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De Florian Zeller
Personagens:
André
Homem
Mulher
Laura
Pedro
O Pai
Farsa trágica
Tennesse Williams
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No apartamento de André
André: Nada.
Ana: Pai.
André: O que?
Ana: Me diz.
André: Nada.
André: Eu?
Ana: Sim.
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André: Talvez. Não me lembro.
André: Eu?
Ana: Foi o que ela me disse. Ela me disse que você ameaçou ela.
Fisicamente.
Ana: Que?
André: Que...
André: Me roubou.
André: Sim.
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Ana: Você não acha que o perdeu?
Ana: Foi difícil de achar, sabia? Não é tão fácil assim. Ela parecia
tão bem. Ela tinha várias qualidades. Ela... e agora ela não quer
mais trabalhar aqui.
André: Mas, você ouviu o que eu te disse? Essa moça roubou meu
relógio! Meu relógio, Ana! Fazia muito tempo que eu tinha este
relógio. Muito tempo! Era um objeto sentimental para mim. Era...
Não vou viver com uma ladra.
André: Hein?
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Ana: No armário da cozinha. Atrás do micro ondas. É lá que você
esconde seus objetos de valor.
(Pausa)
Ana: Hein?
Ana: Pai, você precisa entender que eu não posso vir todos os dias.
É...
Ana: Não, não é humilhante. Você precisa aceitar a ideia que você
precisa de alguém. Pelo menos para ir no mercado para você. Sem
falar do... Do resto. Eu não posso mais.
Ana: O que?
Ana: Eu não sei. Acho que eu abri sem querer. (André parece
desesperado. Ele vai até á cozinha) Onde você vai? (Ele sai) Eu
não toquei em nada, pai. (Quase que para ela mesma) Não dá mais
para continuar desse jeito. Nós não podemos mais. Desse jeito...
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Não dá mais... Por que você não entende? (Ele volta. Está com o
relógio na mão) Achou?
André: O que?
Ana: Você viu que a Isabel não tinha nada a ver com isso.
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Ana: Eu já falei disso com você. Você se lembra?
(Pequena pausa)
André: É por isso que você quer que esta enfermeira viva na minha
casa? É por isso, Ana? (Pequena pausa) Lógico que é por isso. Os
ratos deixam o navio.
André: Você?
Ana: Sim.
Ana: Sim.
André: Ah!
Ana: Antônio.
André: Você? Em Londres? Você vai fazer isso, Ana? Abra o seus
olhos. Ana... chove o ano inteiro em Londres! (Pausa) Eu o
conheço?
Ana: Pai...
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André: Como eu vou ficar? (Pausa) Por que ele não vem morar em
Paris?
André: Entendo.
(Pausa)
Black-out
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André: O que?
Homem: O que?
André: O que você está fazendo na minha casa? O que você está
fazendo no meu apartamento?
André: Hein?
André: Você?
Homem: Sim.
Homem: Sim.
Homem: Vou ligar para a Ana (Ele vai em direção ao telefone) Sua
filha...
Homem: Sim.
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Homem: Quase dez anos.
(Ele liga)
Homem: Não.
André: Mas, e a coisa com a Inglaterra? Ela não tinha que partir
para Londres para...? Não?
Homem: (No telefone) Alô, minha querida. Sim, sou eu. Me diga.
Você chega logo? Não, nenhum problema. Mas, o seu pai não está
se sentindo muito bem. Acho que ele iria gostar de te ver. Sim.
Muito bem. Está certo. A gente te espera. Até logo. Sim. Não
demora muito. Não, não. Beijo. (Ele desliga) Ela vai chegar daqui a
pouco. Ela foi comprar umas coisas. Ela já está chegando.
André: Ela me disse que iria mudar para Londres. Ela me disse
outro dia.
Homem: Londres?
André: Sim.
Homem: A Ana?
André: Sim.
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André: Sim. Ela me falou um dia desses, eu não sou louco! Ela me
disse que ela ia se mudar. Para viver com ele. Eu disse para ela
que era uma ideia estúpida porque chove o ano inteiro em Londres.
Você não estava sabendo?
Homem: Não.
André: Ai!
André: Eu disse o que não devia? (Pequena pausa. André para ele
mesmo) Eu disse o que não devia.
Homem: Não, não se preocupe. Ela não me disse nada, mas tenho
certeza que ela está pensando em fazer...
