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TEOLOGIA E SOCIEDADE

AULA 1

Prof. Cicero Bezerra


UMA HERMENÊUTICA DE CONFIANÇA

A necessidade de desenvolver uma interpretação séria e bem


fundamentada nas escrituras é fundamental para que o teólogo desenvolva suas
habilidades a respeito da interpretação do texto sagrado. Um valor importante
para o teólogo é entender a importância e o significado das regras de
interpretação. Caso seja deficiente nessa área, sua teologia será comprometida
com conceitos e bases não estruturadas.
Por sua vez, cabe ao teólogo apontar caminhos para que uma sociedade
viva de forma ordeira e justa. Um dos eixos a ser desenvolvidos relaciona-se à
confiança. Quando os fundamentos tanto de relacionamentos como ações
práticas estão fundamentadas na confiança entre os sujeitos a sociedade será
organizada e praticante dos princípios e valores do reino de Deus.
Essas orientações básicas, éticas e orientativas cabe ao teólogo
desenvolver ações práticas e instrutivas para os cidadãos.

CONVERSA INICIAL

Essa aula tem por objetivo inserir o teólogo no contexto da teologia. Esse
tema precisa ser bem fundamentado para que, no futuro, o estudante possa
desenvolver postulados teológicos, estejam aptos para fazer teologia e, ainda
assim, estarem capacitados para identificar certos aspectos da sociedade para
que seja feita uma teologia adequada para enfrentar essa realidade.
De certa forma, é importante que o estudante faça essa transição de um
iniciante na teologia para um especialista que irá fazer teologia e crie uma ponte
de acesso entre o ambiente da religião com a sociedade.
A religião cristã tem, no seu centro, as práticas cidadãs. Cabe ao cristão
servir de exemplo e modelo para que a sociedade perceba a possibilidade de
viver uma vida ordeira e justa.

TEMA 1 – COMO A TEOLOGIA PODE IMPACTAR A SOCIEDADE

Como transformar a teologia em renovação social e fortalecimento da


sociedade brasileira? Como ser igreja em meio a uma sociedade plural? Essas
são algumas perguntas básicas para que a teologia tenha espaço para agir e
apresentar alternativas e a pessoa encarregada por essas teses são os teólogos.

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Costuma-se dizer que a teologia funciona para a sociedade como um
farol. Em meio a densas nuvens, o farol aponta o caminho a ser seguido, ao
lançar luz para a direção certa, a teologia e o teólogo cumprem o papel para com
os cidadãos que compõem a sociedade, tanto para com os cristãos quanto para
aqueles que não professam a fé cristã.
Como a teologia pode desempenhar suas funções perante a sociedade
numa perspectiva de transformação, esse aspecto é fundamental para o
estudante iniciante na teologia que vem de um contexto apenas religioso. Em
alguns casos, o estudante acaba se assustando por causa desse novo
entendimento de que a igreja deve ser participante ativa nas transformações
sociais. Alguns pensam que as atividades da igreja devem ser restritas apenas
ao campo religioso, no entanto, é importante o teólogo saber que seu papel é
bem mais abrangente do que apenas dedicar-se aos aspectos litúrgicos e
cerimoniais da igreja.
A teologia impacta a sociedade com propostas transformadoras que
resultam na melhoria de vida das pessoas, aproximando-as de Deus e
exercendo o seu papel como cidadãos e testemunhando a respeito da fé cristã.

TEMA 2 – A TEOLOGIA COMO BASE DE CONFIANÇA PARA A SOCIEDADE

No Brasil, a confiança entre pessoas está em baixa, como veremos. Será


que as pessoas não confiam na capacidade dos outros de usar a liberdade para
realizar um serviço ao próximo?
Para construir a comunidade cristã e, portanto, para fortalecer as
atividades da igreja na sociedade, especialmente quando esta pretende ser
atuante e baseada na cidadania, a confiança é imprescindível. Portanto, nesta
aula, é analisada essa relação tão fundamental quanto ameaçada: confiança e
convivência.
Para tal, precisamos de uma “hermenêutica da confiança”, ou seja, um
olhar específico que norteie nossa percepção da convivência, no âmbito do
ecumenismo e da sociedade. Cabe à teologia apontar e nortear os caminhos a
serem seguidos para que as pessoas possam estar satisfeitas com os níveis de
confiança e estabilidade nos valores cristãos.
Algumas virtudes são partes da teologia cristã: verdade, justiça,
honestidade, pureza, compromisso cidadão, coerência, reciprocidade e retidão.

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TEMA 3 – AS PESQUISAS SOBRE CONFIANÇA

Dentre 17 países da América Latina, periodicamente pesquisados pela


organização Latinobarômetro, o Brasil aparece em último lugar. Indagados sobre
“falando em geral, você diria que se pode confiar na maioria das pessoas ou que
nunca se é suficientemente cuidadoso no trato dos demais”, apenas 4% dos
entrevistados no Brasil afirmaram que podem, sim, confiar. Pesquisas parecem
sugerir que não existe confiança nestes países.
A média no continente é de 17%, e o Uruguai apresenta a porcentagem
mais alta de confiança (36%). Não é que, simplesmente, não existe confiança
alguma, mas não se confia em pessoas desconhecidas. A mesma pesquisa
mostra que se confia em pessoas ao redor ou de reconhecida habilidade: nos
bombeiros (64% em toda a América Latina), nos colegas de trabalho ou estudo
(59%), nos vizinhos (50%), porém não em pessoas desconhecidas.
Esse caminho a respeito da confiança é uma tarefa da teologia. Cabe aos
teólogos estimularem a confiança e apontarem alternativas para que os cidadãos
confiem uns nos outros e a verdade prevaleça na sociedade.
A falta de confiança nas pessoas que não representam o próprio grupo é
um dos fatores mais importantes que impedem a comunhão tanto entre igrejas
quanto entre as pessoas e instituições da sociedade. No Brasil, uma raiz do
problema parece bem identificada nas reflexões do antropólogo Roberto Da
Matta. De acordo com ele, uma mulher ou um homem é pessoa enquanto
pertence a uma sociedade.

TEMA 4 – BASES DA CONFIANÇA

Não é fácil definir confiança, pois não é um conceito que, após ser
adotado, possa resultar diretamente em ação. Antes, é uma atitude que se
mostra na própria ação. Apenas ao atuar com confiança pode-se identificá-la.
Mesmo assim, pode-se usar, plausivelmente, uma definição geral para ter, ao
menos, uma ideia vaga do que se está falando: “segurança íntima de
procedimento” e “esperança firme”, define o Aurélio.
Sugiro definir confiança como uma expectativa em relação ao
comportamento do outro que espero estar em meu ou em nosso interesse. A
diferença decisiva está no grau de certeza que posso ter em que minha confiança

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não será decepcionada, ou seja, que o comportamento do outro vai efetivamente
ser em meu ou nosso benefício e não nos prejudicar.
Deveria dizer, ainda, que se pressupõe que há apenas uma diferença
gradual e não principal entre o benefício dele ou dela e nosso benefício comum
e que, portanto, não esperaria um comportamento da outra pessoa que seja para
meu benefício, mas para seu prejuízo.
Cabe aos cristãos servirem de referência para a sociedade a respeito de
seus valores e comportamentos que estimulem a confiança entre os cidadãos da
sociedade. O teólogo exerce o papel de orientador e formulador de conceitos
para a sociedade (Sinner, 2007).

