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MUSEU DE CULTURAS CONSTRUTIVAS DO CERRADO

MUSEO DE CULTURAS CONSTRUCTIVAS DEL CERRADO

MUSEUM OF CONSTRUCTIVE CULTURES OF THE CERRADO

Sessão temática 3. Projeto e Tecnologia: Formação e Prática

João Paulo Oliveira Huguenin


Mestre em Urbanismo (UFRJ). Universidade Federal de Goiás. joao_huguenin@ufg.br

José Rodolfo Pacheco Thiesen


Mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP). Universidade Federal de Goiás. jose.pthiesen@gmail.com

Karine Camila Oliveira


Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (IPHAN). Universidade Federal de Goiás.
karineco@ufg.br

Resumo:
O Museu de Culturas Construtivas do Cerrado constitui-se de um projeto ambicionado por professores do
Curso de Arquitetura e Urbanismo (CAU) da Unidade Acadêmica Especial de Ciências Sociais Aplicadas
(UAECSA) da Universidade Federal de Goiás, Regional Goiás, enquanto espaço de conhecimento,
valorização, aprimoramento e difusão de técnicas construtivas tradicionais e de seus detentores. A cidade
de Goiás apresenta a questão patrimonial vinculada a arquitetura e urbanismo vernaculares, o que cria
demanda por qualificação de mão de obra, manutenção de conhecimento sobre as tecnologias construtivas
tradicionais do interior goiano e o desenvolvimento e aplicação de soluções tecnológicas acessíveis à
população local. O Museu consiste na estruturação de um espaço físico que permita a vivência do saber-
fazer através de oficinas práticas de execução das técnicas construtivas tradicionais, com estudantes e
comunidade em geral, além da exposição permanente dos protótipos ali executados e dos registros
documentais de todas atividades realizadas. A perspectiva é de criação de um museu no qual é preservado
não somente um conjunto de objetos, ou bens culturais, que expressam um trabalho realizado, mas sim o
trabalho vivo necessário à sua construção. Embora ainda não tenha sido possível contar com a estruturação
física do Museu, algumas experiências de pesquisa de mestres-artífices e de oficinas de técnicas
construtivas tradicionais já têm sido efetivadas e são relatadas neste artigo, seguidas de interpretação de
seus processos e resultados.
Palavras-chave: Culturas construtivas; Saber-fazer; Musealização.
Resumen:
El Museo de Culturas Constructivas del Cerrado se constituye de un proyecto ambicionado por profesores
del Curso de Arquitectura y Urbanismo (CAU) de la Unidad Académica Especial de Ciencias Sociales
Aplicadas (UAECSA) de la Universidad Federal de Goiás, Regional Goiás, en cuanto espacio de
conocimiento, valorización, perfeccionamiento y difusión de técnicas constructivas tradicionales y de sus
poseedores. La ciudad de Goiás presenta la cuestión patrimonial vinculada a la arquitectura y urbanismo
vernáculos, lo que crea demanda por cualificación de mano de obra, mantenimiento de conocimiento sobre
las tecnologías constructivas tradicionales del interior goiano y el desarrollo y aplicación de soluciones
tecnológicas accesibles a la población local. El Museo consiste en la estructuración de un espacio físico que
permita la vivencia del saber hacer a través de talleres prácticos de ejecución de las técnicas constructivas
tradicionales, con estudiantes y comunidad en general, además de la exposición permanente de los
prototipos allí ejecutados y de los registros documentales de todas las actividades realizadas. La
perspectiva es la creación de un museo en el que se preservan no sólo un conjunto de objetos, o bienes
culturales, que expresan un trabajo realizado, sino el trabajo vivo necesario para su construcción. Aunque
todavía no ha sido posible contar con la estructuración física del Museo, algunas experiencias de
investigación de maestros-artífices y de talleres de técnicas constructivas tradicionales ya han sido hechas y
son relatadas en este artículo, seguidas de interpretación de sus procesos y resultados..
Palabras-clave: Culturas constructivas; Saber hacer; Musealización.

Abstract:
The Museum of Constructive Cultures of the Cerrado is a project designed by professors of the Architecture
and Urbanism Course (CAU) of the Special Academic Unit of Applied Social Sciences (UAECSA) of the
Federal University of Goiás, Regional Goiás, as a space of knowledge, enhancement and diffusion of
traditional building techniques and their owners. The city of Goiás presents the patrimonial question linked to
vernacular architecture and urbanism, which creates demand for qualification of labor, maintenance of
knowledge about the traditional constructive technologies of the interior of Goiás, and the development and
application of technological solutions accessible to the local population. The Museum consists of the
structuring of a physical space that allows the experience of know-how through practical workshops of the
traditional constructive techniques, with students and community in general, besides the permanent
exhibition of the prototypes executed there and of the documentary records of all activities carried out. The
perspective is of creating a museum in which not only a set of objects, or cultural goods, which expresses a
work accomplished, but the living work necessary to its construction is preserved. Although it has not yet
been possible to rely on the physical structure of the Museum, some research experiences of masters-
craftsmen and traditional construction techniques workshops have already been carried out and are reported
in this article, followed by an interpretation of their processes and results..
Keywords: Cultures constructive; Know how to do; Musealization.
MUSEU DE CULTURAS CONSTRUTIVAS DO CERRADO

