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10 anos de Beltrame: segurança pública no Rio de Janeiro

Article · November 2016

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Lia de Mattos Rocha


Rio de Janeiro State University
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Políticas Públicas, Cidadania e territórios periféricos: a permanente (re)construção do estado nas margens do Rio de Janeiro View project

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10 anos de Beltrame: segurança pública no Rio de Janeiro
Lia Rocha (Uerj/CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana)

Novembro de 2016. Blog Junho.


Disponível em: http://blogjunho.com.br/10-anos-de-beltrame-seguranca-publica-no-rio-de-janeiro/

No dia 11 de Outubro de 2016 foi anunciada a exoneração do Secretário de Segurança Pública do


Estado do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame, o secretário que mais tempo permaneceu à
frente da pasta e criador do Programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Sua saída já
era anunciada pelo próprio há bastante tempo, mas sempre era adiada a pedido do Governador
Luiz Fernando Pezão, segundo a imprensa. As matérias na imprensa que repercutiram sua saída
o fizeram em tom de lamentação, com declarações de especialistas na área e de políticos em
campanha para o segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro1, e após recentes
conflitos em favelas da Zona Sul estamparem os jornais cariocas. Em suas declarações públicas
saiu criticando o governo do estado por não ter dado condições de funcionamento adequadas ao
programa, ainda que tenha feito seu sucessor e continuado como fiador da "pacificação".

Ao longo dos dez anos em que esteve à frente da Secretaria de Segurança Beltrame foi a própria
expressão da policia de "pacificação" iniciada pelo Governador Sérgio Cabral em 2008. Esses dez
anos também são significativos para compreender as mudanças recentes vividas pelos habitantes
do Rio de Janeiro, no contexto dos megaeventos, especialmente aqueles que moram em favelas
e periferias. Sua saída permite iniciarmos um balanço necessário, e para tal pretendo aqui dar
uma pequena contribuição.

2007: “Todas as mortes aconteceram em confrontos”2.


O primeiro ano do governo Cabral, e de Beltrame como Secretário de Segurança, foi marcado
pela Chacina do Pan, ou Chacina do Alemão, ocorrida em Junho de 2007. Dezenove pessoas
foram mortas em uma operação policial cujos números até hoje são impressionantes: 700 homens
da Polícia Civil, 550 da Polícia Militar e 150 da Força Nacional de Segurança foram mobilizados
na ação, que resultou na apreensão de 113 quilos de maconha, 30 quilos de cocaína, três quilos
de crack e cem frascos de lança-perfume. Também foram apreendidos dois mil projéteis, cinco
pistolas, um revólver calibre 38, quatro morteiros, um lança-rojão, duas submetralhadoras e duas
metralhadoras antiaéreas calibre .30 de uso exclusivo das Forças Armadas. A reação de Beltrame,
compartilhada pela maior parte da imprensa que repercutiu o evento, foi considerar a ação

1O novo secretário, indicado pelo próprio Beltrame, será Roberto Sá - atual subsecretário de Planejamento e Integração
Operacional da Secretaria de Segurança. Sá é policial militar, tendo sido instrutor do Batalhão de Operações Especiais
(BOPE), e foi delegado da Polícia Federal.
2"Mortos são criminosos", afirma Beltrame. Folha de S. Paulo, 29 de junho de 2007. Disponível em: http://bit.ly/
2fQGkyw
1
vitoriosa: "Quando a polícia atua com inteligência, de maneira planejada e organizada, é possível
organizar operações bem-sucedidas como essa”3.

A operação no Alemão representa o modelo de ação policial em curso no Rio de Janeiro à época,
anterior inclusive ao governo de Cabral e à gestão Beltrame4. Seu posicionamento, contudo, traz
elementos que sintetizam uma nova tendência no que diz respeito ao tema Segurança Pública:
além da necessidade de ações baseadas na inteligência, o secretário defendeu que a presença
policial nas favelas era condição fundamental para combater o tráfico de drogas. Ele afirma, na
mesma entrevista: “Atingimos locais que não eram acessíveis para a polícia há bastante tempo.
(…) O Estado tem que se fazer presente e libertar os moradores que vivem sob as leis do tráfico,
num estado informal”.