TEMA 5 – UMA REGRA DE OURO

Uma regra de ouro, que diz, na sua formulação bíblica no Evangelho de


Mateus: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o
vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7.12).
Esse princípio achou respaldo no imperativo categórico de Kant e
encontra-se em muitas éticas filosóficas ou religiosas.
Além dessa “ética mínima”, temos exigências maiores, como indica o
próprio sermão do monte, do qual extraí a citação da regra de ouro. Aqui temos
uma ética maior a ser seguida.
Esse é um aspecto da confiança, específico para quem adere a uma
crença ou ideologia que contenha exigências éticas. Ao encontrar uma pessoa
que segue uma ética maior, essa tem direito a maior confiança, mas também é
sujeita a maior cobrança. “Àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido;
e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão”, diz Jesus nas
parábolas sobre a vigilância (Lucas 12.48).
Uma igreja ou organização não governamental (ONG) que recebe
doações em dinheiro e as usa para outro fim do que o previsto prejudica não
apenas sua relação direta com a entidade ou pessoa doadora, mas também põe
em xeque a confiança e a disposição de doadores em geral assim que a notícia
vier à tona.
Pessoas e organizações que se propõem a uma causa justa, como lutar
contra a pobreza, têm alta probabilidade de ganhar muita confiança, pois apelam
aos corações das pessoas que ainda têm um sentimento de injustiça diante da
pobreza.
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Portanto a decepção ao falhar será maior também, pois mexe com
sentimentos profundos. Do mesmo modo, pessoas exercendo um ministério
religioso são, em geral, consideradas merecedoras de alta confiança pela sua
função e proposta de vida, que implicam uma ética profissional muito exigente.
(Sinner, 2007).

NA PRÁTICA

1. Não é aconselhável confiar de modo ingênuo.


2. A confiança procura ser informada. Confiar na pessoa errada ou no
momento errado pode ter consequências desastrosas. Portanto, é preciso
ler os sinais que possam indicar um perigo. Obviamente, nem sempre é
possível detectar a má intenção da pessoa que quer nossa confiança.
3. Confiança permanece como risco, dádiva livre. Lembramos de que a
confiança é imprescindível também entre assaltantes de banco,
traficantes de drogas e outros criminosos. Muito provavelmente essa
confiança é regida mais pela lei ferrenha que o crime impôs do que pela
livre vontade dos participantes, mas ainda assim é confiança, talvez a
única que os implicados chegaram a experimentar com conotações éticas
distorcidas.
4. Portanto, não basta a confiança em si, mas essa confiança precisa ser
inserida num sistema maior de valores e princípios éticos que visam ao
bem-estar de todas as pessoas.
5. Esses valores e princípios precisam ser reconhecidos pela sociedade
para que se possa garantir a confiabilidade das pessoas. À medida que
se puder esperar que os outros honrem os valores da confiança,
estaremos mais disposto a concedê-la.

FINALIZANDO

Convém introduzir aqui uma breve reflexão sobre convivência. Em nível


primário, ela significa simplesmente o fato de que, como seres humanos, não
vivemos sozinhos.
Faz parte do nosso ser que coexistimos com outros homens e outras
mulheres. É inevitável o contato diário com vizinhos, colegas de estudo,

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funcionários da empresa de ônibus, vendedoras da padaria, professoras e
professores e muitas outras pessoas.
É, inclusive, um dos aspectos mais prazerosos da condição humana: viver
relações.
Portanto, além do simples fato de coexistir, é preciso buscar moldar e
orientar essa coexistência para se tornar convivência, “vizinhança assumida”
(Gottfried Brakemeier). Inspirado por reflexões da América Latina, que surgiram
em uma conferência no Rio de Janeiro, em 1985, o teólogo alemão Theo
Sundermeier divulgou o conceito de convivência como “comunidade de
aprendizagem, apoio mútuo e celebração”
Cabe ao teólogo desenvolver ações perante a sociedade que possam
estimular a confiança entre as pessoas.
O conceito da confiança é base para que as interpretações teológicas
sejam realizadas com coerência hermenêutica, fidelidade na interpretação e
divulgação de atos relacionadas a confiança para a sociedade onde o teólogo
estiver inserido.

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REFERÊNCIAS

DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema


brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

_____. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.

DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamazov. Trad. Boris Solomov. São Paulo:


Martin Claret, 2004.

FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua


portuguesa. 3. ed. totalmente revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.

FUKUYAMA, F. Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio


de Janeiro: Rocco, 1996.

_____. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e


civil [1651]. São Paulo: Abril, 1974.

LATINOBARÓMETRO 2003, p. 26. Disponível em: <http://


www.latinobarometro.org>. Acesso em: 17 mar. 2019.

SINNER, R. V. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São


Leopoldo: Sinodal, 2007.