A TENTATIVA DE MUSEALIZAÇÃO DAS CULTURAS CONSTRUTIVAS

As culturas construtivas como bens imateriais

Historicamente observamos que o debate sobre os bens patrimoniais enfrentou por muito tempo
uma tensão acerca da natureza desses bens, ou seja, se é um bem expresso na materialidade ou
na imaterialidade. Poderíamos citar como exemplo a diferença das abordagens da preservação
no ocidente e no oriente. Enquanto no mundo ocidental tivemos um predomínio da valorização de
bens móveis e imóveis, conjuntos arquitetônicos e sítios urbanos ou naturais, no oriente,
sobretudo no Japão, encontramos desde a década de 1950 o pensamento de que mais que o bem
devemos preservar suas formas de fazer, ou seja, sua imaterialidade. (IPHAN, 2006)

Colocado de outra maneira, poderíamos pensar nessa tensão como a valorização do produto ou
do processo. Se pensarmos que um produto é resultado de vários processos e que os processos
são utilizados para gerar produtos, a dicotomia entre produto e processo não faz sentido. Assim,
processos e produtos devem ser encarados de forma dialética, abrindo caminho para uma
reflexão extremamente profunda a respeito dos sentidos da preservação e da memória.

No campo da arquitetura temos visto crescer cada vez mais o interesse por este tipo de
ressignificação. Trata-se, portanto, de uma abordagem que só recentemente tem ganhado
relevância no meio acadêmico ocidental, dentro e fora do Brasil, e que compõe um campo de
pesquisa tão novo quanto atual. No Brasil temos visto o interesse acadêmico pela busca de nexos
entre história e tecnologia da construção civil (com ênfase sobre os aspectos produtivos
relacionados ao trabalho) se expressar, por exemplo, em seminários e publicações como o livro
Memória, trabalho e arquitetura organizado pelos professores da USP João Marcos de Almeida
Lopes e José Tavares Correia de Lira. Nele se afirma a constatação da existência de um relativo
“silêncio de que se reveste a contribuição de escravos, artífices e operários na história da
arquitetura, da arte e do patrimônio cultural entre nós” (LOPES; LIRA, 2013, p. 9). Entre Brasil e
Portugal temos acompanhado a realização dos Congressos de História da Construção Luso-
Brasileira cuja primeira edição ocorreu em 2011 e, após a realização de uma série de
conferências chegou a 2015 com o sugestivo lema: “consolidação de uma disciplina”. No campo
internacional mais remoto, chama a atenção a criação da The Construction History Society
sediada no Reino Unido e que neste ano realizou sua quarta conferência anual.

Mais especificamente no campo da construção com terra também é possível observar um


movimento de escala mundial voltada para a pesquisa e preservação de técnicas construtivas
tradicionais. Alguns exemplos disso são as iniciativas como o CRAterre na França e o
PROTERRA na América Latina.

Este campo novo de preocupações e pesquisas expandem o interesse histórico, no campo da


arquitetura, dos produtos para os processos, sendo valorizados como processos os processos
construtivos. Assim, a valorização da “cultura arquitetônica” passa a incluir e valorizar todo um
conjunto “culturas construtivas” que a animam.
Compreende-se por “cultura construtiva”:

[...] o resultado de um lento processo de experimentação para configurar um


habitat, em um meio ambiente particular (contexto, sítio, clima, recursos), em um
tempo, e em um espaço do território. Este processo de experimentação adaptativa
e evolutiva, em trajetória sempre recomposta, resulta na aquisição de uma
experiência que liga o saber e o saber-fazer a capacidades de produção de
respostas construtivas (materiais, elementos e sistemas), e arquitetônicas
(estruturas, espaços, formas) sob a forma de modelos e de tipos elaborados que
respondem às necessidades das sociedades (economia, funções, usos, modos de
vida, bem estar) e às suas expectativas (aspirações, elevação, espiritualidades).
Estes modelos transmitidos de geração em geração de construtores, nas
sociedades tradicionais, são também garantidores de identidade e de coesão das
sociedades que as produzem em torno de um conjunto de valores culturais
materiais e imateriais compartilhados. (GUILLAUD, apud. FERREIRA, 2012, p. 79)

Ferreira (2012) aponta um conjunto de oito elementos fundamentais para o desenvolvimento de


uma cultura construtiva: 1) Localização; 2) Recursos disponíveis; 3) Sistemas construtivos; 4)
Sistemas de mediação e organização; 5) Sistemas de representação; 6) Sistemas de
memorização; 7) Sistemas de transmissão e difusão; e 8) Período histórico.

As culturas construtivas e suas técnicas constituem um importante arcabouço da formação social


e cultural das sociedades que as desenvolvem, são registros de vivências, das formas de
ocupação do espaço e das relações que ali se impõem. Esses importantes processos,
particularmente aqueles que se desenvolvem no âmbito das culturas tradicionais, encontram-se
ameaçadas pelos acelerados processos de homogeneização cultural e globalização. Assim, as
formas de construir devem ser vistas como um elemento identitário de um povo e sua perda
representa um risco à constituição desta identidade.

