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O Pai

De Florian Zeller

Titulo original Le Père

Tradução: Carolina Gonzalez


O Pai

Personagens:

Ana, filha de André

André

Homem

Mulher

Laura

Pedro

O Pai

Farsa trágica

“Quando um homem procura, angustiado, um lugar onde viver em uma cidade


desconhecida, ele encontra-se de uma hora para outra privado de suas
defesas que a sua experiência constrói contra os poderes da magia. [...] Ele
olha menos a cidade do que cidade olha para ele”

Tennesse Williams

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No apartamento de André

Ana: E então? O que aconteceu?

André: Nada.

Ana: Pai.

André: O que?

Ana: Me diz.

André: Acabei de te dizer. Não aconteceu nada.

Ana: Não aconteceu nada?

André: Nada. É você que aparece na minha casa como se alguma


coisa tivesse acontecido... Mas, não aconteceu nada. Nada.

Ana: Não aconteceu nada?

André: Nada.

Ana: Eu acabei de falar no telefone com ela.

André: E daí? O que isto prova?

Ana: Ela saiu daqui chorando.

André: Mas, eu estou na minha casa, não? É realmente


inacreditável. Eu não conheço esta mulher. Eu não pedi nada para
ela.

Ana: Ela vem para te ajudar.

André: Para me ajudar no que? Eu não preciso dela. Não preciso


de ninguém.

Ana: Ela me disse que você a chamou de “putinha”. Ou sei lá o


que.

André: Eu?

Ana: Sim.

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André: Talvez. Não me lembro.

Ana: Ela estava chorando.

André: Só porque eu a chamei de...?

Ana: Não. Porque você... Parece que...

André: Eu?

Ana: Sim. Com a haste da cortina.

André: Com a haste da... Que história é essa?

Ana: Foi o que ela me disse. Ela me disse que você ameaçou ela.
Fisicamente.

André: Essa mulher está delirando, Ana. Com a haste... Você me


vê fazendo isso? Bom... você percebe que ela não sabe do que
está falando. Fisicamente? Com a... Não, é melhor que ela vá
embora, acredite em mim. Ela é louca. É melhor que ela vá embora.
Acredite em mim. Ainda mais que ela...

Ana: Que ela?

André: Hein? Escuta... Se você quer saber, eu suspeito que...

Ana: Que?

André: Que...

Ana: Suspeita do que?

André: (sussurrando) Eu não queria te contar, mas eu suspeito que


ela...

Ana: (impaciente) Que ela o que, pai?

André: Me roubou.

Ana: Isabel? Não. O que você está dizendo?

André: Estou te falando. Ela roubou meu relógio.

Ana: Seu relógio?

André: Sim.
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Ana: Você não acha que o perdeu?

André: Não, não, não. Eu já tinha suspeitado. Então, eu armei uma


arapuca para ela. Eu deixei meu relógio bem em evidência para ver
se ela passava a mão.

Ana: Onde? Onde você o deixou?

André: Hein? Em algum lugar. Não me lembro mais. Mas, o que


sei, é que ele desapareceu. Desapareceu. A prova, eu não o
encontro mais. Foi essa moça que me roubou. Eu tenho certeza.
Está certo, eu talvez a tenha tratado de... como você disse. Pode
ser. Talvez eu tenha ficado um pouco nervoso. Concordo. Se você
prefere. Mas, enfim, Ana, a haste da cortina, poxa vida... Que
loucura. (Ana senta-se. Ela parece desolada) O que foi?

Ana: Eu não sei mais o que fazer.

André: A respeito do que?

Ana: Precisamos conversar, pai.

André: O que estamos fazendo?

Ana: Quero dizer: seriamente. (Pausa) Já é a terceira pessoa que


você...

André: Mas, eu não preciso dela! Nem dela, nem de ninguém. Eu


me arranjo muito bem sozinho.

Ana: Foi difícil de achar, sabia? Não é tão fácil assim. Ela parecia
tão bem. Ela tinha várias qualidades. Ela... e agora ela não quer
mais trabalhar aqui.

André: Mas, você ouviu o que eu te disse? Essa moça roubou meu
relógio! Meu relógio, Ana! Fazia muito tempo que eu tinha este
relógio. Muito tempo! Era um objeto sentimental para mim. Era...
Não vou viver com uma ladra.

Ana: (Cansada) Você olhou dentro do armário da cozinha?

André: Hein?

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Ana: No armário da cozinha. Atrás do micro ondas. É lá que você
esconde seus objetos de valor.

(Pausa)

André: (Surpreso) Como você sabe?

Ana: Hein?

André: Como você sabe?

Ana: Eu sei. Você viu se o seu relógio está lá?

André: Hein? Sim. Eu... eu acho.

(Ele parece não entender)

Ana: Pai, você precisa entender que eu não posso vir todos os dias.
É...

André: Quem está pedindo?

Ana: A situação. Eu não posso te deixar sozinho.

André: Mas, do que você está falando? É humilhante.

Ana: Não, não é humilhante. Você precisa aceitar a ideia que você
precisa de alguém. Pelo menos para ir no mercado para você. Sem
falar do... Do resto. Eu não posso mais.

André: Você vasculhou no meu armário?

Ana: O que?

André: Ana. Me diz a verdade. Você vasculhou no meu armário?

Ana: Lógico que não.

André: Então, como você sabe que...? Enfim... que eu às vezes...


meus objetos de valor... pela minha... Sim. Bom. Como você sabe?

Ana: Eu não sei. Acho que eu abri sem querer. (André parece
desesperado. Ele vai até á cozinha) Onde você vai? (Ele sai) Eu
não toquei em nada, pai. (Quase que para ela mesma) Não dá mais
para continuar desse jeito. Nós não podemos mais. Desse jeito...

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Não dá mais... Por que você não entende? (Ele volta. Está com o
relógio na mão) Achou?

André: O que?

Ana: Seu relógio.

André: Ah! Sim.

Ana: Você viu que a Isabel não tinha nada a ver com isso.

André: Porque eu o escondi. Ainda bem. Por um triz. Se não, neste


momento em que estou te falando não saberia te dizer que horas
são. São 5 horas da tarde, se isso te interessa. A mim, me
interessa. Desculpe de existir. Eu preciso saber onde estamos
durante o dia. É um relógio que eu tenho há muito tempo, sabe? Se
eu o perdesse, eu ficaria muito triste.

Ana: Você tomou os seus remédios?

André: Sim. Mas, por que você...? Me olha sempre como se as


coisas não estivessem bem? Tudo está bem, Ana. O mundo
avança. Você sempre foi assim. Preocupada. Mesmo sem razão.
Como a sua mãe. Sua mãe era assim. Sempre com medo. Sempre
procurando motivos para ter medo. Mas, não é assim que o mundo
funciona. Claro... você vai me dizer que tem um espécie de... as
sombras estão a nossa volta. Mas, sinto te dizer que não. Você
entende? É isso que você precisa entender. Sua irmã, ela sempre
foi muito mais... muito menos... Ela não tem esta visão angustiada
do mundo. Bom, ela me deixa em paz. Falando nisso, onde ela
está?

Ana: Eu vou me mudar, pai.

André: Se mudar, você quer dizer...?

Ana: Viver em outro lugar.

André: Sim. Por que não? É bom.

Ana: Eu vou com certeza me mudar de Paris.

André: Ah é? Por que?

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Ana: Eu já falei disso com você. Você se lembra?

(Pequena pausa)

André: É por isso que você quer que esta enfermeira viva na minha
casa? É por isso, Ana? (Pequena pausa) Lógico que é por isso. Os
ratos deixam o navio.

Ana: Eu vou embora, pai. Você precisa entender.

André: Você vai embora? (Pausa) Quando? Bom, eu quero dizer...


Por que?

Ana: Eu conheci uma pessoa.

André: Você?

Ana: Sim.

André: Hum... um homem?

Ana: Sim.

André: Ah!

Ana: Você reage como se fosse impossível.

André: Não, é que... Desde que... Como ele se chamava?

Ana: Antônio.

André: Isso. Desde do Antônio, você não tinha... E como ele é?

Ana: Ele mora em Londres. Vou viver lá.

André: Você? Em Londres? Você vai fazer isso, Ana? Abra o seus
olhos. Ana... chove o ano inteiro em Londres! (Pausa) Eu o
conheço?

Ana: Sim. Você o conhece.

André: Ah? (Pausa. Ele procura se lembrar) Se eu entendi direito,


você vai me deixar. É isso? Você vai me deixar sozinho...

Ana: Pai...

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André: Como eu vou ficar? (Pausa) Por que ele não vem morar em
Paris?

Ana: Ele trabalha em Londres.

André: Você também trabalha.

Ana: Sim, mas eu posso trabalhar em casa. Não preciso estar em


Paris.

André: Entendo.

Ana: Olha, é importante para mim. Se não, eu não iria. Eu... eu o


amo de verdade. (Pausa. Ele não diz nada) Eu virei sempre te ver.
Em alguns finais de semana. Mas, eu não posso te deixar sozinho
aqui. Não é possível. Se você recusa a ajuda de uma enfermeira,
eu serei obrigada a...

André: A que? (Pausa) A quem Ana?

Ana: Você precisa entender, pai.

André: Você será obrigada a que? (Ela abaixa os olhos. Pausa)


Ana... Você vai ser obrigada a que?

(Pausa)

Black-out

(Na mesma sala. André está sozinho)

André: Preciso encontrar o telefone desse advogado. Preciso ligar


para ele. Sim. Não vivi todos estes anos para me tratarem como
um... desse jeito. Não. Preciso fazer uma ligação... isso. Um
advogado. Minha própria filha... minha própria filha...

(De repente aparece um homem)

Homem: Está tudo bem?

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André: O que?

Homem: Está tudo bem?

André: O que você está fazendo aqui?

Homem: O que?

André: O que você está fazendo na minha casa? O que você está
fazendo no meu apartamento?

Homem: André, sou eu... o Pedro.

André: Hein?

Homem: Você não está me reconhecendo? Sou eu, o Pedro...

André: Quem? O que você está fazendo aqui?

Homem: Eu moro aqui.

André: Você?

Homem: Sim.

André: Você mora aqui?

Homem: Sim.

André: Você mora na minha casa? Essa é boa. Que história é


essa?

Homem: Vou ligar para a Ana (Ele vai em direção ao telefone) Sua
filha...

André: Sim, obrigada, eu sei ainda quem é a Ana! Você a


conhece? (Pequena pausa) Você é amigo dela? (Nenhuma
resposta) Estou falando com você. Você conhece a Ana?