André: Ai! Ai! Ai!... (Pausa. Ele coloca a mão no seu ombro)
Vamos, força. De qualquer jeito, elas acabam indo embora um dia
ou outro. Eu digo isso por experiência.
(Pequena pausa)
Homem: Você quer beber alguma coisa enquanto espera por ela?
Um copo de água? Um suco de fruta?
Homem: O que?
André: A enfermeira...
Homem: A Laura?
André: Esqueci o nome dela. Essa moça que a sua mulher quer me
forçar de qualquer maneira. Uma enfermeira. Você está sabendo?
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Como se eu não conseguisse me virar sozinho... Ela me disse que
eu preciso da ajuda dessa... E justamente eu que me arranjo muito
bem sozinho. Mesmo que ela tivesse que ir morar em outro país. Eu
não entendo porque ela insiste em... Olha para mim. Não, olha bem
para mim...
Homem: Pedro.
André: Sim, Pedro. Olha bem para mim. Eu posso ainda me virar
sozinho. Não? Eu não estou completamente... hein? Você concorda
comigo? Eu não sou ainda... (ele se curva como um idoso) Não é
verdade? Você não acha? Olha, eu posso usar os meus braços.
(ele demonstra) Você está vendo? As minhas pernas. As minhas
mãos. Bom, tudo está funcionando muito bem. Você não concorda
comigo? Claro que você concorda. Mas e ela? Eu não sei da onde
vem esta obsessão. Essa obsessão estúpida. E ridícula. Ridícula.
Ela nunca soube avaliar uma situação, na realidade. Nunca. Esse é
o problema. Sempre foi assim. Desde pequena. Ela não é muito
esperta, poxa vida. Não muito... não é? Não é muito inteligente. Ela
puxou a mãe dela.
Homem: Acho que ela tenta fazer o melhor para você, André.
André: O que?
Homem: Você se lembra que você veio para cá, quero dizer: que
você veio para casa até que...
André: O que?
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Homem: Sim. Esperando encontrar uma nova enfermeira... Porque
você brigou com a última... Com a Isabel.
André: Ah, é?
Homem: Sim. Você se lembra? É por isso que você está aqui em
casa. Esperando.
Homem: Pedro.
Homem: Sim.
Mulher: Tem alguma coisa de errado? Tudo bem, pai? (Ele não a
reconhece) Pai?
André: Eu...
Mulher: Sim?
Mulher: O que?
Mulher: O que?
(Pausa)
André: Eu?
Mulher: O que?
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Mulher: Quem?
Mulher: Antônio?
André: O que?
Mulher: Quem?
Mulher: Comigo?
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(Ele vai em direção da cozinha)
Mulher: Acho que você está se enganando, pai. Não tem ninguém
na cozinha.
(Ele volta)
André: Seu marido. Por que você está sorrindo? Por que você está
sorrindo?
Mulher: Calma.
André: Me acalmar?
Black-out
Ana: Não, ela deve estar chegando. Sei. Espero que desta vez tudo
se passe bem. Sim. Você não imagina como é... difícil algumas
vezes. Outro dia, ele nem me reconheceu. Sei. Eu sei. Ainda bem
que você está aqui. Sim. Sim. Não, eu não vejo outra solução. (A
campainha toca) Ah! Estão tocando. Sim. Deve ser ela. Sim. Eu...
Eu vou desligar. Ok. Beijo. Eu também. Eu também. (Ela desliga.
Ela vai abrir. A porta se abre: é Laura) Oi.
(Laura entra)
Laura: Obrigada.
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Ana: Eu estava te esperando. Entra. Obrigada por ter vindo hoje.
Laura: É normal.
Ana: Meu pai está no quarto. Eu... eu vou buscá-lo. Você quer
alguma coisa para beber?
Ana: Sinta-se à vontade. Eu... sim, como eu te falei, eu... ele não
gosta muito da ideia...
Laura: É normal.
Ana: Sim. E isso causa nele uma espécie de... Enfim, acho que ele
está um pouco chateado comigo. Eu estou te falando isso para te
prevenir porque ele pode ter algumas reações... surpreendentes.
Laura: Entendo.
Ana: Eu te expliquei que Laura deveria passar hoje para que vocês
pudessem se conhecer.
Laura: Obrigada.
Laura: Ah, é?
Ana: Então. Laura passou para nos ver e para entender um pouco
como você vive e para ver de que jeito ela poderia te ajudar...
Laura: Ah?