No âmbito dessa diversidade do patrimônio cultural, as técnicas construtivas


tradicionais constituem-se nas formas pelas quais vários exemplares de nosso
patrimônio edificado foram erguidos e se mantêm íntegros até hoje. Mas, de fato, a
representatividade desse acervo não se completa sem o conhecimento acumulado
pelos mestres e artífices responsáveis pela perpetuação da prática e aplicação
dessas técnicas no acervo arquitetônico brasileiro. (ALMEIDA, 2012, p.15)

A manutenção desse elemento identitário só é possível através da transmissão do saber-fazer por


quem o detém, os mestres artífices. Como sujeitos responsáveis pela reprodução desse
conhecimento são imprescindíveis para manter viva a memória de um povo. Porém, muitas vezes
os mestres artífices não encontram meios e até mesmo público alvo para difundir seu
conhecimento; as estruturas físicas remanescentes têm se deteriorado, muitas delas sem terem
sido identificadas e, finalmente, técnicas construtivas tradicionais, especialmente as de terra, são
marginalizadas, associadas frequentemente à precariedade.

Compreendendo a importância da existência do saber-fazer sobre das diversas culturas


construtivas que ajudam a nos definir culturalmente, faz-se necessário pensar, conceber, e
realizar atividades e políticas que busquem preservar essas práticas, aqui compreendidas como
um patrimônio imaterial.
Um pouco sobre a preservação do patrimônio imaterial

O ano de 1972 marca a política de preservação patrimonial com a "Convenção do Patrimônio


Mundial" realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura -
UNESCO. Esse importante documento propõe medidas para a preservação do patrimônio
material, não tratando dos patrimônios de natureza intangível. Essa falta suscitou o debate sobre
a necessidade de pensar e orientar políticas de salvaguarda para o patrimônio imaterial. Nesse
sentido, em 1989,a UNESCO lança a "Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional
e Popular". Após importantes avanços na conceituação de patrimônio cultural imaterial e a
existência de práticas locais em diversos países sobre a preservação de bens intangíveis, a
UNESCO aprovou em 2003 a "Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível".

No Brasil, o debate sobre o patrimônio imaterial foi sinalizado no anteprojeto de Mário de Andrade
para a proteção do patrimônio histórico nacional, de 1936, que considerava a categoria de obras
de arte popular, entre outras. A proposta foi preterida pelo projeto de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, que, desde
os primeiros tombamentos demonstrou uma certa prioridade pelo patrimônio de pedra e cal
constituído pelos edifícios e cidades remanescentes do período colonial. Entre os anos 1970 e
1980, Aloísio Magalhães traz o conceito de referência cultural, que trabalhava a ideia de cultura
popular, através da qual trouxe os produtores de cultura (detentores do patrimônio) para o
processo de reconhecimento e valorização da prática cultural, buscando estratégias para sua
salvaguarda. Contudo, somente em fins dos anos 1990, houve a associação entre a noção de
referência cultural e patrimônio imaterial, através do Decreto nº3551, que instituiu o Registro de
Bens de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI). O
registro, diferentemente do tombamento, assegura a preservação dos bens culturais que não se
constituem em substancia física, permitindo que haja uma dinâmica de ressignificação e
apropriação, que é particular dessa natureza de bens. Essas políticas se tornaram possíveis uma
vez que a perspectiva ampliada de patrimônio cultural foi inserida na Constituição Nacional,
promulgada em 1988, que em seu artigo 216 que inclui como patrimônio cultural brasileiro
manifestações de caráter intangível, como as "formas de expressão" e os "modos de criar, fazer e
viver".

Em 2000, o Decreto 3551 instituiu o "Programa Nacional do Patrimônio Imaterial" com a finalidade
de criar uma política pública para inventariar, referenciar e valorizar o patrimônio imaterial. Os
principais instrumentos previstos pelo decreto possuem caráter distinto, sendo no plano legal
apontado o "Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial" e, no plano técnico, o Inventário
Nacional de Referências Culturais". Já em 2016, o programa foi regulamentado pela Portaria nº
200 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Desde a criação do programa em 2000, as manifestações culturais intangíveis vem sendo


registradas em livros específicos de acordo com sua natureza, como o Livro de Registro dos
Saberes, de Celebrações, Formas de Expressão e Lugares. Muitas das manifestações também
estão entrando no "Inventário Nacional de Referências Culturais", que tem sido construído de
forma a romper a dicotomia material-imaterial, pois além de abarcar as categorias previstas no
Registro, buscar compreender certas espacialidades através de suas interações com
manifestações imateriais. (CASTRIOTA, 2012)
No bojo desse contexto, identificamos importantes ações realizadas no sentido de registrar e
manter viva a memória sobre técnicas construtivas tradicionais. Dentre as ações, destaca-se a
realização de importantes inventários realizados sobre os mestres artífices e suas técnicas nos
estados de Pernambuco, Santa Catarina e Minas Gerais.

A perspectiva de um mapeamento das principais técnicas utilizadas nas diferentes


regiões do país, do registro desse saber-fazer local, além da valorização dos
detentores desse conhecimento são intenções iniciais que norteiam a proposta da
implementação de um Inventário Nacional de Referência Cultural sobre técnicas
construtivas tradicionais a partir dos saberes e fazeres dos mestres e artífices.
(ALMEIDA, 2012, p.15)

O inventario realizado e publicado sem dúvidas representa um importante documento de


identificação e documentação dos ofícios e saberes tradicionais, o que nos leva ao desafio de
pensar em formas efetivas de transmitir e difundir esse conhecimento introduzindo o tema na
formação profissional e técnica na área de engenharia e arquitetura e urbanismo, bem como pela
formação e capacitação de mão de obra que permita sua aplicabilidade. É necessário lembrar que
para além da aplicação das culturas construtivas tradicionais em obras de restauro e recuperação
de bens materiais, essas culturas também apresentam potencial de utilização em obras correntes
da construção civil.

