — ele elevou a voz também.

Fiquei de pé, de costas para ele.

— Lenn não é um idiota.

— O Matteo que não é, ele apenas errou e foi perdoado. Já o seu


namorado, vive te envenenando com essa merda que você está usando.

Me virei para ele.

— Escuta Konstantin, cuidado com o que você fala. Não fale do que não
entende. O que ele oferece ameniza minha dor — contei.

— Que dor? Você não está sofrendo Thomas, você é só um rapaz


dramático e mimado. Matteo e Lenn não são tão diferentes assim...

— Vá para o inferno!

Peguei minha carteira e saí do quarto bufando, nervoso. Ele não tinha o
direito de falar assim comigo. Tinha? Fui até a esquina e comprei um maço
de cigarros, não era algo que eu costumava fazer, mas ultimamente era assim
que eu sobrevivia: fazendo coisas que não devia. Voltei para a Ceatha, mas
não entrei. Sentei na calçada, em vez disso.

Quando anoiteceu eu já tinha fumado quase todos os cigarros, tanto que o


cheiro da fumaça impregnou em mim. Elijah chegou de mãos dadas com
Duane, que ainda estava abatido, mas já começava a dar sinais de melhora.

— O que você está fazendo aqui fora? — Duane perguntou, ele e Elijah
me encaravam com uma curiosidade divertida.

— Respirando.

Eles se entreolharam.
— Com toda essa fumaça, fica meio difícil hein? — Elijah disse sorrindo.
— Vamos entrar, eu trouxe torta de frango.

Assenti e entrei com eles, voltei ao quarto para guardar minhas coisas,
quando me aproximei da porta ouvi a conversa de Kon e, possivelmente,
Matteo.

— Como assim não vai poder? Mas nós combinamos de ir ao cinema! Eu


queria tanto ver "A fênix"... doente? Ah, então tudo bem. Nós podemos
remarcar. Fica bem.

Entrei no quarto assim que ele ficou em silêncio, guardei minhas coisas e
saí. Duane foi chamá-lo para jantar. Nós nos sentamos à mesa, embora não
quiséssemos nos ver. Elijah e Duane não paravam de nos analisar, sabiam
que algo estava errado, pois não estávamos tagarelando, mas não disseram
nada.

Eu estava retirando a mesa quando meu celular tocou. O nome no visor


me surpreendeu: Rixon Lenn James. Então ele estava vivo.

— Oi.

— Ei, eu acho que fui um pouco grosso com você esses dias. Estava meio
estressado com umas coisas que poderei te contar hoje, se você aceitar sair
comigo. E aí?

Lenn estava usando seu tom sensual-hipnotizador, como eu poderia dizer


não para ele?

— Deixe-me ver na agenda.... hum, parece que tenho um horário para


você. Que horas virá me buscar? — Brinquei.

— Deixe-me ver... parece que eu te conheço bem e sabia que você


aceitaria, pois estou bem em frente à sua porta.

Corri para checar, quando abri a porta ele estava lá sorrindo de pé.
Desligamos os celulares, ele me deu um abraço esquisito e me beijou
rapidamente.
— Vá trocar de roupa e traga algumas com você. Quero que fique lá em
casa por todo o fim de semana. — Ele falou com autoridade.

Puxei Lenn para dentro, o beijei com mais força, então o deixei sentado
na sala e fui me preparar. Ignorei a presença de Konstantin no quarto.
Arrumei uma pequena mochila com roupas, coisas necessárias e desci.

Lenn continuava no mesmo lugar onde o deixei. Sozinho, encarando a


parede. Elijah e Duane já estavam trancados no quarto fazendo maratona de
séries.

— Vamos lá — falei.

***

Chegamos ao Galloway alguns minutos depois, ficava na mesma área dos


outros pubs de Cork, porém um pouco mais afastado. Assim que entramos,
nos sentamos no balcão e pedimos drinks leves.

— Então... o que você ia me contar? — Perguntei.

— Você não devia me agradecer antes por salvar o seu dia?

Eu ri, mas balancei a cabeça negativamente.

— Bem... é que um agente da Hoper estava de olho em mim há semanas e


eu nem fazia ideia. Ele ia a todas as minhas apresentações, então ele falou
comigo esta semana, se apresentou e disse que eu posso ter um futuro
brilhante com eles.

— Mas isso é ótimo!

— Não quando eles pedem como exigência para a audição pelo menos
uma demo de uma canção autoral e eu não tenho nenhuma pronta — ele
tomou a bebida toda de uma só vez. — Mais um, por favor!

Eu devia estar paralisado, encarando ele com cara de idiota. Uma das
maiores gravadoras de toda Europa estava de olho em seu trabalho e ele
estava chateado por não ter uma demo?
— Você tem que correr... antes que eles se interessem por outro. E Lenn,
você sabe que há mais garotos bons no campus.

— Eu sei, eu sei! Mas como vou conseguir compor algo genuíno com
toda essa pressão sobre mim?

— Vamos dar um jeito.

Assim que fechei a boca, olhei para um dos sofás num canto do pub e o
vi. Matteo estava lá protagonizando cenas quentíssimas com outro garoto. Na
verdade, estavam apenas se beijando, mas aquilo parecia mais uma preliminar
para o ato principal.

Uma fúria me dominou, aquela velha fúria que não aparecia há semanas,
e tomou conta dos meus atos. Quando dei por mim, estava indo na direção
deles com tanta pressa que quase tropecei nos próprios pés.

Joguei minha bebida nos dois, o que causou espanto em todos que
estavam ao redor.

— Dio mio! Sei pazzo? Está louco? — Perguntou assustado.

— Então essa é a sua doença?! — Gritei.

As pessoas começaram a se juntar para ver de perto o que estava


acontecendo.

— Não é da sua conta. Por que não cuida da própria vida, han? — Gritou
mais alto que eu.

O rapaz que estava com ele se afastou, então éramos só nós dois e a
pequena plateia.

— Seu desgraçado! Você causou tudo aquilo, foi perdoado e ainda brinca
com os sentimentos dele. Isso não se faz, seu canalha!

Avancei nele, levando um soco no rosto primeiro. Infelizmente eu era


péssimo em brigas, mas ele também não parecia ser muito bom. Rolamos
pelo bar entre chutes, socos e pontapés, derrubamos alguns copos, tombamos
em mesas, mas continuamos nosso show até sermos separados por dois
seguranças, que em seguida nos enxotaram do pub, cada um por uma saída.

Lenn apareceu logo.

— Onde você estava? Por que não nos separou? — Perguntei irritado.

— Eu estava tendo uma inspiração súbita. Sua raiva me trouxe o que


estava faltando. Precisamos ir embora, acho que estou prestes a dar à luz uma
canção!

Ele parecia um alucinado enquanto falava, mas não me opus. O melhor


que podíamos fazer com o resto da noite era voltar para casa. Entramos em
seu conversível, ele cantarolava alguma coisa e sua voz grave e aveludada foi
a única coisa que me trouxe tranquilidade. Conforme andávamos, fechei os
olhos e seguimos na mais perfeita paz.
Capítulo 17
Verdades Inconvenientes
LENN PASSOU A NOITE INTEIRA COMPONDO ENQUANTO EU
DORMIA num sono bem leve. Não sonhei, apenas me remexi para lá e para
cá, inquieto. Em alguns instantes, perdido pensando em como a vida pode ser
complicada.

— Está acordado? — Lenn perguntou me balançando.

— Sim...

— Eu preciso ir à Dublin, não sei quanto tempo vou ficar. Preciso te levar
de volta à Ceatha, não tenho tempo a perder — explicou.

Mas, apesar de suas palavras, não parecia que ele queria ir embora.
Estava agarrado junto a mim. Era uma boa sensação em meio a tantas ruins.

— O que vai fazer?

— Eu escrevi uma canção graças a você. Tenho uma ideia vaga da


melodia, vou me encontrar com dois amigos e iremos ao estúdio gravar. O
agente da gravadora não vai esperar muito.

Compreendi. Até tive vontade de ir junto, ver como isso funciona, mas
sabia que estaria atrapalhando, distraindo Lenn do seu foco. Ou eu estava
sendo convencido demais ao achar isso? Não sabia a resposta, afinal, apesar
de mais aberto comigo, Lenn continuava sendo um enigma.

Pedi que ele me deixasse no café algumas ruas antes, eu não queria voltar
à Ceatha imediatamente. Pedi um chai e cookies com gotas de chocolate.
Apreciei a vista da janela. A cidade sob um céu nebuloso, como a minha
mente. Talvez eu deveria ter escolhido um lugar mais ensolarado para
estudar, será que faria alguma diferença? Com certeza, não.
Tomei o chai quentinho, estava incrivelmente bom, ou era a minha fome
que falava por mim.

O inverno não demoraria a chegar. Com esse pensamento triste eu


terminei, paguei a conta e saí andando a passos curtos e lentos, como um
andarilho cinzento vagando por aí em meio aos transeuntes cheios de cores.

Ao entrar na Ceatha fiquei aliviado ao perceber que todos dormiam. Me


joguei no sofá da sala e lá fiquei encarando o teto até cansar, percebi que a
casa estava um pouco suja, então resolvi limpar. Eu não tinha nada para fazer,
pelo menos ficaria ocupado por algumas horas.

Ao terminar, vi que também havia um amontoado de roupas, a maioria


era minha, então também lavei e sequei, depois joguei tudo no sofá e comecei
a dobrá-las, separando o que era meu e o que era dos outros.

Elijah foi o primeiro a acordar. Desceu usando apenas uma cueca folgada,
ficando instantaneamente constrangido quando percebeu que eu havia
acordado antes.

— Ah desculpe, eu teria vestido uma calça se soubesse que...

— Não esquenta, a gente se vê assim o tempo todo. Como o Duane está?

Ele pegou uma caixa de cereais especiais e depositou numa tigela, depois
pegou o leite, misturou tudo e veio sentar perto de mim.

— Está melhorando aos poucos, mas ele aguentou muita coisa na vida.
Sei que vai superar isso também. Logo terminaremos nossos cursos. —
Pausou para colocar uma colher cheia na boca — Estive pensando em pedi-lo
em casamento, mas não sei se ele vai reagir bem... — confessou temeroso.

Eu sorri, apesar de sentir um pouco da velha tristeza que sentia sempre


que via um casal dando certo. Eu não sentia inveja deles, ficava até feliz por
encontrarem suas almas gêmeas, mas esse sentimento triste não podia ser
evitado, ele sempre vinha. Como se quisesse esfregar na minha cara que eu
nunca vou ser feliz.
— Você não saberá até que tenha pedido. Não fique pensando muito, se
arrisque. Se ficar adiando, quando criar coragem pode ser tarde demais. E
então você acabará como eu....

— Mas você já encontrou um novo amor, não?

O encarei me sentindo ofendido. Amor? Eu nunca amei ninguém além de


Max, sempre o amei mais do que a eu mesmo, compará-lo com Lenn era pura
ignorância, burrice. Eu e Lenn tínhamos algo, é claro que tínhamos, mas era
só uma forma de sobrevivermos à vida. Soaria muito louco se eu tentasse
explicar para Elijah, então apenas suspirei.

— Só senti amor uma vez, por uma única pessoa. Por ele, e ainda sinto.
Não sei se isso vai mudar algum dia, tenho quase certeza que não.

— Tudo bem, é sábado de manhã. Não precisamos nos depreciar tão


cedo. Vamos ver o que está passando em algum desses canais idiotas...

Concordei em silêncio.

Estava passando um dos primeiros filmes do Harry Potter, o que me fez


lembrar instantaneamente das vezes em que eu e Max passávamos tardes
inteiras reprisando toda a saga, comendo besteira.

— Como se eu já não tivesse problema suficiente...

— Qual é? Este filme não é tão ruim — Elijah disse em protesto.

— Não, não é. Só estou... pensando alto.

Terminei de dobrar as roupas enquanto assistia com Elijah, talvez ele


fosse a única pessoa normal na irmandade, ao contrário da irmã dele, que era
totalmente pirada. Tive vontade perguntar a ele sobre isso, mas ao fazer isso,
certamente, eu começaria a lembrar dos meus irmãos, que me fariam lembrar
dos meus pais, de Max, dos Dodger e todo o resto, então continuei apenas
assistindo em silêncio.

Silêncio esse que foi quebrado quando Konstantin desceu a escada e foi
até a mim como um carro desgovernado, ou até mesmo um furacão.
Fiquei de pé.

— O que você fez? — Disse me empurrando.

— Calma Konstantin! — Falei alarmado.

Ele ficou vermelho de raiva.

— Como você pôde?

Logo lembrei do outro dia, seu namorado finalmente contou sobre a


pequena confusão no pub.

— Pude o quê? Encontrar seu namorado te traindo com outro rapaz e


partir para cima dele? — Falei no mesmo tom.

Ele pareceu desnorteado por um instante, mas logo assumiu a posição de


valente.

— Você é um idiota! Ele só estava com amigos, não tem nada demais em
sair com amigos.

— Como você pode ser tão burro Kon? Ele está te traindo, ele faz isso
todos os dias sem qualquer remorso! — Desisti de ser educado, era melhor
jogar tudo sobre ele.

Infelizmente, eu levei um soco em resposta. Que deve ter doído mais nele
que em mim. A raiva estava me dominando também, tentei avançar, mas
Elijah se pôs entre nós.

— Mas o que diabos está acontecendo aqui?! — Duane surgiu assustado


e segurou Konstantin, Elijah me deteve.

— Está acontecendo o seguinte: Thomas não consegue superar o


namoradinho morto dele e quer roubar o meu namorado!

Não pude acreditar que ele estava mesmo dizendo aquilo. Foi como um
golpe fatal, mas eu não era mais o Tom antigo, que ficava calado e chorava.
— Por que eu ia querer roubar o seu namorado espancador?!

Duane e Elijah encararam Konstantin, perplexos.

Percebi que ainda restava algo do antigo Tom em mim, e foi o


arrependimento que senti após dizer isso.

— Talvez... por que aquele viciado doentio que te droga não esteja sendo
mais o suficiente para você? — Ele cuspiu as palavras em mim, o
arrependimento desapareceu.

Busquei forças e me desvencilhando de Elijah, praticamente voei em


cima dele e derrubei Duane junto, mas logo nos separaram outra vez. Não
deu tempo de fazer nenhum grande estrago.

— Seu imbecil! Continue com ele, sendo traído. E, quem sabe, levando
mais algumas surras da turma dele! Eu só queria te ajudar, mas agora foda-se!

— Já chega! — Duane gritou — Isso é inadmissível. Nossa irmandade


está nas últimas, só restam vocês para mantê-la existindo. Esse lugar sempre
pregou a união e vocês estão fazendo tudo errado, tudo ao contrário! Eu não
vou tolerar isso aqui dentro, vamos ter que sentar e conversar sobre essas
acusações gravíssimas que estão fazendo um com o outro. — Duane disse,
estava profundamente irritado.

Konstantin respirava como se estivesse bufando. Seus olhos repletos de


ódio e lágrimas me encaravam.

Os dois no soltaram, certos de que não brigaríamos mais.

— Eu tenho uma solução para isso. — Disse ele. — Ele não fazia parte da
irmandade, fui eu quem o trouxe. Talvez ele deva ir embora — Kon disse
firmemente.

— Não! Ninguém vai embora, somos adultos. Não é assim que se resolve
as coisas. — Elijah se intrometeu.

— Uau, parece que cheguei na hora da confusão. Amo!


Olhamos para a figura singular de Elise, que acabara de entrar.

— Elise, não é hora...

— Ok, ok, só vou ficar caladinha aqui observando. — Disse e encostou-


se na parede.

Parecia que Duane ia começar a chorar a qualquer momento, Elijah já


havia percebido isso também e agora estava visivelmente preocupado. Me
senti culpado por isso. Duane já tinha passado pela morte do avô, não
precisava de toda essa confusão.

— Acho que ele tem razão. Talvez eu devesse ir...

— Eu já falei que ninguém vai embora! — Elijah se exaltou.