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TEOLOGIA E SOCIEDADE
AULA 2

Prof. Cícero Bezerra


CONVERSA INICIAL

Deus, igreja e sociedade

A República Federativa do Brasil é, hoje, o quinto maior país do mundo e


ocupa a 8ª posição em termos de poder econômico (2004). Ao mesmo tempo,
ocupa o 4º lugar em termos de distribuição desigual de riqueza. Enquanto os
20% mais ricos recebem 64% de toda a renda, os 20% mais pobres dispõem de
meros 2% (1998). Trinta e cinco por cento da população vivem abaixo da linha
de pobreza nacional. Em termos de desenvolvimento humano, o país está
situado entre os países de “desenvolvimento humano médio”, ocupando, em
2006, o 69º lugar, conforme a ONU.
A pesquisa da organização norte-americana Freedomhouse colocou o
Brasil entre os países “livres” com nota 2 em direitos políticos e direitos civis, em
2006, numa escala de 1 (livre) a 7 (não livre). Como o país chegou a esse ponto?
Não temos muitos indícios claros sobre os tempos pré-coloniais, mas
certamente a área era habitada por numerosos grupos étnicos, especialmente
na região amazônica e ao longo da costa, e a presença humana possivelmente
remonta a dezenas de milhares de anos.
No dia da Páscoa – 22 de abril – de 1500, o navegante português Pedro
Álvares Cabral (1460-1526) aportou no que é hoje Porto Seguro, nordeste do
Brasil. A terra recém-“descoberta”, ou, antes, conquistada, tornou-se uma
colônia sob a Coroa portuguesa, adotando seu típico sistema de padroado, em
que a Coroa era responsável pelo “bem-estar” não só material, mas também
espiritual de seus súditos.
Protestantes entraram no país por meio de invasões francesas e
holandesas nos séculos XXVI e XXVII, respectivamente, mas sua presença foi
apenas episódica. Em 1807, a Corte portuguesa passou a residir no Brasil,
fugindo das tropas de Napoleão. Ela retornou a Lisboa em 1821, mas o príncipe
regente permaneceu no Brasil e se tornou o chefe do Império brasileiro,
proclamando a independência em 7 de setembro de 1822. A primeira
constituição brasileira foi promulgada em 1824, permitindo, entre outras coisas,
a liberdade religiosa sob certas restrições.
Essas são algumas questões que devem ser consideradas por um
teólogo: as bases em que a nação brasileira foi formada, o contexto político
mundial e os temas relacionados à liberdade religiosa.
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Em 15 de novembro de 1889, uma ação militar fundou a República. A
Igreja Católica Romana foi, subsequentemente, separada do Estado,
introduziu-se a liberdade plena de culto, as igrejas foram reconhecidas como
entidades que podiam, portanto, adquirir bens em seu nome, e o padroado foi
formalmente abolido.
A Igreja Católica soube usar bem sua nova liberdade e estruturou-se de
uma forma nunca antes vista no país, criando dioceses e organizando seu
trabalho, em consonância com Roma. As igrejas protestantes, por sua vez,
ganharam cidadania plena e não precisavam mais lutar para ter onde batizar os
filhos, se casar, sepultar os mortos e construir templos com cara de igreja.
Com o passar dos tempos a igreja cristã, tanto católica quanto protestante,
foi ocupando espaços na sociedade, e nesta aula estudaremos o avanço
comunitário da Igreja e seu papel de influência na sociedade.

TEMA 1 – O DESENVOLVIMENTO DA NAÇÃO ANTE A CONSOLIDAÇÃO DA


IGREJA CRISTÃ NO BRASIL

Novos grupos surgiram, bem como as associações de moradores e


também movimentos que se posicionavam contra o racismo, em alguns casos
liderados por mulheres.
Os movimentos sociais têm as suas peculiaridades e também era
evidente sua fragilidade em alguns casos, mas é inegável o impacto e a
influência desses movimentos ao ponto de levar o governo a se preocupar com
eles.
Começaram a surgir atos públicos como respostas aos posicionamentos
do governo, dando origem às manifestações que pediam eleições presidenciais
ou eleições diretas. De certa forma, a sociedade está reagindo e solicitando dos
governantes novos posicionamentos.
As associações e entidades que arregimentavam pessoas e
representavam determinado grupo exerciam um papel muito importante para o
momento social, era um pedido único e comum para que voltasse a democracia.
A sociedade civil, por meio de suas representatividades, exercia um papel
de muita importância para que os clamores populares fossem atendidos, os
governantes começaram a se dar conta da necessidade de mudança e do
estabelecimento de um modelo de governo que fosse representativo e popular.

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A força policial, os tribunais, os governantes estavam em baixa. As Igrejas,
por sua vez, aproveitando-se do viés da esperança, estavam entre as instituições
de confiança. O povo acreditava na Igreja e em seus representantes, era um
legado de confiança para incentivar a proposta democrática, os valores e
pensamentos cristãos deveriam referendar os sonhos democráticos.
Já se diz que na América Latina nada se decide sem passar pela religião,
o povo tem como expectativa os posicionamentos da Igreja, uma vez que esta
confirma o clamor popular, se torna forte, o líder religioso com seu carisma acaba
influenciando e levando a sociedade para refletir e requerer o que pensa a Igreja,
consequentemente a religião vai orientado e conduzindo o povo para se
posicionar de forma bíblica, em que o que predomina é a obediência a Deus,
seguindo o exemplo de Jesus Cristo (Sinner, 2007).

TEMA 2 – A TEOLOGIA DA IGREJA DEVE PROMOVER AÇÕES


COMUNITÁRIAS

Esse pensamento é próprio do cristianismo, um só deus, uma só fé, uma


só maneira de crença e uma só igreja, toda essa unidade deve resultar numa
comunhão plena entre as pessoas que professam a fé em Jesus Cristo.
De certa forma, para que a igreja aconteça, deve haver em primeiro lugar
a unidade do povo de Deus, é a comunhão entre os cristãos que serve de base
para evidenciar a igreja para a sociedade, essa referência de unidade e amor
deve refletir entre as pessoas que declaram sua fé em Cristo, demonstrando uma
comunhão igual à da divindade, respeitando as diferenças e promovendo a
inclusão e de certa forma incentivando as relações comunitárias.
Quando se analisam as questões da Igreja, devem-se levar em conta as
ações coletivas, não existe ação comunitária se não acontecer com base no
grupo. Cabe aos cristãos que representam determinada comunidade praticar os
princípios e valores do cristo, que devem ser compartilhados e demonstrados
para a sociedade.
A unidade e as ações comunitárias legitimam as ações de Deus para com
os seres humanos, Deus não é visto pelas pessoas, a forma que ele tem para
se tornar conhecido na sociedade é por meio dos atos humanos e caridosos a
serviço daqueles que sofrem.
As pessoas que compõem a sociedade têm um destino, seja para o bem
ou para o mal, em consequência da escolha de cada um, o indivíduo é
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responsável por suas escolhas. Quando se faz uma analogia com base nos
ensinamentos cristãos, o modelo social proposto deve ser um compromisso com
a paz, o respeito pelos direitos do próximo, a unidade entre os povos.
A comunidade de fé deve apresentar um caminho para que a sociedade
viva de forma ética e responsável para com a paz e a harmonia entre as pessoas,
a Igreja se legitima quando o serviço acontece, não existe autenticidade se não
acontecer o serviço. A moralidade deve ser bíblica, o serviço deve ser genuíno,
as ações cristãs representam os ensinamentos do Cristo, que se entregou por
aqueles que acreditam na sua obra redentora.