Cabe salientar que a "Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial" da


UNESCO coloca como uma das medidas necessárias para a salvaguarda do patrimônio imaterial
a sua transmissão. No mesmo sentido, a portaria nº 200 do IPHAN, prevê no "Plano de
Salvaguarda" para bens registrados ações de "Produção e Reprodução Cultural", que coloca a
necessidade de transmitir os saberes sobre os bens e apoiar às condições materiais desse bem, e
a "Difusão e Valorização" do bem cultural a partir de constituição e conservação de acervos e o
desenvolvimento de ações educativas.

Por que um museu de culturas construtivas do cerrado?

Pensar na preservação das culturas construtivas do cerrado nos leva a questionar quais seriam os
meios possíveis para sua efetivação. Preocupados com essa questão, nos propusemos a
imaginar possibilidades de ações no âmbito do Curso de Arquitetura e Urbanismo ofertado na
Regional Goiás, Cidade de Goiás, da Universidade Federal de Goiás. Primeiramente, apontamos
a necessidade do assunto ser abordado e trabalhado em diversas componentes obrigatórios da
matriz curricular, mais precisamente nas disciplinas Canteiro Experimental ( I, II e III) pertencentes
ao Eixo de Tecnologia, a disciplina de Preservação do Patrimônio Cultural do Eixo Crítica e, no
Eixo de Concepção, a disciplina de Projeto Arquitetônico VI, que trata de intervenções no
patrimônio edificado. De caráter optativo, está em construção a oferta do Núcleo Livre de Culturas
Tradicionais e Territorialidades.

Para além das atividades de ensino, o Curso de Arquitetura e Urbanismo concebeu e vem
desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão que visam catalogar e demonstrar a importância
do saber-fazer das culturas construtivas do cerrado. Nesse sentido, percebemos a necessidade
de um local específico para a realização dessas atividades, ou seja, um local onde pudéssemos
pesquisar, fomentar e transmitir os conhecimentos sobre as culturas construtivas existentes no
território goiano. A construção de um local para esse fim levou a um amplo debate entre os
professores envolvidos na proposta, onde visualizamos a possibilidade de sua efetivação através
da formação de um laboratório, ou de um centro de referência ou de um museu.

Partindo da compreensão de que as diversas formas de saber fazer e construir tradicionais como
patrimônios imateriais do povo goiano, listamos como objetivos a serem alcançados: preservar e
difundir as culturas construtivas do cerrado no estado de Goiás; identificar e salvaguardar técnicas
construtivas através de sua reprodução e documentação; aplicar e possibilitar o desenvolvimento
de técnicas construtivas tradicionais no contexto contemporâneo; democratizar o acesso à
pesquisa sobre as culturas construtivas tradicionais; realizar atividades pedagógicas voltadas à
educação patrimonial e à qualificação profissional; e, formar quadros técnicos e qualificar mão de
obra para trabalhar com técnicas construtivas tradicionais.

Para alcançar esses objetivos concordamos que a constituição do Museu de Culturas Construtivas
do Cerrado seria o mais adequado, uma vez que a Conferência Geral do Conselho Internacional
de Museus (ICOM), definiu em 2007 que:

o museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade


e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda,
expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio,
com fins de estudo, educação e deleite.

Atrelado a esse conceito geral de museu, nos interessa também o movimento ideológico da Nova
Museologia, que baseado nos princípios da cidadania e da participação, consolidou na década de
1980 a ideia de que os museus devem ser encarados como obras inacabadas que podem
interferir na comunidade em que estão inseridos a partir de uma qualificação do fazer cultural.
Podemos pensar assim que os museus sob essa perspectiva possuem um papel de colocar de
outras formas a relação do homem com seu patrimônio e sua memória. Sobre a Nova Museologia,

O seu interesse estava principalmente nos novos tipos de museu concebidos em


oposição ao modelo clássico e à posição central que ocupavam as coleções
nesses últimos: tratava-se dos ecomuseus, dos museus de sociedade, dos centros
de cultura científica e técnica e, de maneira geral, da maior parte das novas
proposições que visavam à utilização do patrimônio em benefício do
desenvolvimento local. (DESVALLÉES, MAIRESSE, 2013, p.63)

Com base nesse quadro, o Museu de Culturas Construtivas do Cerrado pretende ser um local de
memória do saber-fazer das diversas formas de construir que os goianos desenvolveram na
formação de seu território. Ambiciona também ser um local vivo, onde essas culturas podem ser
pesquisadas e transmitidas de acordo com as necessidades locais do estado de Goiás, em
particular da cidade de Goiás.

Vale destacar que a proposta do Museu de Culturas Construtivas do Cerrado se insere dentro da
política de museus da Universidade Federal de Goiás, que reúne dentro do Museu de Ciências da
UFG (MC-UFG) iniciativas de diversas unidades acadêmicas, a exemplo do Museu Antropológico.
Atualmente, o MC-UFG reúne 16 núcleos museológicos distribuídos entre as regionais Goiânia,
Jataí e Catalão, sendo a Regional Goiás a única que ainda não possui nenhum museu.