Homem: Eu sou marido dela.

André: (desestabilizado) Ah, é?

Homem: Sim.

André: Marido dela? Mas, há... muito tempo?

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Homem: Quase dez anos.

(Ele liga)

André: (Querendo não aparentar sua perturbação) Ah, sim! Lógico.


Sim, sim. Evidente. Já está fazendo dez anos? Como o tempo
passa rápido... Mas, eu achei que... Não? Que vocês estavam
separados.

Homem: Quem? Eu e a Ana?

André: Sim. Não?

Homem: Não.

André: Tem certeza? Quer dizer... Você tem certeza?

Homem: Sim, André.

André: Mas, e a coisa com a Inglaterra? Ela não tinha que partir
para Londres para...? Não?

Homem: (No telefone) Alô, minha querida. Sim, sou eu. Me diga.
Você chega logo? Não, nenhum problema. Mas, o seu pai não está
se sentindo muito bem. Acho que ele iria gostar de te ver. Sim.
Muito bem. Está certo. A gente te espera. Até logo. Sim. Não
demora muito. Não, não. Beijo. (Ele desliga) Ela vai chegar daqui a
pouco. Ela foi comprar umas coisas. Ela já está chegando.

André: Ela me disse que iria mudar para Londres. Ela me disse
outro dia.

Homem: Londres?

André: Sim.

Homem: O que ela iria fazer em Londres?

André: Ela conheceu um inglês.

Homem: A Ana?

André: Sim.

Homem: Não acredito, André.

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André: Sim. Ela me falou um dia desses, eu não sou louco! Ela me
disse que ela ia se mudar. Para viver com ele. Eu disse para ela
que era uma ideia estúpida porque chove o ano inteiro em Londres.
Você não estava sabendo?

Homem: Não.

André: Ai!

Homem: O que foi?

André: Eu disse o que não devia? (Pequena pausa. André para ele
mesmo) Eu disse o que não devia.

Homem: Não, não se preocupe. Ela não me disse nada, mas tenho
certeza que ela está pensando em fazer...

André: Do inglês também, você não sabia?

Homem: (Brincando) Não.

André: Ai! Ai! Ai!... (Pausa. Ele coloca a mão no seu ombro)
Vamos, força. De qualquer jeito, elas acabam indo embora um dia
ou outro. Eu digo isso por experiência.

(Pequena pausa)

Homem: Você quer beber alguma coisa enquanto espera por ela?
Um copo de água? Um suco de fruta?

André: Não, mas eu quero dizer... O que eu queria mesmo dizer?


Ah! Sim, estou me lembrando.

Homem: O que?

André: É por causa dessa moça...

Homem: Que moça?

André: A enfermeira...

Homem: A Laura?

André: Esqueci o nome dela. Essa moça que a sua mulher quer me
forçar de qualquer maneira. Uma enfermeira. Você está sabendo?

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Como se eu não conseguisse me virar sozinho... Ela me disse que
eu preciso da ajuda dessa... E justamente eu que me arranjo muito
bem sozinho. Mesmo que ela tivesse que ir morar em outro país. Eu
não entendo porque ela insiste em... Olha para mim. Não, olha bem
para mim...

(Ele tenta se lembrar do nome do seu interlocutor)

Homem: Pedro.

André: Sim, Pedro. Olha bem para mim. Eu posso ainda me virar
sozinho. Não? Eu não estou completamente... hein? Você concorda
comigo? Eu não sou ainda... (ele se curva como um idoso) Não é
verdade? Você não acha? Olha, eu posso usar os meus braços.
(ele demonstra) Você está vendo? As minhas pernas. As minhas
mãos. Bom, tudo está funcionando muito bem. Você não concorda
comigo? Claro que você concorda. Mas e ela? Eu não sei da onde
vem esta obsessão. Essa obsessão estúpida. E ridícula. Ridícula.
Ela nunca soube avaliar uma situação, na realidade. Nunca. Esse é
o problema. Sempre foi assim. Desde pequena. Ela não é muito
esperta, poxa vida. Não muito... não é? Não é muito inteligente. Ela
puxou a mãe dela.

Homem: Acho que ela tenta fazer o melhor para você, André.

André: “O melhor”, “o melhor”... Eu não pedi nada para ela. Não, eu


não sei o que ela tem contra mim. Mas, ela tem. Eu suspeito que
ela queira me colocar em uma casa de... Sim, sim. De... (Ele faz
uma careta querendo dizer “repouso”) Já percebi. É o que ela
planeja. Ela quase me disse outro dia. Mas, que fique bem claro: eu
não deixarei meu apartamento! Eu não o deixarei!

Homem: Aqui não é o seu apartamento, André.

André: O que?

Homem: Você se lembra que você veio para cá, quero dizer: que
você veio para casa até que...

André: O que?

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Homem: Sim. Esperando encontrar uma nova enfermeira... Porque
você brigou com a última... Com a Isabel.

André: Ah, é?

Homem: Sim. Você se lembra? É por isso que você está aqui em
casa. Esperando.

(Pausa. André parece um pouco perdido)

André: E você, Antônio...

Homem: Pedro.

André: Sim. Então, você está me dizendo que eu estou na sua


casa?

Homem: Sim.

(André acha graça. E olha para cima)

André: A gente escuta de tudo nessa vida.

(A porta se abre. A Mulher entra, uma bolsa na mão. Não é Ana)

Mulher: Pronto, eu fiz o mais rápido possível. Está tudo bem? O


que está acontecendo?

Homem: Nada de mais. Seu pai parecia estar um pouco perdido.


Acho que ele queria... Não? Queria te ver.

Mulher: Tem alguma coisa de errado? Tudo bem, pai? (Ele não a
reconhece) Pai?

André: Eu...

Mulher: Sim?

André: O que está acontecendo aqui?

Mulher: Do que você está falando?

André: Onde está a Ana?

Mulher: O que?

André: Ana. Onde ela está?


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Mulher: Mas, eu estou aqui, pai. Estou aqui. (Ela entende que ele
não a reconhece. Ela olha preocupada para o Homem) Eu fui
comprar alguma coisa para a gente jantar. Mas, já estou de volta.
Eu estou aqui e está tudo bem.

André: Eu... Ah, é? E... o que você comprou?

Mulher: Um frango. Você quer um pedaço? Você está com fome?

André: Pode ser.

(Ele parece perdido. E sombrio)

Homem: Olha, me dê as compras. Eu vou preparar o jantar.

Mulher: Obrigada. (Ele pega as compras e vai para cozinha.


Pausa) O Pedro me ligou. Ele me disse que você não estava se
sentindo muito bem?

André: Eu estou ótimo. Só que... tem alguma coisa que eu não


estou entendendo... quero dizer: nessa história.

Mulher: O que?

André: É difícil de explicar. É difícil. Você não entenderia.

Mulher: Lógico que sim.

André: Lógico que não!

(Pausa)

Mulher: Você parece preocupado.

André: Eu?

Mulher: Sim. Parece preocupado. Está tudo bem?

André: Tudo ótimo. É que...

Mulher: O que?

André: (Nervoso) Eu estava sentado aqui. Estava tranquilo, estava


procurando um número de telefone e de repente seu marido chegou
e...

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Mulher: Quem?

André: Seu marido.

Mulher: Que marido?

André: Hein? O seu, minha querida. Não o meu.

Mulher: Antônio?

André: Seu marido.

Mulher: Pai, eu não sou casada.

André: O que?

Mulher: Eu me separei há mais de cinco anos. Você esqueceu?

André: O que? Mas, então quem é?

Mulher: Quem?

André: Você faz de propósito ou o que? Estou te falando do... ele.


Que acabou de sair com o frango.

Mulher: Com o frango? O que você está dizendo, pai?

André: Agora, há um minuto atrás. Não teve alguém que pegou o


frango das suas mãos? (Ela não entende o que ele está dizendo) O
frango! Você estava com um frango nas mãos há um minuto atrás?
Um frango! UM FRANGO!

Mulher: De que frango você está falando, pai?

André: Estou ficando preocupado com você, Ana.

Mulher: Comigo?

André: Sim, de verdade, você está me preocupando. Você não se


lembra? Ela não se lembra. Você está com problemas de memória?
Você precisa ir ao médico, caduquinha. Estou te falando do que
aconteceu há dois minutos atrás. Meu relógio. (Ele verifica se o seu
relógio está no seu pulso. Alívio) Há apenas dois minutos. Sim.
Contados no relógio. Com um frango para o jantar. Que você
comprou.

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(Ele vai em direção da cozinha)

Mulher: Acho que você está se enganando, pai. Não tem ninguém
na cozinha.

André: Nossa, extraordinário! Ele estava aqui há dois minutos


atrás.

Mulher: Quem? (Ele sai um instante) Pai...

(Ele volta)

André: Ele desapareceu. (Ele o procura) Ele deve ter se escondido


em algum lugar.

Mulher: (Sorrindo) O homem com o frango?

André: Seu marido. Por que você está sorrindo? Por que você está
sorrindo?

Mulher: Não é nada. Desculpa.

André: Vocês vão me deixar maluco com essas brincadeiras.

Mulher: Calma.

André: Me acalmar?

Mulher: Sim. Vem aqui perto de mim.

André: Tem alguma coisa que não se encaixa. Acredite em mim,


Ana, tem alguma coisa que não encaixa!

Mulher: Vem sentar do meu lado. Vem... (Ele volta a sentar no


sofá. Ele está contrariado. A Mulher sorri para ele e coloca a mão
sobre ele). Vai, se acalma. Tudo vai voltar ao normal. Hein?

André: Não sei.

Mulher: (Afetuosa) Sim. Não se preocupe. Você tomou os seus


remédios?

André: O que tem a ver?

Mulher: Vamos pegar os seus remédios. Os da noite. E depois tudo


vai ficar melhor.
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André: Já faz algum tempo. Está acontecendo coisas estranhas
com a gente. Você percebeu? Tinha esse homem que insinuou que
eu não estava na minha casa. Um homem com uma cara realmente
antipática. Um pouco como o seu marido. Mas, pior. No meu
apartamento, você percebe? Essa foi a melhor, não? No meu
apartamento. Ele me disse que... Mas... Eu estou na minha casa?
Hein? Ana... Eu estou na minha casa? (Ela sorri para ele sem
responder. Ela prepara os remédios) Não? (Pequena pausa) Diz,
Ana, aqui é o meu apartamento?