TEMA 3 – IGREJA E SOCIEDADE CIVIL

A teologia tem como tarefa apresentar modelos para que a sociedade


pratique os princípios comunitários, mesmo os mais antigos filósofos
direcionavam o povo para uma estrutura social a favor do ser humano na sua
complexidade, o melhor da teologia está no fato de ela ter em si mesma
conceitos morais e éticos que podem ser praticados num contexto comunitário.
O importante no modelo democrático é estabelecer laços de igualdade e
participação social para todos os cidadãos, a igualdade pressupõe que todos
têm os mesmos direitos e responsabilidades, nesse contexto os eixos
fundamentais da vida acabam acontecendo, liberdade, igualdade e fraternidade
são princípios importantes para que as pessoas vivam em harmonia.
A participação de todos na sociedade civil acaba motivando as atividades
nas igrejas, em suma as comunidades de fé são compostas e formadas por
cidadãos da sociedade. Do ponto de vista de Deus a igreja será consolidada
quando o seu serviço influenciar a sociedade de tal maneira que capacite os
seres humanos a viverem em harmonia por meio dos princípios ensinados pelas
sagradas escrituras. A melhor convivência entre os cidadãos acontece pela
prática do amor e da unidade, dessa forma a Igreja tem muito a contribuir
orientando e apontando os valores éticos e morais.

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TEMA 4 – MARCAS DA VIDA COMUNITÁRIA E PARTICIPAÇÃO DA IGREJA
NA SOCIEDADE

O primeiro aspecto a ser considerado é a equidade, o que eu não desejo


para mim não poderei exigir do meu próximo, essa é a base para alteridade.
Assim se pode entender que numa sociedade democrática é praticamente
impossível viver em harmonia sem respeitar cada membro que a compõe,
reconhecer que cada cidadão é diferente em sua essência, escolhas, formação,
e que os valores de cada indivíduo devem ser respeitados.
Na América Latina a teologia tem uma função moral e ética, respeitando
a cultura e os valores de cada cidadão, a religião não pode transgredir a cultura
e a cultura deve respeitar a religião. Numa complexidade harmônica o cidadão
terá uma vida plena quando entender esses conceitos. O mistério religioso conta
com as ações sobrenaturais da parte de Deus, criador de todas as coisas, que
trouxe a existência ao que não existia, e na sua infinita sabedoria deu para os
seres humanos a capacidade de viver em harmonia, respeitando os princípios
da criação.
Em segundo lugar a participação social é muito importante, o direito de
todos e o direito de ter direitos deve ser respeitado e incentivado no ambiente
social. A participação social abrange atuação política, compreensão dos
conceitos e das formas das políticas públicas que precisam ser implementadas
para que os cidadãos sejam cidadãos completos, não deixando de cumprir com
suas responsabilidades políticas e sociais.
As comunidades de fé têm a responsabilidade de incentivar a participação
cidadã capacitando as pessoas para que possam entender as formas de
governo, conhecer a constituição brasileira e incentivar o trabalho voluntário, tem
certos procedimentos sociais pelos quais as igrejas podem contribuir de forma
significativa sem precisar esperar as ações do Estado.
As famílias podem ser orientadas a ensinar seus filhos a respeito dos
princípios éticos e dos valores cristãos, os jovens podem ser incentivados aos
estudos e a preservar a vida e respeitar o próximo, os idosos devem ser
orientados para que sua experiência de vida seja uma forma de influenciar
aqueles que precisam de referência para viver de forma harmônica. Essas ações
podem ser praticadas nos ambientes das igrejas, sem precisar de um aparato
institucional para que sejam realizadas. O espaço comunitário e religioso é

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próprio para a conscientização e estímulo para que os cidadãos estejam
integrados na sociedade e contribuam para uma vida melhor.
Em terceiro lugar, outro fato é a confiança, que precisa ser divulgada,
ensinada e propagada nos ambientes das comunidades religiosas, é necessário
que se estabeleçam bases de confiança nos ambientes, as pessoas precisam
acreditar nas afirmações feitas durante as reuniões, os discursos devem se
transformar em ações, quando isso acontece o povo passa a acreditar que as
palavras não ecoam sem fazer diferença na vida das pessoas, a confiança vai
sendo difundida e acontece o fenômeno do resgate da credibilidade a confiança
retorna.
O valor e o princípio da confiança são resultado de trabalho social,
religioso e comunitário, tanto para as pessoas que vivem em situação precária
quanto para os mais abastados. A confiança não reside necessariamente no fato
de atender as necessidades básicas do ser humano, mas sim de estabelecer
para todos alguns vínculos de esperança, apontar caminhos que sejam factíveis
e possíveis para que todos os cidadãos sejam digno e que os fatos comprovem
isso.
O quarto fator resulta na coerência e harmonia entre os valores morais e
éticos que são próprios da teologia. Existe uma característica própria que é a fé,
quando as pessoas acreditam de forma correta, terão a graça de Deus a seu
favor, de certa maneira a insistência com os valores cristãos deve ser contínua,
por pior que sejam as agruras do cidadão, ele acaba precisando da graça de
Deus, esses pontos acabam se transformando na base de vida para que as
pessoas encontrem a realização de que precisam. A confiança estabelecida, a
fé sendo praticada, a comunidade religiosa exercendo o seu serviço e o cidadão
integrado nesse sistema complexo resultam em coerência. Pode-se afirmar que
essas bases consolidam o que chamamos de felicidade.

TEMA 5 – A IGREJA FAZENDO DIFERENÇA NA SOCIEDADE

A sociedade é complexa e ao mesmo tempo carece de uma integração


em que haja unidade entre as pessoas e harmonia de valores e códigos de ética
e convivência harmônica.
As igrejas e as comunidades religiosas têm uma responsabilidade de
apontar caminhos e soluções para que as pessoas vivam em harmonia e
pratiquem o serviço de diaconia para que a sociedade seja plena.
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A teologia pode apresentar subsídios e bases para que os conceitos
sejam claros e definidos, e o resultado desse modo de ver pode influenciar as
pessoas, fazendo-as se respeitarem, para que a participação social se
transforme em realidade, a confiança seja restabelecida e a coerência entre a
religião e o modo de vida das pessoas possa servir de referência.
Quando se trata do tema religião a coerência é fundamental, não adianta
proclamar certas práticas e valores e não exercer no cotidiano, no próprio modo
de vida.
Se falarmos de ajudar as pessoas, isso precisa acontecer na prática, se
levantarmos o assunto da fome, precisa-se dar comida para as pessoas, se
apresentarmos opções de esperança, precisa-se dizer como se faz para
alcançar.
Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da
vocação a que fostes chamados, com toda humildade e mansidão, com
longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, esforçando-vos
diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz: Há
somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só
esperança da vossa vocação: há um só Senhor [i. e. Jesus Cristo], uma só fé,
um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio
de todos e está em todos (Efésios 4.1-6).