Konstantin, lutando para se recompor, deu dois passos e ficou frente a


frente comigo.

— Se você não for, eu irei.

— Eu ficaria feliz, mas não se preocupe. Eu vou, e ninguém vai me


impedir.

Estava tão irritado que não me preocupei em pegar todas as minhas


coisas, apenas abasteci minha mochila com coisas necessárias ouvindo
Konstantin debochando de mim e Elijah com Duane insistindo para eu ficar.

— Elise, preciso de uma carona.

— Ok!

Duane e Elijah me encaravam ainda incrédulos.

— Thomas! Você não precisa fazer isso. — Disse Duane.

— Na verdade eu preciso Du, não se preocupe, eu vou ficar bem. Voltarei


para pegar minhas coisas depois...
Entrei no carro de Elise, ou melhor, em outro carro que ela pegou
emprestado com alguma amiga mais louca que ela. Então quando já
estávamos a uma distância segura, comecei a chorar.

— Você tem certeza do que está fazendo, gracinha?

Enxuguei os olhos e movi a cabeça negativamente.

— Para onde vai?

Ia dizer à Garganta do Diabo, mas lembrei que Lenn estava fora, e


provavelmente não voltaria logo. Resumindo: eu estava completamente
ferrado.

— Não faço ideia — respondi.

— Ok, vamos dar um jeito nisso. Não se preocupe, eu cuido de você...

— Já disseram isso antes. — Resmunguei.

— Sim, mas quem disse isso não era uma defensora dos fracos e
oprimidos, como eu! — Rebateu.

Tive que rir dela.

— Mas você não é uma fraca e oprimida?

— Não meu amor, eu sou é rica!

Eu queria ligar para Edward ou Drake e contar como eu tinha estragado


tudo mais uma vez, mas isso os deixaria preocupados. A última coisa de que
eu precisava, era da minha família no meu pé.

Enquanto cruzávamos as ruas do campus universitário, segui me


perguntando: o que seria de mim? Para onde aquela louca estava me levando?

Eu estava. Completamente. Ferrado.

Não estava?
Capítulo 18
Bad Trip
ELISE PODIA ATÉ SER UMA PATRICINHA AUSTRALIANA
PERDIDA NA Irlanda, mas a irmandade onde ela morava era uma tremenda
bagunça. Havia roupas espalhadas por todos os lados, louça suja e muita
poeira. Por sorte o lugar era enorme, mas ainda assim muitas garotas estavam
dormindo pelos cantos, seja sofá, tapete ou até mesmo o chão.

— O que houve com elas?

— Nada demais, sábado à noite... sabe como é. — Elise falou rindo,


certamente estava lembrando de algo. Eu gostaria de dizer que não sabia
como era, mas sabia sim.

Seguimos para o primeiro andar, cruzamos com duas garotas nuas.

— Elise! Pelo amor de Shamrock, nós não já falamos mil vezes sobre as
regras de não trazer garotos aqui? — Disse a mais alta.

A outra riu.

— Fica fria Janele! Não está na cara que ele é gay? — Elise respondeu.

— Na verdade não, ele se veste como um hétero.

As três riram de mim, o que – juntando ao fato das duas estarem


completamente nuas – me deixou completamente desconfortável.

— Ok, ok! Ele só precisa de um lugar para ficar por uma noite ou duas,
ou o ano todo, não sei. Ele está na fossa, e daquelas bem profundas! Vamos
Thomazinho...

Cutuquei Elise por estar me expondo àquelas desconhecidas.


— Sabemos bem o que cura fossas, vamos para A Caverna hoje às nove
horas. Traga ele com você.

— Ok! — Ela respondeu dando pulinhos.

***

Passei o dia inteiro dormindo, ou tentando dormir, no quarto de Elise.


Apesar de louca, ela foi muito cuidadosa comigo, totalmente o contrário de
Lenn James, que ainda nem tinha ligado para saber como eu estava.

Elise me fez prometer que iria com elas à tal Caverna, e eu não pude
recusar. Primeiro, porque seria feio, já que ela estava me abrigando. E
segundo, porque a última coisa que eu queria era passar uma noite de
domingo sozinho e depressivo numa casa enorme e vazia.

Então quando o relógio marcou nove horas, todas estavam prontas. Elise
me arranjou uma roupa "descolada" que algum cara tinha esquecido lá. Ao
que parecia, ela não dava muita bola para a regra de não levar caras para sua
república.

Algumas garotas saíram a pé, umas no conversível rosa que um dia vi


Elise dirigir, e nós, graças a ela, ficamos com um Ford branco. Elas
cantarolavam aos berros uma canção pop irlandesa, era até legal, mas não me
juntei a elas. Permaneci quieto com a cabeça encostada na janela.

O chuvisco que encontramos ao sair de casa se transformou em uma


chuva pesada, estávamos nos afastando dos limites da cidade, no sentido da
zona rural, no meio do caminho Elise pegou um desvio pela estrada de terra e
de repente estávamos num lugar esquisito, havia carros por todos os lados no
terreno, mas não vi sinal de boate alguma.

— Aqui é A Caverna? — Perguntei curioso.

As outras duas meninas, cujas os nomes eu ainda nem sabia, riram.

— Venha conosco gracinha, não tema. Te mostraremos o paraíso! —


Elise disse me puxando pela mão para uma pequena trilha em meio à grama
alta e algumas árvores.

Estava muito frio, o vento gelado soprava em nossas faces sem dó. Uma
das garotas iluminava o caminho com o celular. A trilha acabou numa parede
imensa com uma porta de ferro, eu estava começando a ficar assustado, então
Elise tomou a frente, bateu com força na porta até que um homem abriu, ele
era alto como uma montanha, tinha a pele negra, um sorriso incrivelmente
perfeito.

— E aí Jay, eu trouxe algumas amigas...

Ela passou algumas notas para a mão dele, que as contou, em seguida
tirou um pacotinho do bolso e deu a Elise, então liberou nossa passagem para
dentro da caverna.

Estávamos numa espécie de hall com uma luz verde, havia outra porta
grande, já era possível ouvir a música que vinha de dentro.

— Vamos provar um doce. — A garota disse alegre.

Elise abriu o pacote com cuidado e tirou uma cartela com tabletes finos
com desenhos infantis, até um tolo como eu saberia que se tratava de LSD ou
algo do tipo. Fiquei alerta.

— Abram suas boquinhas! — Elise pediu, retirando as partes da cartela.

As meninas abriram as bocas deixando suas línguas para cima, tentando


conter o sorriso. Elise colocou os pequenos tabletes na boca de cada uma,
então virou-se para mim.

— O que é? — Perguntei.

— Abra a boca gracinha!

— Não, eu não quero usar isso...

As meninas riram.

— Não existe essa possibilidade, ao passar daquela porta, você entra na


caverna da sua própria mente. Anda logo!

Quando fui dizer novamente que não iria usar aquilo, ela foi mais rápida e
colocou na minha boca, então era tarde demais.

— Não esquenta, sei que você usa coisa pior...

Entramos.

O interior do lugar era bem típico, só era um pouco rústico, tinha um


estilo grunge, se não fosse pelas luzes, eu me sentiria numa casa velha, porém
limpa.

Meu estado de frenesi surgiu mais rápido do que eu imaginava, talvez


pelo fato de eu não ter me alimentado direito. As luzes pareciam ter um
brilho a mais, eu estava tão leve que andar era como flutuar, o efeito se
intensificou conforme bebi um drink aqui e ali que as meninas me passavam,
eu nem questionava.

Estava tocando uma música muito conhecida, talvez uma das minhas
favoritas, mas eu estava tão louco que não conseguia reconhecer. Os altos e
baixos da melodia pareciam confusos, a voz do vocalista era muito grave, o
que me fez lembrar do Smeagol, então ficou muito aguda, tanto que era como
se beliscassem meus tímpanos.

Era como se minha consciência estivesse se afastando do meu corpo e,


por mais esquisito que fosse aquilo, eu não queria voltar, queria ir o mais
longe que pudesse. E eu fui.

Estava me remexendo na pista, junto a um monte de pessoas com a face


distorcida, a música já não era relevante nos meus movimentos, o mundo
estava tão em câmera lenta que eu só estava testando a gravidade.

Em um determinado momento, ouvi um tilintar, logo as pessoas estavam


correndo, talvez fosse alguma confusão, mas eu só queria desafiar a
gravidade, dançar sem som, olhar os meus próprios braços se movendo como
se eu não os comandasse, e teria ficado, mas alguém me pegou pelo braço e
começou a me puxar na direção que todos iam, para o lado de fora.
Perdi-me. Não só no espaço em que eu estava, mas também do meu eu.
Num momento estava sendo puxado por Elise, em outro ela já não segurava
mais minha mão. Estávamos no frio do lado de fora, eu não sabia o porquê.

Um arrepio percorreu-me e foi quando comecei a sentir um medo tão


profundo que me paralisou, foi quando eu o vi: Max Dodger, em carne e
osso. Literalmente.

Ele estava nu em meio às árvores, foi subindo o olhar, ele continuava


igualzinho, bronzeado, forte, sem pelos, mas ao procurar seus olhos,
encontrei sangue. Seu crânio tinha uma rachadura do lado esquerdo, por onde
escapava um sangue grosso como lama e massa encefálica.

— Você foi embora Tomtom! — Ele disse num tom acusativo. Estava
chorando, eu o tinha magoado.

— Max... eu não consigo olhá-lo assim.

— Tomtom, o que está dizendo? Eu não sirvo mais para você assim? Eu
te amava tanto...

Comecei a correr, corri sem parar entre as árvores, mal sentia o chão sob
meus pés. Eu não sabia para onde estava indo, mas não podia ficar ali. Max
estava me acusando, com razão, eu não podia ficar. O que eu diria para ele?

A névoa pesada parecia uma ameaça eminente, como se a qualquer


momento monstros pudessem surgir de todos os lados, continuei correndo.
Nunca senti tanto medo, não olhei para trás, apenas corri e corri até encontrar
um abrigo.

Estava suando muito, mal conseguia enxergar onde estava, sentia meu
coração batendo com força, achei que ele fosse cair, segurei meu peito. Havia
duas pedras altas, entre elas uma espécie de abrigo, foi lá onde me deitei.

Não importava a umidade do solo, que eu já podia sentir molhando minha


calça, ou a rigidez da pedra ao meu lado. Nada importava, eu só não queria
ver Max daquele jeito. Ele não me amava mais.
Eu te amava tanto...

As palavras dele ecoavam, vinham de algum lugar na neblina. Tampei os


ouvidos com as mãos, mas era inútil. A frase se repetia infinitamente, me
atormentando. Bati a cabeça repetidas vezes na pedra, mas de nada adiantava.
Era tudo culpa minha.

***

Quando abri os olhos, já era manhã. Minha cabeça doía, toquei minha
testa e percebi que havia sangue seco e ferimentos até à bochecha. Pelo
cheiro, descobri que eu havia urinado nas calças. Estava descalço, entre duas
pedras, na chuva. Não reconheci o lugar, estava muito frio e eu fiquei
apavorado.

Como fui parar naquele lugar esquisito no meio do nada?

Tentei lembrar do que aconteceu na noite anterior, mas estava tudo uma
confusão de imagens coloridas. Decidi sair dali e procurar alguém que
pudesse me ajudar. O celular não estava no meu bolso, eu estava ferrado.

Tudo doía, olhei à minha volta e só vi o verde do campo de grama alta,


umas árvores aqui e ali. Comecei a chorar enquanto andava, não sabia se era
a direção certa, mas qual direção parecia certa na minha vida? Todas as
minhas escolhas, que pareciam tão certas quando feitas, no final pareciam
completamente erradas.

— Alguém! — Gritei em vão.

Eu já estava encharcado e a roupa pesada me incomodava, tirei a calça


primeiro e a deixei no chão, em seguida tirei a camisa que nem era minha,
vaguei pelo campo de cueca, não sabia o que procurava, mas procurava assim
mesmo, lutando – com as partículas da minha consciência que não foram
abaladas – para não entrar em pânico.

Eu te amava tanto...

A frase não desapareceu da minha mente, ela começou a ressoar. Tentei


correr mais depressa, mas minhas pernas estavam fracas e doloridas como
todo o resto do meu corpo. O que diabos estava acontecendo?

Devia ser um sonho, não tinha outra explicação.

E onde estaria Max? Será que estava perdido também? E se machucasse


ainda mais? Eu não podia deixar isso acontecer. Entrei em pânico, ele podia
estar em qualquer lugar naquela imensidão verde, mas por conta da forte
névoa, eu demoraria a encontrá-lo.

— Max!? — Gritei, mas tudo que ouvi de volta foi o eco.

Repeti algumas vezes seu nome até perceber o que estava fazendo. Eu
devia estar louco. Max estava a milhares de quilômetros longe de mim, em
coma.

— Thomas!

Ouvi alguém chamar o meu nome, mas era apenas um chamado muito
baixo, que se repetiu. Seria coisa da minha cabeça ou alguém estava
realmente me chamando? O que era real?

Me ajoelhei no meio do mato e voltei a chorar, queria sair daquele


pesadelo, mas não parecia que eu ia acordar tão cedo.

— Thomas! Por que não me respondeu? — Olhei para trás e quem estava
lá era Lenn James.

Nunca o vi com uma expressão tão preocupada antes, estava encharcado,


seus olhos me encaravam incrédulos.

— Lenn...

Ele se ajoelhou próximo a mim, e me puxou para si. Foi um abraço tão
apertado que fiquei sem ar.

— Eu me perdi Lenn...

— Está tudo bem agora, não se preocupe — ele me abraçou mais forte.
Eu chorei tanto que precisava parar para resfolegar.

— Eu me perdi de mim, Lenn.


Capítulo 19
Visita Indesejada
VERGONHA ERA UM SENTIMENTO PEQUENO PERTO DE COMO
EU ME sentia realmente. Duane e os garotos queriam que Lenn me deixasse
com eles na Ceatha, mas, além de eu ter brigado feio com Konstantin, não
queria que eles me vissem num estado tão deplorável. Então me levou para a
Garganta do Diabo, o lugar que melhor me acolhia.

Cork estava envolta num nevoeiro, Lenn logo me disse que era típico do
início de dezembro. Ele estava sendo tão prestativo. Quando me trouxe no
domingo, tornou-se superprotetor, não deixou que ninguém me visse, só Elise
tinha me visto quando ele me levou até o carro, meus pensamentos ainda
eram confusos, mas me lembro de ter visto ele discutindo com ela e a
mandando embora.

Depois disso, ele me levou para sua "casa", me deu banho, teve paciência
com meus devaneios e meu choro interminável, me deu chá, me alimentou e
ficou abraçado comigo na cama até eu pegar no sono. Assim eu me senti bem
melhor, apesar da vergonha. Mostrar nossos lados podres um para o outro
parecia algo natural.

Acordei totalmente recuperado na segunda de manhã, eu queria esquecer


o ocorrido na noite passada, então resolvi falar de outra coisa.

— Então... como foi em Dublin? — Perguntei, Lenn estava sentado na


cama e eu com a cabeça em seu colo despido, acariciei levemente os pelinhos
de suas coxas.

— Foi bom, eu acho. Tivemos alguns problemas, mas resolvemos tudo


com muita conversa e no fim a música fluiu, estão fazendo ajustes na
melodia. Eu voltarei lá no próximo fim de semana, recebi um e-mail do
agente da Hoper hoje cedo, a audição será logo — explicou, não parecia tão
animado como antes.
— Por que você não parece muito feliz com isso?

— Não sei... talvez seja medo do que pode acontecer. A minha vida é
uma bola de neve de desgraças, tenho medo de que eles vasculhem o meu
passado, caso eu consiga o contrato...

Ele ficou um pouco tenso, parecia arrependido. Como se tivesse me


contando muito.

— Olha só para nós Lenn, você sabe de todas as desgraças que


aconteceram na minha vida, ou pelo menos a maioria delas. Você até me
ajudou com algumas. Sabe que pode confiar em mim, não sabe?