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Ana: (Um pouco incomodada) Deve ser isso. Sim.
(Pausa)
Ana: Sim. Nem sempre. Mas, na maioria das vezes, sim, ele é
gentil. Bom, ele tem personalidade.
André: Foi o que eu disse, está quase na hora da janta. Tenho dois
relógios. Sempre tive dois. Um no meu pulso e outro na minha
cabeça. Sempre foi assim. Você quer beber alguma coisa, moça?
Ana: Pai...
André: O que foi? Será que eu não posso nem oferecer alguma
coisa para a nossa convidada? O que você quer?
Ana: Verdade.
André: Nunca. Nem uma gota. Por isso o humor dela é tão...
Ana: Tão?
André : Sóbrio. A mãe dela era igual. Era a mulher mais... sóbria
que eu conheci. Em compensação, a sua irmã, ela... era bem
diferente.
André: Sim. Não tenho visto a mais nova ultimamente. Elisa. Era a
minha preferida. (Pausa) Ela deu notícias? Eu não entendo porque
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ela não liga nunca. Nunca. Uma mulher brilhante. Pintora. Artista.
Aqui está o seu copo.
Laura: Obrigada.
André: Saúde. (Eles brindam) Eu daria tudo o que tenho por uma
dose de uísque. E você?
André: As pessoas?
Laura: Ah é?
André: Sim.
Ana: Pai...
Laura: Nossa!
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André: Por que? Você não me imagina como dançarino de
sapateado?
André: O que?
André: Com a Elisa. Sim, é isso mesmo. Com a Elisa, quando ela
tinha a sua idade.
Laura: Elisa?
Laura: Ah?
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André: Sim. Esse jeito... Esse jeito insuportável de rir o tempo todo.
(Todo mundo para de rir. Pausa) Peguei vocês, hein? Há! Há!
(Pequena pausa) Eu sou assim. Adoro surpreender as pessoas. É
uma forma especial de humor que eu tenho. (Pequena pausa.
André fica de repente sério) Vocês entendem, a situação é simples.
Eu vivo neste apartamento há muito tempo. Eu sou muito apegado
a ele. Eu o comprei há mais de trinta anos. Você imagina? Você
nem era nascida. É um apartamento bem grande. Muito agradável.
Bem grande. E eu fui muito feliz aqui. Bom, ele interessa muito a
minha filha.
André: Eu vou explicar. Minha filha diz que não posso mais viver
sozinho. Então, ela se instala na minha casa, dizendo que é para
me ajudar. Com este homem que ela conheceu há pouco tempo,
logo depois do seu divórcio, e que é uma péssima influência. Digo
mesmo.
Ana: Pai...
André: Mas, isso não vai acontecer. Prefiro deixar claro. Eu não
pretendo sair daqui tão cedo. Isso, não. Eu espero mesmo enterrar
vocês. As duas. Exatamente. Enterrar as duas. Bom. Você, eu não
tenho certeza... Mas, a minha filha, sim. Questão de honra. Eu
herdarei os seus bens. Não o inverso. No dia do seu enterro, eu
farei um discurso para lembrarem a que ponto ela era uma
manipuladora e sem coração.
André: Por que? Ela entendeu. É você que não entende. (Para
Laura) Eu tento explicar para ela que eu posso muito bem viver
sozinho. Mas, ela se recusa a me escutar. Ela recusa. Então, como
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você está aqui e que você “ajuda as pessoas”, talvez você possa
me ajudar, explicando para ela que: eu não preciso que ninguém
cuide de mim, e que eu não deixarei este apartamento. Quero
apenas que me deixem em paz. Se você pudesse explicar para ela,
eu agradeceria muito. Pronto. (Ele termina de beber, se levanta e
tira uma nota do bolso que ele joga em cima da mesa, como se ele
pagasse a conta) Prazer. Até logo.
(Ele sai)
Laura: Quando você disse que ele tinha personalidade, não era
somente uma maneira de dizer...
Black-out
(Ana está sozinha. Mas, é como se ela falasse com alguém e que
ela respondesse a um interrogatório)
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nas minhas mãos. Como borboletas. E então eu apertei. Minhas
mãos. Eu apertei bem forte. Ele não abria os olhos. Ele não fechava
a boca. Era apenas um pequeno momento desagradável pelo qual
eu tinha que passar. Um minuto. Menos que isso. Um momento
difícil. Imóvel. Estranhamente calmo. Calmo e imóvel... Quando eu
parei de apertar, quando eu tirei as minhas mãos, eu senti que ele
não respirava mais, que enfim tinha acabado. As borboletas tinham
batido a suas asas. Sim. Ele sorria sutilmente. Ele estava morto. Ele
estava morto, mas parecia que ele me dizia “obrigado”.