NA PRÁTICA

1) A sociedade brasileira é uma sociedade nova, 500 anos, de certa forma a


democracia tem sido consolidada no passar desse tempo e a Igreja tem
acompanhado esse processo.
2) Quando a Igreja atua na sociedade, sua relevância vem à tona, o cidadão
da igreja faz parte de uma sociedade democrática e no ambiente da
comunidade cristã sua voz se torna contundente e influenciadora na
sociedade.
3) O cristão cidadão tem uma vocação que deve ser exercida por meio do
trabalho a favor daqueles que têm menos oportunidades.
4) Quando o serviço acontece no ambiente da Igreja, as injustiças diminuem
e a sociedade recebe influências pacíficas e ordeiras.
5) A Igreja é uma voz para aqueles que não têm voz, os fracos precisam de
representação, essa é uma das finalidades da Igreja na sociedade.
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FINALIZANDO

A Igreja foi ocupando espaços na sociedade brasileira, exercendo


INFLUÊNCIA, não pode perder essa marca, o compromisso da Igreja deve ser
apontar caminhos éticos e morais para que a sociedade possa viver de forma
justa e pacífica.
De certa forma pode-se dizer que, à medida que a democracia brasileira
foi se consolidando e dando oportunidades para os cidadãos, as igrejas foram
ocupando espaços de liberdade e oferecendo para o povo alternativas de
posicionamento.
Para que a Igreja consolide sua existência, tem que haver comunidade, é
na comunidade que a igreja acontece, porque é nesse ambiente ao mesmo
tempo plural e único que as opiniões são formadas e os valores do reino de Deus
são transmitidos para que outros possam ver como se deve viver uma vida plena.
A democracia visa a maior igualdade entre as pessoas que vivem o
processo democrático. Cada indivíduo cidadão tem liberdade e direitos iguais
perante o conjunto social.
Alteridade, Participação, Coerência e Confiança são alguns dos atributos
que a teologia propõe por meio da Igreja, para que a sociedade viva bem e se
proteja da corrupção e da injustiça.
Cada cidadão tem uma vocação, isso deve resultar num serviço que
beneficie o todo, assim como a igreja tem a vocação de servir, quando essa
dinâmica acontece, todos são beneficiados e o reino de Deus se estabelece na
terra.

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REFERÊNCIAS

BOFF, L. Igreja, carisma e poder. Ed. revista. Rio de Janeiro: Record, 2005.

_____. A trindade, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.

BOFF, L.; BOFF, C. Como fazer teologia da libertação. 8. ed. Petrópolis:


Vozes, 2001.

FEODOROV, N. F. The Restoration of Kinship Among Mankind. In:


SCHMEMANN, A. (Ed.). Ultimate Questions: An Anthology of Modern Russian
Religious Thought. London and Oxford, 1977. p. 175-223.

FRESTON, P. Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio


ético. Curitiba: Encontrão, 1994.

______. Religião e política, sim – Igreja e Estado, não. Viçosa: Ultimato, 2006.

HERKENHOFF, J. B. Direito e cidadania. São Paulo: Uniletras, 2004.

MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus. Trad. Ivo Martinazzo. Petrópolis:


Vozes, 2000.

PETERSON, E. Der Monotheismus als politisches Problem: Ein Beitrag zur


Geschichte der politischen Theologie im Imperium Romanum [1935]. In:
Theologische Traktate: Ausgewählte Schriften, Würzburg, 1994. v. 1.

SCHMITT, C. Politische Theologie [1922]. 6. ed. Berlin, 1993. p. 43. [Edição em


português: Teologia política. Coordenação e supervisão de Luiz Moreira;
tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006].

SINNER, R. V. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São


Leopoldo: Sinodal, 2007.

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TEOLOGIA E SOCIEDADE
AULA 3

Prof. Cícero Bezerra


CONVERSA INICIAL

A fé cristã é eminentemente pública – também a teologia que sobre ela


reflete. Jesus disse ao sumo sacerdote que o interrogava: “Eu tenho falado
francamente ao mundo; ensinei continuamente tanto nas sinagogas como no
templo, onde todos os judeus se reúnem, e nada disse em oculto” (João 18.20).
Com franqueza, firmeza, em público foi que Jesus falou, e assim também seus
seguidores.
As igrejas e seus teólogos e, mais recentemente, também suas teólogas
sempre têm se pronunciado a respeito de assuntos de interesse público e
estendido seu serviço além daqueles que a elas pertenciam. Assim, cabe ao
estudante de teologia ter compreensão dessa amplitude do discurso e estudo
teológico para que ele possa exercer a sua tarefa de forma eficaz.
Nessa aula, vamos estudar a teologia pública e sua importância para que
o teólogo possa articular seus conceitos e relacioná-los com as escrituras
sagradas e com a sociedade de forma geral, apresentando os pontos bíblicos
que norteiam os diversos temas da atualidade.
Se o nosso conteúdo é milenar, o conceito de uma “teologia pública” é
relativamente recente. Em 1974, o teólogo norte-americano Marvin E. Marty
cunhou o termo, designando com ele contribuições religiosas no espaço público,
como aquelas feitas por pessoas como Jonathan Edwards, Abraham Lincoln e
Reinhold Niebuhr nos Estados Unidos dos séculos XXVIII a XX.
A questão do papel da religião, especificamente da fé cristã, no contexto
estadunidense, já data de antes disso, quando, em 1967, Robert N. Bellah falou
de uma “religião civil”, referências religiosas usadas por políticos para dar coesão
à sociedade, constituindo assim uma religião oriunda do cristianismo, mas não
diretamente ligada às igrejas.
Algo semelhante formou-se no Brasil do Regime Militar, quando a
“educação moral e cívica” introduziu um tipo de religião civil brasileira. Contudo,
diferentemente da religião civil, a teologia pública está claramente enraizada na
fé e teologia cristãs, querendo levar a sério sua tarefa no espaço público.
O teólogo católico, também norte-americano, David Tracy (2006) falou de
três diferentes públicos da teologia: a sociedade, a academia e a igreja; foram
sendo acrescentados outros públicos por outros autores, como a economia e a
mídia.

2
TEMA 1 – O QUE É TEOLOGIA PÚBLICA?

A teologia acontece com base em seu contexto, pois não há como


desenvolver análises teológicas se não se levar em conta o ambiente em que a
teologia acontece. O impacto da teologia na sociedade deve levar em conta as
instituições religiosas e acadêmicas, respeitando seus valores e princípios.
A teologia deve desenvolver um diálogo próprio com a literatura e com o
espaço público. Com base nessa construção conceitual, se efetivam os valores
e postulados da cidadania. Ainda assim, ressaltamos que as construções
teóricas não foram levadas em conta na América Latina, e assim urge a
necessidade de uma conversa ampla sobre os temas que a teologia pode propor
para a sociedade, para assim desenvolver ações de teologia pública.
Recentemente, o conceito vem sendo retomado numa rede internacional
de teologia pública, também em países onde ainda não fora usado, como África
do Sul e na Austrália, por exemplo. Embora o termo seja pouco usado na
América Latina atualmente, o conteúdo não é novidade.