— Eu sei Thomas, só não me sinto à vontade para falar disso. Ainda não.

— Tudo bem.

Eu nem conseguia imaginar o que poderia ter acontecido de tão grave


com Lenn em seu passado, mas se era uma porta que ele não queria abrir, eu
não insistiria nisso. Não há coisa pior que ser pressionado.

Tomei outro banho, mas ainda assim minha aparência era terrível, eu
havia batido minha cabeça em algum lugar, o que me deixou uma escoriação
do canto da testa até à bochecha, isso sem contar os hematomas nos joelhos e
nas costas, além de olheiras imensas.

Quando saí do banho, percebi que eu não tinha roupas comigo. Tudo que
me pertencia estava na Ceatha, mas Lenn foi mais rápido e já havia separado
uma roupa dele para eu vestir.

— Vista-se, nós vamos dar uma volta. Não é todo dia que as aulas são
suspensas por conta da névoa. — Ele disse e saiu para me esperar lá fora.

***

Minutos depois estávamos passeando pelo centro de Cork, olhando o Rio


Lee do parapeito da velha ponte de pedra com dois copões de latte. A névoa
ainda era forte, apesar de ser quase meio-dia.
Ele parecia até um cara fofo usando aquele suéter felpudo, e eu, com suas
roupas, acho que nunca me pareci tanto com Lenn.

— Eu tive um irmão. O nome dele era Jared, eu costumava chamá-lo de


Jerry, como aquele ratinho da TV...

— Lenn, você não precisa me contar.

— Eu quero. — Ele confessou. — Jerry tinha sete anos, era um garotinho


alegre, carismático. Nós não tínhamos mãe, então eu cuidei dele a maior parte
de sua vida, éramos muito apegados. — Lenn pausou, parecia difícil falar
sobre, eu entendia muito bem disso. — Um dia, eu tive a brilhante ideia de
levá-lo para tomar um sorvete, o verão californiano é muito quente, todo
mundo sabe. Nós fomos a pé, meu pai ainda não tinha permitido que eu fosse
habilitado, eu segurei sua mãozinha enquanto andávamos pela calçada, na
outra mão ele tinha balões coloridos, ele os amava. Num determinado
momento os balões escaparam de sua mão e num movimento de puro
impulso, ele se desvencilhou da minha mão e entrou na rodovia. Tentei
alcançá-lo, mas o movimento era constante ali, era alta temporada... ele foi
atropelado por que não fui responsável o suficiente e tenho que conviver com
essa culpa pelo resto da minha vida. O meu pai me odeia, ele já deve ter
formado outra família.

— Vocês não têm mais contato?

— Não, sou só eu. Jerry foi socorrido e chegou com vida no hospital, mas
não resistiu aos ferimentos. Ele era só uma criança... e eu um adolescente.
Tentei buscar consolo em meu pai, mas ele me virou as costas e nada disse.
Dias depois de eu completar dezoito anos, ele me deu uma grande quantia em
dinheiro e mandou eu sumir de sua vida. Foi isso, esse é o meu passado
obscuro. Você ainda gosta de mim?

Percebi que ele tentava soar engraçado, mas tudo isso causava nele uma
grande dor. Ele era muito forte, tanto que nem deixava as lágrimas caírem
dos olhos.

— Você é tolo. É claro que gosto.


O abracei e ele retribuiu com força, então me afastou e me encarou
daquela forma intensa. Olhei para baixo, mas ele segurou meu queixo e me
fez olhá-lo.

— Eu já tentei alguns relacionamentos Thomas, mas ninguém parece


querer mergulhar de cabeça, pois não sou uma piscina rasa...

— Você é o oceano.

— Agora imagine que meu coração é uma blitz. Você estava andando por
aí em alta velocidade. Se vamos seguir em frente com isso que nós temos, me
diga, você está habilitado e parará ou fugirá?

Levei alguns segundos para entender sua metáfora.

— Digamos que eu fui um louco que passou direto, mas acabou sendo
apanhado — falei sorrindo.

— Acho que é suficiente. Então, às margens do Rio Lee, você aceita ser
algo meu? Dizer namorado, soa muito piegas.

— Sim, eu aceito ser algo seu.

E estava feito. Era oficial, a partir daquele momento tínhamos algo.

— Agora que você não está mais parecendo um zumbi do The Walking
Dead, está na hora de voltar para sua irmandade e resolver seu problema com
os garotos.

— Mal começamos a ter algo e você já está todo mandão — resmunguei.

Terminamos de tomar nossos cafés, jogamos os copos na lixeira.

— Eles ficaram muito preocupados com você. Aposto que Elise sofreu
nas mãos deles. Embora seja merecido.

— Não, ela não tem culpa de nada, eu sou adulto. Não teria usado, se não
quisesse...
— Ok, mas você tem que ir lá. Você faz parte de uma irmandade, tudo
que acontece com você afeta todos eles e vice-versa, então vamos resolver
logo isso? — Insistiu.

Revirei os olhos.

— Ok! — Concordei, ainda incomodado.

Ele pôs o braço sobre meus ombros e assim seguimos andando pelas ruas
do centro.

***

Chegamos na Ceatha após o almoço, a névoa já começava a se esvair


lentamente, mas o céu ainda estava nublado e a chuva ainda era uma grande
ameaça. Lenn parou o Chevy e esperou eu criar coragem para entrar. Ele
parecia estar em dúvida se deveria entrar ou não comigo, então desci e o
chamei.

Se éramos namorados, eu queria que ele estivesse presente no que fosse


acontecer lá dentro. Para minha surpresa, ele aceitou e segurou minha mão
antes de entrarmos, mas não sorriu.

— Oh meu Deus! — Duane gritou.

No mesmo instante, ele e Elijah praticamente se jogaram sobre mim,


Lenn se afastou um pouco. Konstantin não chegou tão perto, mas também
parecia feliz em me ver. Elise estava sentada no sofá, emburrada.

— Elise! — Chamei.

Ela levantou correndo e também me abraçou.

— Eu não tive a intenção de...

— Ah cala a boca. Eu estou bem!

Mentir já não parecia tão errado.


— Desculpa Thomas, foi tudo minha culpa. — Konstantin disse. Ele
parecia realmente pensar isso, sua expressão era um misto de tristeza e
arrependimento.

— Não é culpa de ninguém se eu sou um azarado.

Eles riram.

— Olá Lenn James — disse Elise, a primeira a notá-lo, então todos


encararam sua figura recostada à parede.

Ele assentiu em resposta.

— Acho que seria bom se todos nós sentássemos, precisamos conversar


sobre essas coisas que aconteceram. É inadmissível que o clima por aqui
continue estranho depois de tudo isso — Duane afirmou, ninguém discordou.

Fomos todos para a sala.

Elise sentou entre o irmão e Duane, Konstantin sentou no pufe e eu me


acomodei com Lenn no sofá menor.

Não foi uma conversa fácil, Duane fez Konstantin me pedir desculpas e
eu a ele, nós nos desculpamos por ter dito todas aquelas – verdades – coisas
desnecessárias e por brigarmos, coisa que não devia acontecer na irmandade
sob qualquer hipótese. Depois conversamos sobre a agressão que Konstantin
sofreu, ele disse que já havia superado, que não passara de um mal-entendido,
o que era uma grande mentira, mas eu e Lenn também mentimos quando
fomos questionados sobre sermos viciados. Ele, que mente bem melhor que
eu, disse que só usamos uma vez por conta do estresse, mas que depois disso
prometemos nunca mais usar, e o grupo nos ajudava com esse problema.

Os garotos ficaram surpresos pelo fato de Lenn também participar do


grupo. Isso logo me fez solucionar um dos seus mistérios: o motivo pelo qual
ele participava. Claro que não eram as drogas. Para estar no grupo era preciso
ter sofrido um trauma, o trauma dele era o irmão, logo era por isso que ele
usava as drogas.
Assim como eu, ele se drogava para amenizar a dor, amenizar a culpa.

Duane pegou carona na conversa sobre o grupo e decidiu que falaria com
a coordenadora de seu curso, para poder participar algumas vezes para
superar o luto pelo avô. Eu não o queria lá, nem Lenn, mas não tínhamos
desculpas para fazê-lo mudar de ideia, então quando a quarta-feira chegou, lá
estávamos nós, nos sentando em círculos no gramado do Parque Fitzgerald
debaixo do grande cipreste.

Eu e Lenn não mantínhamos mais um grande espaço entre nós. Sentamos


lado a lado, e Duane à nossa frente.

— Temos um novo membro hoje. — Disse Patrick feliz.

Ele iniciou o ritual para novatos no grupo, explicando como funcionava,


depois nos apresentamos e também apresentamos brevemente os nossos
problemas. Então Duane, do jeito que era engajado e participativo em
qualquer coisa, pediu para começar.

Mas as palavras deles se tornaram apenas um zumbido distante quando


senti alguém tocar minhas costas, antes mesmo de olhar o reconheci pelo
perfume, não havia a menor chance de ele estar ali!

— Olá Tom...

— Edward?! O que diabos você está fazendo aqui?

Perguntei confuso, todos no grupo pararam para prestar atenção no que


estava acontecendo, mas eu só conseguia olhar pasmo para o meu irmão.
Estaria eu sonhando ou ele estava mesmo bem na minha frente, na Irlanda,
em Cork?
Capítulo 20
Descobertas
CONTINUEI PASMO, NÃO CONSEGUIA ENTENDER O QUE ELE
ESTAVA fazendo ali, na minha reunião do grupo. Ele me encarava com
esperança e um pouco de decepção, todos no grupo estavam alarmados pela
minha reação, Duane parecia muito curioso e Lenn simplesmente ficou
encarando Edward como um cão protetor.

— O que diabos você está fazendo aqui Edward?!

— Thomas, não podemos destratar nossos convidados — Patrick disse


com uma expressão de repreensão. Olhei para ele contrariado, queria mandá-
lo se ferrar, mas me contive.

— Eu quero conversar com você Tom — disse se aproximando, mas não


havia a mínima condição.

— Não, fique longe de mim!

Levantei e comecei a andar apressado na direção da saída, mas ele me


seguiu.

— Tom, você já é adulto, não pode ficar fugindo...

— Não só posso, como vou. — Insisti.

Lenn me acompanhou e parou na frente de Edward.

— Você não o ouviu? Se manda! — Disse ele num tom que mais parecia
um rosnado.

Por que tudo isso tinha que acontecer comigo?

— Pode deixar Lenn, ele é meu irmão...


Lenn não pareceu me ouvir, continuou lá bloqueando a passagem.

— Tom, eu só preciso de uma conversa. Tome um café comigo, só isso


que te peço, por favor!

Que escolha eu tinha?

— Ok Edward, um café. Nada mais.

***

A verdade era que eu queria me jogar nos braços dele e senti-lo me


apertando, não o deixaria me soltar nunca, mas sempre que olhava em seus
olhos, via a mentira. Tudo que ele escondeu de mim por tanto tempo.

Nos sentamos em um café qualquer da avenida, passamos pelo menos uns


dez minutos só nos encarando. Ele parecia um pouco mais magro que o
normal, talvez tivesse algo a ver com a cirurgia...

— Eu não queria que você descobrisse daquela forma — ele iniciou. —


Na verdade, eu não queria que você descobrisse de forma alguma. Era um
problema só meu e da mamãe...

— Seu e da mamãe? Você é meio-irmão do Max e isso é um problema


exclusivamente seu e da mamãe?!

— Tom, apenas me escute, ok? Depois você pode falar o que quiser, mas
por enquanto só me escute. — Pediu, apesar de irritado, concordei em
silêncio. — Você era muito distraído para perceber quando descobri, foi
pouco antes de me formar. Por isso eu fiz o possível para entrar em
Cambridge, assim eu ficaria longe da mamãe, do nosso pai, de todo mundo.
Estando longe, eu não precisaria ter que olhar para você todos os dias
sustentando uma mentira...

— Mas mesmo assim você sustentou essa mentira Eddie, por todo esse
tempo...

— O que você queria que eu fizesse Tom? Te contasse tudo de repente?


Nem o Max sabe disso, imagine como ele se sentiria ao saber da verdade. —
Edward pausou para tomar um pouco do seu café.

Fiz o mesmo, mas não dei trégua.

— E que verdade é essa Edward?

— Você já sabe. Que nossa mãe trabalhou para os Dodger no passado,


que ela foi assediada pelo Mark e os dois acabaram tendo um caso, a partir
desse caso eu nasci. Mamãe nunca conseguiu esconder uma mentira e por
isso o papai descobriu. Você sabe como ele é, tentou tirar proveito disso. Os
Dodger sustentaram nossa casa por décadas, graças a um acordo que o papai
fez para não levar o caso deles à público. O papai conseguiu que Mark
pagasse por todas as nossas despesas, além da minha faculdade. Depois que
eu nasci, papai continuou tentando ter filhos com mamãe e assim nasceram
vocês. A única coisa boa que nasceu de tudo isso foi a amizade entre você e o
Max.

— Tem uma coisa que eu não consigo entender. Se a Sra. Dodger sabia
de tudo isso, como ela poderia aceitar nossa amizade? Eles até compareceram
à nossa casa!

— Amor, Tom. Todo mundo sabe o quanto Max era solitário, passou a
infância cercado por babás, os pais nunca estavam em casa. Você era tudo
para ele, Stela nunca deixaria que alguém privasse Max disso, por isso ela
fazia esses sacrifícios, tudo por Max.

Respirei fundo, se não o fizesse, acabaria chorando.

— Você está diferente Tom, está magro, com olheiras...

— A vida universitária não é fácil. Você sabe... passo noites em claro


estudando e coisas do tipo — menti descaradamente. Sabia que ele não
acreditaria em mim, então resolvi mudar de assunto. — Soube que você
noivou...

Os olhos dele se acenderam de repente, não por lembrar da noiva ou


qualquer coisa assim, mas por eu perguntar.
— Estou me formando, já fui praticamente aceito no mestrado. Acho que
está na hora de construir a minha família Tom. O nome dela é Alyssa, você
vai adorar conhecê-la, um dia...

— Sim, eu vou...

Deixei-me sorrir, as coisas estavam dando certo para ele também. Nossa
conversa me fez perceber que talvez ele tenha sofrido mais que qualquer um
com todo esse drama sobre as costas. Decidi absolvê-lo.

— Quando você parte? — Perguntei, não por que tinha pressa que ele
partisse, mas para ver como podíamos aproveitar sua pequena estadia.

— Eu vim para o congresso de Psicologia, me apresentarei com Alyssa,


partimos no sábado ou domingo — explicou.

— Amanhã eu tenho aula o dia inteiro, mas estarei livre à noite. Caso
queira me apresentar sua noiva, podemos sair para jantar...

— Ótimo! Você pode levar seu namorado também — falou.

Eu ri.

— Ele não é meu namorado.

— Não se envergonhe por ter encontrado outra pessoa Tom...

— Você não vai começar a bancar o psicólogo para cima de mim, não é?

Nós rimos, pedimos mais cafés, conversamos um pouco mais. Era tão
bom tê-lo perto de mim. De repente eu já nem lembrava mais da mágoa que
tinha guardado ao sair da Inglaterra. Ele continuava sendo meu irmão mais
velho, meu espelho, e eu sempre ia amá-lo, pois irmãos não foram feitos para
se odiar.

Antes de nos separarmos, eu o abracei com muita força. Um abraço


demorado e silencioso que durou uma eternidade dentro do seu carro.

— Eu senti sua falta Eddie, só estava cego de raiva. Espero que possa me
desculpar. — Falei envergonhado.

— Tudo bem Tom. Não há o que perdoar, nós dois erramos. Nos vemos
amanhã!

— Sim, preciso contar umas histórias peculiares para sua noiva. Até
amanhã então.

Quando entrei na Ceatha estava sorrindo de canto a canto.

— Você nunca nos disse que tinha um irmão tão lindo! — Duane me
acusou. Estava deitado no colo de Elijah, Konstantin estava ao lado deles.

