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“Lição de caligrafia”

Crónica de Mia Couto


In Revista Visão, 14 de abril de 2022, pp.8-9

Minha filha:
Vinhas dos teus primeiros dias de escola. Entraste em casa e dirigiste-te para a mesa da
sala para cumprir os deveres de casa. Surpreendeu-me a tua apressada determinação. Estranhei o
zelo com que abriste a tua pasta. Assustou-me o cuidado com que ordenaste os cadernos sobre a
mesa. De repente, pareceu-me que a infância tinha fugido para sempre de ti. E a casa ficou mais
escura.
Apertaste o lápis entre os teus pequenos dedos e a tua mão era a minha, tão minha que
compareciam naquele gesto, tão novo e tão medido, os nossos antigos e desmedidos parentes. E
a casa voltou a ficar iluminada.
Até àquele momento, o mais que havias feito era desenhar e colorir bichos e flores, sóis
e céus. Era como se a infância a si mesma se alinhavasse. Mas agora, ao rabiscares o caderno
escolar, o teu gesto ganhava outro peso, outra gravidade. Pensei que te devia proteger contra o
abismo do tempo. No fundo, era eu que me queria amparar a mim mesma. Talvez tenha sido
por isso que preparei esta lição de caligrafia. Dirás que esta aula já vem tarde. E estou de
acordo: a maioria dos ensinamentos chegam quando já não são necessários.
Começo por confessar um segredo: a escrita é um rio. As vogais são água. As
consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo, que se inunda de gente. E o alfabeto é um
barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.
Repara filha: o espaço entre as letras é um pestanejar. O espaço entre as palavras é um
suspiro. E o parágrafo é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos
quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos.
Agora já podes ver como as linhas do caderno são fios onde estendes panos a secar.
Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.
Outra confidência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no
alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte, já desceu do pedestal. Somos
como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as
frases.
E mais um conselho: não é da perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho
será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas
vozes, é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.
Depois do teu primeiro dia de escola, quis saber como tinha sido a tua estreia como
aluna:
- Tivemos aula de clarigrafia – murmurou, sem erguer os olhos do caderno.
- Essa palavra não existe, minha filha – avisei. A verdade é que, errando, disseste o que é
correto: a caligrafia nos clarifica. Eu estou agora mais clara do que me levou a improvisar esta
lição. Na verdade, só hoje entendo o medo que tomou conta de mim quando te vi rabiscar, pela
primeira vez, sobre um papel em branco. Quando escrevias, não era apenas a letra que emergia
do papel. Era a tua mão que despontava. Eras tu que te tornavas legível. E tinha medo de deixar
de te saber ler.
Um dos motivos do meu medo é que a escrita, sendo luz, tem os seus escuros. Às vezes,
a palavra torna-se na própria coisa que nomeia. Quando redigires a palavra “chuva”, terás de ter
cuidado para não molhares a folha. Torrentes de água podem jorrar de um simples poema. Cada
palavra é um poço onde cabe um oceano.
Até aqui, ocupei-me de quem mora na escrita. Tratemos agora desse território que é a
folha de papel. As margens do papel, uma esquerda e outra à direita, separam os inseparáveis
lados do pensamento. Vão-te ensinar a partir as sílabas no final de cada linha. Lembras-te do tio
rachando lenha? Ele erguia o machado e suspirava, como se pedisse desculpa à madeira: É para
caber na lareira! Rasgamos as palavras pelo vinco das sílabas para que caibam nas margens da
folha. Quanto mais cheio, mais o papel fica leve. A folha rabiscada é a primeira a ser levada
pelo vento. A primeira a ser consumida pelo fogo. Os que queimam livros aproveitam-se bem
desta desabrigada condição.
Como vês, a escrita pretende ser uma arrumação do caos. E como há muita variedade de
caos, também há muitos modos de o ordenar. Há países em que as linhas não nascem deitadas.
Os cadernos dessas crianças têm linhas verticais e as palavras são postas umas sobre as outras
como fazem os pedreiros com os tijolos.
Noutros lugares, há crianças que desenrolam palavras imitando o movimento do Sol: da
direita para a esquerda. E há ainda, noutras geografias, outras crianças que, em vez de letras,
desenham ideias. Mais do que todas as que já referi, há ainda milhões de meninas e meninos que
ficarão para sempre longe do alfabeto.
Na sala onde fizeste os deveres, havia uma fotografia do meu pai, todo empertigado,
como se guardar cabras fosse o ofício mais importante do mundo. O teu avô explicava o amor
pelos números. E repetia mil vezes a mesma adivinha: Quando é que o zero se torna um? É
quando o dois passa a ser um?
O avô dizia que preferia os números às letras. Não era uma preferência. Era ausência de
escola. Em contrapartida, o meu velho pai nunca falhou na aritmética da sobrevivência: logo
pela manhã, contava as cabeças de gado. Com vaidade, declarava que nunca lhe faltou
nenhuma. Certo dia, faltaram-lhe os números para contar as balas que lhe cravaram no corpo. A
guerra é uma escola que nos ensina a deixar de ser gente. Nas palavras do avô, a guerra é um
cemitério escavado num país sem chão.
Lembra-te, filha: há vários modos de ser analfabeto. Um deles é esquecer que o papel já
foi árvore, que a tinta e o lápis já foram suor de gente anónima. Outro modo de sermos
analfabetos é desconhecermos a nossa própria história. Para nos salvar a ambas dessa
ignorância, termino esta lição com uma revelação. Na oficina onde fabricavam os teus cadernos,
trabalhou uma mulher que, em cada turno, corria de volta a casa para cuidar da filha. Essa
criança tinha o mesmo nome e a mesma idade que tu. Talvez fosses tu. Depois de tantos anos,
depois de tanto teres escrito, espero bem que continues sendo essa menina.

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