TEMA 2 – A TEOLOGIA EM MOVIMENTO

Sem dúvida, os precursores do que veio a ser conhecido como Teologia


da Libertação latino-americana, os presbiterianos Richard Shaull e Rubem Alves,
e a própria Teologia da Libertação, que foi formulada principalmente por teólogos
católicos romanos no fim da década de 1960 e na década de 1970, mais
proeminentemente pelo peruano Gustavo Gutierrez, propuseram um
fundamento teórico importante para a ação social e política. Esse movimento
teológico destacou, internacionalmente, “a teologia em movimento” (Juan Luis
Segundo), fornecendo a base para uma significativa consciência de caráter
contextual geral da teologia, sublinhando em primeiro plano a “teologia
proveniente da margem”, em contato com movimentos similares em vários
continentes, que se originaram no mesmo período. (Sinner, 2007)
Essas teologias são definidas coletivamente como “teologias do Terceiro
Mundo”, visíveis na fundação da Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas
do Terceiro Mundo (Asett) em 1976.
A espinha dorsal da Teologia da Libertação é, sem dúvida, a “opção
preferencial pelos pobres”, adotada oficialmente pelas II e III assembleias
continentais do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em Medellín

3
(1968) e Puebla (1979) e mantida desde então. Como lembra Gustavo Gutiérrez,
ela é uma opção “preferencial” por causa da “universalidade do amor de Deus
que não exclui ninguém”. O mesmo amor universal de Deus compromete os
cristãos a “dar às pessoas um nome e um rosto”, especialmente àquelas a quem
isso é negado, justamente “os pobres”. “Opção”, por outro lado, não significa que
seja “facultativa” no sentido de não ser necessária, mas o “caráter livre e
comprometedor de uma decisão”, de uma “solidariedade profunda e
permanente, de uma inserção cotidiana no mundo do pobre” (Sinner, 2007).
Eles passavam pela “conversão” real para o povo. Muitos procuraram
combinar o trabalho acadêmico com contatos com paróquias ou comunidades
de base em áreas pobres, tentando criar um espaço onde o sofrimento das
pessoas era levado a sério e transformado em ação positiva. Como Clodovis Boff
(1990, p. 99) o expressa: “Antes de fazer teologia é preciso fazer libertação”, que
é, então, “pré-teológica”, e a teologia é sempre o “ato segundo” que se segue à
ação adequada. Isso implica o que é chamado de “ruptura epistemológica”, pois
se dá à práxis prioridade epistemológica sobre a teoria, seguindo nisso intuições
do marxismo, mas também a conclamação do Concílio Vaticano II ao
compromisso pastoral na leitura dos sinais dos tempos (Gaudium et Spes 44).
A teologia é “uma reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra”,
afirma Gutierrez (1990). Embora não a descarte inteiramente, ela não concorda
com a teologia tradicional, dedutiva, particularmente aquela identificada com a
escolástica.
A Teologia da Libertação é uma teologia que partiu – e continua a partir –
da indignação com a assustadora pobreza a que milhões de pessoas na América
Latina e alhures estavam submetidas, em nítido contraste com a enorme riqueza
em que vivia uma diminuta minoria. A questão era “como ser cristão num mundo
de miseráveis” (Sinner, 2007).
Possivelmente a influência mais evidente da Teologia da Libertação foi
seu aprimoramento do tripé metodológico do cardeal belga Cardijn: “ver – julgar
– agir”, ou, em linguagem mais técnica, “mediação socio analítica”,
“hermenêutica” e “prática” (Sinner, 2007).

TEMA 3 – ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A TEOLOGIA PÚBLICA

Na década de 1980 de fato presenciou mudanças consideráveis em


termos de sujeitos e temas. Sujeitos, porque “os pobres”, ou mais amplamente,
4
“os oprimidos”, passaram a ser vistos e descritos mais e mais claramente como
pessoas concretas com um rosto, e não como uma categoria supostamente
homogênea.
Mas foi principalmente na década seguinte que as mulheres começaram
a reivindicar abertamente seu papel específico e clamar por libertação. Uma
teologia com base na experiência dos afro-brasileiros também passou para o
primeiro plano, como aconteceu no caso dos povos indígenas.
Assim, “os pobres” ou “oprimidos” tornaram-se identificados mais
especificamente, e entre eles havia pessoas que não eram todas materialmente
pobres, mas ainda assim oprimidas. Como definiu Gutiérrez (1990): “os pobres
são as não-pessoas, os ‘insignificantes’, os que não contam nem para o resto da
sociedade nem, ‘frequentemente demais’, para as igrejas cristãs”.
Alguns pontos devem ser considerados, reafirmando ideias centrais,
particularmente a opção pelos pobres. É preciso reformular categorias básicas
para realçar a “humanidade”, “vida cotidiana” e “sociedade civil” e denunciar a
exploração do mais fraco (Sinner, 2007). Os teólogos da libertação não
apresentam um projeto novo, e inclusive parecem abandonar inteiramente a
noção de projeto histórico, abandonando o que era outrora o seu elemento mais
central.
De fato, a Teologia da Libertação deveria lidar com problemas concretos
da sociedade para contribuir com sua solução. Além de apontar para as
deficiências de uma democracia incompleta e de uma economia de mercado
excludente, e para o perigo de idolatria em seus traços religiosos, a Teologia da
Libertação deveria, em cooperação interdisciplinar principalmente com cientistas
políticos e especialistas no direito, procurar possibilidades e alternativas na
sociedade, continuando, ao mesmo tempo, a se empenhar por reformas dentro
da igreja (Sinner, 2007).

TEMA 4 – RUMO A UMA TEOLOGIA DE CIDADANIA

“Cidadania” tornou-se o termo chave para a democracia no Brasil, embora


haja diferenças consideráveis quanto sobre ao que isso significa exatamente.
Em termos gerais, pode-se dizer que a cidadania tem a ver com o “direito a ter
direitos” em uma situação de “apartheid social”, onde prevalece a exclusão.
Portanto, um importante desafio da cidadania efetiva é que todas as
pessoas compreendam que realmente têm direitos, pois elas são cidadãs. Isso
5
pode parecer óbvio, mas não é em uma sociedade com milhões de pessoas
lutando pela mera sobrevivência, vivendo com menos de 1 ou 2 dólares norte-
americanos por dia, em contraste assustador com a renda e a riqueza de um
pequeno número de pessoas.
Em nosso país há pessoas que têm sua primeira fotografia tirada no dia
de sua morte; muitos recém-nascidos não são registrados e, logo, não existem
juridicamente; as pessoas sofrem total abandono social; e a polícia é corrupta,
incompetente e violenta. Portanto, o desafio da cidadania não é óbvio.
Tampouco é óbvio em um país com uma organização social e política que
é tradicionalmente muito patriarcal e clientelista, onde não é a lei que define os
relacionamentos, ou onde ela sequer os protege.
Uma nação se torna forte e unida quando seus cidadãos são capazes de
compreender e assumir juntos as tarefas comuns envolvidas na vida
compartilhada, empenhando-se em conviver uns com os outros e, com isso,
estabelecendo um “projeto nacional” (Sinner, 2007). Porém, onde a sociedade
está dividida entre as elites e as “massas populares”, a construção de uma nação
é tarefa extremamente difícil.