Uma proposta para o Museu de Culturas Construtivas do Cerrado


A decisão de constituição do Museu de Culturas Construtivas do Cerrado se apoia na
necessidade de se criar meios de salvaguarda e transmissão do patrimônio imaterial. Trata-se de
uma abordagem que busca articular os conceitos de patrimonialização e musealização, onde o
museu é compreendido como um espaço privilegiado para abordar de forma integrada de ações
de preservação da cultura intangível. (MENDONÇA, 2015)

O tratamento do patrimônio imaterial a partir de processos de musealização ao mesmo tempo que


representa uma mudança no paradigma dos museus traz novos desafios para se pensar suas
coleções, incitando o desenvolvimento de novas formas de pesquisar, adquirir e comunicar ao
público. Nesse sentido, o processo de pesquisa e sua documentação tomam uma importância
ainda maior.

Por vezes, a mera composição material dos objetos torna-se secundária, e a


documentação do processo de coleta - que sempre foi importante na arqueologia
e na etnografia - agora se torna a informação de maior importância, a qual
acompanhará não apenas a pesquisa, mas também os dispositivos de
comunicação com o público. (DESVALLÉES, MAIRESSE, 2013, pp. 34-35)

Tendo como referência o projeto Mestres Artífices desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no estados de Minas Gerais, Santa Catarina e Pernambuco
publicado no ano de 2012, o primeiro passo para estruturação do museu é a identificarmos de
sujeitos que ainda carregam consigo o saber-fazer relacionado as culturas construtivas do
cerrado.

A partir do inicio de funcionamento Museu de Culturas Construtivas do Cerrado, pretende-se que


a identificação de mestres artífices se torne uma prática permanente. Com a estrutura física do
Museu preparada, pretende-se oferecer aos mestres a oportunidade de realizar oficinas e cursos
sobre seus ofícios no interior do Museu, com turmas formadas por trabalhadores da construção
civil (ou trabalhadores que pretendam ingressar neste segmento) e alunos dos cursos de
graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFG e até mesmo de técnico integrado em Edificações
do IFG.

As oficinas e cursos serão os elementos articuladores de todas as esferas do Museu. Nelas não
somente as técnicas e sistemas construtivos serão reproduzidos como será desenvolvido um
trabalho de sistematização, documentação e difusão destas técnicas e sistemas, cujos resultados
(tanto aqueles baseados na documentação quanto os próprios elementos construtivos produzidos
diretamente nas oficinas) passarão a constituir a coleção museu.

Indicamos, portanto, a perspectiva de criação de um museu no qual o que é preservado não é


somente um conjunto de objetos, ou de “bens culturais”, que expressam um trabalho realizado no
passado, mas sim o trabalho vivo necessário à sua construção. Para além dos objetos e bens
culturais, pretende-se que seja preservado o saber-fazer. As oficinas possibilitarão essa
preservação em três diferentes dimensões: 1) pela valorização do trabalho dos mestres que já
estão na ativa; 2) pela sistematização e documentação de seu trabalho; e 3) pela socialização
deste saber-fazer com os oficiantes, numa perspectiva que se desdobra ainda em duas
possibilidades: a) a abertura de campos para a pesquisa acadêmica e científica; e b) a
capacitação e formação de novos detentores deste saber-fazer que possam a se tornar no futuro
novos mestres artífices.
Esta proposta acompanha a própria discussão contemporânea dos museus, que deixam de ser
entendidos como depósitos de obras de excelência, voltados a uma apreciação estritamente
contemplativa - ainda que crítica - e passam a ser entendidos como lugar de construção de
conhecimento, de contemplação-ação. Aproxima-se, assim, de uma visão mais radical sobre a
ação museográfica defendida por Claire Bishop, pois se trata de uma versão “mais experimental,
menos determinada pela sua arquitetura e que permite um engajamento mais politizado com
nosso momento histórico”. (BISHOP, 2013, p. 6) O caráter experimental já vem evidenciado na
proposta geral do Museu, de servir como canteiro de produção e reflexão sobre as culturas
construtivas.

Um vasto campo para o Museu de Culturas Construtivas no Cerrado

O núcleo histórico da cidade de Goiás, além de ser protegido pelo tombamento federal desde
1951, foi reconhecido patrimônio mundial pela UNESCO em 2001. A preservação de toda sua
estrutura material, resultante da evolução dos processos construtivos que criaram as condições de
ocupação a partir do século XVIII, é amparada pelos dispositivos legais do Decreto-lei nº 25/1937,
que regulamentou o ato do tombamento. Através deste, a coisa física, substância ou materialidade
arquitetônica ou urbana, que passa a ser entendida como patrimônio deve ser mantida em sua
integralidade e características originais, a fim de que se tenha o registro dos produtos das
sociedades ao longo do tempo.

A arquitetura e o urbanismo enquanto patrimônio cultural supera a dimensão de produto,


retomando a dialética já colocada aqui, sua preservação vai muito além da intenção de se manter
um cenário para compreender como o homem do século XVIII, XIX e XX vivia. O processo
construtivo tem um estreito vínculo com as diversas relações sociais estabelecidas em cada
sociedade e as possibilidades ou limitações de recursos e conhecimento. Assim preservar um
edifício ou uma cidade mantém o registro da forma, espacialidade, dos materiais, técnicas e
soluções construtivas que nos revelam o nível de conhecimento técnico, os recursos disponíveis
(inclusive humanos), a compreensão e o domínio do território, as intenções e estratégias de
organização e dominação social, a estrutura de poder desde a escala familiar, o status econômico
e social, entre outros. Na medida em que o patrimônio material passou a ser compreendido
também sob um viés antropológico, os aspectos processuais, para além da substancia em si,
ganham notoriedade, explicitando a inerência entre materialidade e imaterialidade intrínsecas ao
bem cultural.