(Pausa. Ela lhe dá os seus remédios. Em silêncio)

Black-out

(É ao mesmo tempo a mesma sala e uma outra. Alguns móveis


sumiram: durante as cenas seguintes, o palco vai ficando cada vez
mais vazio para se tornar definitivamente um espaço vazio e neutro.
Ana está sozinha na sala. Ela está ao telefone)

Ana: Não, ela deve estar chegando. Sei. Espero que desta vez tudo
se passe bem. Sim. Você não imagina como é... difícil algumas
vezes. Outro dia, ele nem me reconheceu. Sei. Eu sei. Ainda bem
que você está aqui. Sim. Sim. Não, eu não vejo outra solução. (A
campainha toca) Ah! Estão tocando. Sim. Deve ser ela. Sim. Eu...
Eu vou desligar. Ok. Beijo. Eu também. Eu também. (Ela desliga.
Ela vai abrir. A porta se abre: é Laura) Oi.

Laura: Oi. Estou atrasada?

Ana: Não, não. De jeito nenhum. Entra. Entra.

(Laura entra)

Laura: Obrigada.

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Ana: Eu estava te esperando. Entra. Obrigada por ter vindo hoje.

Laura: É normal.

Ana: Meu pai está no quarto. Eu... eu vou buscá-lo. Você quer
alguma coisa para beber?

Laura: Não, obrigada.

Ana: Sinta-se à vontade. Eu... sim, como eu te falei, eu... ele não
gosta muito da ideia...

Laura: É normal.

Ana: Sim. E isso causa nele uma espécie de... Enfim, acho que ele
está um pouco chateado comigo. Eu estou te falando isso para te
prevenir porque ele pode ter algumas reações... surpreendentes.

Laura: Até há pouco tempo, ele vivia sozinho?

Ana: Sim. Em um apartamento perto daqui. Era prático. Eu o via


quase todos os dias. Mas, com o tempo tivemos que encontrar uma
outra organização. Não dava mais.

Laura: Entendo.

Ana: Muitas enfermeiras cuidaram dele. Mas, ele não conseguiu se


entender com elas. Ele tem muita personalidade... Tudo foi muito
pitoresco. Sim. Pitoresco. Por isso que eu o instalei aqui em casa.
Achei que era melhor para ele. Mas, sozinha não estou
conseguindo. É muita coisa para mim. Eu trabalho. Eu... sim. É por
isso que.... Enfim, que eu gostaria que alguém pudesse me ajudar.

(A porta do quarto se abre. André aparece. Ele está de pijama)

André: Tocaram a campainha?

Ana: Ah! Isso mesmo...pai. Eu gostaria de te apresentar a Laura.

Laura: Bom dia, senhor.

Ana: Eu te expliquei que Laura deveria passar hoje para que vocês
pudessem se conhecer.

André: Bom dia, senhorita.


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Laura: Bom dia.

André: Você é... uma graça.

Laura: Obrigada.

André: Mas, eu... nós nos conhecemos? Nós nos conhecemos,


não?

Laura: Não, acho que não.

André: Tem certeza?

Laura: Sim, tenho.

André: O seu rosto me diz alguma coisa.

Laura: Ah, é?

André: Sim. Não? Tenho a impressão de já tê-la visto antes.

Laura: Talvez. Não sei.

Ana: Então. Laura passou para nos ver e para entender um pouco
como você vive e para ver de que jeito ela poderia te ajudar...

André: Eu sei, minha querida. Eu sei. Você já me falou disso mais


de cem vezes. (Para Laura) Minha filha divaga. Você sabe... com a
idade... você quer alguma coisa para beber?

Laura: Não, muito obrigada.

André: Você tem certeza? Uma cervejinha? Daqui a pouco deve


ser a hora do jantar. Que horas são? São... Onde está meu...?
Meu... Um instante, já volto. Já volto.

(Ele vai até a cozinha e sai de cena)

Ana: Ele vai procurar o relógio dele.

Laura: Ah?

Ana: Sim. Ele é muito... pontual. Mesmo se ele continua de pijama


à tarde.

Laura: Ele talvez dormiu depois do almoço.

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Ana: (Um pouco incomodada) Deve ser isso. Sim.

(Pausa)

Laura: Mas, sem duvida ele é gentil.

Ana: Sim. Nem sempre. Mas, na maioria das vezes, sim, ele é
gentil. Bom, ele tem personalidade.

Laura: Melhor assim.

(André entra em cena com o relógio no pulso)

André: Foi o que eu disse, está quase na hora da janta. Tenho dois
relógios. Sempre tive dois. Um no meu pulso e outro na minha
cabeça. Sempre foi assim. Você quer beber alguma coisa, moça?

Ana: Pai...

André: O que foi? Será que eu não posso nem oferecer alguma
coisa para a nossa convidada? O que você quer?

Laura: O que o senhor vai tomar?

André: Um pouco de uísque.

Laura: Então, um pouco para mim também.

André: Ótimo. Então, dois uísques. Dois! Ana, eu nem te proponho.


(Para Laura) Ele não bebe. Nunca.

Ana: Verdade.

André: Nunca. Nem uma gota. Por isso o humor dela é tão...

Ana: Tão?

André : Sóbrio. A mãe dela era igual. Era a mulher mais... sóbria
que eu conheci. Em compensação, a sua irmã, ela... era bem
diferente.

Laura: Você tem duas filhas?

André: Sim. Não tenho visto a mais nova ultimamente. Elisa. Era a
minha preferida. (Pausa) Ela deu notícias? Eu não entendo porque

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ela não liga nunca. Nunca. Uma mulher brilhante. Pintora. Artista.
Aqui está o seu copo.

Laura: Obrigada.

André: Saúde. (Eles brindam) Eu daria tudo o que tenho por uma
dose de uísque. E você?

Laura: Eu não tenho muita coisa...

André: Ah, não? O que você faz?

Laura: Eu... eu ajudo... as pessoas.

André: As pessoas?

Laura: Sim. Eu ajudo aqueles que precisam.

André: (Para Ana) Como aquelas moças que você tenta me


empurrar? (Pausa) Deve ser uma profissão difícil, não? Passar o
dia todo com... (Uma careta querendo dizer “velhos”, “inválidos”)
Não? Eu não suportaria.

Laura: E o senhor, trabalha com o que?

André: Sou dançarino.

Laura: Ah é?

André: Sim.

Ana: Pai...

André: O que foi?

Ana: Você é engenheiro.

André: Como você pode saber? (Para Laura) De sapateado, na


maioria das vezes.

Laura: Nossa!

André: Você parece surpresa.

Laura: (Rindo) Um pouco, sim.

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André: Por que? Você não me imagina como dançarino de
sapateado?

Laura: Sim. É que... eu sempre adorei sapateado.

André: Você também? Eu sei uns belos passos, falando nisso. Um


dia eu te farei uma demonstração.

Laura: Com prazer.

(Ele se levanta, esboça alguns passos. Laura começa a rir. Ele


para)

André: Por que você está rindo?

Laura: (Continua rindo) Nada. Desculpa. Desculpa.

(André começa a rir)

André: Você não acredita em mim?

Laura: Sim, sim. É que...

André: O que?

Laura: É que... esse uísque.

André: É isso mesmo. Lembrei com quem você se parece. Lembrei


com quem ela se parece.

Ana: Com quem?

André: Com a Elisa. Sim, é isso mesmo. Com a Elisa, quando ela
tinha a sua idade.

Laura: Elisa?

André: Minha outra filha. A caçula. Um anjo. Não?

Ana: Não sei.

André: Sim. Lembra sim.

Ana: Talvez, um pouco.

Laura: Ah?

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André: Sim. Esse jeito... Esse jeito insuportável de rir o tempo todo.
(Todo mundo para de rir. Pausa) Peguei vocês, hein? Há! Há!
(Pequena pausa) Eu sou assim. Adoro surpreender as pessoas. É
uma forma especial de humor que eu tenho. (Pequena pausa.
André fica de repente sério) Vocês entendem, a situação é simples.
Eu vivo neste apartamento há muito tempo. Eu sou muito apegado
a ele. Eu o comprei há mais de trinta anos. Você imagina? Você
nem era nascida. É um apartamento bem grande. Muito agradável.
Bem grande. E eu fui muito feliz aqui. Bom, ele interessa muito a
minha filha.

Ana: O que você disse?

André: Eu vou explicar. Minha filha diz que não posso mais viver
sozinho. Então, ela se instala na minha casa, dizendo que é para
me ajudar. Com este homem que ela conheceu há pouco tempo,
logo depois do seu divórcio, e que é uma péssima influência. Digo
mesmo.

Ana: Mas, o que você está dizendo, pai?

André: E agora, ela quer me convencer que eu não posso viver


sozinho. A próxima etapa será me enviar não sei para onde... sim,
eu sei aonde. Eu sei. Lógico, que é para ficar com o meu
apartamento, vai ser muito mais fácil dessa maneira.

Ana: Pai...

André: Mas, isso não vai acontecer. Prefiro deixar claro. Eu não
pretendo sair daqui tão cedo. Isso, não. Eu espero mesmo enterrar
vocês. As duas. Exatamente. Enterrar as duas. Bom. Você, eu não
tenho certeza... Mas, a minha filha, sim. Questão de honra. Eu
herdarei os seus bens. Não o inverso. No dia do seu enterro, eu
farei um discurso para lembrarem a que ponto ela era uma
manipuladora e sem coração.

Ana: (Para Laura) Me desculpe.

André: Por que? Ela entendeu. É você que não entende. (Para
Laura) Eu tento explicar para ela que eu posso muito bem viver
sozinho. Mas, ela se recusa a me escutar. Ela recusa. Então, como

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você está aqui e que você “ajuda as pessoas”, talvez você possa
me ajudar, explicando para ela que: eu não preciso que ninguém
cuide de mim, e que eu não deixarei este apartamento. Quero
apenas que me deixem em paz. Se você pudesse explicar para ela,
eu agradeceria muito. Pronto. (Ele termina de beber, se levanta e
tira uma nota do bolso que ele joga em cima da mesa, como se ele
pagasse a conta) Prazer. Até logo.

(Ele sai)

Laura: Quando você disse que ele tinha personalidade, não era
somente uma maneira de dizer...

Ana: Não... Me desculpa.

(Ana parece emocionada)

Laura: Não se preocupe. É normal que ele reaja dessa forma.

Ana: Não, eu sinto muito.

Laura: Tudo ficará bem. Tenho certeza. Não se preocupe.


(Pequena pausa) Tudo vai ficar bem.