— Ah... ele não é lá essas coisas. — Menti, ele era sim.

— Está brincando? Ele é uma versão melhor de você! Mais alto, com um
corpão, se veste bem e tem um carro incrível, e aqueles olhos azuis? Vocês
tinham que ver os olhos dele!

Elijah não parecia nem um pouco incomodado com os comentários, pelo


contrário. Estava até curioso também. Konstantin continuava neutro desde a
nossa briga, não parecia muito interessado em entrar nas conversas do grupo.

— Parece que o Duane está de volta! — Falei.

Na quinta-feira eu me sentia estranhamente animado nas aulas, até


tagarelei com Konstantin na maioria delas, o professor até precisou nos
mandar calar a boca, pois estávamos atrapalhando sua explicação.

No intervalo fomos avisados que a professora de Biologia Celular e


Molecular faltaria por conta de uns problemas de saúde, então seríamos
liberados mais cedo, pois os substitutos estavam todos ocupados.

— Não vai para casa agora? — Konstantin me perguntou quando saíamos


do prédio.

— Não, preciso passar na biblioteca antes. Acho que demorarei um


pouco, pode ir na frente, nos encontramos lá — falei.
— Ok — ele concordou.

Para minha surpresa, encontrei Lenn sentado no corredor de poesia. Ele


estava tão preso na leitura que nem percebeu quando me aproximei. Sentei ao
seu lado e beijei seu rosto, só então ele me notou e me beijou de volta.

— Olha só quem apareceu.

— Você está lendo Walt Whitman, sério?

— Qual o problema com ele?

— Nenhum, é que antes eu achava você bem misterioso, agora parece


cada vez mais previsível — falei num tom que oscilava entre brincadeira e
sinceridade.

— Lamento por sua desilusão. Agora vai me dizer o que houve com seu
irmão?

— Problemas de família, sabe como é... mas já resolvemos. Vou conhecer


a noiva dele hoje, não quer ir conosco? Se o clima ficar estranho, pelo menos
você vai estar ao meu lado. — Sugeri.

— Encontro de casais? Hum... ainda não cheguei nesse nível. Quem sabe
num futuro distante?

Soquei seu ombro de brincadeira, então ele segurou minha mão e me


puxou para si, derrubando o livro.

— Não podemos fazer isso, estamos numa biblioteca! — Cochichei.

— Para isso servem os banheiros.

E por mais que eu me envergonhe de dizer isto, meia hora depois saímos
do banheiro da biblioteca, desajeitados, roupas amassadas, cabelos
bagunçados e marcas no pescoço.

— Você é muito insano! — Falei conforme íamos para saída, ele me deu
uma tapa na bunda.
— Lenn!

Por sorte, ninguém estava prestando atenção em nós. Fiz os empréstimos


que precisava e ele se ofereceu para me deixar na Ceatha, embora fosse perto,
não recusei.

Estava tocando Animal Instinct do The Cranberries, que parecia a trilha


sonora perfeita para o que tínhamos acabado de fazer. Lenn devia ter pensado
o mesmo, pois me lançava alguns olhares conforme a música – e o nosso
caminho – se desenrolava.

— Está entregue — disse ao encostar em frente à Ceatha, mas eu não


queria que ele fosse.

— Entra um pouco, você não é mais malvisto aqui — lembrei. Ele


concordou.

Porém tive uma pequena surpresa ao entrar em casa e ver uma espécie de
reunião entre Edward, Konstantin, Elijah e Duane. Os quatro me encararam
como se estivessem vendo uma alma penada.

— O que está acontecendo aqui? — Perguntei curioso.

Edward ficou de pé.

— Eu sabia que tinha algo de errado com você Tom. Tive que recorrer
aos seus amigos...

Encarei os três, que pareciam com medo de mim.

— Vocês não...

— Tom, você está metido com drogas! Diga que isso não é verdade, por
favor.

Eu não estava acreditando que eles contaram tudo para Edward, ele
levaria isso para toda a família e logo minha vida se tornaria um pesadelo,
tive uma vontade absurda de chorar, mas me segurei. Lenn pegou minha mão
e a apertou.
— Eu tive que lidar com muita coisa quando cheguei aqui...

— Você teve que lidar com muita coisa? Sério Thomas? Há tantas outras
formas de lidar com os problemas e você, que sempre foi tão inteligente,
recorre às drogas? Logo você! Um prodígio! — Edward já elevara a voz.

— Eddie, você não entende!

— O que eu não entendo Thomas? Que você é burro? Só pessoas burras


fazem esse tipo de coisa.

Lenn estava inquieto ao meu lado, mas eu sabia que ele não se meteria em
nossa discussão, assim como os meninos que assistiam nosso show no sofá.

— Você nunca teve que acordar com vontade de morrer Edward, você
nunca teve que lidar com essa droga de culpa que me consome por dentro, me
dilacera, me mata um pouco a cada dia, essa angústia, essa incerteza, você
nunca precisou lidar com nada disso! Então não me julgue! A droga que você
repudia é o que tem me mantido de pé, ela leva embora toda essa dor...

— Ela não leva embora apenas isso Tom, ela leva seu brilho, sua saúde,
sua vida. Olhe só para você! Está magro, cheio de olheiras, parece um
viciado. O que você está fazendo Tom?

— Sobrevivendo Edward, estou sobrevivendo.

— Não é assim que...

— Pare de me dizer o que fazer! Como você mesmo disse, eu sou adulto
agora. Tudo o que faço é responsabilidade minha, então se eu quiser acabar
com a minha vida assim, é problema meu!

Edward se aproximou até estar bem à minha frente.

— Não seja burro Thomas. Eu quase nem te reconheço...

— Ótimo, assim será mais fácil. Agora vai embora, não quero te ver tão
cedo!
Duane ficou de pé também, Elijah tentou detê-lo, mas ele se livrou.

— Não precisa ir, se não quiser Edward.

— Ótimo, se ele não vai, eu vou!

Corri para o quarto puxando Lenn comigo, ele me ajudou a amontoar


minhas coisas rapidamente na mala sob os gritos dos outros que insistiam
para que eu não fosse embora. Outra vez.

— Eu pensei que eu tivesse uma família aqui, ou pelo menos amigos de


verdade, mas vocês estão muito longe disso. Não me procurem mais!

Bati a porta da Ceatha, Lenn jogou a mala no banco de trás do Chevy,


sentei ao seu lado e não olhei para trás, fingi não os ouvir protestarem. A vida
é feita de escolhas e eles escolheram isso.

— Você tem certeza do que está fazendo Thomas? — Lenn perguntou.


Estava apenas preocupado, não havia julgamento por parte dele.

— Sim, absoluta.

Ele liberou a mão que estava na marcha e segurou a minha.

— Estarei do seu lado — disse.

Era tudo o que eu precisava.


Capítulo 21
Herói
PARAMOS NA GARGANTA DO DIABO, LENN ME AJUDOU COM
A bagagem, deixamos tudo amontoado num canto do seu quarto. Nos
sentamos na cama, ele ficou me encarando, não estava com uma cara muito
boa.

— Olha, não se preocupa. Não vou ficar aqui para sempre, amanhã
mesmo eu vou procurar um lugar...

— Não é isso. Eu fui à audição, mas não tive um bom rendimento. O


agente disse que tenho muito potencial, mas a demo que criei não se conecta
comigo, ele me deu mais uma chance, mas acho que não vou dar conta. —
Confessou.

Me senti culpado, eu tinha distraído e atrapalhado ele por toda a semana.

— E eu aqui com meus probleminhas!

— Não diga isso. Nós vamos dar um jeito, só é muita pressão sobre mim.
Não gosto de ser pressionado.

Eu sabia que havia algo em seu portfólio, porém era certo mencionar? E
se ele não gostasse da ideia pelo fato de eu tê-lo bisbilhotado? O olhei
inquieto.

— Seja o que for, diga.

— Lenn, eles estão procurando por algo genuíno, certo? Então o que é
mais genuíno que a dor?

— Onde você quer chegar com isso Thomas?

— Não me pergunte como, mas eu sei que você tem uma canção chamada
Interrupted, ela é muito pessoal, como esse agente diz... é genuína! Se você a
usar, vai conquistar qualquer um.

— Você mexeu nas minhas coisas?

— Não Lenn, apenas estava por aí e acabei vendo...

Ele me olhou desconfiado, mas deu de ombros.

— Talvez você tenha razão.

— É, talvez eu tenha...

Ficamos nos encarando por um tempo sem nada dizer, éramos dois
azarados na vida, deitados numa cama para lamentar todas as desgraças que
sempre nos aconteciam. Lembrei de Edward com os garotos na Ceatha, o que
instantaneamente me deixou muito irritado.

— Lenn, nós podíamos...

— Não sei se é uma boa ideia Thomas. Eu já te trouxe problemas demais


por conta disso, você brigou com seus amigos e seu irmão e é tudo culpa
minha...

— Eles que se fodam. Lenn, você me dá a única coisa que pode me


confortar. Por favor, não me negue isso. — Falei me aninhando em seu
corpo.

Ele riu quando eu o beijei.

— Isso é golpe baixo.

— Não Lenn... — Deixei minha mão descer até sua virilha e a apalpei. —
Isso é golpe baixo!

Logo ele estava sobre mim, tirou sua roupa e a minha. Transar não era
bem o que eu tinha em mente, mas com tantos eventos ruins acontecendo que
mal tinha? Me entreguei a ele pela milésima vez e no fim, quando estávamos
suados, sujos e com cheiro de sexo, ele pegou seus utensílios e preparou uma
dose para nós.

Quando ele me injetou, o velho sentimento de calmaria chegou aos


poucos, sentia a dormência acontecer gradativa e lentamente em minhas
veias, apagando toda angústia e qualquer outro sentimento ruim dentro de
mim. Logo fui dominado por uma paz interior que me faria muito bem se eu
não precisasse me drogar para senti-la.

— Ah Lenn... isso é maravilhoso — falei "viajando", mas nem sabia se


ele podia me ouvir.

Perdi a noção de quanto tempo havia se passado, mas senti ele se


aconchegando a mim, e assim acabamos por adormecer. Nus, unidos,
confortáveis no corpo um do outro. Foi uma das melhores coisas que já me
aconteceram.

***

Acordei com batidas na porta, eram incessantes, impacientes. O relógio


de Lenn marcava seis horas da manhã de sexta-feira. Levantei devagar, o
mundo estava girando e eu ainda estava completamente nu. Lenn também
acordou com o barulho, não parecia tão mal quanto eu.

— Quem diabos está batendo aí?

— É o que vamos descobrir agora. — Falei.

Vestimos apenas nossas cuecas, antes que a porta fosse derrubada. Então
eu abri e lá estava Edward de prontidão.

— O que você quer? Acho que já deixei tudo bem explicado...

— Você vai vir comigo Thomas, por bem ou por mal.

— Você não pode obrigá-lo, além disso, eu não vou deixar. — Lenn se
meteu entre nós.

Ele nos olhou dos pés à cabeça.


— Aposto que vocês estavam se drogando! Deixe-me ver.

Edward nos empurrou e entrou no quarto, viu rapidamente a seringa e


outras coisas pelo chão. A cama desarrumada, nossas roupas espalhadas, o
cheiro forte de suor e sexo.

— Francamente Tom... a que ponto você chegou? Dormindo com um


marginal, se drogando!

Bem, feliz ou infelizmente, Lenn não é uma das pessoas mais pacientes
do mundo e ao ouvir meu irmão o chamando de marginal, avançou sobre ele,
os dois rolaram pelo velho piso de madeira. Eu não podia intervir, estava com
raiva de Edward, queria ajudá-lo, mas se o fizesse Lenn ficaria irritado, se
ajudasse Lenn o outro também ficaria, então apenas comecei a gritar por
ajuda, mas os outros estudantes dessa irmandade sinistra parecem não se
importar com o que acontece nos quartos vizinhos.

Houve um momento que eu respirei fundo e pensei no que fazer enquanto


eles continuavam rolando entre socos, chutes e ofensas. Não estava com
paciência para aquilo, então simplesmente juntei os utensílios, peguei um
pouco de pó que eu sabia onde ele guardava, coloquei num saquinho e
guardei na mochila que levo para a aula.

Saí lentamente da Garganta do Diabo, eles nem perceberam. Apertei o


passo conforme fui me afastando de lá, acenei para um táxi que, felizmente,
parou.

— Não falo irlandês — eu disse antes de tudo.

— Tudo bem — o taxista, um homem robusto na casa do 39, disse na


minha língua, mas com um sotaque irlandês forte. — Para onde?

Para onde? Boa pergunta...

Uma coisa era certa, não voltaria para a Ceatha, tentei lembrar de algum
lugar, mas nada me vinha à mente, então decidi apenas vagar por aí.

— Para o centro, senhor.


Ele assentiu e logo partimos. Eu já estava habituado a andar pelo centro
de Cork, não tinha como me perder, era só seguir o Rio Lee e logo estaria no
Campus. Desci próximo ao pequeno Shopping Merchants Quay a chuva
começou a cair como se chovessem canivetes, então corri até o interior do
shopping, apesar ser um dia cotidianamente frio, eu estava suando em bicas,
minhas mãos tremiam um pouco.

Para não atrair atenção, fingi que era água da chuva, fui direto para o
banheiro do primeiro andar me secar, um rapaz saiu deixando seu rastro mau
cheiroso quando entrei. Fui até a última cabine, tirei as porcarias que tinha na
mochila e, apesar de nervoso, comecei a preparar ali mesmo.

Não sabia a quantidade certa que deveria usar, então coloquei o máximo
que achei prudente. Tive dificuldade para encontrar uma veia, mas depois de
três tentativas a encontrei.

— Isso mesmo, vamos lá! — Sussurrei enquanto injetava lentamente.

Demorou um pouco mais que o normal, mas logo senti o efeito me


dominar. Ouvi ruídos nas cabines vizinhas, mas apenas ignorei, em transe,
encarando o teto.

Infelizmente meu celular começou a tocar e eu quase não o achei. Quando


abri, era, ninguém mais, ninguém menos, que Karola.

— Olá irmãzinha...

— Thomas, não me venha com essa. Estou muito irritada com você!
Edward me contou tudo! Francamente Thomas! Como você pôde? Quer se
transformar no nosso pai?

— Adeus irmãzinha.

Desliguei, mas o celular tocou no instante seguinte. Era Drake, eu não


atendi, não queria receber um sermão dele. Ele tentou mais algumas vezes e
desistiu. Então apareceu a foto de Edward no visor, minha visão era apenas
um borrão, mas reconheci ele.
— Vá se foder Eddie, você e todo mundo...

— Thomas, você usou algo? Onde você está? Diga agora ou vou colocar
toda a polícia atrás de você!

— Você expôs minha miséria Eddie, repito: vá. Se. Foder. — Desliguei.

Comecei a rir sozinho, fodam-se todos. Eu me sentia bem, na verdade


nunca me senti tão bem.

Lenn foi o próximo a ligar, com ele eu não podia fazer joguinhos, então
tentei, na minha mente confusa e lerda, me manter sóbrio para falar com ele.

— Estou bem Lenn, não se preocupe. Eu só precisava sentir de novo...


estarei em casa no fim do dia. Beijo.

Desliguei também e antes que mais alguém tentasse entrar em contato


comigo, fiquei de pé, levantei a tampa do vaso e joguei o celular dentro.
Então sentei novamente e relaxei, estava no paraíso ou era tudo uma perfeita
ilusão?

***

Acordei com batidas fortes na porta da cabine do banheiro. Não lembrava


direito o que estava fazendo ali, mas logo vi as coisas no saquinho e meu
braço furado, então recobrei a memória.

— Estamos fechando! Não está ouvindo?!

— Ok, já estou indo. Desculpe.

Que horas eram? Bem que eu gostaria de saber, não tinha relógio e meu
celular à essa altura já tinha se afogado. Juntei tudo às pressas e saí. Era a
moça da limpeza quem esteve batendo na porta.