No momento do reconhecimento como patrimônio mundial, o debate sobre o valor e a importância


da preservação da cidade se pautou na produção de arquitetura vernacular e sua relação com a
paisagem, sendo considerados os seguintes critérios listados pela Convenção do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural:

ii. ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores humanos durante


um determinado período ou em uma área cultural específica, no desenvolvimento
da arquitetura, das artes monumentais, de planejamento urbano ou de
paisagismo,
iv. ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou de conjunto arquitetônico
ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias etapas significativas da
história da humanidade (...)(CURY, 2000, p.178)
Uma vez que entendemos arquitetura vernacular como aquela que reinterpreta o partido
arquitetônico segundo sua relação com o contexto físico, espacial e social onde está inserida,
condicionada sob aspectos locais como os materiais disponíveis, a mão de obra, o clima, sítio
físico e o conhecimento técnico dos construtores, acumulado pelas experimentações construtivas
anteriores e repassado através das gerações, verificamos que há uma importância na ligação do
saber-fazer ao bem cultural arquitetônico. Neste sentido, o título de patrimônio mundial enaltece a
cultura construtiva local sob a perspectiva da preservação da materialidade resultante destes
saberes.

Dando origem ao Museu

A estruturação plena do Museu de Culturas Construtivas do Cerrado esbarra em dificultadores


relacionados à falta de financiamento, ainda não dispomos da estrutura física, ferramentas e
materiais para o desenvolvimento das atividades propostas. A atual conjuntura nacional vem
acenando um assombroso desprezo pela educação e cultura com severos cortes de verbas e
recuos das políticas inclusivas. Não obstante às perspectivas pessimistas, mesmo dentro da
igualmente parca infraestrutura do curso de Arquitetura e Urbanismo da Regional Goiás, ainda em
implementação, temos buscado estratégias para o desenvolvimento de atividades que se alinham
a proposta do Museu nas rotinas de ensino, pesquisa e extensão, sobretudo.

O fato da cidade de Goiás se caracterizar como um imenso laboratório, detentora de riquíssimo


acervo de culturas construtivas, especialmente daquelas tradicionais, nos permite realizar
atividades em escala local e com orçamento reduzido, ainda que tenhamos a ambição de atuar
em um território do cerrado goiano mais extenso. Neste cenário, nos dispomos a realizar
atividades piloto consoantes aos objetivos do Museu, através das quais poderíamos aferir o
cumprimento dos objetivos, o alcance do Museu na comunidade acadêmica e em geral e a
viabilidade de qualificação técnica. As atividades também nos ofereceriam subsídio prático para
ajustarmos as metodologias mais adequadas para o registro, documentação e a própria difusão
do acervo de culturas construtivas, além de proporcionar contato com os desafios e dificuldades.
Vinculada à disciplina de Canteiro Experimental I, realizamos visita técnica à uma olaria cerâmica
e enquanto projeto de extensão, uma oficina de produção de tijolos de adobe; ambos processos
construtivos tradicionais que ainda hoje são largamente empregados.

A arquitetura de terra é uma das heranças da tradição construtiva do período colonial, soma-se a
isso à disponibilidade abundante do material e o fato das técnicas de execução não exigirem
especialização ou aprofundado nível de conhecimento técnico. Essas condições ideais resultaram
na extensiva utilização de terra nos diversos componentes construtivos, desde a estrutura
(alvenaria estrutural de taipa de pilão), vedação (taipa de pilão, taipa de mão, adobe),
revestimentos e acabamentos (argamassa, estuque) cobertura (telhas cerâmicas), piso (chão
batido, mezanelo), ao longo do período colonial em todo território brasileiro. Com o passar do
tempo e a evolução dos sistemas construtivos com novos materiais e soluções técnicas, a
arquitetura de terra passou a ser depreciada como uma arquitetura precária, de padrão técnico e
status inferior. Gradualmente foi substituída por componentes industrializados e processos menos
artesanais, contudo permaneceu no arcabouço do patrimônio edificado, ainda que venha sendo
degradada mesmo sob tutela do estado.

Acontece que os atuais debates sobre sustentabilidade na construção e a busca por soluções
menos agressivas ou meio ambiente, eficientes e inteligentes apontam como solução a utilização
de um partido arquitetônico que considere a inserção local, a utilização de materiais da região,
com soluções técnicas adequadas ao clima, sítio físico. Ora se não é uma retomada dos princípios
construtivos tradicionais, adaptando-os às demandas e novas possibilidades contemporâneas. É
nesse contexto que, por exemplo, o tijolo de adobe surge ressignificado como tijolo ecológico e é
nesse cenário que o Museu de Culturas Construtivas torna o processo de identificação e difusão
dos saberes dinâmico, permitindo apropriações diversas.