Ana: Você acha?

(Pausa. Laura bebe um gole do uísque. Pausa)

Black-out

(Ana está sozinha. Mas, é como se ela falasse com alguém e que
ela respondesse a um interrogatório)

Ana: Eu não estava conseguindo dormir. Eu estava tão cansada,


tão cansada, que eu não conseguia mais dormir. Então, eu me
levantei. E fui até o quarto dele. Até o quarto do meu pai. Ele estava
dormindo. Ele parecia uma criança. Ele estava com a boca aberta.
Ele estava calmo. Tão calmo. E eu não sei o que aconteceu
comigo, uma raiva, e eu coloquei as minhas mãos no seu pescoço.
Delicadamente. Eu conseguia sentir os batimentos do seu coração

25
nas minhas mãos. Como borboletas. E então eu apertei. Minhas
mãos. Eu apertei bem forte. Ele não abria os olhos. Ele não fechava
a boca. Era apenas um pequeno momento desagradável pelo qual
eu tinha que passar. Um minuto. Menos que isso. Um momento
difícil. Imóvel. Estranhamente calmo. Calmo e imóvel... Quando eu
parei de apertar, quando eu tirei as minhas mãos, eu senti que ele
não respirava mais, que enfim tinha acabado. As borboletas tinham
batido a suas asas. Sim. Ele sorria sutilmente. Ele estava morto. Ele
estava morto, mas parecia que ele me dizia “obrigado”.

(Pequena pausa)

Black-out

(Ana coloca a mesa para o jantar enquanto Pedro lê o jornal. O


frango está sendo preparado na cozinha)

Ana: Não, foi bom. Eu acho. Ela disse que vem amanhã.

Pedro: Aqui em casa?

Ana: Sim.

Pedro: Melhor.

Ana: Sim, um primeiro dia para eles se conhecerem. Eu tinha tanto


medo que não desse certo. Mas, finalmente, não. Ele foi gentil.

Pedro: Está vendo?

Ana: Sim. Ela é bem calma. Ele fez um numero para ela...

Pedro: Ah, é?

Ana: Sim. Só vendo... ele disse que ele tinha sido dançarino. De
sapateado.

26
Pedro: (Sorrindo) Não...

Ana: Sim. Ela começou a rir. Mas, sem tirar sarro dele. Tinha algo
de carinhoso nas atitudes dela. Fiquei tranqüila. Não sei como te
explicar. Como se ela pudesse...Como se eles fossem se entender
bem, os dois... (Pequena pausa) Ele disse que ela parece a Elisa.

Pedro: Ah, é? Mas, quantos anos ela tem?

Ana: Não sei. 30 anos. Por aí.

Pedro : Ela é bonita ?

Ana: Por que? Ficou interessado?

(Pequena pausa)

Pedro: O que você tem?

Ana: Eu?

Pedro: Sim. Você está estranha. Se tudo deu certo, é uma boa
noticia, não?

Ana: Sim, sim.

Pedro: Então, o que você tem? Me diz.

Ana: É que...

Pedro: O que ?

Ana: Agora há pouco... Quando ele não me reconheceu... Quando


eu voltei do supermercado. Isso me... Não sei... Mexeu comigo.

Pedro: Eu sei.

Ana: É tão difícil.

Pedro: Vai, vem aqui me abraçar.

Ana: Eu vi nos olhos dele. Ele não me reconheceu. Nem um pouco.


Eu era uma estranha para ele.

Pedro: Você precisa se acostumar.

Ana: Eu não consigo.


27
Pedro: Eu acho que você está se saindo muito bem.

Ana: Não acho. Às vezes, eu penso que nunca vou conseguir. E ele
não para de falar da Elisa. Eu não sei o que falar para ele em
relação a isso. Estou confusa.

Pedro: Vem...

(Pequena pausa)

Ana: Na noite passada, eu tive um pesadelo horrível. Eu sonhei que


enforcava ele. (Pausa. Ela se acalma) Você colocou o frango no
forno?

Pedro: Sim. Estará pronto em... em dez minutos. Você está com
fome?

Ana: Não. (Pausa. Ele sorri para ela) E você, como foi o seu dia?
(André entra. Ele vê Pedro e não o reconhece) O jantar estará
pronto em dez minutos. Tudo bem para você?

André: Tudo bem, minha querida. Tudo está bom para mim. Tudo
está... bom... Bom dia.

(Pedro sorri para ele distraído)

Ana: Você está com fome, pai?

André: Sim, sim. Mas, nós temos visita para o jantar?

Ana: Não. Por que?

André: Por nada, por nada...

(André fica olhando para Pedro. Pausa)

Pedro: (Para Ana) Não, nada de especial. Tivemos várias reuniões.


Nada de especial. Esperamos ainda a resposta do Simão. Está
sendo mais demorado do que tínhamos imaginado. Espero que a
gente consiga assinar antes do fim do mês. E você?

Ana: Eu te contei. A Laura veio aqui, né, pai? A Laura veio nos ver
agora há pouco.

André: Quem?
28
Anne: A Laura. A moça que veio nos ver agora há pouco.

André: Ah, é verdade.

Ana: E depois, eu fiquei em casa.

Pedro: Você não trabalhou?

Ana: Quase nada. Eu fiquei com o meu pai.

André: Alguém viu o meu relógio? Eu não achou o estou achando.

Ana: De novo?

André: Eu o estou procurando faz tempo.

Ana: Você deve ter colocado no seu armário. Não? No seu


esconderijo...

(André se assusta, com medo que Pedro tenha escutado a palavra


“armário” e descubra o seu esconderijo)

André: (Falando para Pedro na realidade) O que você está


dizendo, Ana? Eu não entendi do que você está falando. De que
armário? Hein? Não existe nenhum armário. Nenhum armário. Não.
Eu não estou entendendo o que você está falando. (Para Ana,
quase que sussurrando) Você não poderia ser mais discreta?

Ana: (Falando mais baixo) Você olhou no seu armário?

André: Acabei de olhar. Ele não está lá. Eu devo tê-lo perdido em
algum lugar. Ou então alguém me roubou.

Ana: Não.

André: (Nervoso, mas sussurrando) Como “não”? Ele deve estar


em algum lugar esse relógio! Ele não saiu voando! Por que você diz
“não”? Por que você diz isso, sendo que talvez alguém tenha
roubado ele? Meu relógio.

Ana: Você quer que eu olhe?

André: Eu gostaria. Você não se incomoda? Porque isso me


preocupa. Me preocupa. Eu perco tudo o que é meu, e depois todo

29
mundo fica usando. Daqui a pouco, se isso continua, eu vou ficar
nu. Completamente nu. E eu não sei que horas são.

Ana: Eu já volto.

(Ela sai. Pausa. Pedro continua lendo seu jornal. André o olha de
longe. Ele pigarreia para chamar sua atenção, como se faz com
quem não se conhece)

André: Hum, hum... (Nenhum reação de Pedro). Hum, hum.


(Nenhuma reação. André pigarreia mais alto. Pedro para de ler o
jornal) Estou te atrapalhando?

Pedro: O que?

André: Eu não o estou atrapalhando?

Pedro: Hein? Não.

(Pausa. Pedro volta a ler o jornal)

André: Você saberia me dizer que horas são?

Pedro: Sim.

André: Ah! Obrigada! (Pequena pausa. Pedro continua lendo seu


jornal) E que horas são? Falando nisso.

(Pedro olha o seu relógio)

Pedro: Quase 8 horas da noite.

André: Já? O jantar deve estar quase pronto, então...

Pedro: Sim. Assim que o frango estiver pronto. Em dez minutos.

André: Teremos frango esta noite?

Pedro: Sim, aquele que Ana comprou agora há pouco.

André: É bonito o seu relógio. Ele é... ele é bonito. Ele é... Ele é
seu? Quero dizer: ele é seu?

Pedro: Hein? Sim.

André: Posso vê-lo?

30
(Pausa. Pedro para de ler)

Pedro: Então? Parece que deu tudo certo?

André: Sim, muito bem. Mas o que?

Pedro: A visita da... enfermeira.

André: Ah? Sim. Muito bem. Muito bem. Ela é muito...

Pedro: É verdade que ela parece com a Elisa?

André: Ah, é?

Pedro: Eu não sei. Eu não a conheço.

André: (Ainda concentrado no relógio de Pedro) Não, deu... deu


tudo certo. Ana parecia contente. É por causa dela, você sabe. Eu
não tenho realmente necessidade de... Bom, faço isso pela Ana. Eu
poderia olhar? O seu relógio...

Pedro: Você tem razão. É importante para ela que tudo dê certo
dessa vez. Ela está preocupada com você, você sabe disso, não?
Ela fica muito triste quando você briga com... Bom, vamos torcer
para que tudo corra bem desta vez. Hein? Que você goste desta
moça. Que você a receba de uma maneira um pouco mais...amável.
O que você quer com o meu relógio?

André: Nada. Eu o estava olhando... Eu queria ver se... ele é


bonito. Ele é bem bonito. Você o comprou?

Pedro: O que?

André: Não, eu quis dizer... Foi um presente ou você o comprou?

Pedro: Eu o comprei. Por que?

André: E você tem a nota fiscal, eu imagino...

Pedro:O que você está dizendo?

André: Do seu relógio.

(Pausa)

Pedro: E estou te falando da Ana.


31
André: Você a conhece? Quero dizer: você... Sim, é verdade, você
é seu... é isso? Você é seu... (Pequena pausa) Eu sou o pai dela.
Prazer. Imagino que nos veremos mais vezes... Lógico, se o
relacionamento de vocês durar. Eu não sei porque, nunca deu certo
entre nós.

(Pedro se afasta)

Pedro: Por que você diz isso?

André: Eu explico. Nós nunca nos entendemos. Ao contrário de


Elisa. Minha outra filha. Ela, ela era maravilhosa. Mas, faz alguns
meses que eu não a vejo. Ela está viajando, eu acho. Ela está
dando a volta ao mundo. Ela tem muito sucesso, eu não posso
querer mal a ela por isso. Pintora. Ela é pintora. Então não tem jeito.
Mas, eu ficaria tão feliz se ela viesse me ver um dia. Eu a abraçaria
e ficaríamos juntos durante horas e horas como fazíamos há muito
tempo atrás quando ela era pequena, e ela me chamaria ainda de
“meu papaizinho”, “meu papaizinho”. Era desse jeito que ela me
chamava. É bonito, não, “meu papaizinho”?

