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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Disciplina: FLC0275 - Fonética e Fonologia do Português


Docente: Waldemar Ferreira Netto
Aluno: Tiago José da Silva
nº USP: 5418335

Carta e conto de Clarice Lispector:


diferenças de frases
Introdução

O presente trabalho tem por objetivo verificar se existe alguma relação entre tamanhos de frases e
informações a serem passadas em textos escritos de gêneros diferentes.
O corpus constitui-se de uma carta de Clarice Lispector enviadas às irmãs, quando habitava a
cidade de Torquay, e um trecho de “Os desastres de Sofia”, conto pertencente ao livro “Legião
Estrangeira”. A seleção do trecho deve-se pela peculiaridade de que fora publicado primeiramente na
coluna que Lispector mantinha no Jornal do Brasil, com o título de “Travessuras de uma menina - III
(noveleta)” Ora, o texto jornalístico tem uma fugacidade característica: é lido e logo abandonado para
entrar-se em outro texto, seja jornalístico, seja artístico. A carta, no entanto, pode ser lida para
rememorar fatos contados e, como vemos nesta missiva, para a necessidade de retomá-la para
responder às interrogações do remetente.
Outra diferença está no interlocutor: A carta é escrita a duas pessoas conhecidas, que possuem um
conhecimento prévio da locução e do que pode ocorrer à irmã, enquanto o conto/crônica dirige-se a
destinatários que podem ou não manter alguma espécie de vínculo com a escritora. Portanto, é
possível afirmar que a carta tem um caráter pessoal, enquanto o texto literário social.
A escolha por Clarice Lispector deve-se pela sua estilística, pois ela, nas narrativas literárias,
arquiteta as cenas e as impressões das personagens através de frases longas e de uma espécie de
poesia interiorizada. A poesia, como se sabe, é construída através de pés métricos para dar ao
conteúdo movimentação visual e sonora capaz de potencializar essas informações.
A análise da carta e do conto foi feita a partir a observação do número de palavras/frase, de modo a
perceber se existe na epístola algum objetivo de criação literária. Constataremos, pois, que não o há.

Análise

Palavras por Ocorrência Porcentagem Ocorrência Porcentagem


frase (carta) (carta) (conto) (conto)
01 - 05 13 26% 5 10,6%
06 - 10 25 50% 8 17,1%
11 - 15 8 16% 9 19,1%
16 - 20 1 2% 2 4,2%
Mais de 20 3 6% 23 49%

“Travessuras de uma menina III” apresenta uma distribuição muito irregular entre frases curtas e
longas. Se, no primeiro parágrafo, temos 3 ocorrências de frases de 11 a 15 palavras de um total de 5
frases, no decorrer do trecho percebe-se a queda do índice de 60% para 19%, ou seja, 9 de 47.
Mas, observando-se o mesmo conjunto na carta de Torquay, o índice é semelhante: 19,15.
Se não há grande discrepância entre as duas obras quanto a este grupo, em outros há uma larga
diferença. Frases curtas construídas por 6 a 10 palavras no conto são 8 de 47 (17,1%), enquanto na
carta atinge a marca de 25 de 50 (50%). Todavia o índice de longas na carta queda para apenas 6%, e
eleva-se para 49% no conto.
Assim, considera-se, pela amostragem, que as frases no conto são predominantemente longas, ao
passo que as da carta são de maioria curta.

Conclusão

Na necessidade de explorar além da cena narrada, Lispector constrói um texto harmônico: suas
longas frases indicam as reflexões e impressões pessoais da menina, enquanto as curtas indicam os
momentos de surpresa – ações impactantes do professor à ela.
Nas cartas percebe-se que Lispector não possui a mesma preocupação: a construção é mais
desordenada, com maior incidência de frases curtas, que lhe permitem mudar logo de assunto; são
lançadas de modo a passar o maior número possível de informações. Temos, portanto a percepção de
que a Lispector ficcionista necessita de uma quantidade maior de palavras por frase para detalhar que
a Lispector missivista, apenas comunicadora de fatos.