(Pequena pausa)
Black-out
Ana: Não, foi bom. Eu acho. Ela disse que vem amanhã.
Ana: Sim.
Pedro: Melhor.
Ana: Sim. Ela é bem calma. Ele fez um numero para ela...
Pedro: Ah, é?
Ana: Sim. Só vendo... ele disse que ele tinha sido dançarino. De
sapateado.
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Pedro: (Sorrindo) Não...
Ana: Sim. Ela começou a rir. Mas, sem tirar sarro dele. Tinha algo
de carinhoso nas atitudes dela. Fiquei tranqüila. Não sei como te
explicar. Como se ela pudesse...Como se eles fossem se entender
bem, os dois... (Pequena pausa) Ele disse que ela parece a Elisa.
(Pequena pausa)
Ana: Eu?
Pedro: Sim. Você está estranha. Se tudo deu certo, é uma boa
noticia, não?
Ana: É que...
Pedro: O que ?
Pedro: Eu sei.
Ana: Não acho. Às vezes, eu penso que nunca vou conseguir. E ele
não para de falar da Elisa. Eu não sei o que falar para ele em
relação a isso. Estou confusa.
Pedro: Vem...
(Pequena pausa)
Pedro: Sim. Estará pronto em... em dez minutos. Você está com
fome?
Ana: Não. (Pausa. Ele sorri para ela) E você, como foi o seu dia?
(André entra. Ele vê Pedro e não o reconhece) O jantar estará
pronto em dez minutos. Tudo bem para você?
André: Tudo bem, minha querida. Tudo está bom para mim. Tudo
está... bom... Bom dia.
Ana: Eu te contei. A Laura veio aqui, né, pai? A Laura veio nos ver
agora há pouco.
André: Quem?
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Anne: A Laura. A moça que veio nos ver agora há pouco.
Ana: De novo?
André: Acabei de olhar. Ele não está lá. Eu devo tê-lo perdido em
algum lugar. Ou então alguém me roubou.
Ana: Não.
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mundo fica usando. Daqui a pouco, se isso continua, eu vou ficar
nu. Completamente nu. E eu não sei que horas são.
Ana: Eu já volto.
(Ela sai. Pausa. Pedro continua lendo seu jornal. André o olha de
longe. Ele pigarreia para chamar sua atenção, como se faz com
quem não se conhece)
Pedro: O que?
Pedro: Sim.
André: É bonito o seu relógio. Ele é... ele é bonito. Ele é... Ele é
seu? Quero dizer: ele é seu?
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(Pausa. Pedro para de ler)
André: Ah, é?
Pedro: Você tem razão. É importante para ela que tudo dê certo
dessa vez. Ela está preocupada com você, você sabe disso, não?
Ela fica muito triste quando você briga com... Bom, vamos torcer
para que tudo corra bem desta vez. Hein? Que você goste desta
moça. Que você a receba de uma maneira um pouco mais...amável.
O que você quer com o meu relógio?
Pedro: O que?
(Pausa)
(Pedro se afasta)
André: Sim.
(Pausa)
Black-out
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6
(Pequena pausa)
André: Pedro?
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sabe disso, né? Era... enquanto. Porque você tinha brigado com a
Isabel. Mas... Como dizer? Eu me pergunto se não seria melhor...
Você gosta do seu quarto, não? (Pequena pausa) O quarto do
fundo, você gosta?
André: Sim.
Ana: Não, pai. Por que você sempre fala de Londres? Eu moro em
Paris.
Ana: Mas, eu nunca disse que iria me mudar para Londres, pai.
Ana: Não...
André: E eu?
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Ana: Você também, pai. Vou vai ficar aqui.
Ana: Pai...
(Pausa)
Black-out
(Ana e Pedro percebem ao mesmo tempo que André está por perto.
Ana se assusta. Constrangimento)
Ana: Pai. O que você está fazendo de pé? Vem sentar. Vem. (Ele
não responde) Pai... (Pausa) Pai, vem. (Pausa) Vem se sentar.
(Pausa)
Black-out
André: Sim.
André: Ah, é?