(Pausa. Pedro se dirige lentamente até André)

Pedro: Posso te perguntar uma coisa?

André: Sim.

(Pedro fica ainda mais perto de André. Sua aproximação é quase


ameaçadora)

Pedro: Mas, eu gostaria que você me respondesse de verdade.


Sem malandragem... Você faria isto por mim?

André: (Desestabilizado) Sim...

Pedro: Que bom... (Pequena pausa) Você vai continuar enchendo o


saco de todo mundo ainda por muito tempo?

(Pausa)

Black-out

32
6

(Ana e André, no mesmo dia, mais cedo)

Ana: Precisamos conversar, pai.

André: Estamos começando bem.

Ana: Por que você diz isso?

André: Minha querida, quando alguém diz: “Precisamos conversar”,


é porque tem alguma coisa desagradável para dizer. Você não
acha?

Ana: Não. Nem sempre.

(Pequena pausa)

André: Então? O que você queria me dizer?

Ana: (Percebendo que não é o bom momento) Não, nada. (Pausa)


Eu falei com o Pedro.

André: Pedro?

Ana: O Pedro, pai. Eu falei com ele.

André: Teu marido?

Ana: Pai... O Pedro não é o meu marido. Eu me separei.

André: Eu precisaria ser avisado.

Ana: Eu me separei do Antônio há cinco anos atrás. Eu vivo com o


Pedro agora. É o homem com o qual eu vivo.

André: Não me agrada, este cara. Ele é antipático. (Pequena


pausa) Não? Eu acho.

Ana: Não é um “cara”, pai. É o homem que eu amo. (Pausa) Bom.


Eu falei com ele e... Você sabe que no início quando você veio aqui
para a minha casa, era... Enfim, era uma solução provisória. Você

33
sabe disso, né? Era... enquanto. Porque você tinha brigado com a
Isabel. Mas... Como dizer? Eu me pergunto se não seria melhor...
Você gosta do seu quarto, não? (Pequena pausa) O quarto do
fundo, você gosta?

André: Sim.

Ana: Sim, você parece que gosta. É o que eu tinha entendido. E eu


me pergunto se não seria melhor para todos... Mais agradável para
você se decidíssemos juntos que você iria se instalar aqui. Quero
dizer: definitivamente. Com a gente. Mas, com a condição que
tenha alguém que nos ajude. (Pequena pausa) Dessa maneira, nos
veremos todos os dias. Vai ser mais fácil. O que você acha?
(Pausa) Eu falei a respeito com o Pedro. Ele aceitou.

André: Mas... eu pensei que... eu pensei que você iria se mudar


para Londres.

Ana: Não, pai. Por que você sempre fala de Londres? Eu moro em
Paris.

André: Eu não consigo entender a sua vida. Você está sempre


mudando de opinião. Como você quer que as pessoas te
entendam?

Ana: Mas, eu nunca disse que iria me mudar para Londres, pai.

André: Sim. Você me disse.

Ana: Não...

André: Sinto muito, Ana. Você me falou a respeito um dia desses.


Você esqueceu? (Pausa) Você esqueceu. Olha, Ana. Eu tenho a
impressão que às vezes você tem problema de memória. Estou te
dizendo. Eu fico preocupado. Você nunca percebeu?

Ana: Bom, de qualquer maneira, eu não vou para Londres.

André: Melhor assim. Chove o ano inteiro, em Londres.

Ana: Eu vou ficar aqui. E o Pedro também.

André: E eu?

34
Ana: Você também, pai. Vou vai ficar aqui.

André: E a sua irmã? Onde ela está?

Ana: Pai...

André: O que? (Pequena pausa) Se você soubesse como eu tenho


saudade dela...

(Pausa)

Black-out

(Um pouco mais tarde na mesma noite. Ana e Pedro estão


sentados à mesa. André aparece na porta da cozinha. Ana e Pedro
não percebem a presença dele)

Pedro: Ele está doente, Ana. Ele está doente.

(Ana e Pedro percebem ao mesmo tempo que André está por perto.
Ana se assusta. Constrangimento)

Ana: Pai. O que você está fazendo de pé? Vem sentar. Vem. (Ele
não responde) Pai... (Pausa) Pai, vem. (Pausa) Vem se sentar.

(Pausa)

Black-out

(Quase que em seguida, Ana, Pedro e André. Alguns instantes mais


cedo durante a mesma noite. Eles jantam)

Pedro: E então, foi bom?

Ana: Sim. Foi bom. Você não acha, pai?


35
André: O que?

Ana: Foi bom o seu encontro com a Laura...

André: Sim.

Ana: Você fez ela rir bastante.

André: Ah, é?

Ana: Sim. Ela te achou gentil. Foi o que ela me disse. Ela me disse
que te achou gentil. Que você tinha personalidade, mas que era
gentil. Foram as palavras que ela usou. Ela deve vir amanhã de
manhã. Para começar a trabalhar aqui em casa. (Pequena pausa)
Você quer mais um pouco?

André: Sim. O frango está ótimo. Não? Onde você comprou?

Ana: No mercado aqui perto.

André: Ah?

Ana: Por que?

André: Por nada. Ele está ótimo.

Ana: Pedro?

Pedro: Não, obrigada. (Ele se serve um copo de vinho) Ela vai


trabalhar o dia inteiro? Quer dizer...

Ana: Sim, até às 18 horas.

Pedro: E depois?

Ana: Como assim?

Pedro: Depois das 18 horas?

Ana: Eu estarei aqui.

(Pausa)

Pedro: (Para André, como que o censurando) Você está contente?

André: Com o que?

36
Pedro: Você tem uma filha que cuida direitinho de você. Não? Você
tem sorte.

André: Você também, você também tem sorte.

Pedro: Você acha?

(Pausa. Ana se levanta e leva o frango para a cozinha)

André: O que ela tem?

Pedro: Ana? Ela está cansada. Ela estava precisando tomar um


pouco de sol.

André: Você precisa cuidar dela, meu velho. Por que vocês não
viajam?

Pedro: Por que? Você quer que eu te diga porquê? (Pequena


pausa) De vez em quando eu me pergunto se você faz de propósito
ou não.

André: O que?

Pedro: Nada. (Ele se serve de um pouco mais de vinho) Nós


tínhamos planejado irmos para a praia há dez dias atrás.

André: Ah?

(Ana volta)

Pedro: Sim. Mas, nós tivemos que desmarcar no último minuto.


Você sabe porquê?

André: Não.

Pedro: Porque você brigou com a Isabel.

André: Isabel?

Pedro: A mulher que cuidava de você. Antes da Laura. Você


esqueceu? (Pequena pausa) Nós não podíamos viajar e te deixar
sozinho. Nós tivemos que anular as nossas férias e trazer você para
casa. E agora você deve ficar. Definitivamente. Se eu entendi
direito... (Pausa. Pedro fala para Ana) Ele esqueceu. É
extraordinário.
37
Ana: Para.

Pedro: Por que?

Ana: Eu acho um pouco...

Pedro: Um pouco, o que?

Ana: Sarcástico.

Pedro: Ao contrário, Ana. Eu me acho muito paciente. Muito


paciente. Acredite em mim.

Ana: O que você quer dizer?

Pedro: Nada.

Ana: Sim, me diz. (Pausa) Por que você diz que é muito paciente?

Pedro: Porque outro no meu lugar...

Ana: Sim?

Pedro: Outro teria te forçado...

Ana: A que?

Pedro: Ao que é evidente, Ana. Ao que é evidente.

Ana: Quer dizer?

Pedro: Você sabe muito bem.

(Pausa)

André: Onde está o frango? Você tirou o frango da mesa?

Ana: Sim. Você queria mais?

André: Sim. Ele está na cozinha?

Ana: Eu vou pegar para você.

André: Não. Deixa, eu vou.

(Ele se levanta e vai até a cozinha. Pedro se serve outro copo de


vinho)

38
Ana: Por que você fala desta maneira na frente dele?

Pedro: O que foi que eu disse? (Pausa) De qualquer maneira, ele


esquece tudo.

Ana: Isso não justifica.

(Pausa)

Pedro: Escuta... Eu entendo muito bem o que você está sentindo.

Ana: Não, você não entende.

Pedro: Entendo... O que eu não entendo, é... Enfim, você faz tanta
coisa para ele. Eu te admiro por isso. Você decidiu convidá-lo a
morar conosco. Por que não? Mas... Como eu posso te dizer? Eu
acho sinceramente que você deveria pensar em outra solução... Ele
delira, Ana.

Ana: Não fale desta maneira.

Pedro: Você quer que eu fale como? Eu estou dizendo a verdade.


Precisamos achar outra maneira.

Ana: Qual?

(André aparece na porta da cozinha. Ele escuta a conversa. Mas,


ninguém percebe)

Pedro: Colocá-lo em um lugar apropriado.

Ana: Em um hospital?

Pedro: Sim, numa Casa especializada. (Pausa) Seria melhor para


ele.

Ana: Por que você está me dizendo isso hoje? Eu quero dizer: já
que amanhã... tem essa...

Pedro: Tá. Você tem razão. Vamos esperar. Talvez com esta nova
enfermeira corra tudo bem. Você parece que confiou nela. Mas,
acredite em mim, tem um momento onde... qualquer que seja a
enfermeira... Ele está doente, Ana. Ele está doente.

39
(Ana e Pedro percebem ao mesmo tempo que André está por perto.
Ana se assusta. Constrangimento. Repetição)

Ana: Pai. O que você está fazendo de pé? Vem sentar. Vem. (Ele
não responde) Pai... (Pausa) Pai, vem. (Pausa) Vem se sentar.

(Ele sai sem dizer nada, como se ele fosse se deitar. Pausa)

Black-out

(Na sala, um pouco mais tarde. Pedro está sozinho. Ana aparece na
porta)

Pedro: Ele dormiu?

Ana: Sim.

Pedro: Que dia...

Ana: É.

(Pausa)

Pedro: Tudo bem?

Ana: (Um pouco distraída) Ele me pediu para cantar uma canção
de ninar. Você acredita nisso? Ele me pediu... uma canção. Ele
fechou os olhos assim que eu comecei, e dormiu. Com a boca
aberta. Ele estava calmo. Tão calmo.

(Pequena pausa)

Pedro: Ele escutou? Quero dizer...

Ana: Sim, você viu. Ele estava ali. Sim. Com certeza, ele ouviu.

Pedro: E ele te disse alguma coisa?

40
Ana: Não. Ele parecia tão triste. Ele parecia uma criança. Eu te
disse, ele pediu para cantar uma canção de ninar. Tive que me
segurar para não chorar.