TEMA 5 – UMA TEOLOGIA PÚBLICA PARA O BRASIL

Como afirmamos antes, “teologia pública” não é um termo usado


comumente no Brasil. Um dos poucos lugares que o faz um de seus programas
é o Instituto Humanitas, da universidade jesuíta de São Leopoldo, a Unisinos.
Fundado em 2001, o Instituto organiza anualmente simpósios, publica livros e
artigos sob o título de “Teologia Pública”, com um espectro muito amplo de
temas, principalmente no campo sistemático (diálogo inter-religioso, ecologia,
ética, teologia na universidade, método na teologia etc.) De acordo com seu
website, o Programa de Teologia Pública propõe uma teologia que, de maneira
inter e transdisciplinar, participa ativa e proativamente do debate da esfera
pública da sociedade, especialmente da academia, apostando na possibilidade
de um profícuo diálogo entre Fé e Ciência.
Um tanto ironicamente, esse programa está localizado em uma
universidade que se originou de um seminário fundado no início do século XX
por missionários jesuítas alemães, mas não abriga uma faculdade de Teologia.
É, então, o Instituto Humanitas que garante mais explicitamente a
presença da religião e da teologia no ambiente de uma universidade confessional
6
particular. Os dois principais aspectos da teologia pública na compreensão do
Instituto: uma teologia em diálogo com a sociedade contemporânea e, mais
especificamente, com a comunidade científica; abordar questões da sociedade
contemporânea; confirmar seu lugar na universidade; e ser comunicável à
comunidade científica, religiosa e política, particularmente à sociedade civil, mas
também à economia.
Qualificando-a mais especificamente como uma teologia da cidadania,
como indicamos acima, os principais desafios atuais podem ser abordados,
mantendo-se, ao mesmo tempo, o conceito aberto a outros e novos desafios na
sociedade.
Ao insistir em uma reflexão racional, comunicável e pluralista, essa
formação força os estudantes a se envolverem com colegas de outras tradições
e com posições diferentes, rompendo a homogeneidade típica de gueto que eles
tendem a vivenciar em sua própria igreja.
Não há, naturalmente, garantia de que isso vá fazer uma diferença
duradoura, mas é um espaço promissor para testar concepções alternativas
sobre as igrejas, sua tarefa e atividade na esfera pública.

NA PRÁTICA

1. Assim como Jesus demonstrou ao mundo uma fé pública, declarando


para quem quisesse ouvir os valores do reino de Deus, assim deve ser a
postura de um teólogo contemporâneo: falar com todos a respeito da
salvação e do papel que a teologia exerce na sociedade.
2. Cada teologia está inserida em um determinado contexto, e deve declarar
de forma profética o que precisa ser realizado para que a justiça prevaleça
e a igualdade entre as pessoas seja uma utopia constante.
3. A teologia existe em tempo e sequência, por isso abordamos questões
relacionadas com a teologia em movimento. Ela está inserida em um
período histórico que precisa ser respeitado, e nesse mesmo tempo ela
procura ser ouvida.
4. A teologia se faz à luz das escrituras sagradas; o pensamento bíblico é a
base para que os fundamentos teológicos sejam construídos.

7
FINALIZANDO

A fé cristã na sua essência é pública. Está intrínseco no conceito de fé


que ela deve ser propagada para todos, e nesse sentido a teologia tem o serviço
de ajudar a articular a fé para que ela possa ser promulgada com base em
determinado contexto, respeitando as considerações bíblicas e acadêmicas para
tal.
A teologia pública tem a capacidade de ver o que está acontecendo ao
redor, logo após analisar os dados de forma crítica, tendo como base normativa
as escrituras sagradas, para em seguida propor ações sanadoras dos problemas
sociais.
Pelo fato de a teologia ter esse aspecto libertador, no contexto da América
Latina, essa tese foi aplicada com desdobramentos que devem ser analisados.
De certa forma, a teologia caminha para a cidadania, porque orienta os
sujeitos para que sejam conscientes de seus direitos e ainda enunciam para as
outras pessoas a sua condição de igualdade e valor diante de Deus.

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REFERÊNCIAS

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ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. R. M. (Eds.). Conceptos fundamentales de la
teología de la liberación. Madrid: Trotta, 1990. p. 79-113.

_____. Teologia e prática: a teologia do político e suas mediações. Petrópolis:


Vozes, 1978; CNBB, Brasília: CNBB, 2006.

BOFF, L. Teologia à escuta do povo. Petrópolis: Vozes, 1981.

BOFF, L; BOFF, C. Como fazer teologia da libertação. 8. ed. Petrópolis: Vozes,


2001.

CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na América


Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI. São Paulo: Paulus, 1996.

GUTIÉRREZ, G. Pobres y opción fundamental. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J.


R. M. (Eds.). Conceptos fundamentales de la teología de la liberación.
Madrid: Trotta, 1990.

GUTIÉRREZ, G. Renewing the Option for the Poor. In: BATSTONE, D. et al.
(Eds.). Liberation Theologies, Postmodernity, and the Americas. London;
New York: Routledge, 1997. p

GUTIÉRREZ, G. Teologia da libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola,


2000.

SINNER, R. V. Confiança e Convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São


Leopoldo: Sinodal, 2007.

TRACY, D. A imaginação analógica. A teologia cristã e a cultura do pluralismo.


São Leopoldo: Unisinos, 2006.

9
TEOLOGIA E SOCIEDADE
AULA 4

Prof. Cícero Bezerra


UMA CULTURA DE PAZ

Antes do II Concílio Vaticano, o teólogo luterano francês Oscar Cullmann


(1902-1999) sugeriu uma coleta mútua: os católicos romanos fariam uma coleta
para os protestantes e vice-versa. Citou a Carta de Paulo aos Gálatas 2.10,
resultado do acordo entre Pedro e Paulo:

e, quando conheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João,


que eram reputados colunas, me estenderam, a mim e a Barnabé, a
destra de comunhão, a fim de que nós fôssemos para os gentios, e
eles, para a circuncisão; recomendando-nos somente que nos
lembrássemos dos pobres, o que também me esforcei por fazer.