Ana: Sim. Ela te achou gentil. Foi o que ela me disse. Ela me disse
que te achou gentil. Que você tinha personalidade, mas que era
gentil. Foram as palavras que ela usou. Ela deve vir amanhã de
manhã. Para começar a trabalhar aqui em casa. (Pequena pausa)
Você quer mais um pouco?
André: Ah?
Ana: Pedro?
Pedro: E depois?
(Pausa)
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Pedro: Você tem uma filha que cuida direitinho de você. Não? Você
tem sorte.
André: Você precisa cuidar dela, meu velho. Por que vocês não
viajam?
André: O que?
André: Ah?
(Ana volta)
André: Não.
André: Isabel?
Ana: Sarcástico.
Pedro: Nada.
Ana: Sim, me diz. (Pausa) Por que você diz que é muito paciente?
Ana: Sim?
Ana: A que?
(Pausa)
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Ana: Por que você fala desta maneira na frente dele?
(Pausa)
Pedro: Entendo... O que eu não entendo, é... Enfim, você faz tanta
coisa para ele. Eu te admiro por isso. Você decidiu convidá-lo a
morar conosco. Por que não? Mas... Como eu posso te dizer? Eu
acho sinceramente que você deveria pensar em outra solução... Ele
delira, Ana.
Ana: Qual?
Ana: Em um hospital?
Ana: Por que você está me dizendo isso hoje? Eu quero dizer: já
que amanhã... tem essa...
Pedro: Tá. Você tem razão. Vamos esperar. Talvez com esta nova
enfermeira corra tudo bem. Você parece que confiou nela. Mas,
acredite em mim, tem um momento onde... qualquer que seja a
enfermeira... Ele está doente, Ana. Ele está doente.
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(Ana e Pedro percebem ao mesmo tempo que André está por perto.
Ana se assusta. Constrangimento. Repetição)
Ana: Pai. O que você está fazendo de pé? Vem sentar. Vem. (Ele
não responde) Pai... (Pausa) Pai, vem. (Pausa) Vem se sentar.
(Ele sai sem dizer nada, como se ele fosse se deitar. Pausa)
Black-out
(Na sala, um pouco mais tarde. Pedro está sozinho. Ana aparece na
porta)
Ana: Sim.
Ana: É.
(Pausa)
Ana: (Um pouco distraída) Ele me pediu para cantar uma canção
de ninar. Você acredita nisso? Ele me pediu... uma canção. Ele
fechou os olhos assim que eu comecei, e dormiu. Com a boca
aberta. Ele estava calmo. Tão calmo.
(Pequena pausa)
Ana: Sim, você viu. Ele estava ali. Sim. Com certeza, ele ouviu.
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Ana: Não. Ele parecia tão triste. Ele parecia uma criança. Eu te
disse, ele pediu para cantar uma canção de ninar. Tive que me
segurar para não chorar.
Pedro: Entendo.
Ana: Por favor. (Ele se levanta e serve um copo para ela) Ele
estava tão estranho hoje à noite.
Pedro: Sim.
(Pausa. Eles sorriem um para o outro. Silêncio. Eles não têm nada
para se dizer?)
Pedro: Ah?
Ana: Sim. Eu pensei que talvez você tenha razão. Você talvez
tenha razão, no fundo.
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(Sempre a mesma sala que está cada vez mais vazia. André
aparece pela porta da cozinha. É de manhã. Ele tem uma xícara de
café nas mãos)
André: Se eu dormi bem? Se eu dormi bem? Sei lá. Acho que sim.
Ah! Eu esqueci o açúcar. O açúcar!
(Laura entra)
André: Hein?
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André: Onde a Ana está?
Laura: Sim.
Laura: Ela volta logo, no final da tarde. Vou buscar seus remédios.
Laura: O que? (Pequena pausa, ele hesita em dizer a ela que ele
suspeita de alguma coisa) Já venho, só vou buscar seus remédios.
(Ela sai, ele parece perturbado com a presença dela).
Laura: Sim.
Laura: Não.
Laura: Eu?
André: Sim.
Laura: O que?
André: Sim. Esse móvel aqui, por exemplo. Quem colocou ele
aqui?
Laura: Não.
Laura: Não tem problema, sua filha me preveniu, ela me disse que
o senhor tem uma personalidade forte.
André: Ah?
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André: Não...
André: O que?
Laura: Hein?
Laura: O que?
Laura: Não.
André: Sim!