Pedro: Entendo.

Ana: Eu fiquei me lembrando de como ele era... eu tinha medo dele


quando era pequena. Se você soubesse. Ele tinha uma autoridade.
E agora, ele está aqui, eu canto uma canção de ninar e ele dorme.
Eu quase não acredito. É triste. Muito triste. (Pequena pausa. Ela vê
o copo de vinho de Pedro) Tem um pouco ainda?

Pedro: Sim. Você quer um copo?

Ana: Por favor. (Ele se levanta e serve um copo para ela) Ele
estava tão estranho hoje à noite.

Pedro: Você sabe o que eu acho.

Ana: Isso me preocupa.

Pedro: Você não quer que a gente fale de outra coisa?

Ana: Sim. Desculpa. (Pausa longa. Constrangimento) Ele é bom,


este vinho.

Pedro: Sim.

(Pausa. Eles sorriem um para o outro. Silêncio. Eles não têm nada
para se dizer?)

Ana: Eu pensei sobre o que você disse agora há pouco. Em relação


a... Quando você disse que seria melhor colocá-lo em uma Casa
especializada...

Pedro: Ah?

Ana: Sim. Eu pensei que talvez você tenha razão. Você talvez
tenha razão, no fundo.

41
10

(Sempre a mesma sala que está cada vez mais vazia. André
aparece pela porta da cozinha. É de manhã. Ele tem uma xícara de
café nas mãos)

André: Se eu dormi bem? Se eu dormi bem? Sei lá. Acho que sim.
Ah! Eu esqueci o açúcar. O açúcar!

Uma voz de mulher: (Da cozinha) Eu levo para você.

André: Sim. Para colocar no... Eu sempre coloco açúcar no meu


café. É simples, existem dois tipos de homem. Aqueles que
colocam açúcar no café e os outros. O importante é saber a qual
categoria pertencemos. Eu pertenço à categoria dos que colocam.
No... Me desculpe, mas é assim. Bom. Você traz o açúcar?

Voz de mulher: (Da cozinha) Sim, sim. Já estou indo...

André: Claro que não, eu não dormi bem. Eu tive um pesadelo.


Com esse homem que tinha se introduzido na minha casa. Eu dava
de cara com ele e ele me dizia que eu estava na casa dele. Ele
dizia que era seu marido ou alguma coisa parecida. Ele me
ameaçava. (De repente, ele vê um móvel novo, um móvel que ele
não reconhece) O que é isso? Quem colocou este móvel aqui?
Ana? Mas... Ana? Você poderia pedir minha opinião antes de...
Ana?

(Laura entra)

Laura: Pronto. Trouxe o açúcar.

(André se surpreende com a voz)

André: Hein?

Laura: Coloco quantas colheres?

42
André: Onde a Ana está?

Laura: Ela saiu.

André: Já? Verdade?

Laura: Sim.

André: Mas que horas são?

Laura: Ela volta logo, no final da tarde. Vou buscar seus remédios.

André: Não, espera.

Laura: O que? (Pequena pausa, ele hesita em dizer a ela que ele
suspeita de alguma coisa) Já venho, só vou buscar seus remédios.
(Ela sai, ele parece perturbado com a presença dela).

André: Perdi meu relógio outra vez, merda, decididamente, eu...


eu... tinha de me vestir antes dela chegar. Não estou bem assim de
pijama. (Laura volta com um copo d'água) Que horas são?

Laura: Hora dos remédios. Pronto, é melhor tomar agora, assim


acaba logo, né? Hoje tem três junto com o azulzinho, aquele que o
senhor gosta, o remedinho azul, olha, é um azul lindo, o senhor não
acha?

André: Posso te perguntar uma coisa?

Laura: Sim.

André: Você é freira?

Laura: Não.

André: Então porque você fala comigo como se eu fosse


retardado?

Laura: Eu?

André: Sim.

Laura: Mas, eu não falo com o senhor como se o senhor.... ao


contrário, eu...
43
André: (Imitando ela) "O remedinho azul". “O remedinho azul"

Laura: Sinto muito, eu não pensei lhe...

André: E muito desagradável, você vai ver quando tiver a minha


idade, isto chega rápido. E muito desagradável.

Laura: Desculpa, eu... eu... não farei mais.

André: (Imitando ela) "O remedinho azul". (Ela lhe dá o copo


d'água). Você não percebeu nada?

Laura: O que?

André: O que você acha? Em relação ao apartamento.

Laura: Não. O que ele tem?

André: Ele mudou.

Laura: O senhor acha?

André: Sim. Esse móvel aqui, por exemplo. Quem colocou ele
aqui?

Laura: Não sei. Acho que foi a filha do senhor.

André: Lógico, minha filha... evidente... é mesmo extraordinário,


ninguém pede mais minha opinião, eu... você sabe o que eles estão
tramando? Em relação ao apartamento...

Laura: Não.

André: Eu sei. Tenho olhos para enxergar, ouvidos para escutar.


Eu sei tudo. (Pausa). A propósito, gostaria de me desculpar se eu
fui um pouco... a última vez que a gente se viu... sim, eu fui talvez...
muito... ou talvez nem tanto...não?

Laura: Não tem problema, sua filha me preveniu, ela me disse que
o senhor tem uma personalidade forte.

André: Ah?

Laura: (Com cuidado) Sim. E o senhor sabe o que foi que eu


respondi?

44
André: Não...

Laura: Eu disse "melhor".

André: Ah! Que amável. É impressionante como você parece a


Elisa, minha outra filha, não a Ana, a outra, a que eu amo.

Laura: A Ana me contou o que aconteceu. Sinto muito, eu não


sabia.

André: O que?

Laura: Do acidente dela.

André: Que acidente?

Laura: Hein?

André: Do que você está falando?

Laura: (Hesitante) De nada... (Pausa) o senhor toma seus remédios


e depois a gente vai se vestir.

André: Você viu?

Laura: O que?

André: Você viu? Lá o que você acabou de me dizer?

Laura: Eh, eu...

André: Você falou comigo como se eu fosse um retardado.

Laura: Não.

André: Sim!

Laura: Não, eu...

André: “E depois a gente vai se vestir"... "O remedinho azul..."


(Pausa) Ora, eu sou muito inteligente, muito, às vezes isto até me
surpreende. Você precisa prestar atenção, entende?

Laura: Sim, eu... prestarei atenção.

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André: Obrigado. (Pausa). É verdade, eu sou muito... às vezes, isto
me surpreende. Uma memória de elefante. (Pequena pausa, André
querendo explicar melhor seu pensamento) O animal.

Laura: Sim, sim. (Ele bebe seu copo d'água sem tomar os
remédios) O senhor esqueceu dos remédios. (Ele olha dentro da
sua mão)

André: Ah! É mesmo… Por que eu estou segurando eles?

Laura: Vou buscar outro copo d’água.

André: Não, não, não se incomode por isso. Eu me arranjo com o...

Laura: Hein?

André: Você vai ver. Com o café.

Laura: O senhor tem certeza?

André: Sim, claro.

Laura: Mas é mais fácil com...

André: Mas não, olhe. Aqui. (Fazendo movimentos como se ele


fosse fazer uma mágica) Você vai ver. Está olhando? Atenção! Eu
os coloco dentro da boca. Olha, pronto, hop! Eles estão dentro da
minha boca. Você viu? Você viu? Você viu?

Laura: Sim, sim. Eu... eu vi.

André: Ótimo e agora, o café. Atenção... Hop! (Ele engole os


remédios) e pronto, desapareceu.

Laura: Bravo!

André: (Modesto) Eu trabalhei um pouco num circo quando eu era


jovem.

Laura: É mesmo?

André: Sim. Eu tinha jeito, principalmente para mágica, você gosta


de mágica? Você quer que eu faça um pequeno número? Eu
precisaria de um jogo de baralho, você tem um?

46
Laura: Não.

André: Em qualquer lugar dentro das gavetas deve ter um....


Precisaria encontrar. Copas, espada, ouro e paus! (Ele esfrega as
mãos) Sempre gostei de jogar baralho, antes de me casar eu
sempre jogava com os meus amigos, às vezes até de madrugada.
Copas e paus! Eu vou fazer um número que você nunca viu. Paus!
Um número de mágica que eu inventei, você vai ver, ou melhor,
você não vai ver nada. Somente fogo, fogo, fogo!

Laura: Primeiro vamos nos vestir.

André: Agora?

Laura: Sim.

André: (Como uma criança) Ah! não, agora não...

Laura: Sim.

André: Ah! Não.

Laura: Sim.

André: O que adianta? Vai ser preciso colocar outra vez o pijama
esta noite. Então, ganhamos tempo.

Laura: Lógico, mas se o senhor ficar de pijama a gente não poderá


sair.

André: Aonde você quer ir?

Laura: No parque. Está um dia lindo.

(De repente entra um homem, ele também tem uma xícara de café
na mão.)

Homem: Está tudo bem?

Laura: Tudo bem. A gente ia se vestir.

André: Mas...

Laura: O senhor vem comigo?

(André não entende o que o homem faz na casa dele.)


47
Homem: Tudo vai bem André? (André fica petrificado, não
responde) ou não?

André: Sim, sim...

Homem: Eu queria justamente falar com você.

André: Comigo?

Homem: Sim.

Laura: Neste caso, eu... eu vou preparar suas coisas.

André: (Com medo) Não, espera...

Laura: Eu volto.

André: Não me deixe sozinho.

Laura: Hein? Mas eu estou aqui do lado, eu volto logo.

(Laura sai, sentimos André intimidado como se a presença do


desconhecido fosse angustiante para ele. Mesma marcação e
configuração da cena 5.)

Homem: Posso perguntar uma coisa?

André: Sim.

(Pedro fica ainda mais perto de André. Sua aproximação é quase


ameaçadora)

Pedro: Mas, eu gostaria que você me respondesse de verdade.


Sem malandragem... Você faria isto por mim?

André: (Desestabilizado) Sim...

Pedro: Que bom... (Pequena pausa) Você vai continuar enchendo o


saco de todo mundo ainda por muito tempo?

André: Eu?

Homem: Sim, você. Eu gostaria de conhecer suas intenções pelo


menos a este propósito. Fico curioso em saber se você está
pensando em nos encher o saco ainda por muito tempo. (Pequena
pausa) Quero dizer: você vai continuar destruindo a vida da sua
48
filha? A gente pode esperar que você se comporte de maneira
razoável dentro dos próximos dias?