A defesa da presença estatal como forma de “libertar moradores das leis do tráfico” já indicava os
princípios que norteariam a criação do Programa de Pacificação, que marcaria uma inflexão (com
continuidades, como destacaremos abaixo) na policia de segurança pública no estado. Tal
proposição não era novidade, mas pode-se dizer que Beltrame foi talvez a primeira - e
definitivamente a principal - expressão dessa proposição vinda de dentro do coração do aparato
público de segurança, e a política das UPPs seu principal projeto.

2008-2010: "Entrar na favela e ficar não vale somente para a polícia. A polícia não vai
resolver. Tem que o Estado vir atrás”5.
Em dezembro de 2008 a favela Santa Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro, é ocupada por forças
da polícia militar, no que se tornou posteriormente a primeira experiência de instalação de uma
Unidade de Polícia Pacificadora6. Apresentava como princípio contar apenas com policiais
militares recém formados, e que tivessem recebido treinamento especializado para o policiamento
de proximidade, “com ênfase em Direitos Humanos e na doutrina de Policia Comunitária”7.

Diversas pesquisas já demonstraram que a implementação do Programa das UPPs possui


continuidades - especialmente no que diz respeito à relação entre policiais, polícia militar e
moradores de favelas - em relação ao modelo de “guerra" que caracterizava mais de vinte anos
de atuação estatal na Segurança Pública. Contudo, pelo menos no campo discursivo, as UPPs
pretenderam ser uma síntese de duas lógicas aparentemente opostas: a lógica da “guerra“ e a
lógica dos “direitos humanos”. Ainda que não fosse a primeira experiência de policiamento

3Maurício Thuswohl. Secretário nega excessos da polícia em operações no Complexo do Alemão. Carta Maior, 28 jun.
2007. Disponível em: http://bit.ly/2g9A1qi
4 Pesquisadores consideram o governo de Marcelo Alencar (1995-1999) como um marco importante na consolidação da
lógica do confronto no campo da violência urbana no Rio de Janeiro. Sua "gratificação faroeste” ficou famosa por
premiar policiais pelas mortes ocorridas em confrontos.
5 Beltrame: só UPP não resolve, Estado tem de agir junto. G1, 8 nov. 2010. Disponível em: http://glo.bo/2eSp7jW
6 Hoje são 38 UPPs em mais de vinte favelas na cidade.
7 DECRETO Nº. 42.787 de 06 de Janeiro de 2011.
2
comunitário a ser implementada em favelas8, as UPPs apresentavam como questão central a
importância de um bom relacionamento entre policiais militares e moradores de favelas e,
principalmente, a necessidade de investimentos no campo social como parte do processo de
combate ao poder do tráfico de drogas.

Em função disso, as declarações de Beltrame incidiram sobre outras ações estatais que não
apenas a questão do policiamento; ordem pública, crescimento das favelas, investimentos sociais
- todos esses assuntos eram, para o Secretário, parte da solução do problema da segurança
pública. Mas foi sobre a relação entre poder público e moradores de favelas que o Secretário mais
elocubrou. Segundo ele o Estado não tinha se feito presente nas favelas, e que a polícia só era
capaz de garantir as condições para a entrada do poder público - com a expulsão dos traficantes -
mas não de modificar as condições de vida da população e, o mais importante, destruir o que ele
e outros representantes do projeto da UPP chamavam de ideologia ou regime imposto pelos
traficantes. Por isso Beltrame sempre acionou em suas falas metáforas em torno de libertação,
soberania e outras imagens que remetem não apenas à ideia de guerra (reformulada, mas
mantendo as favelas como território inimigo) mas também de conversão da população e de
recuperação, especialmente dos jovens: ”O que venho diuturnamente pregando no deserto é que
não venham mais falar da polícia, porque a polícia está fazendo seu trabalho. E não cobrem da
polícia colocar na cabeça de um jovem que não opte pelo crime. (…) E as questões sociais:
quantos gastaram, quantos jovens recuperaram? 9