Corpus

1) Travessuras de uma menina - III (Noveleta)


Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já me chamava.
Apressei-me. Como eu só sabia "usar minhas próprias palavras", escrever era simples.
Apressava-me também o desejo de ser a primeira a atravessar a sala - o professor
terminara por me isolar em quarentena na última carteira - e entregar-lhe insolente a
composição, demonstrando-lhe assim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial
para se viver e que, eu tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar. Melindrada, sem um
elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele
contara. Só que naquela época eu estava começando a "tirar a moral das histórias", o que,
se me santificava, mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice,
pois havia acrescentado as frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o
que nelas haveria de tão poderoso a ponto de enfim ter provocado o homem de um modo
como eu própria não conseguiria até então. Provavelmente o que o professor quisera
deixar implícito na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se
chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa
sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho
que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi exatamente isso.
Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples
mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente contrariando o
sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que
o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É
possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já
tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas
queria que tudo me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na
composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um
tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira,
ciscando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a
surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o
quê, para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor,
vermelha de uma felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas - voei
em direção à sala de aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor
a folhear os cadernos empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora
buscar e iniciando outra corrida de volta - só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra: ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava.
Meus passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a
admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia
do rosto. Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata
macia e pesada sobre mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que
sem presa prende o rabo do rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca,
dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava.
Comecei a costear a parede de olhos baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traço
de um rosto que já perdera os contornos. Nunca havia percebido como era comprida a sala
de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta
de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e duras,
eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal
acreditava poder alcançar o âmbito da porta - de onde eu correria, ah, como correria! a
me refugiar no meio dos meus iguais, as crianças. Além de concentrar no sorriso, meu zelo
minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de
um perigo do qual tudo o mais eu desconhecia. Foi um arrepio que me adivinhei de repente
como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta
dos pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em
silêncio, e mesmo os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio.
Cheguei finalmente à porta, e o coração imprudente pôs-se a bater alto demais sob o risco
de acordar o gigantesco mundo que dormia.
Foi quando ouvi meu nome.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem
de me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me
devagar, contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.

2) Torquay, 16 outubro 1950

Minhas queridas,
Recebi duas cartas de vocês: uma de Tânia e depois outra de Elisa. Mas é pouco. Já
gostaria de estar de novo com vocês. Até há pouco, mal tive tempo de pensar: Pedrinho me
ocupava sempre. Agora tenho uma babá, uma moça mais ou menos simpática. Pedrinho
ainda não gosta nada dela. Receio que ele não goste de nenhuma, por causa da língua. Ele
a chama de miss Peggy. Ontem ele disse: "ele tem medo de miss Pegggy". Não sei se é
verdade. - O hotel é muito bonzinho e estamos bem longe de estar passando fome. Tem
muitos americanos aqui, simpáticos, com os quais nos damos. Fomos a um teatro razoável,
vamos de vez em quando ao cinema.
Pedrinho diz para miss Peggy: vai embora! Vai embora! - vira-se depois para mim e
diz com o tom mais melífluo (aprendido de mim quando lhe mostro as qualidades da babá):
"ela é ta, ta, (tão) boazinha! Vai embora, miss Peggy!"
Mas pouco a pouco a coisa está indo. Estamos bem de saúde, e gostando do hotel.
Pedrinho à vezes brinca com um menino norueguês. Eles mal se olham. - Acabei de
receber sua carta, Tânia querida. Ainda bem que os hóspedes só ficaram 4 dias. Com esta
carta, veio uma de d. Zuza... desistindo de vir. Muito bom. Quantos dias você passou em
Belo Horizonte, Elisa? Não é simpática a cidade? Hoje fui ao dentista e arranquei um
dente de siso. Apesar disso, sobra-me muito juízo. - Pedrinho vive tocando as campainhas
do hotel - os garçons ficam malucos. Ele está muito bestinha e às vezes meio manhoso.
Entro no quarto dele e ele choraminga: ele quer ver o bigode do papai!
Sempre falo para ele de vocês e ele pergunta muito. - Hoje está fazendo um belo sol. As
coisas estão muito melhores do que no começo. Vou ver se tomo aulas de inglês. Entrei
numa livraria de aluguel. Vamos ver se vamos passar o fim de semana próximo em
Londres, se tudo correr bem. Elisa querida, obrigada pelo recorte de jornal. Se eles
soubessem como sei pouco a respeito de existencialismo... Mas o artigo é bom e pela
primeira vez tocaram em certos pontos, mostrando-me que minha intenção não foi toda
perdida.
Um beijo para Marcinha: que ela me escreva. William está totalmente bom? Que
brincadeira. Um abraço grande para ele.

Com amor,
Clarice

Bibliografia:

– LISPECTOR, Clarice: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp 263-265.


– _________________ Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, pp. 229-230.

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