André: Mas... Do que você está falando?

Homem: De você, André. De você. Da sua atitude. (Ele dá um


pequeno tapa no rosto de André).

André: Mas o que você fez? Eu não permito.

Homem: Não me permite?

André: Não.

Homem: E o que vai acontecer se eu fizer de novo?

André: Eu...

Homem: Sim?

André: Eu vou me defender. Fisicamente.

Homem: Você diz isso para me tentar? (Pequena pausa) Veja, eu


também, tem uma coisa que não permito, é que alguém encha o
saco de todo o mundo, mesmo numa certa idade. (O Homem lhe dá
um segundo tapinha no rosto de André, sorrindo)

André: Para! Você me escutou? Para imediatamente.

Homem: (O homem esboça um grande sorriso o tempo todo,


ameaçante, André com isso se sente diminuído) Sim, isto eu não
suporto, eu acho muito feio na sua idade. (Ele lhe dá um terceiro
tapinha)

André: Para! Eu falei para parar!

Homem: Muito bem, eu paro se o você vê dessa maneira, mas


espero que eu tenha sido claro, que a mensagem tenha sido
passada, se não, serei obrigado a...

André: A que? (Pequena pausa) a que?

Homem: O que o você acha? (Ele levanta a mão como se ele fosse
dar um outro tapa e André protege seu rosto e fica nesta posição

49
defensiva e humilhante. Depois Ana vem da cozinha: continuação
da cena 5. Mudança de situação. Ela traz o frango).

Ana: Bom, não encontrei seu relógio, pai. Vamos procurá-lo daqui a
pouco, por que o frango está pronto. Podemos comer. (Ela vê seu
pai) Pai, pai, o que aconteceu?

Black-out

11

(Quase que imediatamente. André e Pedro - No lugar do Homem,


Ana entra com o frango. Repetição)

Ana: Bom, não encontrei seu relógio, pai. Vamos procurá-lo daqui a
pouco, por que o frango está pronto. Podemos comer. (Ela vê seu
pai) Pai, pai, o que aconteceu? (Para Pedro ) O que é que ele tem?

Pedro: Não sei.

(Ela coloca o frango na mesa e vai até seu pai que continua na
mesma posição, como se ele achasse que iria receber mais tapas)

Ana: Pai... pai... o que aconteceu? Olhe para mim, tudo bem? O
que é que você tem?

André: Eu...

Ana: Que foi? (André começa a soluçar) é por causa do seu


relógio? Pai, é por isso? Mas a gente vai encontrar, eu te prometo,
está bem? Eu te prometo. Ainda não tive tempo de procurar melhor,
mas vamos encontrá-lo, tá bom? Chuuu. Vamos, não chore
(enquanto ela fala, ela o abraça e acaricia seus cabelos, ela olha
para Pedro com uma certa inquietude, depois Pedro senta à mesa e
se serve um pouco de vinho) Agora chega, hein? Chuuuu... vai
passar, vai passar. Vamos comer o frango, está bom? Você gosta,
você, o frango, não?

André: Mas que horas são?

50
Ana: 8 horas, hora de comer.

André: Da noite?

Ana: Sim, pai.

André: Mas eu pensei que fosse de manhã, eu acabei de me


levantar, olhe eu ainda estou de pijama.

Ana: Não, é de noite e eu te preparei um frango, vamos, vem, a


gente vai comer, vem paizinho, meu papaizinho. (Ele tem um ar
totalmente perdido. Pausa)

Black-out

12

(Na sala, mais tarde, André dorme. Pedro e Ana, repetição)

Ana: Tem um pouco ainda?

Pedro: Sim. Você quer um copo?

Ana: Por favor. (Ele se levanta e serve um copo para ela) Ele
estava tão estranho hoje à noite.

Pedro: Você sabe o que eu acho.

Ana: Isso me preocupa.

Pedro: Você não quer que a gente fale de outra coisa?

Ana: Sim. Desculpa. (Pausa longa. Constrangimento) Ele é bom,


este vinho.

Pedro: Sim.

(Pausa. Eles sorriem um para o outro. Silêncio. Eles não têm nada
para se dizer?)

51
Ana: Eu pensei sobre o que você disse agora há pouco. Em relação
a... Quando você disse que seria melhor colocá-lo em uma Casa
especializada...

Pedro: Ah?

Ana: Sim. Eu pensei que talvez você tenha razão. Você talvez
tenha razão, no fundo.

Pedro: Sim, eu acho.

Ana: Eu fiquei com muita pena dele esta noite.

Pedro: Sim.

Ana: Tive a impressão que ele estava com medo de você.

Pedro: Eu sei.

Ana: A mim também, você me dá medo.

(Pausa. Estranhamente, ele sorri)

Pedro: Vamos, pare de dizer besteiras. Pare de ter medo. Acredite


em mim, é uma boa decisão, depois poderemos ter uma vida mais
leve. Partir para qualquer lugar. Você não tem vontade de partir?

Ana: Onde?

Pedro: Sei lá, longe. Nós dois. Viver... (Pequena pausa). Acredite
em mim, é uma boa decisão, você não tem nenhuma razão de se
sentir culpada, isto não tem sentido.

Ana: Sentido? Que é que tem sentido?

Pedro: Ser feliz, estar junto, vivos.

(Ela o abraça)

Black-out

52
13

(Manhã do dia seguinte. O apartamento está agora quase vazio.


André está sozinho na sala, de repente, Ana chega)

Ana: Você já acordou?

André: Eu não dormi.

Ana: Esta noite?

André: Sim, nem um minuto.

Ana: Por que? O que aconteceu?

André: Você viu?

Ana: O que?

André: Como assim "o que"? Olhe em torno de você. Não tem mais
nenhum móvel.

Ana: E daí?

André: E daí? Nós fomos assaltados.

Ana: Não.

André: Mas você não vê que não tem mais nada?

Ana: Ele sempre foi assim pai, é a decoração do apartamento.

André: Você acha?

Ana: Sim, ele sempre foi assim.

André: Sinto muito, mas você está enganada.

Ana: Não. Tenho certeza, você não gosta? Você acha ele muito
vazio?

André: É horrível, você quer dizer. Quem fez isso? Quem fez esta
decoração?

Ana: Fui eu, pai.

53
André: É mesmo? Mas, não tem nada!

Ana: Eu sei, é assim que eu gosto. Preciso de um café, você quer?

André: Antes tinha móveis, eu me lembro, tinha em todo lugar.

Ana: Você está confundindo com o seu apartamento, pai, aqui


sempre foi assim. Bom, vou tomar um café e depois vamos nos
vestir.

(Ana sai)

André: Já?

Ana: (Fora de cena) Sim, você tem visita hoje, lembra? (Pausa) Pai,
você lembra?

André: Querida, perde esta mania de repetir mil vezes a mesma


coisa, é cansativo. Você repete, repete, repete, não para de repetir,
lógico que eu me lembro, como posso esquecer? Você não para de
falar nisso.

(Ana volta)

Ana: Desculpa, eu só queria estar certa que você se lembrava, ela


deve estar chegando.

André: Já?

Ana: Ela deve vir para o seu café da manhã, você quer um café
antes que...?

André: Eu sonhei com ela esta noite.

Ana: Com a Laura?

André: Sim, enfim, eu acho, vi o rosto dela. (Ana lhe sorri) Você
sabe que ela me faz realmente pensar na sua irmã...?

Ana: A Laura? Sim, foi isso que você disse outro dia.

André: Você não acha?

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Ana: Hein? Sim, talvez. (Pausa) Em todo caso, estou feliz que você
goste dela, ela parece amável, quero dizer, doce. E competente. Ela
cuidará bem de você.

André: Sim. Eu gosto bastante dela.

Ana: Bom, a gente vai se vestir antes que ela chegue, está bem?

André: Quem?

Ana: A Laura, a nova enfermeira, aquela que você gosta tanto.

André: Ah! Sim, sim, sim...

Ana: Será melhor recebê-la, com um blazer.

André: E uma calça comprida.

Ana: Ela gostou muito como vocês se conheceram, no outro dia,


você sabe. Ela te achou muito...

André: Muito?

Ana: Não sei mais a palavra que ela usou... Ah! Sim, ela disse que
você era charmoso.

André: Ah! Sim?

Ana: E você fez pra ela uma bela representação.

André: É mesmo?

Ana: Sim. Você fez ela acreditar que você sabia dançar, que você
sabia sapatear.

André: Eu?

Ana: (Rindo) Sim.

André: (Com sorriso de criança) E o que foi que ela disse?

Ana: Ela disse que gostaria muito que um dia você fizesse para ela,
uma demonstração.

André: É engraçado. Eu nem sabia que eu sabia sapatear, você


sabia?

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Ana: Não.

André: Tenho talentos escondidos.

Ana: Só vendo para acreditar.

André: Sapateado?

(Pausa curta. Ele “sonha”. A campainha toca)

Ana: Ah!

André: É ela?

Ana: Sem dúvida.

André: Mas... já? Eu ainda não estou pronto. Eu não estou vestido.

Ana: Tanto faz. Você se troca depois.

André: Não... Eu... É melhor eu colocar uma calça comprida. Ana,


Ana, não estou apresentável.

Ana: Não tem importância.

(Ana se dirige em direção à porta)

André: Mas sim, é grave.

Ana: Você colocará uma depois. Ela está esperando.

André: Ana.

Ana: O que?

André: Não me deixe assim, eu não estou apresentável, o que é


que ela vai pensar de mim? Eu preciso me vestir, onde estão as
minhas roupas?

Ana: Pai, porque você sempre complica tudo? A gente se vestirá


depois, você não tem nenhuma razão para se preocupar.

André: Mas eu vou ficar com vergonha...

Ana: Bobeira.

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André: Sim, veja, estou de pijama, eu preciso colocar minha calça
comprida.

(A campainha toca pela 2° vez. Ana abre a porta. E o personagem


Mulher aparece)

Ana: Bom dia.

Mulher: Bom dia, estou muito atrasada?

Ana: Não, não, de jeito nenhum, entra, entra.

(A Mulher entra)

Mulher: Obrigada.

André: Mas.... Quem é esta aí?

Ana: Nós te esperávamos. Entra. Obrigada por ter vindo nesse


horário.

Mulher: (Para André) Bom dia! Seu André.

André: Mas, Ana... não é ela.

Ana: Pai. (Para Mulher) Você quer tomar alguma coisa...um café?

Mulher: Não, obrigada.

Ana: Você já tomou café da manhã? Fique à vontade, eu...