Cabe destacar que Beltrame foi a expressão pública da nova política de segurança também pelos
valores que personificava: nas muitas entrevistas que deu era apresentado como um homem
honesto, de hábitos austeros, com um perfil técnico e avesso à políticagem. Sempre questionado
sobre suas pretensões políticas, afirmava não ter nenhuma e denunciava que em gestões
anteriores os interesses políticos se sobrepuseram a competência na condução da política de
segurança. Todavia, a blindagem na opinião pública ao programa das UPPs e a figura de
Beltrame começou a rachar em 2010, com a ocupação do Alemão - ainda que o projeto das UPPs
tenha sido ponto central na reeleição em primeiro turno de Sérgio Cabral.

2010-2016: "A gente deu uma anestesia num paciente que precisava de uma cirurgia. E
essa cirurgia não foi feita ou foi mal feita, aos pedaços"10.
O período de 2010 a 2012 foi marcado por uma grande expansão do programa das UPPs. É
nesse momento também que o Rio de Janeiro começa a se preparar para receber os grandes
eventos que marcaram a primeira metade da década de 2010. Nesse contexto, as falas públicas
de Beltrame dão conta da mudança no eixo das UPPs; a localização das unidades vai formando

8 A experiência do Grupo de Policiamento em Áreas Especiais - GPAE, também já foi objeto de pesquisa
9Clarissa Thomé. “A UPP fez sua parte. Para onde foi a verba de assistência social?” O Estado de S. Paulo, 25 mai.
2016. Disponível em: http://bit.ly/2fMriaH
10Carolina Heringer, Marcos Nunes e Rafael Soares. Antes de deixar Segurança, Beltrame anuncia que Rio não tem
dinheiro para pagar sálarios de dezembro e 13º. Extra, 12 out. 2016. Disponível em: http://glo.bo/2fqnMor
3
um "cinturão de segurança” em torno dos aparelhos para a Copa e as Olimpíadas, e o sucesso
desses eventos fortalece a imagem de sucesso da política e de seu formulador e executor. Mas o
período de sucesso inquestionável de Beltrame e suas UPPs não se mantém. As manifestações
de 2013 no Rio de Janeiro questionaram diretamente a polícia militar e pediram seu fim. Mortes
cada vez mais publicizadas na mídia foram se acumulando: a chacina da Maré (em que dez
pessoas morreram durante no meio dos protestos de Junho de 2013), o pedreiro Amarildo
(desaparecido na Rocinha em Julho de 2013), Claudia Silva Ferreira (cujo corpo arrastado por um
camburão chocou a opinião pública em 2014), os cinco jovens assassinados em Costa Barros (em
2015), entre outros tantos casos. Ainda que a figura de Beltrame tenha sido muito pouco
prejudicada por esses eventos, houve desgastes na imagem da corporação e das UPPs.

Mais recentemente surgiram na mídia noticias de tiroteios em áreas já “pacificadas”, e o debate


sobre uma “crise das UPPs” emergiu com mais força. Contudo, é a crise econômica que se
abateu sobre o Rio de Janeiro quem colocou a pá de cal na imagem de sucesso do programa:
ainda que sempre tenha reclamado da falta de investimentos necessários para que o programa
das UPPs fossem plenamente executado, em suas declarações mais recentes o agora ex-
secretário reclama de falta de verbas para sua pasta (ainda que essa tenha recebido mais do que
as pastas de saúde e educação)11. Mas Beltrame saiu da cadeira atirando: “O Rio não tem
condições de acabar com a desordem que deixou acontecer”12.