— Desculpe Senhora, eu estudo muito, cochilo em qualquer lugar —


menti. Ao me ver de relance no espelho, com um aspecto deplorável, sabia
que ela nunca acreditaria.
— Hunrum, e você pensa que eu nasci ontem? É melhor você ir andando
antes que eu chame a polícia, seu pervertido! Por que não vai ao grupo dos
masturbadores anônimos?

Olhei estranho, mas fiquei aliviado por ela não perceber qual era o meu
real vício. Apenas obedeci, saí correndo, já era noite e todas as lojas do
shopping estavam fechadas ou fechando.

Eu sempre sonhei em como seria ficar preso dentro de um shopping


depois que ele fechasse, mas conforme passava por ele vazio, constatei que
tudo aquilo parecia mais um pesadelo.

Senti-me cansado, a entrada do shopping parecia estar se afastando de


mim, minha respiração pesava. Era como uma ressaca aumentada em dez
vezes, mas consegui sair, dois seguranças me olharam irritados, mas logo eu
estava distante o suficiente. Porém, parecia já não ser tão cedo assim.

A chuva havia cessado, mas a neblina era quase palpável, o natal se


aproximava. Passei por uma moça na calçada e perguntei as horas, mas ela só
falava irlandês e não provavelmente achou que eu queria assaltá-la. Tive sorte
por encontrar um táxi, ao entrar vi no relógio do rádio que já passava da
meia-noite.

Como pude apagar por tanto tempo?

— Para o campus da UC.

Indiquei o caminho até a Garganta do Diabo, ao descer não me preocupei


em esperar pelo troco. Tirei minha mochila das costas e a carreguei para
dentro. A porta estava destrancada, como de costume. Essa irmandade
parecia ser uma terra de ninguém, fui direto para o quarto de Lenn James, bati
na porta e lá estava ele com a mesma expressão indecifrável de quase sempre.

— Está bravo?

— Não. Feliz que tenha voltado. Entre Thomas, você está gelado.

E estava mesmo.
Lenn não brigou comigo, não discutiu, nem sequer perguntou onde eu
tinha ido, apenas se preocupou em me preparar um banho quente e pediu
comida para nós dois. Vesti apenas uma cueca folgada e sentei na cama, a
comida não demorou a chegar, comemos o ensopado ali mesmo,
despreocupados.

— Edward contou para toda a família, então joguei o celular na descarga


do shopping, desculpe...

— Está tudo bem Thomas, não se preocupe comigo. Eu te entendo, não


vou te julgar por nada que fez, faça ou tenha feito. Apenas coma, ou logo vai
esfriar.

Nem estava com fome, sentia até um pouco de enjoo, mas comi, depois
escovamos os dentes juntos e deitamos como um casal. Ele me abraçou por
trás, sentir seu calor junto ao meu corpo, mais uma vez, foi a melhor coisa
que me aconteceu num dia tão ruim.

Ele era bom demais para ser verdade, era o meu herói nos dias mais
escuros.
Capítulo 22
Alerta
NO FIM DE SEMANA O QUE REINOU FOI O MARASMO, MAS
PELO menos Edward já tinha me deixado em paz. No domingo usei mais um
pouco do pó com Lenn, ele precisava se inspirar para finalizar a nova música
e eu não quis ficar de fora.

Quando a segunda-feira chegou, eu estava estranhamente frenético,


faltavam duas semanas para o natal, então eu ainda tinha algumas provas.
Consegui revisar um pouco com os colegas, e acredito que fui razoável na
duas daquele dia.

Saí para o almoço um pouco atrasado, começava a me arrepender de ter


jogado meu celular no vaso sanitário do shopping, por outro lado, eu não era
mais incomodado e podia manter o foco nas provas.

— Você não vai mesmo falar comigo?

Eu estava andando pelo corredor quando ouvi Kon falando atrás de mim.
Ele me encarou durante as aulas, mas eu fingi que não percebi.

— Olá — zombei dele.

— Thomas, você não pode ficar com raiva de nós por tentar ajudá-lo!

— Na verdade eu posso. E vou. Por favor, me deixe em paz. Estou


mantendo o foco em não ser reprovado em todas as disciplinas, então se me
der licença, preciso correr até a biblioteca antes que o horário do almoço
acabe...

Continuei andando, mas ele me acompanhou.

— Eu posso te ajudar.
Parei e fiquei de frente para ele.

— Eu não quero sua ajuda, não preciso dela.

Dei-lhe as costas e saí apressado para a biblioteca, gastaria vinte minutos


para chegar lá, mais vinte para voltar, me restava apenas vinte minutos para
pesquisar algumas coisas e talvez checar meus e-mails.

A típica chuva irlandesa havia dado uma trégua, mas o céu estava
carregado. A qualquer momento cairia um dilúvio. A biblioteca estava
tranquila, poucas pessoas iam nesse horário. Passei o meu cartão magnético e
fui para o computador mais próximo.

Entrei rapidamente no meu e-mail, havia inúmeros e-mails de Edward,


alguns de sites que algum dia eu assinei, e lá no topo, bem destacado estava
um e-mail do campus. Era da secretaria do curso, solicitando minha presença
no fim da tarde para uma conversa com o secretário, coordenador e
psicólogo. Aposto que tem um dedo de Edward nisso.

O bloqueei dos meus contatos.

Saí do e-mail e tentei não perder o foco, pesquisei rapidamente para


solucionar algumas dúvidas que tinha sobre os assuntos das duas próximas
provas enquanto um suor frio escorria por todo meu corpo. Depois corri de
volta ao campus e cheguei a tempo.

A primeira prova foi demorada, pois tinha uma etapa oral, cuja eu não
devo ter me saído tão mal, a segunda foi mais rápida, apesar de ser uma prova
prática de anatomia, nessa eu me saí bem melhor.

Então chegou o grande momento, alguém estava me esperando na


secretaria do curso para uma conversinha. Orei – não sei a quem exatamente
– para que não fosse algo ruim, mas no fundo eu sabia que não tinha como
ser algo bom.

Entrei na recepção da secretaria e uma senhora muito gentil disse que já


me esperavam. Se eu não tivesse ido à biblioteca no almoço, eu jamais
saberia que eles estavam à minha procura.
— Boa tarde. — Falei meio sem jeito ao entrar na sala.

Os três pareciam bem à vontade, ao contrário de mim. Neil Fechín, o


secretário, estava sentado em sua poltrona; Derry Conleth era o psicólogo,
estava sentado no pequeno sofá em frente à janela e ao seu lado estava
Catriona Gobinet, a coordenadora do curso.

Nenhum deles respondeu minha saudação.

— Sente-se Sr. Thompson. — O Sr. Fechín disse gesticulando para que


eu sentasse na cadeira à sua frente. Eu o fiz.

— Eu posso perguntar o motivo de estar aqui?

— O motivo é que estamos preocupados com você. Analisando nosso


sistema, percebemos que você tem sido um pouco displicente em relação à
sua vida acadêmica. Seu coeficiente de rendimento semestral demonstrou
uma queda preocupante nas últimas semanas, além do fato de você não estar
sendo participativo no grupo de apoio, saindo das reuniões antes de terminar.
— Ele respondeu.

Fiquei um pouco nervoso, senti minhas mãos tremendo, e o suor frio


começando a se formar na minha testa, mas tentei parecer tranquilo, apenas o
encarei.

— Você não está com uma boa aparência Sr. Thompson, gostaria de
saber o que está acontecendo com você — a Sra. Gobinet notou.

Olhei para o chão.

— Eu tenho alguns problemas, vocês devem saber, pois me obrigaram a


participar do Saol...

— Todos nós temos problemas, meu caro. Isso não é desculpa. — Disse o
Sr. Conleth, me interrompendo.

— É fácil falar quando não é com você. Me desculpem se não sou o aluno
dos sonhos, ok? Eu só estou vivendo sob uma forte pressão que não vem de
ninguém, apenas da minha própria mente. Meu pai é um bandido, meu
namorado quase morreu num acidente por minha causa, meu irmão caçula
faleceu, são tantas coisas... — pausei um pouco para respirar. — Não está
sendo fácil. Estou com essa aparência deplorável porque quase não dormi
durante o fim de semana, justamente para tentar recuperar o que perdi. Acho
que até fui bem nas provas de hoje.

Não era uma completa mentira.

— Então é bom se esforçar Sr. Thompson. Nós não investimos em alunos


bolsistas que não querem realmente estar aqui, portanto ficaremos no seu pé
até vermos grandes resultados, pois, do contrário, você pode acabar sendo
expulso por má conduta. — Disse o Sr. Conleth. Olhei para a Sra.
Gobinet, em busca de alguma ajuda.

— Não entenda isso como uma ameaça, querido. Entenda como um


conselho, ou incentivo. Só queremos o seu sucesso. Temos uma preocupação
a mais com nossos bolsistas.

— Ok — sussurrei.

— Você está comprometido a melhorar? — O secretário perguntou mais


uma vez.

— Sim, com certeza — tentei parecer empolgado.

— Está liberado, nos vemos em quinze dias.

***

Me senti um inútil ao sair da sala, mas que diferença fazia? Inútil eu


sempre fui, tudo o que sempre soube fazer foi chorar, mas eu não ia chorar
por causa deles, ou ia? Não, não ia. Eles tinham razão e tudo o que eu podia
fazer era aceitar. O destino estava em minhas mãos.

Lenn havia combinado de me esperar no acostamento do prédio ao lado


para que eu não precisasse ir andando até à Garganta do Diabo. E lá estava
ele, o típico badboy, que na verdade quase nada tinha de bad. Usava jeans,
uma jaqueta de couro e botinhas de inverno. Ele acenou, mesmo sabendo que
já o tinha visto.

Entramos no carro, a capota estava levantada, pois a chuva ainda era uma
ameaça forte.

— Não neva em Cork? — Perguntei para me distrair.

Lenn ligou o carro e logo estávamos pelas ruas.

— Não muito. Geralmente cai um pouco de neve perto do natal, mas logo
chove e a neve desaparece — explicou.

— E em Dublin?

— Mesma coisa. Os lugares em que a neve dura mais tempo, geralmente,


ficam no interior, fazendas e etc.

— Entendo, mas é uma pena. Achei que aqui nevasse mais que na minha
cidade, mas é exatamente igual. Parece que quanto mais fujo de lá, mais
próximo fico — confessei.

— Bem, uma coisa é certa Thomas: não se pode fugir do destino.


Capítulo 23
Game Over
FALTAVA BEM POUCO PARA O NATAL, GRANDE PARTE DOS
ALUNOS ficariam livres para ir embora após checarem suas notas
maravilhosas no sistema. Eu fui à biblioteca tentando não criar expectativas,
geralmente elas ferram tudo e só causam decepção.

Lenn já tinha checado suas notas e havia passado em tudo com notas
exemplares. Fiz o login no computador da biblioteca e não tive surpresas ao
perceber que havia ficado em três disciplinas e passado por pouco nas outras.

— Droga! — Resmunguei em voz alta. Todo mundo me encarou, então


ignorei e voltei minha atenção para a tela.

Três recuperações implicam em ficar até janeiro no campus, mas logo


percebi que isso não era algo ruim. Agora, mais do que nunca, eu não queria
voltar à Cambridge e ter que encarar toda a minha família com seus
julgamentos.

***

Saí dali tentando manter o pensamento positivo e segui para o Centro de


Estudantes, estava lotado. Alguns comemoravam o sucesso, outros se
lamentavam, eu apenas abri um gibi velho, que eu nem lia mais, e fiquei
observando tudo discretamente numa poltrona no canto.

Ouvi a voz de Duane e Elijah em algum lugar muito perto. Não olhei para
onde estavam. Se eu tirasse o gibi da frente do rosto, eles me reconheceriam e
seria um drama, então apenas me atentei em ouvi-los.

— Eu mal posso acreditar que já vou me formar! — Duane disse, parecia


muito feliz.

— Eu também Du, parece que foi ontem que entramos aqui e agora
estamos saindo... e eu quero te fazer um convite.

— Lá vem bomba!

Ele pigarreou.

— Sei que nós não somos mais namorados oficialmente e tal, mas você
sabe que não sei viver sem você. Quero que venha comigo para a Austrália,
você não precisa ficar para sempre, se não quiser. Mas quero que pelo menos
conheça o lugar onde vivo, minha família... quero que se distraia um pouco.
Não vou deixar sua família esquisita te deixar mal ou qualquer coisa do tipo.
Você merece ter paz, seu avô ficaria feliz...

— Não ouse mencionar meu avô morto para me convencer. Estou


brincando! Eu aceito Elijah, também não sei ficar longe de você, isso é óbvio.

Eu podia imaginar Duane revirando os olhos enquanto dizia isso.

— Então você vem?

— Claro que sim.

Logo me dei conta de que este seria um natal solitário, mais um em minha
vida. Só salvo o do ano passado que, apesar dos pesares, foi muito bom. Eu
ficaria completamente sozinho na Garganta do Diabo durante este natal. Com
sorte, o diabo acabaria me engolindo...

Lenn foi à Dublin semana passada e havia terminado a música que o


encorajei a finalizar. O agente adorou e justamente durante o fim de semana
do natal, ele marcou uma reunião onde Lenn se apresentaria para alguns
figurões da Hoper, para então iniciarem a confecção o seu contrato e o plano
de sua carreira.

***

E então o natal chegou, a cidade estava toda decorada, mas não nevou. A
neblina espessa tomava conta das ruas, Lenn estava a quilômetros de
distância. Abri a única janela no quarto, mas o que vi não me alegrou.
Crianças passavam com seus pais, certamente voltavam da igreja, já
passava da meia-noite, com certeza a missa de natal tinha acabado e agora as
pessoas iam às suas casas para cearem, talvez cantarem alguma música do
álbum The Best Christmas Album in the world... Ever! Que o Velho gostava
muito.

Apesar de todo o mal que ele causou a mim e ao resto da família, eu não
podia negar que sentia falta dele. Fiquei pensando em como ele devia se
sentir na cadeia, sozinho em uma data como esta, pois certamente ninguém o
visitaria. Mamãe bem que tentaria, mas Edward e Karola não iam permitir e
no fim, ela acabaria obedecendo.

Ele tinha nos proporcionado bons momentos no natal passado, levou eu e


Drake para fazer as compras, nos dividiu as tarefas e nós corremos como
loucos para ver quem vencia. Não nos dávamos tão bem naquela época, mas
depois disso parece que as coisas começaram a se ajustar.

No fim da noite, após cearmos, começou a tocar Happy Xmas na voz de


John Lenon e Yoko, e todos acompanharam. Mamãe começou a cantar com
sua voz desafinada, mas era a melhor de nós nesse quesito, Karola e Henry
acompanharam-na, Drake começou a fazer algumas tentativas de acompanhar
com o violão e logo pegou o ritmo e de repente até eu estava cantarolando.

— Olhem aquilo! — Henry apontou para a janela.

Do lado de fora, em Heaven Wood, na rua deserta iluminada pela luz dos
postes, flocos de neve começavam a cair, dançando seguindo o movimento do
vento frio.

— Está nevando! — Drake disse largando o violão.

Corremos instantaneamente para o lado de fora, a neve não era muito


frequente e não duraria muito tempo. Tínhamos que aproveitar, e
aproveitamos. Corremos de um lado para o outro igual crianças, alcançando
os flocos e deixando eles derreterem delicadamente em nossas mãos, em
nossas línguas. Logo a vizinhança estava fazendo o mesmo, todos
contagiados pelas ruas coloridas pelos piscas-piscas.
Foi quando eu parei por um pequeno momento a tempo de ver na rua,
num canto escuro, o jipe de Max, Monstro, parado no acostamento entre as
sombras. Ele me observava atentamente, mas quando percebeu que eu o vi,
os faróis acenderam e ele se foi outra vez.

E, de repente, toda a alegria que eu senti tinha partido com ele.

— Onde está você agora, Max? — Perguntei olhando a lua quase coberta
por nuvens escuras, mas era inútil. Isso poderia soar romântico se ele também
estivesse olhando a lua, mas do lugar onde estava, ele nunca veria.