André: Não é esta que eu quero. Onde ela está? A que eu gosto?
Onde ela está?

Ana: Pai... que história é essa? Diga bom dia à Laura.

André: Tem qualquer coisa que não se encaixa. Isto não se


encaixa.

(Pausa )

Mulher: O senhor lembra de mim? A gente se viu outro dia. (Pausa)


Conversamos... (Pausa, André parece apavorado e dá um passo
pra trás) e eu disse ao senhor que eu voltaria... pra ver um pouco
como o senhor vive e se eu posso ajudar...(Pausa ) O senhor

57
lembra? (Pausa) O senhor não lembra? (Pausa) Seu André, o
senhor lembra? (Pausa) O senhor se lembra?

Pausa

Black-out

14

(Quase que imediatamente. Sem nenhum móvel. A mulher ainda


está lá)

Ana: Pai, preciso falar com você. (Pausa, André está apavorado)
Eu falei com o Pedro.

André: Pedro?

Ana: Pedro, pai. Eu falei com ele.

André: Eu não confio nesse cara

Ana: Não é um "cara" pai, é o homem que eu amo. (Pausa)


Resumindo, falei com ele e... você sabe que, no começo... como
posso te dizer? Eu me pergunto se não seria melhor... O que você
acha deste quarto? (Pequena pausa) Ele é agradável, não?

Mulher: O quarto tem vista para o parque.

Ana: Sim, é muito agradável, parece um quarto de hotel. Você não


acha?

Mulher: É o que dizem os residentes.

Ana: Eu acho que você ficará melhor aqui.

André: Onde?

Ana: Aqui. Eu acho que seria mais seguro.... Mais agradável para
você se decidíssemos juntos que você se instalaria aqui. (Pequena
pausa) O que você me diz?

58
André: Mas, e você? O que você vai fazer? Onde você vai dormir?
Em qual quarto?

Ana: Você se lembra que vou morar em Londres?

André: Não.

Ana: Sim. Você se lembra? Eu te falei a respeito... Você se lembra?

André: Mas, você me disse... Você tem certeza?

Ana: Sim.

André: Você me disse que ficaria aqui comigo...

Ana: Não, eu tenho que ir. É importante. Eu te expliquei. Mas, eu


venho te ver. Em alguns fins de semana.

André: E eu?

Ana: Você fica aqui. Em Paris.

André: Sozinho? (Pausa) E sua irmã? Onde ela está?

Ana : Pai...

André: O que? (Pausa) Se você soubesse como eu sinto saudade


dela...

Ana: Eu também tenho saudade dela, pai. Todos nós sentimos


saudade dela.

(André a observa carinhosamente e faz um gesto, talvez uma


carícia. Como se ele compreendesse, por um momento, o que não
se diz. Pausa)

Black-out

15

59
(Uma cama branca que lembra uma cama de hospital. André não
sabe onde ele está. A Mulher entra. Ela está com um jaleco branco)

Mulher: O senhor dormiu bem?

André: O que eu estou fazendo aqui?

Mulher: Está na hora.

André: Eu não perguntei que horas eram, eu perguntei o que eu


estava fazendo aqui.

Mulher: Como assim?

(André sai da cama)

André: Quem colocou esta cama aqui? No meio da sala? Foi a


Ana? Mas, isto está passando dos limites. Desculpe de falar, mas
isto está passando dos limites.

Mulher: Acalme-se.

André: Eu estou calmo. Eu estou dizendo somente que não se


coloca uma cama no meio da sala. Não faz sentido. Cadê a Ana?

Mulher: Olha, eu trouxe os seus remédios.

André: Você pode me deixar em paz com esta história de remédio.


Você é enfermeira por um acaso?

Mulher: Sim.

André: Ah, sim. Eu achei mesmo. Você se parece. Você se parece


com uma enfermeira. O que você está fazendo aqui?

Mulher: O que?

André: O que você está fazendo aqui?

Mulher: Eu cuido do senhor.

André: Ah, é? Você cuida de mim?

Mulher: Sim.

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André: Uma novidade. E desde quando?

Mulher: Há algumas semanas.

André: Há algumas semanas? Estou feliz de saber. É


extraordinário! Não me dizem nada nesta casa. Eu fico sabendo só
mais tarde. Eu preciso ter uma conversa com a Ana. Não podemos
continuar desta maneira. Eu começo a ficar irritado... Mas, eu
pensei que tinha uma nova enfermeira.

Mulher: Uma nova?

André: Sim. Uma nova enfermeira. (Pausa) Aquela que parece com
a Elisa. Minha outra filha. (Pequena pausa) Eu a vi um dia desses.
Não foi?

Mulher: Bom, o senhor vai tomar os seus remédios?

André: Ela ia começar hoje de manhã. Laura. Não?

Mulher: Acho que o senhor está confundindo, André.

André: Aquela que parece com a Elisa.

Mulher: Bom.

André: Sim. Bom, ok. Vamos tomar este remédio. Está na hora,
não? (Pausa) Que horas são?

Mulher: É hora de tomar o remédio.

André: Eu perdi meu relógio. Você não sabe onde ele...? Eu perdi o
meu relógio... Ana? Ana?

Mulher: A sua filha não está aqui, André.

André: Ah! Onde ela está? Ela saiu?

Mulher: O senhor se lembra que a sua filha vive em Londres...

André: Não, ela pensou em se mudar para lá. Mas, acabou não
fazendo isso.

Mulher: Ela vive em Londres há alguns meses.

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André: Minha filha? Em Londres? Pensa bem, chove o ano inteiro
em Londres.

Mulher: Olha, ontem nós relemos juntos o cartão postal que ela te
enviou. O senhor não se lembra?

André: Mas, que história é essa?

Mulher: Olha. (Ela mostra um cartão postal. Ele o lê) Eu digo isso
todos os dias ao senhor. O senhor precisa se lembrar de agora em
diante. Ela vive em Londres porque ela conheceu um homem, que
se chama Pedro, e com o qual ela vive. Mas, ela vem de vez em
quando te ver.

André: Ana?

Mulher: Sim. Ela visita o senhor em alguns fins de semana. Ela


vem aqui. Vocês passeiam no parque. Ela te conta as novidades. O
que ela tem feito. Um dia desses, ela trouxe uma caixa de chá para
você. Porque você adora chá.

André: Eu? Eu odeio. Eu só bebo café.

Mulher: Mas, é um chá excelente.

(Homem entra. Ele veste também um jaleco)

Homem: Está tudo bem?

Mulher: Muito bem. Íamos nos vestir.

Homem: Está tudo bem?

(André não responde. O Homem traz um documento à Mulher, que


o assina)

Mulher: Pronto.

Homem: Obrigado. Um bom dia para vocês.

Mulher: Até mais.

André: E ele... quem é?

(Ele sai)

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Mulher: Quem?

André: O homem que acabou de sair daqui.

Mulher: É o Marcos.

André: Marcos?

Mulher: Sim.

André: Você tem certeza?

Mulher: Sim. Por que?

André: Por nada. Mas, como eu posso dizer... O que ele está
fazendo? Quero dizer... Na minha casa. Eu o conheço?

Mulher: Sim. É o Marcos. Você o vê todos os dias.

André: Ah, é. Mas, você...

Mulher: O que?

André: Desculpe de te perguntar. Mas, não estou entendendo.


Então, você... você... quem é você?

Mulher: Eu sou a Marta.

André: Marta. É isso. Sim, sim, sim. E ele é o Marcos?

Mulher: Sim.

André: Certo, certo. E... E eu?

Mulher: Você, o que?

André: Sim, eu... eu sou quem?

Mulher: Você? Você é o André.

André: André?

Mulher: Sim.

André: Você tem certeza?

Mulher: (Rindo) Sim.

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André: André? É um nome bonito, André... Não?

Mulher: É um nome muito bonito.

André: Foi a minha mãe que me deu. Eu acho. Você a conheceu?

Mulher: Quem?

André: Minha mãe.

Mulher: Não.

André: Ela era tão... Ela tinha olhos grandes. Era... Eu vejo o seu
rosto. Espero que ela venha me ver de vez em quando. Não? Você
estava dizendo que alguns fins de semana, ela viria...

Mulher: Sua filha?

André: (Com uma tristeza enorme) Não, minha mãe... Eu... eu


quero a minha mãe. Eu quero a minha mãe. Eu quero... Eu quero ir
embora daqui. Alguém venha me buscar.

Mulher: Calma. Chuuuu...

André: Eu quero a minha mãe. Eu queria que ela me buscasse. Eu


quero voltar para casa.

(André começa a chorar desesperadamente. A Mulher está


surpresa: ela não percebeu que ele estava triste durante a cena)

Mulher: Mas... O que você tem? André... André... O que você tem?
Venha aqui. Venha para perto de mim. Me diga o que está
acontecendo com você...

André: Eu...

Mulher: Sim...

André: Eu tenho a impressão que... Eu tenho a impressão de estar


perdendo todas as minhas folhas, uma após a outra.

Mulher: Todas as suas folhas? Do que você está falando?

André: Os galhos, e o vento... Eu não entendo mais o que está


acontecendo. Você entende o que está acontecendo? Com todas

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estas histórias de apartamento. Não dá para saber onde colocar
cabeça. Eu sei onde está o meu relógio. Ele está no meu punho.
Isso eu sei. Mas, eu não sei a que horas eu devo...

Mulher: Vamos primeiro nos trocar, não?

André: Sim.

Mulher: Vamos nos trocar. E depois nós vamos passear no parque.


Tudo bem?

André: Sim.

Mulher: Isso. Com as arvores. As folhas. E em seguida, nós


viremos almoçar aqui. No refeitório. E depois você vai tirar um
cochilo. Tudo bem? E se você estiver em forma, nós iremos fazer
um outro passeio. No parque. Os dois. Porque o dia está lindo, você
não acha?

André: Sim.

Mulher: O céu está azul. Vamos aproveitar. Nem todos os dias são
lindos assim. Nunca dura muito tempo. Nunca se sabe quando
estará bonito assim. Hein? Então, vamos nos trocar? Você não
acha bom?

(Ele se agarra a ela)

André: Não.

Mulher: Vamos. Não aja como uma criança. Vamos. Vem comigo.
Tudo bem? Vamos. Devagar. Devagar. Chuuu. Chuuu. Tudo vai
ficar bem. Tudo vai ficar bem. Chuuu... Chuuu... Chuuu.

(Ele se acalma, abraçado a ela. Ela o berça. Pausa)

Black-out

Fim

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