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André: Obrigado. (Pausa). É verdade, eu sou muito... às vezes, isto
me surpreende. Uma memória de elefante. (Pequena pausa, André
querendo explicar melhor seu pensamento) O animal.
Laura: Sim, sim. (Ele bebe seu copo d'água sem tomar os
remédios) O senhor esqueceu dos remédios. (Ele olha dentro da
sua mão)
André: Não, não, não se incomode por isso. Eu me arranjo com o...
Laura: Hein?
Laura: Bravo!
Laura: É mesmo?
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Laura: Não.
André: Agora?
Laura: Sim.
Laura: Sim.
Laura: Sim.
André: O que adianta? Vai ser preciso colocar outra vez o pijama
esta noite. Então, ganhamos tempo.
(De repente entra um homem, ele também tem uma xícara de café
na mão.)
André: Mas...
André: Comigo?
Homem: Sim.
Laura: Eu volto.
André: Sim.
André: Eu?
André: Não.
André: Eu...
Homem: Sim?
Homem: O que o você acha? (Ele levanta a mão como se ele fosse
dar um outro tapa e André protege seu rosto e fica nesta posição
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defensiva e humilhante. Depois Ana vem da cozinha: continuação
da cena 5. Mudança de situação. Ela traz o frango).
Ana: Bom, não encontrei seu relógio, pai. Vamos procurá-lo daqui a
pouco, por que o frango está pronto. Podemos comer. (Ela vê seu
pai) Pai, pai, o que aconteceu?
Black-out
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Ana: Bom, não encontrei seu relógio, pai. Vamos procurá-lo daqui a
pouco, por que o frango está pronto. Podemos comer. (Ela vê seu
pai) Pai, pai, o que aconteceu? (Para Pedro ) O que é que ele tem?
(Ela coloca o frango na mesa e vai até seu pai que continua na
mesma posição, como se ele achasse que iria receber mais tapas)
Ana: Pai... pai... o que aconteceu? Olhe para mim, tudo bem? O
que é que você tem?
André: Eu...
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Ana: 8 horas, hora de comer.
André: Da noite?
Black-out
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Ana: Por favor. (Ele se levanta e serve um copo para ela) Ele
estava tão estranho hoje à noite.
Pedro: Sim.
(Pausa. Eles sorriem um para o outro. Silêncio. Eles não têm nada
para se dizer?)
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Ana: Eu pensei sobre o que você disse agora há pouco. Em relação
a... Quando você disse que seria melhor colocá-lo em uma Casa
especializada...
Pedro: Ah?
Ana: Sim. Eu pensei que talvez você tenha razão. Você talvez
tenha razão, no fundo.
Pedro: Sim.
Pedro: Eu sei.
Ana: Onde?
Pedro: Sei lá, longe. Nós dois. Viver... (Pequena pausa). Acredite
em mim, é uma boa decisão, você não tem nenhuma razão de se
sentir culpada, isto não tem sentido.
(Ela o abraça)
Black-out
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Ana: O que?
André: Como assim "o que"? Olhe em torno de você. Não tem mais
nenhum móvel.
Ana: E daí?
Ana: Não.
Ana: Não. Tenho certeza, você não gosta? Você acha ele muito
vazio?
André: É horrível, você quer dizer. Quem fez isso? Quem fez esta
decoração?
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André: É mesmo? Mas, não tem nada!
(Ana sai)
André: Já?
Ana: (Fora de cena) Sim, você tem visita hoje, lembra? (Pausa) Pai,
você lembra?
(Ana volta)
André: Já?
Ana: Ela deve vir para o seu café da manhã, você quer um café
antes que...?
André: Sim, enfim, eu acho, vi o rosto dela. (Ana lhe sorri) Você
sabe que ela me faz realmente pensar na sua irmã...?
Ana: A Laura? Sim, foi isso que você disse outro dia.
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Ana: Hein? Sim, talvez. (Pausa) Em todo caso, estou feliz que você
goste dela, ela parece amável, quero dizer, doce. E competente. Ela
cuidará bem de você.
Ana: Bom, a gente vai se vestir antes que ela chegue, está bem?
André: Quem?
André: Muito?
Ana: Não sei mais a palavra que ela usou... Ah! Sim, ela disse que
você era charmoso.
André: É mesmo?
Ana: Sim. Você fez ela acreditar que você sabia dançar, que você
sabia sapatear.
André: Eu?