Os desafios e êxitos do começo

O primeiro desafio, anterior à propositura das atividades, foi a identificação dos mestres artífices.
Iniciamos a procura de um mestre que produzisse tijolos de adobe, que nos pareceu ser um
componente construtivo cujo saber-fazer poderia ser popularizado haja vista sua larga utilização
em obras na área protegida pelo tombamento. Foram apontados diversos nomes de trabalhadores
da construção e oleiros, no entanto nos deparamos com uma grande dificuldade de contato com
esses mestres. Conseguido o contato, a dificuldade seguinte foi que os mestres não se
dispunham a realizar ou participar de alguma atividade de pronto. O curioso foi que esses
trabalhadores se justificaram afirmando não serem aptos a produzir tijolos de adobe e então
indicavam um outro nome de quem teria tal habilidade. Esse padrão de comportamento nos fez
refletir sobre a insegurança desses mestres, para além da timidez, devido à visão de que o
conhecimento empírico, transmitido por oralidade não é legitimo, especialmente frente ao
conhecimento acadêmico – tese que contestamos veementemente.

Dentre os nomes apontados, fomos conhecer um oleiro, que também se julgou incapaz de
produzir tijolos, no entanto nos apresentou seu processo de fabricação de telhas cerâmicas cuja
estrutura ainda é bastante artesanal, até mesmo rudimentar. Vimos aí uma oportunidade de já
identificarmos um mestre artífice e seus saberes relativos à produção de telhas cerâmicas. Seu
Nêgo, mestre e proprietário da olaria, nos relatou que produz telhas desde a juventude, quando
aprendeu e foi aprimorando a produção conforme suas experiências. Dos três trabalhadores que
compõem a equipe além do seu Nêgo, um é o seu filho, que recebeu os saberes através da
oralidade e também da prática empírica, assegurando a continuidade deste conhecimento e,
consequentemente, do empreendimento da família.

Na visita técnica com os estudantes do terceiro período de Arquitetura e Urbanismo, o mestre


apresentou toda a estrutura física da olaria e as etapas de produção, iniciado no
acondicionamento e preparo da matéria prima. O armazenamento da argila e do produto na etapa
de pré-secagem e o maquinário de produção ficam dispostos sob uma cobertura conforme o fluxo
de produção, criando uma lógica bastante eficiente de circulação tanto do produto, quanto dos
trabalhadores. A argila preta utilizada é buscada em fazenda há mais de 70km da cidade de
Goiás, segundo o mestre devido à melhor textura que as argilas encontradas nas proximidades –
o que assegura a qualidade do produto final. O material é então armazenado em uma espécie de
tanque e hidratado até estar – ou para manter – o devido ponto de iniciar a produção. O fantástico
do saber-fazer é que não é necessário se adotar medidas de água e argila, até mesmo porque
essas determinações tendem a variar em função do estado bruto da argila retirada, o mestre é
capaz de identificar o ponto de produção das telhas apenas pelo aspecto visual e sua
consistência.

Dado início ao processo, a argila passa por dois momentos de moldagem: um primeiro no qual é
utilizada uma única máquina simples (maromba), seguindo daí para uma prensa manual. A
maromba teria sido construída pelo próprio mestre, segundo relato do seu filho, o que nos mostra
um profundo conhecimento dos meios e processos produtivos. A operacionalização dos dois
aparatos envolve pelo menos três trabalhadores, cada telha é produzida individualmente, não há
produção em lote, e cada uma ainda passa por revisão e acabamento manual para remoção das
saliências de argila com faca (Figura 1). Em seguida, elas são dispostas em suportes individuais
para uma pré-secagem, que são empilhados de forma paralela. A pré-secagem é variável
conforme as condições climáticas, o conhecimento empírico do mestre determina se serão dois,
três ou mais dias, a depender da umidade da telha. Tão logo o mestre avalie a telha no ponto de ir
para queima, que é realizada à lenha, elas são deslocadas dos suportes para o forno, que se
constitui de uma estrutura de alvenaria, fechada e coberta, com abertura inferior para a provisão
de lenhas. Aqui o conhecimento prático é determinante, uma vez que não é possível nem mesmo
visualizar as telhas, o mestre estabelece o tempo de queima em função das condições climáticas,
que pode ser de um a dois dias. Terminada a queima, ainda é preciso um intervalo para
resfriamento e somente aí o lote está pronto para utilização.

Figura 01: Aplicação de acabamento manual em telha após passar pela prensa.
Foto realizada pelo autor, ago 2017.

Na produção de mezanelos, tipo de piso cerâmico geralmente de dimensões quadradas 15x15cm


ou 20x20cm, mais utilizado nas áreas domésticas e de serviços dos imóveis no período colonial, o
processo é basicamente o mesmo, variando apenas etapa de moldagem, em que se usa molde de
ferro ao invés da prensa. O que se percebe de tão fascinante no processo artesanal se reflete na
escala de produção e no controle e aferição da qualidade do produto, que implica também na
morosidade operacional.

A satisfação com a experiência e o diálogo estabelecido com o mestre, fomentou nosso empenho
em promover a oficina de produção de tijolos de adobe, além de somente conhecer os métodos
produtivos. Em um dado momento ainda na etapa de pesquisa e levantamento dos mestres – e
verificação da disponibilidade deles, soubemos que haviam sido produzidos tijolos de adobe no
canteiro de obras da restauração da Sede da Prefeitura Municipal de Goiás, obra pública em
andamento na ocasião, financiada pelo governo federal e administrada em parceria entre
Município e União através do IPHAN e técnicos da prefeitura. Nesta tela, supomos ser
interessante uma parceria interinstitucional em favor dos objetivos do Museu de Culturas
Construtivas.