Qual o balanço da "Era Beltrame"?


A política das UPPs, ainda que em crise, não acabou. O novo Secretário de Segurança,
apresentado como homem de confiança de Beltrame, traz em seu currículo e em suas
declarações o compromisso de dar continuidade ao programa. A saída de Beltrame, ainda que
recheada de críticas ao governo, não representou um momento de avaliação das UPPs e de sua
lógica militarista; pelo contrário, o que se viu foi a reafirmação do programa, de seus princípios, e
um clamor geral para sua continuidade.

Neste sentido, podemos destacar como “herança” de uma “Era Beltrame” elementos que
continuarão fazendo parte do repertório que orienta o debate sobre segurança pública, e não só
no Rio de Janeiro. Um desses elementos é a subordinação das pastas e ações “sociais" da
administração estadual e municipal às demandas por uma “pacificação” da cidade e da sociedade.
Os investimentos sociais, especialmente em favelas, só têm legitimidade pública quando
pretendem resolver o problema-favela, colocado em termos do risco que esses territórios e seus
moradores representam para a paz da cidade e dos "cidadãos de bem”. Outro elemento é o
rebaixamento da possibilidade de crítica ao programa da “pacificação”, em função da articulação

11Essa versão, como a da crise econômica fluminense em geral, é questionada pelos dados: Segundo o Jornal O Extra
"na gestão de Beltrame, os orçamentos das polícias Civil e Militar e da Secretaria de Segurança aumentaram 215,6%.
De 2007, primeiro ano de Beltrame à frente da Secretaria de Segurança, até 2015, foram desembolsados R$ 35 bilhões,
mais do que o destinado à saúde e à educação” (idem)
12Ruth de Aquino. Beltrame: “o Rio não tem condições de acabar com a desordem que deixou acontecer”. Época, 13
out. 2016. Disponível em: http://glo.bo/2ewTRvv
4
de dois argumentos diferentes. O primeiro é o discurso de que quem é contra a pacificação é à
favor do retorno do controle territorial pelo tráfico de drogas. Esse argumento é acionado
especialmente contra fala de moradores de favelas e suas lideranças, constantemente
criminalizados e rotulados como coniventes com o crime. O segundo é a blindagem produzida
pelo discurso tecnocrático, que justifica a opção por esse modelo de política de segurança pública
como o único possível e se beneficia da contribuição ativa de pesquisadores da área. Na era da
tecnocracia, a política é descrita como politicagem, e a pressão popular (quando contrária aos
ditames governamentais) é desqualificada como incompetente para compreender a proposta e
influenciada por atores políticos que não representam os interesses da maioria.

Assim, a saída de Beltrame não representa, pelo menos discursivamente, o fim da era UPP, mas
sua continuidade. Em suas próprias palavras, não foi a política da “pacificação" que deu errado;
ela está sendo mal implementada. O modelo de segurança pública adotado permanece
impermeável à crítica; pior que isso, incorpora parte da crítica para sua justificação, como vemos
em mais uma frase de Beltrame: "A sociedade quer a favela para ter cozinheira, faxineira e
lavadeira. Enquanto olharem a favela como gueto, as coisas serão difíceis. Não ponham mais a
culpa na segurança pública”13. A saída de Beltrame não representa uma ruptura, apenas mais um
exemplo de que "algo deve mudar para que tudo fique como está”. Enquanto isso, um em cada
quatro moradores da cidade do Rio de Janeiro permanece tendo como política para sua
segurança a militarização, seja por ação estatal ou paraestatal. E todos permanecemos
submetidos à lógica da “guerra” que mata mais pessoas aqui do que em países em guerra.

13Plínio Fraga. José Beltrame: tráfico, segurança e descriminação. Trip, n. 246, 30 jul. 2015. Disponível em: http://bit.ly/
2fqeyxs
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