Ana: Ela disse que gostaria muito que um dia você fizesse para ela,
uma demonstração.
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Ana: Não.
André: Sapateado?
Ana: Ah!
André: É ela?
André: Mas... já? Eu ainda não estou pronto. Eu não estou vestido.
André: Ana.
Ana: O que?
Ana: Bobeira.
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André: Sim, veja, estou de pijama, eu preciso colocar minha calça
comprida.
(A Mulher entra)
Mulher: Obrigada.
Ana: Pai. (Para Mulher) Você quer tomar alguma coisa...um café?
André: Não é esta que eu quero. Onde ela está? A que eu gosto?
Onde ela está?
(Pausa )
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lembra? (Pausa) O senhor não lembra? (Pausa) Seu André, o
senhor lembra? (Pausa) O senhor se lembra?
Pausa
Black-out
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Ana: Pai, preciso falar com você. (Pausa, André está apavorado)
Eu falei com o Pedro.
André: Pedro?
André: Onde?
Ana: Aqui. Eu acho que seria mais seguro.... Mais agradável para
você se decidíssemos juntos que você se instalaria aqui. (Pequena
pausa) O que você me diz?
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André: Mas, e você? O que você vai fazer? Onde você vai dormir?
Em qual quarto?
André: Não.
Ana: Sim.
André: E eu?
Ana : Pai...
Black-out
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(Uma cama branca que lembra uma cama de hospital. André não
sabe onde ele está. A Mulher entra. Ela está com um jaleco branco)
Mulher: Acalme-se.
Mulher: Sim.
Mulher: O que?
Mulher: Sim.
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André: Uma novidade. E desde quando?
André: Sim. Uma nova enfermeira. (Pausa) Aquela que parece com
a Elisa. Minha outra filha. (Pequena pausa) Eu a vi um dia desses.
Não foi?
Mulher: Bom.
André: Sim. Bom, ok. Vamos tomar este remédio. Está na hora,
não? (Pausa) Que horas são?
André: Eu perdi meu relógio. Você não sabe onde ele...? Eu perdi o
meu relógio... Ana? Ana?
André: Não, ela pensou em se mudar para lá. Mas, acabou não
fazendo isso.
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André: Minha filha? Em Londres? Pensa bem, chove o ano inteiro
em Londres.
Mulher: Olha, ontem nós relemos juntos o cartão postal que ela te
enviou. O senhor não se lembra?
Mulher: Olha. (Ela mostra um cartão postal. Ele o lê) Eu digo isso
todos os dias ao senhor. O senhor precisa se lembrar de agora em
diante. Ela vive em Londres porque ela conheceu um homem, que
se chama Pedro, e com o qual ela vive. Mas, ela vem de vez em
quando te ver.
André: Ana?
Mulher: Pronto.
(Ele sai)
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Mulher: Quem?
Mulher: É o Marcos.
André: Marcos?
Mulher: Sim.
André: Por nada. Mas, como eu posso dizer... O que ele está
fazendo? Quero dizer... Na minha casa. Eu o conheço?
Mulher: O que?
Mulher: Sim.
André: André?
Mulher: Sim.
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André: André? É um nome bonito, André... Não?
Mulher: Quem?
Mulher: Não.
André: Ela era tão... Ela tinha olhos grandes. Era... Eu vejo o seu
rosto. Espero que ela venha me ver de vez em quando. Não? Você
estava dizendo que alguns fins de semana, ela viria...
Mulher: Mas... O que você tem? André... André... O que você tem?
Venha aqui. Venha para perto de mim. Me diga o que está
acontecendo com você...
André: Eu...
Mulher: Sim...
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estas histórias de apartamento. Não dá para saber onde colocar
cabeça. Eu sei onde está o meu relógio. Ele está no meu punho.
Isso eu sei. Mas, eu não sei a que horas eu devo...
André: Sim.
André: Sim.
André: Sim.
Mulher: O céu está azul. Vamos aproveitar. Nem todos os dias são
lindos assim. Nunca dura muito tempo. Nunca se sabe quando
estará bonito assim. Hein? Então, vamos nos trocar? Você não
acha bom?
André: Não.
Mulher: Vamos. Não aja como uma criança. Vamos. Vem comigo.
Tudo bem? Vamos. Devagar. Devagar. Chuuu. Chuuu. Tudo vai
ficar bem. Tudo vai ficar bem. Chuuu... Chuuu... Chuuu.
Black-out
Fim
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