A proposta foi muito bem recebida por todos envolvidos, ainda que tenha se defrontado com
alguns contratempos burocráticos. A empresa contratada para execução da obra havia
demonstrado expertise na produção dos tijolos de adobe, isso através do conhecimento do mestre
Geraldo, encarregado que se dispôs a conduzir conosco a produção dos tijolos. A parceria da
construtora foi fundamental para viabilizar a atividade, oferecendo todos os subsídios operacionais
dos quais temos carência: espaço físico, ferramentas e material. A produção dos tijolos utilizados
na recomposição de uma parede em uma das edificações da sede da PMG foi regida pelo mestre
Geraldo, após testes a fiscalização do Iphan avaliou o produto final como sendo de excelente
qualidade.

Contrariando o que havia se tornado ponto pacífico entre os demais mestres procurados, a
respeito da má qualidade da argila local para produção de adobe, sendo necessário, tal qual para
a produção dos tijolos do seu Nêgo, buscá-la em outras localidades, o mestre Geraldo foi resoluto
em produzir tijolos com terra retirada do próprio canteiro, observando que a matéria prima para os
tijolos produzidos há mais de 200 anos, que ainda mantem construções íntegras, não pode ter
sido retirada em grandes distâncias. O mestre estava certo sobre a qualidade da argila local.

A fim de fomentar a construção e troca dos diversos saberes associados ao tijolo de adobe,
propusemos um formato de oficina realizada em dois momentos: um primeiro de diálogos com
profissionais diversos abordando o tema, seguido pela prática da produção conduzida pelo mestre
artífice. Para o debate, convidamos a arquiteta Edinéa Ângelo que apresentou questões técnicas
referentes à produção e a aplicação do adobe na arquitetura vernacular e contemporânea e a
geógrafa e mestre em Preservação do Patrimônio Cultural Stélia Castro que trouxe a perspectiva
dos saberes e a importância da sua transmissão. A ideia do debate não pretendeu trazer a tensão
entre material e imaterial, mas pelo contrário, explicitar as inúmeras leituras e a complexidade da
articulação entre diversos campos do conhecimento através de um único tema.

Seguindo para a parte prática, o material e as ferramentas já à disposição, o mestre Geraldo


orientou os procedimentos que os oficineiros deveriam seguir na produção dos tijolos. Tal qual na
produção das telhas cerâmicas e mezanelos, a preparação da matéria prima, terra, não segue
medidas e misturas, mas a avaliação dos aspectos de umidade, granulometria, consistência,
plasticidade dos materiais pelo conhecedor do fazer. As particularidades em cada etapa da
produção, assim como as artimanhas eram relatadas pelo mestre no decorrer da oficina. A grande
vantagem da atividade prática é que ela permite ampliar o diálogo com o mestre, pois são
precisamente nestes momentos que surgem as dúvidas e curiosidades.

Um dos desafios da oficina era acertar a quantidade de água acrescentada por cima do tijolo,
ainda na fôrma, para alisar sua superfície superior, e o movimento de retirada da fôrma, pois
ambos interferiam na forma final do tijolo. Erros nesta etapa resultavam em tijolos com formato
irregular. Ao longo da oficina, com a ajuda do mestre Geraldo, foi sendo possível corrigir estas
falhas, de modo que os últimos tijolos produzidos apareceram como os mais bem formados
(Figura 2).
Também contrariando o que muito é difundido sobre tijolos de adobe, o mestre Geraldo não
incluiu na produção aditivos de palhas, esterco ou demais fibras, que, segundo ele, propiciam as
condições ideais de infestação de xilófagos acarretando patologias construtivas. Esse entre os
diversos outros conhecimentos do seu Geraldo foram transmitidos oralmente durante a oficina e,
evidentemente, durante a rotina da obra, o que acaba qualificando a equipe de trabalho e
habilitando os trabalhadores para replicarem as práticas e os mesmos saberes (Figura 3).

Ainda que incipientes, ambas experiências mostraram a pertinência dos objetivos do Museu e sua
potencialidade de alcance e impacto na comunidade e na produção de arquitetura popular de
qualidade. A documentação e registro dos trabalhos realizados e o saber-fazer ainda está em
processo. Por ora contamos com as ferramentas audiovisuais (sem tratamento ainda) e relatos
diversos, inclusive este texto constitui um dos nossos instrumentos de registro e difusão das
experiências. Vislumbramos, com o que já foi feito, contribuir para valorização do conhecimento e
de pessoas através do trabalho dos mestres artífices que, por si já é capaz de capacitar quadros
técnicos – leia-se aqui tanto da mão de obra quanto de pesquisadores (que vem estabelecer uma
relação profícua entre os conhecimentos tradicionais e acadêmicos); preservar o patrimônio
cultural, valorizando comunidades e suas identidades e constituir um acervo dinâmico que possa
ser apropriado.

Figura 02: Dois tijolos produzidos durante a oficina, à esquerda um tijolo produzido por um profissional da obra e à direita o
primeiro tijolo produzido por um participante da oficina.
Foto realizada pelo autor, ago 2017.
Figura 03: Participantes da oficina de tijolos de adobe.
Foto realizada pelo autor, ago 2017.

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