Fechei a janela, estava muito frio. Procurei por alguma bebida nas coisas
de Lenn e encontrei uma garrafa de Jameson original. Encontrei um copo
quadrado na bancada e não hesitei em colocar uma dose grande, mas antes de
prová-lo, alguém bateu à porta. O deixei lá e fui ver quem era, torcendo para
que fosse Lenn, embora não houvesse a menor chance de ele voltar de Dublin
antes do amanhecer.

Ao abrir a porta me deparei com Konstantin parado como uma estátua


segurando um embrulho.

— Eu vim para te desejar feliz natal, pedir desculpas e te dar isto...

Comecei a amolecer. Ele havia se lembrado de mim, apesar de tudo.

— Feliz natal Konstantin...

Puxei-o para um abraço atrapalhado, peguei o presente. Estava prestes a


convidá-lo para entrar quando alguém buzinou lá fora.

— Quem é? — Perguntei curioso.

— Matteo... — ele respondeu ficando instantaneamente com um olhar de


criança que fez algo errado.

Balancei a cabeça negativamente e o encarei, então ele olhou para o chão.

— Enquanto você insistir em ser idiota, não me procure.


Bati a porta, joguei o presente na cama, ele tombou e caiu no chão, a
tampa da caixa saiu e mostrou que havia um suéter dentro, junto de um
cartão. Fui até lá, abri o pequeno envelope rosa claro, havia um pedido de
desculpas.

Querido Tom,

Sei que tenho pisado na bola com você nas últimas semanas, eu assumo.
Estou aqui para pedir perdão, mas antes que me negue isso, quero que
considere o que passamos juntos, nossa amizade era a melhor coisa que me
aconteceu ao sair de meu país, mas agora é o que mais consome minha
tranquilidade, então, por favor, me perdoe. Vamos deixar as nossas
diferenças de lado e seguir em frente juntos?

Do seu amigo, Konstantin Prokhorov.

PS. Considere também o fato de o meu inglês não ser tão bom quanto
deveria, mas eu arrasei nessa carta.

Deixei a carta na cama, o aperto no meu coração tornou-se quase


insuportável. Lembrei do uísque que deixei sobre a bancada antes de
Konstantin me atrapalhar, peguei o copo e tomei rapidamente, colocando
outra dose maior em seguida, a bebida me fez queimar por dentro, mas em
vez de mandar o sentimento ruim embora, ela o intensificou e após meia
garrafa, eu estava sentado no carpete sujo agarrado ao suéter.

I cried for you on the kitchen floor... a música de Amy Winehouse nunca
fez tanto sentido quanto naquele momento.

Senti uma necessidade absurda de falar com alguém, estava com raiva de
Edward, mamãe, Karola, mas ainda havia Drake. Ele não me julgaria por
nada, eu tinha certeza que podia contar com ele, mas eu não tinha mais
celular.

Peguei algumas moedas no bolso da minha mochila e saí decidido. Estava


tão tonto que quase caí da escada ao descer para o térreo da Garganta do
Diabo. Saí pelas ruas frias vestindo apenas um pijama, mas as pessoas
estavam tão distraídas com o natal, que se eu topasse com pessoas na rua, o
que era um pouco improvável àquela hora, certamente nem prestariam
atenção.

Encontrei uma cabine telefônica depois de dobrar à esquina. Corri até ele,
torcendo para que funcionasse, e funcionava. Coloquei uma moeda e disquei
o número dele que eu sabia de cor, mesmo bêbado. Não fazia ideia de que
horas eram em Liverpool, mas sabia que ele me atenderia. Nem demorou
muito.

— É você mano? Tom?

— Sim, sou eu, Drake, feliz natal! — Falei animado, mas minha voz era
falha.

— Você bebeu?

— Está difícil Drake, eu tenho tentado sobreviver aqui, mas a cada dia
fica mais difícil, não sei se posso aguentar por mais tempo...

— É claro que aguenta mano! Não gosto dessa conversa, você sabe que
pode contar comigo sempre. Não me importo com o que você está se
metendo, apenas saiba que você sempre vai poder contar comigo Tom, venha
para Liverpool se quiser, eu vou cuidar de você e...

— Ah Drake, já me disseram tanto isso.

— Mas eu não minto Tom, eu te acolheria.

— Drake, você foi, é, a melhor coisa me aconteceu no último ano. Você é


meu irmão, eu amo você e espero que se lembre disso, por favor...

— O que é isso Thomas? Uma despedida? Seja o que for que esteja
planejando, não vá em frente. Você tem a mim, eu posso te ajudar, mas não
faça nenhuma besteira, por favor! Você só bebeu demais...

Sorri um pouco, alto o suficiente para ele ouvir.

— Não se preocupe com isso Drake, eu só estou bêbado. Você sabe que
posso ser um pouco dramático, de vez em quando.
— E bota dramático nisso!

— Então é isso, eu estou sozinho, só queria te ouvir um pouco. Até


qualquer hora — desconversei.

— Espera Tom! — Disse apressado.

— O que foi?

— Eu... eu também te amo. Você é um bom irmão, também não se


esqueça disso. Feliz natal mano — disse e desligou.

Ouvi-lo dizer isso me trouxe um pouco de paz, mas não durou muito.
Comecei a sentir o frio da madrugada, apesar de estar suando, o que
ultimamente acontecia com frequência e só parava quando eu usava o pó.

Eu disse a Drake que estava tudo bem, mas não estava. Só queria deixá-lo
tranquilo.

Precisei me esquentar ao voltar para o quarto, por isso tomei o restante do


uísque lentamente. Com a garrafa vazia, chegou o momento de dar um passo
adiante. Peguei as seringas e o pó, comecei a preparar tudo com calma, em
uma quantidade maior que o normal. Era hora de aumentar a dose, eu
precisava de paz, eu precisava mais que qualquer coisa no mundo.

Injetei em mim, mais de uma vez com algumas pausas. Entrei em transe,
mas não parecia ser o suficiente, eu queria mais, meu corpo pedia por mais, o
máximo que eu pudesse ter, não hesitei.

Coloquei uma quantidade ainda maior e injetei.

Algum tempo depois da droga agir e eu me sentir bem, minha respiração


pesou e em seguida senti como se algo perfurasse meu pulmão toda vez que
eu tentava inspirar, entrei em pânico.

Corri para fora do quarto, mas minhas pernas falharam e caí no corredor,
virei-me para cima, encarei o teto enquanto minha respiração tornava-se cada
vez mais fraca, o peito ardia. Ouvi algum barulho, mas àquela altura já estava
desorientado, não conseguia lembrar onde estava, tentei gritar por ajuda, mas
minha voz se perdeu na minha mente, que começou a escurecer lentamente.

Me contorci, lutando por ar ou qualquer coisa que pudesse me manter


vivo por mais alguns segundos, mas era tarde demais. Eu estava indo embora
e, apesar de não conseguir raciocinar, eu sabia que queria ir, só que era triste
morrer sozinho.

Logo tudo se apagou.


Capítulo 24
Desintoxicação
INFELIZMENTE, ACORDAR NÃO FOI TRANQUILO E
ANESTESIANTE como das outras vezes em que abri os olhos num leito de
hospital. Acordei gritando, minha cabeça doía com tanta força que era como
se tudo estivesse solto no interior do meu crânio, e o pior era que eu não
conseguia respirar sozinho, havia um aparelho conectado a mim.

Entrei em pânico.

As enfermeiras entraram e rapidamente conseguiram me conter injetando


algo na veia, um sono repentino me invadiu, mas não era o bastante para me
fazer dormir, apenas me deixar calmo, pelo menos por fora, pois por dentro
eu ainda estava me contorcendo.

— O que está acontecendo comigo?!

— Você sofreu uma parada respiratória devido ao excesso da substância


em seu organismo, você injetou mais do que o seu corpo conseguia absorver
e por isso veio a sofrer essa parada. Um rapaz te trouxe, contou que você não
é do país e permitimos que ele ficasse — ela explicou.

Não dei ouvidos a ela, o suor frio escorria por meu corpo e algo dentro
de mim se revirava, o problema não estava apenas em minha cabeça, mas no
corpo todo.

— Eu vou morrer, façam parar! Façam isso parar!

Me movi no leito, me virando de um lado para o outro, quase me


descobrindo completamente. Percebi que estava usando uma daquelas roupas
de hospital. Não fazia ideia de como fui parar lá.

Meu estômago se revirou. Uma das enfermeiras percebeu minha


inquietação e foi rápida ao encontrar um balde, segurando-o à minha frente.
Comecei a vomitar, um líquido viscoso saiu nas três vezes seguidas em que
me contorci.

— Marcie, chame o Dr. Sorley. O nosso paciente está em uma crise de


abstinência — uma delas falou, a outra saiu apressada.

***

Ela estava certa, durante os cinco dias seguintes eu passei por um inferno.
Tinha crises de ansiedade, não parava de suar, chorava muito, me contorcia
de dor, vomitava, não dormia, mal conseguia comer algo, a única coisa que
parecia ser aceito pelo meu organismo – que implorava por uma dose do pó –
foi água. Recebi isto à visita da trindade do curso de medicina da UC, Neil
Fechín, Derry Conleth e Catriona Gobinet em pessoas. Foram três longos
sermões, por sorte eu não estava bem e mal entedia o que eles falavam, mas
no fim de tudo, graças a eles, eu me livrei de problemas maiores com a
polícia.

No quinto dia finalmente minhas crises diminuíram, os sinais físicos pelo


menos, pois por dentro eu continuava me sentindo um lixo.

— Olá Sr. Thompson, bom dia e feliz ano novo! — Desejou-me o


enfermeiro ao entrar no quarto pela manhã para me checar.

— Ano novo?

— Hoje é o primeiro dia do novo ano. Desculpe, esqueci que você estava
um pouco perdido no tempo. O rapaz que te trouxe não saiu da sala de espera,
nem mesmo ontem, há mais dois rapazes e uma moça com ele. Não quero ser
inoportuno, mas talvez ajudasse se o senhor permitisse que eles o vissem,
pelo menos por alguns minutos...

Fechei a cara.

— Tudo bem, entendi, estou sendo inoportuno...

— Está, mas você tem razão — decidi. — Pode me ajudar a ficar


apresentável para recebê-los?
Claro que podia, era ele quem me ajudava com o banho e todo o resto. O
que era bem constrangedor, mas quando se passa por situações extremas,
pequenas coisas como essas são facilmente ignoradas.

Vinte minutos depois eu estava de volta ao meu leito. O enfermeiro Louis


inclinou a cama para que eu ficasse sentado. Meus cachos estavam
bagunçados, mas úmidos, com um aspecto bem melhor que antes.
Infelizmente eu não podia dizer o mesmo da minha cara, mas mesmo assim
eu estava pronto para receber os meninos, ou pelo menos achei que estava.

Louis saiu para chamá-los. Senti-me cansado e um pouco sonolento, mas


tentei parecer disposto. Eles entraram lentamente, como se pisassem em ovos.
Kon na frente com uma espécie de buquê de tulipas vermelhas, Elijah e
Duane de mãos dadas, parecia que não dormiam há dias. E atrás deles estava
Elise com um vestido de boa samaritana e uma expressão incerta.

— Olá — eu disse.

— Olá Thominhas. Eu não sabia se devia vir, mas é ano novo, você
sabe...

Elise logo nos fez rir com seu jeito brincalhão-irresponsável de ser.

— Fico feliz que esteja melhor Thomas. — Duane disse com olhos
sinceros.

— Ficamos. — Elijah completou.

Assenti para eles sem saber o que falar, afinal antes daquilo, nós não
estávamos nos falando, mas Konstantin começou a chorar do nada, dando
altos soluços, cortando o silêncio e surpreendendo a todos nós.

Ele veio até a mim na cama, subiu e me abraçou com tanta força que
chegava a doer. Ele resmungou algo em russo, mas logo voltou a falar nossa
língua, porém não entendemos nada do que ele tentou dizer por cima do
choro.

— Foi Konstantin quem te encontrou na Scornach Diabhail — explicou


Duane.

— É tão mais fácil dizer Garganta do Diabo! — Elijah resmungou, Duane


o ignorou girando os olhos.

— Ele nos contou que esteve lá, mas você se irritou por conta do
namorado dele, mas ele o dispensou e resolveu voltar para tentar te convencer
a deixá-lo passar o natal contigo, mas você já estava... enfim, então ele fez o
que podia e chamou a emergência, foi assim que você veio parar aqui.

Ainda me sentia tão humilhado que não podia dizer obrigado por ter me
salvado. Eu não queria ser salvo, seria melhor se ele não tivesse aparecido.
Teria dado um fim a tudo isso, mas ele estava mesmo assustado. Konstantin
se importava comigo, ele era meu amigo, apesar de tudo. Eu jamais o
distrataria.

Então coloquei meu braço ao redor de seu corpo e mantive bem apertado.

— Eu pensei que você estivesse morto Thomas... — ele disse e voltou a


chorar.

Todos nos observavam atentamente. Foi quando senti meu estômago


embrulhar.

— Com licença Konstantin, mas acho que vou vomitar.

Ele se afastou, Duane encontrou rapidamente o balde e segurou enquanto


eu colocava tudo para fora.

***

Eles foram embora ao anoitecer, foi quando Louis retornou para ver se eu
precisava de algo.

— Estou bem, talvez um pouco de água.

— Sabe Thomas, sua família chegará em breve — ele contou enquanto


pegava a água.
— Minha família?

— Sim, não podemos dar continuidade ao seu tratamento fora daqui sem
a presença de sua família para conversar com o médico e aceitar o acordo
juntamente com a faculdade, por isso sua mãe e seu irmão estão vindo. Ele
também vetou as visitas de alguém chamado Rixon Jason, algo assim.

— Rixon Lenn James! Ele não pode fazer isso, eu sou maior. Tenho total
controle sobre minha vida, posso decidir quem vem me visitar...

— Desculpe-me Sr. Thompson, mas você teve uma overdose e está num
leito de hospital, o que te torna vulnerável. Seu irmão é o responsável, ele
decide.

Peguei a água que me passou e joguei do outro lado do quarto.

— Eu não aceito isso! — Gritei e tentei ficar de pé. Pelo rosto assustado
de Louis, eu sabia que tinha exagerado, mas ainda assim continuei.

Porém, ele injetou algo em mim, o que me deixou calmo antes mesmo de
poder tentar fazer qualquer outra coisa.

Mais um dia se passou, eu havia estragado tudo. Meu comportamento


agressivo contribuiu para que não me dessem alta imediatamente. Então, na
terça-feira recebi a notícia de que eles haviam chegado.

Mamãe e Edward.

— Eu não vou recebê-los — falei decidido. Não era mais Louis quem
cuidava de mim pessoalmente, ele certamente estava de folga ou algo do tipo,
não perguntei.

— Sr. Thompson, você não pode fugir para sempre...

— Posso, até que me provem o contrário. Então, por favor, se eles


tentarem me visitar hoje, diga que estou indisposto e não quero ver ninguém.
Na verdade, você podia me dar algum calmante, assim eu durmo e...

— Com todo respeito, você devia ouvir o absurdo que está dizendo.
***

Eles já tinham tentado me visitar três vezes e não sei o que o enfermeiro
tinha inventado, mas eu tinha certeza de que ele estava me ajudando como eu
havia pedido. Mas a julgar pelo barulho que me despertou naquela tarde
chuvosa de janeiro, meu sossego estava prestes a acabar.

— Aí está você! — Edward disse num berro.

Dois enfermeiros tinham tentado impedi-lo de entrar, mas lá estava ele


respirando pesadamente, com o rosto vermelho de raiva. Coisa que raramente
acontecia.

— Podem deixar, eu estou bem. — Falei, afinal ele não desistiria de falar
comigo.

Os dois enfermeiros saíram e fecharam a porta. Edward, um pouco mais


calmo, começou a andar de um lado para o outro.

— O que você quer? — Perguntei.

— O que eu quero? Thomas, o que eu quero?! Você só pode estar


brincando.

Sentei na cama e deixei o lençol na altura da cintura. Continuei


observando seu comportamento instável.

— Você não queria nos ver. Depois de tudo! — Ele parou por um
momento, então se aproximou. — O que diabos nós significamos para você
Thomas? O que eu sou para você? Um brinquedo? Algum objeto? Você
brinca conosco como se não se importasse com o que nós sentimos! — Algo
na expressão dele me deixou assustado.

— Edward, não se faça de tonto. Você sabe o motivo...

— Bobagem Thomas! Cala a boca, apenas me escute. Sabe o que você é?


Um garoto egoísta que só olha para o próprio umbigo. Agir dessa forma
quando o que ocorreu nem sequer diz respeito a você.
— Não, isso me atinge diretamente — interrompi-o.

Ele andou em círculos no pequeno quarto.

— Como isso te atinge se eu é que sou filho daquele homem. Eu, não
você! Entenda Thomas, isso nunca teve nada a ver com você!

Edward estava alterado.

— Tem a ver com Max, então também me envolve. Você é que está
sendo egoísta!

— Você não tem o direito de me acusar de nada Thomas. Tudo o que tem
feito é se rebelar, fugir. Max, Max, Max. Adivinha? Ninguém se importa! Ele
está lá sendo bem cuidado e tem chances de acordar, enquanto isso você está
aqui transformando sua vida numa grande merda! Existem diferenças entre
tornar a vida suportável e acabar com ela, com certeza você não escolheu a
primeira opção. Você é só mais um de tantos rebeldes sem causa. Thomas, eu
olho para você agora e a única coisa que sinto é vergonha! Vergonha de ser
irmão de alguém como o que você se tornou... aposto que Max sentiria o
mesmo se acordasse.

— Ótimo! Por que não vai embora então?

— Você é mesmo um imbecil. Porque eu te amo, porque você é meu


irmão e irmãos não desistem uns dos outros, mesmo sob circunstâncias como
essas!

Eu ainda estava fraco, minhas mãos tremeram ao ouvi-lo, tentei não dar o
braço a torcer, mas eu estava prestes a desabar. Porém, foi ele quem desabou
primeiro.

— Eu fiquei tão preocupado com você... — Eddie disse e começou a


chorar. — Tom, mamãe pode ter cometido um erro, mas foi graças a esse erro
que eu nasci. Jamais a condenarei por isso.

Fechei os olhos para segurar as lágrimas, mas não adiantou. Ele tinha
razão, se não fosse por isso, eu jamais teria um irmão mais velho tão
maravilhoso quanto ele.

— Você precisa falar com ela e resolver isso Thomas, eu vou chamá-la
— Edward decidiu.

— Edward, espere! — Falei antes que ele saísse. — Venha até aqui —
chamei.

Ele se aproximou da cama, eu cuidadosamente me movi até sair dela. Nós


nos olhamos por um momento e foi como se eu visse toda a nossa história
dentro dos seus olhos azuis, que eram iguaizinhos aos meus.

Nos abraçamos.

Eddie me apertou como se não quisesse me deixar escapar nunca mais.

— Você está tão magro Thomas...

— A gente acabou de fazer as pazes, não comece.

Nos soltamos.

— Chegou a hora de encarar a verdade. Chame a mamãe Eddie, não


posso mais adiar isso.
Capítulo 25
A Verdade
EU PRECISEI IR AO FUNDO DO POÇO PARA PERCEBER QUE EU
AINDA estava vivo, mas ainda restava um percurso para estar totalmente
fora dele. Antes de Lenn sair eu o chamei outra vez.

— O que foi agora Tom? Você não vai desistir de conversar com ela, vai?
— Perguntou começando a ficar incomodado.

— Não é isso. Eu quero que você me prometa que vai deixar Lenn James
me visitar...

— Não posso prometer isso. Ele é uma ameaça à sua saúde, você pode
recair e não vou deixar que isso aconteça — disse decidido.

Revirei os olhos. A última coisa que eu queria era usar o pó, embora meu
corpo inteiro ainda implorasse por isso.

— Eddie, eu preciso falar com ele. Aposto que ele tentou me visitar e não
permitiram, ele deve estar uma fera. Nós temos algo, eu não posso
simplesmente desaparecer. Precisamos conversar, colocar os pingos nos "is"
como dizem. Prometa que vai trazê-lo aqui, é importante — implorei.

— Ok Tom, mas uma coisa de cada vez. Vou chamar a mamãe — disse e
saiu.

***

Quando entrou no quarto, percebi que mamãe continuava igualzinha,


exceto – talvez – por umas rugas a mais. Devia estar muito preocupada e a
culpa era toda minha. Ela usava um vestido simples. Havia mudado o cabelo,
parecia mais jovem.

— Oh querido!
Ela correu até onde eu estava e me deu um abraço de urso, ou melhor, de
mãe-ursa. Me prendeu por um longo momento nos seus braços e achei que
não fosse mais soltar. Eu ficaria assim a vida inteira se fosse possível, mas
assim que acabei de pensar nisso ela se afastou enxugando uma lágrima e
arrastou uma cadeira até minha cama.

— Não vou te dar um sermão por isso, fique tranquilo. Pelo que Edward
tem dito, é você quem deseja fazer isso, então aqui estou...

— Eu não quero lhe passar nenhum sermão mãe, só quero saber a


verdade. Quero que me conte como tudo aconteceu — falei com dureza.

Seus olhos instantaneamente pareceram se distanciarem para algum lugar


além daquele quarto de hospital. Ela encarava a parede, mas eu sabia que ela
estava enxergando o seu passado.

— Você sabe que quando eu e seu pai nos casamos, éramos bem pobres.
Tínhamos muito amor um pelo outro, mas às vezes só o amor não é
suficiente. Ele tinha dois empregos e ainda assim não estava dando conta de
todas as nossas despesas, foi quando decidi trabalhar.

"No início ele ficou relutante, é claro. Você sabe como seu pai é
antiquado, mas viu que poderíamos viver com menos preocupações se eu
trabalhasse e acabou aceitando. Procurei por anúncios e vi que algumas
famílias em Heavenland Garden precisavam de uma empregada, governanta,
como queira chamar. Fui entrevistada por algumas senhoras esnobes e acabei
indo parar na casa dos Dodger.

"Eles nunca estavam em casa, então não era muito difícil dar conta de
tudo. Mas acontece que durante as férias, Stela não conseguiu encontrar
tempo para voltar para casa, mas Mark conseguiu. Ele passou todo o verão
em casa, o que era muito raro. Mark era um homem bom naquela época, se
sentia muito sozinho, eu também. Seu pai nunca estava em casa. Nós
começamos a nos aproximar, não como patrão e empregada, mas como
amigos, porém um dia eu deixei cair um vaso enquanto espanava a mesinha
de canto da sala e ele veio me ajudar, eu fiquei toda nervosa por ter quebrado
algo, mas Mark me tranquilizou, estávamos tão próximos e... aconteceu. Nós
nos beijamos.
"Houve estranheza por um tempo, depois conversamos e decidimos que
aquilo nunca mais aconteceria, mas eu estava sempre lá e ele também, foi
inevitável. Mark estava no banho e eu achei que ele tinha saído, comecei a
arrumar o quarto quando de repente a porta do banheiro foi aberta e lá estava
ele completamente nu. O que aconteceu depois foi outra coisa inevitável e
não parou de acontecer até que seu pai começou a desconfiar.

"Eu devia estar cega, mas Mark me dava todo o carinho que Thomas
nunca me deu. Seu pai começou a desconfiar, pois eu estava muito distraída e
não... você sabe. Eu não queria fazer amor com seu pai. Negava isso a ele e
esse foi meu maior erro. Certo dia percebi que minha menstruação estava
atrasada e entrei em pânico, contei a Mark e ele não ficou assustado.
Continuamos a ter nossos encontros até que um dia Thomas entrou na casa
sorrateiramente e nos flagrou.

"Seu pai sempre teve um dom de saber como tirar coisas "boas" de
situações adversas, ele teria matado Mark e a mim também se eu não tivesse
revelado que estava grávida.

— O que houve depois?

— Bem... seu pai me deu uma surra, mas acabou ''me perdoando", na
verdade ele só não se separou porque seria um escândalo na cidade. Ele
ameaçou Mark, contou tudo a Stela na primeira oportunidade que teve,
tornando tudo ainda pior.

"Ele criou um acordo estranho em que os Dodger teriam que nos sustentar
pelo resto da vida, além de garantir o futuro de Edward. Eles aceitaram, caso
contrário, seu pai teria anunciado que eu fui estuprada por Mark e isso levaria
a carreira dele e da mulher a baixo. Então seu irmão nasceu e foi a melhor
coisa que me aconteceu, ele não parecia em nada com Mark. Seu pai ficou tão
encantado com ele que acabou deixando tudo de lado, nós voltamos a ter
relações, e acabei engravidando de Karola, depois veio você e foi quando os
Dodger também anunciaram que estavam esperando um bebê.

"Mark teve outra ideia mirabolante e acrescentou ao contrato que você e


Max deviam crescer juntos, como amigos. Só não imaginávamos que tudo
isso viria a acontecer... bem, talvez imaginássemos. Mães nunca se enganam,
mas a relação de vocês parecia tão real, tão verdadeira que deixamos que
acontecesse. Foram as únicas coisas boas que saíram dessa história. Edward,
e a sua relação com Max.

"Por isso seu pai me tratava tão mal, e eu sempre fui submissa porque me
sentia culpada. Seu Tio Ben me encorajava a largá-lo, dizia que eu podia
levar todos para morar com ele, mas quando pequena, fui ensinada que a
família era a coisa mais importante na vida de uma mulher, sei que são ideias
bem retrógradas, mas eu cresci assim e, para mim, não havia nada mais
importante que nossa família, por isso passei a vida aguentando Thomas,
porque eu havia estragado tudo... depois que Michael cresceu e começou a
desenvolver o problema, eu tive certeza de que aquilo era um castigo por eu
ter sido uma péssima mulher. Aceitei sua morte, pois achei que eu merecia
sentir toda aquela dor.

— Por isso a senhora nunca o visitava no cemitério...

— Sim. Seu pai sempre costumava me lembrar de que aquilo era um


castigo divino, que era culpa dos meus erros e eu concordei.

— Mas isso é um absurdo mãe! Michael não era um castigo, ele era só
uma criança inocente vítima de uma doença rara. Ele não era um castigo.

Era tudo tão absurdo.

— Continuo achando que minha vida foi uma mentira mãe. Tudo parece
ter sido premeditado. Minha amizade com Max foi um acordo...

— Podia ter sido querido, mas não foi. Você não deixou que fosse,
quando se envolveu com Max — ela constatou.

— Por isso Mark me odeia! — Lembrei.

— Ele odeia a si mesmo, não você, eu ou seu pai.

— Quando Edward descobriu?

Ela enxugou outra lágrima. Sua voz estava um pouco fraca, devia ser
difícil relembrar tudo isso, mas ela não hesitou em continuar.
— Foi pouco antes de se formar. Ele estava procurando um documento e
achou que estivesse no meu quarto, foi quando ele encontrou o contrato do
acordo que o seu pai fez com Mark... ele ficou desolado e se já não tivesse
passado em todas as disciplinas, teria desistido. Nós brigamos, ele ficou
muito, muito mal. Mas nunca quis que ninguém soubesse disso,
principalmente você. Ele quis te proteger disso tudo pelo maior tempo que
conseguisse, pois tinha medo de que você não o visse mais como irmão. Ele
nunca me contou isso, mas eu sei — contou.

Coloquei a mão no meu rosto e fiquei pensando por um instante. Edward


tentou me preservar, e eu transformei tudo num imenso pesadelo, no pesadelo
que ele tentou evitar.

— Eu nunca...

— Eu sei, eu sei. Mas o medo faz a gente tomar decisões que não são
movidas pela noção de certo e errado, é apenas instinto. Eu, melhor que
ninguém, entendo bem disso.

— Me desculpe mãe, eu fui um idiota...

— Oh querido, está tudo bem, nós vamos cuidar de você, tudo vai
melhorar logo.

***

Eu tive alguns sonhos bem loucos, o médico responsável pelo meu caso
disse que era normal por eu ainda estar e abstinência. Na maioria deles eu via
Max e conversávamos, mas ele ainda estava morto.

Era uma manhã chuvosa como todas as anteriores, Konstantin estava me


ajudando com os assuntos para minhas recuperações e não parecia nem um
pouco incomodado em estar ali.

— Sabe, eu estive pensando em tudo que você tinha dito sobre Matteo e
tomei uma decisão — disse de repente. — Eu terminei com ele e descobri
que você tinha razão, ele é patético.
— Lamento, mas ele era mesmo. E como você está se sentindo sobre
isso?

— Nenhum término é fácil, você deve saber. Mas estou bem ou vou ficar.
Ah! Eu quase ia me esquecendo. Te trouxe uma coisa — disse ficando
animado de repente, mas talvez estivesse apenas fugindo do assunto.

Ele abriu sua mochila e tirou uma pequena caixa embrulhada com papel
rosa.

— Espero que goste — disse ao me entregar.

Era um celular novo.

— Você é doido? Isso deve ter custado uma fortuna!

— Fortuna é o que o meu pai velho e homofóbico tem, aliás, fortunas. E


eu sou o único herdeiro, então... não se preocupe com isso.

Sorri para, é claro que não recusaria, eu precisava mesmo de um.

— Obrigado Kon, não precisava.

— Claro que precisava, você destruiu o outro. Ah, tem outra coisa. Duane
e Elijah se formarão esta semana. Eles queriam que nós comparecêssemos,
mas acho que você não vai poder ir ainda. Estão vendo a possibilidade de
você fazer suas recuperações aqui...

Alguém bateu na porta e a abriu, era Eddie.

— Ei, eu tenho uma visita para você Thomas. Aquela que me fez
prometer.

Meu coração descompassou na hora.

— Você pode me dar licença um instante, Kon?

— Claro.
Lenn James mal entrou no pequeno quarto e seu perfume já o inundara.
Eu queria beijá-lo e dizer que senti sua falta, mas ele parecia irritado demais
para aceitar. Estava vestido com algo novo, talvez tivesse feito compras em
Dublin.

— Nem sei como dizer o quanto estou puto.

— Lenn...

— Eu não tive notícias suas até seu irmão louco entrar no meu quarto me
insultando para pegar todas as suas coisas. Cheguei de Dublin dois dias
depois do ocorrido Thomas, e eu não sabia de nada até te procurar no grupo.
Fiquei desesperado, achei que você fosse morrer.

— Nada disso é culpa minha Lenn, não me deixaram te ver. Dizem que
você é perigoso para o meu tratamento.

— Perigoso, eu? Você só precisava ter dito não, e jamais teria usado.

— Eu sei disso, não te culpo, mas não quero ter uma recaída. Eu
finalmente fiz as pazes com minha família e quero me livrar disso, mesmo
que isso signifique que eu não possa mais te ver — falei.

Doía ter que dizer aquilo, mas precisava ser dito. Eu finalmente tinha
entendido o que aconteceu com minha mãe em seu passado obscuro, havia
entendido também que, como Eddie tentou me dizer tantas vezes, toda a
história não dizia respeito a mim, mas sim a eles.

— Você é fraco Thomas, é isso o que você é. Eu venho administrando o


pó no meu organismo há anos e nunca fiquei viciado, olhe só para mim. Sou
perfeitamente controlado.

— Pare Lenn, talvez eu seja mesmo fraco, não tenho vergonha disso. A
única coisa da qual tenho certeza, é que eu não quero me afundar ainda mais
nesse barco — concluí.

Ele riu, daquele jeito irritante.

— Engraçado, sabe? Eu vim aqui para te dar uma boa notícia. A Hoper
amou minha canção e estamos fechando contrato, sou a aposta deles para este
ano, mas agora... me sinto estranho. Você estragou tudo.

Lenn foi para a saída, mas antes de abrir a porta se virou na minha
direção mais uma vez.

— Você ainda vai ouvir falar muito de mim, Thomas. Tanto, que vai ser
insuportável lembrar que me abandonou, pois eu era a sua melhor opção.
Agora não sou mais nada. Espero que tenha sorte na sua recuperação, ou se
afunde de vez nesta merda.

E foi com uma batida na porta que Rixon Lenn James me disse adeus.

Para sempre? Não sei.


Capítulo 26
Presente
FINALMENTE RECEBI ALTA, MAS SÓ DEPOIS DE ME
COMPROMETER a comparecer regularmente à terapia, além de continuar
participando do grupo de apoio e também iniciei um tratamento com
medicamentos.

Só depois de convencer Edward de que eu realmente estava bem, foi que


ele decidiu que era hora de voltar à Cambridge com mamãe. Ela relutou um
pouco, mas se os médicos me liberaram, não havia por que temer.

— Você tem certeza de que ficará bem, querido? Não quer ir conosco?

— Não se preocupe mãe. Ficarei bem, agora que fiz as pazes com todo
mundo e estou de volta à Ceatha, logo Elijah e Duane irão embora e serei só
eu e o Konstantin. Ele cuida bem de mim.

Estávamos no aeroporto às dez horas da noite do domingo, o voo deles


logo partiria.

Mamãe se aproximou, segurou meu rosto, me deu um beijo e depois me


abraçou. Tinha lágrimas, mas eram de felicidade, seu sorriso deixava isso
bem claro. Já Edward, não parecia tão contente em me deixar.

— Você devia vir conosco.

— Eu bem que queria, mas tenho três provas finais amanhã e só ficarei de
férias se eu passar — expliquei, mas ele já sabia disso.

Uma voz nos auto-falantes anunciou o voo deles.

— Então é hora de dizer até logo! — Disse mamãe me dando mais um


abraço.
Eddie logo em seguida, o apertei junto a mim com toda a força que tinha.

— Obrigado Eddie, se não fosse por você, talvez eu só estivesse me


afundando ainda mais.

— Não vai ser fácil Tom, mas sempre se lembre de quem você é. Te vejo
em breve.

Eles foram andando com suas malinhas até sumirem da minha vista.
Konstantin esperava lá fora, já tentando chamar um táxi para não perdermos
tempo, e ele conseguiu. Assim que o encontrei, já estava pronto para partir.

Seguimos para a Ceatha, com o aeroporto ficava longe do centro da


cidade, levamos alguns minutos para chegar e eu fiquei um pouco enjoado
durante o percurso. Não consegui dormir muito bem, estava ansioso para as
provas do dia seguinte, se eu fracassasse, significava que eu seria expulso por
baixo rendimento, além de todas as outras coisas que aconteceram.

Mas mantive o pensamento positivo de que eu não deixaria isso


acontecer.

Acordei assim que amanheceu, Elijah e Duane já estavam de malas


prontas há alguns dias, só esperavam receber o diploma para partir, os dois
preparavam o café da manhã, achei estranho que eles já estivessem acordados
tão cedo.

— Ei, vocês não têm mais aulas, por que estão acordados tão cedo?

Eles não pareceram surpresos ao me ver. Konstantin surgiu na porta da


frente com um pacote de pães frescos.

— Estamos preparando um pequeno banquete digno para você, meu avô


sempre dizia que nada traz mais sorte que uma boa refeição — Duane
explicou.

Eu ri, me sentei à bancada.

— Parece estranho, mas acredite. O avô dele sabia bem o que dizia —
Elijah confirmou.
Kon sentou ao meu lado, encostei minha cabeça no ombro dele.

— Está nervoso?

— Sempre estou nervoso, mas acho que consigo.

— Claro que consegue. — Duane disse convicto. — Você precisa


conseguir. Konstantin não vai ficar sozinho aqui, precisamos de vocês dois
para perpetuar a Ceatha.

Nós rimos da forma como ele falou.

— Cara, eu não queria que vocês fossem embora. Ainda não me perdoo
por ter perdido as duas formaturas — falei triste.

Duane parou o que estava fazendo e foi até onde eu estava.

— Nada de sentimentalismo, nós partiremos na quarta-feira. Vocês dois


vão ficar e vão dar conta da tarefa de manter esse lugar de pé. Eu vou
confessar que amo vocês, mas a vida é feita de sacrifícios e um deles é partir.
Posso confiar em vocês nessa tarefa, não posso?

Assentimos.

— A comida está pronta, vamos comer!

***

Foi um dos cafés da manhã mais felizes entre nós e talvez isso tenha me
animado. Havia quatro pessoas na sala quando entrei, o professor já estava
aguardando. Sentei na primeira fila, bem próximo ao professor, minhas mãos
tremiam, mas quando ele entregou a avaliação, respirei fundo e dei o melhor
de mim.

Quando o tempo acabou, eu estava confiante.

Eu precisava falar com alguém antes de partir para a segunda avaliação.


Peguei meu novo celular no bolso, Konstantin se deu ao trabalho de atualizar
a agenda com a ajuda de Edward. Observei os contatos e o único que me
chamou atenção foi Drake. Eu ainda não havia falado com ele.

Disquei seu número.

— Ora, ora...

— Drake, mano...

— Olha, eu estou muito bravo com você! Mas fico feliz que finalmente
tenha ligado.

— Eu estava perdido Drake, me desculpe. Se Edward e mamãe não


tivessem vindo até aqui, acho que não teria volta, mas eu não liguei para falar
de mim. Quero saber como você está.

Ouvi um burburinho do outro lado da linha.

— Estou bem, acho que não vou passar as férias em casa. Estou com
amigos num café, em Liverpool. Encontrei uns loucos como eu e eles
também ficarão por aqui nas férias, então fazemos companhia uns aos outros
— contou.

— Que bom. Hoje estou fazendo umas avaliações, me deseje sorte. Meu
futuro depende disso.

— Você não precisa de sorte mano, você é inteligente.

***

Fiz o possível para acreditar no que Drake me disse. Eu era inteligente? A


julgar pelas coisas que eu vinha aprontando, a resposta seria não, sem dúvida.
Fiz mais duas avaliações e no fim do dia eu estava exausto, com dor de
cabeça devida à pressão, mas estava bem.

— E aí? — Perguntou Kon assim que entrei. Ele estava assistindo a um


filme com Elijah. Os dois me encaravam.

— Acho que me saí bem, mas só colocarão as notas no sistema amanhã.


Vou tomar um banho e tentar dormir — falei.

— Não vai jantar?

— Estou cansado...

Graças ao meu cansaço, pela primeira vez em semanas dormi como uma
pedra. Sem sonhos ou pesadelos, apenas dormi e quando acordei já eram dez
da manhã. Corri para o computador no térreo e me controlei para não dar uma
pancada nele por demorar tanto a ligar.

Apertei várias vezes no ícone do navegador, mas infelizmente isso só


atrasou ainda mais a inicialização, mas finalmente funcionou. O navegador
abriu, entrei no sistema acadêmico, coloquei os dados do login e hesitei um
pouco antes de entrar.

Você não precisa de sorte mano, você é inteligente.

As notas estavam todas positivas, fui direto para o final do relatório.

Coeficiente Semestral de Rendimento: 9,3

— Eu passei! Konstantin! Elijah! Duane! Eu consegui, eu passei!

E foi naquele momento que finalmente, fizemos jus ao nome da


irmandade. Os meninos acordaram com meus gritos, mas logo se juntaram a
mim e fizemos uma bagunça, pulando e gritando, era um verdadeiro arco-íris
de alegria naquele pequeno cômodo.

— Ei, hoje é nosso último dia aqui, acho que devíamos comemorar! —
Disse Duane olhando para Elijah.

Nós, com certeza concordamos. Elijah ligou para Elise, que minutos
depois apareceu com um carro diferente, seu porta-malas estava bem
abastecido com vodcas e várias outras bebidas. Carregamos tudo para dentro,
afastamos os móveis, Duane colocou música no computador e logo
estávamos dançando pela sala.

Não demorou muito a estarem tontos, mas eu tomei apenas água, não
podia beber devido ao tratamento. Além disso, o álcool podia fazer o meu
desejo pela droga voltar mais depressa.

Apesar de ser um tipo de despedida, foi um dos nossos dias mais felizes
juntos.

***

No dia seguinte eles estavam ressacados, Elise levou todos nós para o
aeroporto. Ela não iria junto, ainda tinha alguns semestres na UC antes de se
formar. Ela estava toda chorona por ter que deixar o irmão e, para minha
completa surpresa, Elijah também estava.

— Achava que vocês não se davam muito bem — Konstantin comentou.

— Claro que nos damos, somos gêmeos — Elijah disse abraçando a irmã.

— Além disso, quais irmãos não brigam? — Elise completou.

Duane parecia um pouco nervoso. O abracei um pouco mais afastado dos


outros.

— Está com medo, não está?

— Apavorado, Thomas.

— Bem, eu passei por isso antes de me mudar para Cork, então te


entendo. Mas sua situação é melhor que a minha, vai dar tudo certo na
Austrália, a família de Elijah com certeza vai te amar! — Garanti.

— Você acha mesmo? — Perguntou, ainda incerto.

— Claro, você tem o amor da sua vida ao seu lado. Aproveite, nem todo
mundo tem essa sorte.

Principalmente eu.

Anunciaram o voo deles, abracei Elijah e depois demos um abraço


coletivo.
— Prometam que vão manter a Ceatha de pé! — Duane ordenou.

— Prometemos — eu e Kon falamos ao mesmo tempo.

E logo eles partiram, nos deixando de coração apertado. Elise chorava


como uma hiena, fomos amparando ela até chegarmos ao estacionamento.
Ficamos em silêncio durante todo o trajeto de volta à Ceatha, mas quando
Elise parou o carro, não nos deixou descer imediatamente.

— Escutem, você são tudo o que me resta aqui. Eu quero ficar perto de
vocês, assim me sentirei perto do meu irmão. Estive pensando em me mudar
para a Ceatha... vocês estão precisando mesmo de novos membros.

— Mas a Ceatha é para criaturinhas coloridas como nós, lembra?

— Mais colorida que eu? Impossível.

Era uma causa perdida, não havia como contrariar Elise Riley. No fim do
dia ela retornou com cinco malas e exigiu o quarto dos meninos, foi tomando
conta do espaço como se já morasse conosco há anos. Só nos restou aceitar.

***

Eu quase havia me esquecido que era quarta-feira, e que eu havia me


comprometido com o acompanhamento psicológico. Mesmo que a maioria
dos alunos ainda estivesse de férias, as reuniões do grupo de apoio ainda
estavam de pé.

Estava nublado naquela tarde. Antes de ir direto para o Fitzgerald, fui


pela primeira vez à terapia, que foi bem proveitosa para uma primeira sessão,
saí correndo para o parque, que não ficava tão longe.

Quando me juntei a eles eu estava arfando em busca de ar, me sentei


pedindo desculpas pelo pequeno atraso. Havia menos pessoas. E, como eu
imaginava, Lenn não estava lá.

— Faz um tempo que não te vemos Thomas, soubemos do ocorrido e


oramos por sua melhora, como você está? — Disse Patrick me passando o
bastão.
— Agora, posso dizer que estou bem. Ou pelo menos, estou no caminho
certo.

— Você gostaria de compartilhar sua experiência com o grupo?

Hesitei um pouco, mas talvez pudesse ajudar. Não só a mim, mas também
os que me ouviriam. Resolvi aceitar.

Fui para o centro do círculo com o bastão na mão.

— Boa tarde, meu nome é Thomas Thompson e eu vou iniciar a narração


de uma história difícil, cujo final pode não ser tão feliz. Eu costumava ter
alguém na Inglaterra, mais precisamente em Heaven Wood, o nome dele era
Max, ele me amava. Nós lutávamos para nos manter juntos, mas um belo dia
houve um acidente e Max sofreu uma lesão grave e entrou em coma, onde
permanece. Eu havia prometido nunca o deixar, mas algumas promessas são
difíceis de manter. Descobri um segredo da minha família e simplesmente
fugi, não encarei os fatos.

"Chegando em Cork, eu estava muito abalado. Sentia uma dor tão forte
dentro de mim, que precisava me bater para amenizar. Foi quando eu me
envolvi com alguém e esse alguém disse que havia outras formas de me
machucar, eu não havia entendido, mas aceitei sua conversa.

"Ele me apresentou um pó mágico que mandava minha dor embora, mas


quando o efeito passava, a dor voltava com tudo. Então eu precisava de cada
vez mais, para amenizar minha angústia e foi assim que eu me tornei um
viciado, tive uma crise forte no natal, vocês já sabem o que aconteceu, mas
estou bem agora. Isso é tudo.

Eu tinha lágrimas nos olhos quando terminei o meu resumo dos fatos
pelos quais passei nos últimos dias. Não queria ter que relembrar. Os
membros do grupo bateram palma.

— Parabéns Thomas, você é muito corajoso!

Ouvi atentamente as outras histórias e quando a reunião acabou, pouco


antes do anoitecer, eu me ofereci para ajudar Patrick com sua parafernália.

— Estou orgulhoso de você Thomas, está começando a progredir. É uma


pena que outros não pensem o mesmo que você — disse enquanto
atravessávamos a rua.

— Patrick, não querendo ser intrometido, mas já sendo. O que aconteceu


com o Rixon? Ele não apareceu hoje...

— Ah, você não soube? Ele foi embora. Trancou o curso, deixando
automaticamente o grupo e partiu para Dublin, está fechando contrato com
alguma gravadora grande, pelo que eu soube.

— Que bom, espero que ele tenha sorte — eu disse, me sentindo culpado.
Mas era um desejo sincero, ele merecia ter um pouco de sorte.

***

Mais alguns dias se passaram e finalmente chegou o dia do meu


aniversário, 18 de janeiro. Konstantin me fez um bolo, que ficou bem ruim,
mas eu comi fingindo gostar, pois suas intenções eram as melhores. Já Elise,
foi bem sincera, cuspindo tudo assim que colocou na boca e começou a
xingá-lo.

— Para onde vai Thomas? — Perguntou quando me viu pegando o


casaco para sair.

— Não sei, vou dar uma volta sozinho, logo voltarei.

E foi isso que fiz, saí andando sem rumo, até decidir ir para o Fitzgerald.
No caminho falei com Drake, depois recebi ligações de mamãe, Karola e
Henry. Todos eles pareciam estranhos, como se tivessem armando uma festa
surpresa, o que era impossível, já que eu estava bem longe.

Me senti bem ao falar com eles tranquilamente, sentado no banquinho do


parque, observando o gramado verde-vivo, as árvores que derramavam gotas
geladas de água dos seus galhos sempre que o vento batia.

Respirei fundo, a tranquilidade é uma das melhores coisas da vida. É


claro que ainda havia dor em mim, afinal Max continuava longe e eu queria
abraçá-lo no dia do meu aniversário, mas não podia.

Esse pensamento me deixou bem triste por um instante, mas logo me


recompus. A gente tem que se acostumar com coisas ruins também.

Meu celular tocou, me tirando da distração. A foto de Eddie apareceu no


visor. Só faltava ele ligar.

— Achei que tinha esquecido — brinquei.

— Claro que não irmãozinho. Jamais esqueceria, por isso estou ligando,
eu e Alyssa te desejamos muito sucesso, e tudo que existir de melhor nesse
mundo, pois você merece.

— Ah Eddie, obrigado. Agradeça à Alyssa por mim.

— Certo, mas não é só isso. Eu tenho um presente para você, uma


surpresa. A melhor que você poderia ter, justamente hoje! — Ele estava
muito animado enquanto falava.

— A única surpresa que seria tudo isso que você está dizendo seria se...
bem, você sabe. Não quero parecer patético nem nada...

— Mas é isso mesmo, Tom!

Fiquei paralisado, senti meu coração acelerar de repente. Foi como se o


mundo tivesse parado de girar por alguns instantes. Ele não podia estar
falando sério, podia?

— Você está querendo dizer que...

— Sim Tom, O Max acordou!

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