A igreja dos apóstolos de certa forma separava em duas ações a


comunhão e a missão, especificando atividades distintas e enfatizando a ajuda
para os pobres.
A base bíblica citada por Cullmann apresenta a alternativa de uma
dedicação profunda, sem ter no seu contexto a ideia de tirar pessoas de outras
religiões. A ênfase está na fraternidade e na confiança mútua entre as pessoas.
Existe a necessidade de uma harmonia conceitual, espiritual e filosófica
para que a paz permaneça entre as religiões e acabe espalhando-se para toda
a sociedade.
A postura da Teologia deve ser a de promover a paz e estimular a
verdadeira união entre os seres humanos. Como disse Jesus: Paz na terra aos
homens de boa vontade...

CONVERSA INICIAL

Levando-se em conta o caráter formador e orientador ético da Teologia,


deve-se propor para a sociedade de forma geral a possibilidade de viver-se em
harmonia entre os povos. Cabe aos teólogos apontarem os caminhos para que
as pessoas desenvolvam confiança entre si e vivam de tal forma que a sociedade
seja harmoniosa e protetora. Nada de desavenças e destruição aterrorizante
como vivem as pessoas atualmente. Esta aula pretende apresentar conceitos e
propostas a respeito de uma cultura de paz, sobre a possibilidade de se viver
bem, sem destruir o próximo.

2
TEMA 1 – SOLIDARIEDADE E PAZ ENTRE AS RELIGIÕES

Abordar os temas relacionados à solidariedade e à paz em situações de


conflito não é fácil. Precisa-se desenvolver um certo esforço e dedicação para
que a paz prevaleça e as religiões cumpram com sua vocação, isto é, a unidade
entre os povos. Na Carta aos Efésios, o autor escreve: “Rogo-vos, pois, eu, o
prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes
chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-
vos uns aos outros em amor, esforçando-vos diligentemente por preservar a
unidade do Espírito no vínculo da paz” (Efésios 4.1-3).
Existem alguns valores que são básicos para se estabelecer uma cultura
de paz com vistas a buscar a unidade. O conceito de unidade não significa que
todos os procedimentos são iguais. Precisa-se respeitar a cultura e os valores
de um povo. Quando essa base não é respeitada, as ações das igrejas se tornam
comprometidas e o testemunho perante a sociedade acaba sendo distorcido.
As comunidades de fé têm um compromisso perante todos os cidadãos
para que eles sejam impactados pela unidade.
Quando os discípulos foram enviados de dois a dois, para transmitirem as
mensagens das boas novas, receberam algumas orientações da parte de Jesus.

1) “Paz seja nesta casa” (Lucas 10.5) A mensagem do evangelho deve, em


primeiro lugar, apresentar para as pessoas a possibilidade da paz. Mesmo
em situações adversas, a chamada do evangelho pressupõe que as
pessoas possam usufruir da paz que está disponível para todos.
2) “Deverão comer e beber o que lhes for dado, aceitando a hospitalidade
local” (Lucas 10.7). Assim está estabelecido o conceito da hospitalidade.
Ser recebido numa casa é uma honra e, por sua vez, aquele que está
recebendo um estrangeiro ou até mesmo um compatriota na sua
residência será abençoado. Na cultura judaica, o sentido de hospitalidade
é muito forte. Na mente dos judeus, prevalece a ideia do que aconteceu
com Abraão: alguns, sem saber, receberam os anjos.
3) “Curai os doentes que aí se acharem” (Lucas 10.9) A benção da cura
estava junto com eles, Jesus os comissionou para que orassem pelas
pessoas e, se necessário, deveriam pedir pela cura. Essa prática foi
exercida por Jesus durante todo seu ministério e nesse caso, Jesus os
capacita para isso.

3
4) “A vós outros está próximo o reino de Deus!” (Lucas 10.9). Jesus não
estava pregando uma religião, ele tinha o compromisso de anunciar o
reino de Deus. Os princípios e valores do reino de Deus deveriam ser
difundidos: todas as pessoas seriam iguais; a exclusividade não deveria
prevalecer entre os povos; cada pessoa era tratada com dignidade e
respeito. Esse reino tem como rei um Deus de amor, graça e bondade à
disposição de todos.

TEMA 2 – A PAZ TEM UM PREÇO

Ao se analisar a história, pode-se chegar a conclusões por vezes


assustadoras.
Da Primeira Guerra Mundial, nos campos de Beaumont-Hamel, ainda se
encontram crateras de bombas e trincheiras feitas pelos soldados, agora
tomadas pela relva e escondidas do olhar dos desavisados. Na Normandia, um
bunker alemão da Segunda Guerra Mundial compõe o cenário de uma praia
onde turistas podem tirar fotos. Em Hiroshima, Japão, a apenas 150 metros do
epicentro da explosão atômica que matou entre 90 e 166 mil pessoas na cidade
permanecem em pé as ruínas da Cúpula Genbaku, como memorial de um dos
ataques mais cruéis da história.
O clímax da maldade humana se evidenciou em Schwartz, Auschwitz,
região ao sul da Polônia, onde os nazistas construíram uma rede de campos de
concentração e um campo de extermínio para judeus. Estima-se que cerca de
1,3 milhão de pessoas morreram ali.
As sagradas escrituras dizem: nos últimos dias haverá tempos difíceis. As
pessoas serão egoístas, avarentas, orgulhosas e arrogantes. Elas falarão mal
de Deus, desobedecerão aos pais e serão ingratas. Elas não terão amor pelos
outros, não perdoarão a ninguém, serão caluniadoras, não terão domínio próprio,
serão cruéis e inimigas do bem. Elas também serão traidoras, atrevidas, estarão
cheias de orgulho e amarão mais os prazeres do que a Deus.
A paz é um valor e uma virtude a ser buscada. Em primeiro lugar, existe
espaço para todos no planeta. O meu espaço não deve ser conquistado em
detrimento do prejuízo do outro. Devo zelar para que o próximo viva bem e tenha
as mesmas oportunidades de vida que eu tenho.
Em segundo lugar, devo ter um compromisso de divulgar a paz. Devo
dizer e proclamar para todos que é mais fácil viver sem brigas e guerras e que
4
as violências no planeta destroem e prejudicam a criação. Dizer que, na história,
milhões perderam a oportunidade de vida devido à violência, à força e à
imposição.
Terceiro, os instrumentos sociais disponíveis devem ser usados para a
paz. Assim, a educação é fundamental. O indivíduo consciente da bondade e
harmonia e com suas necessidades emocionais atendidas não vai usar de
violência. As comunidades de fé e mobilização de pessoas devem exercer um
papel importante para que a paz seja divulgada. Um grupo que estimula e preza
pela violência acaba estimulando a muitos outros.
A paz é possível para todos. Quando assumimos um compromisso com a
vida, estimulamos a paz, nos aproximamos do próximo e caminhamos na direção
da solidariedade e da compaixão entre as pessoas. Viver em paz torna-se mais
fácil do que sobreviver em meio às guerras.

Fora a primeira vez em 500 anos que se reuniram delegados católico-


romanos, ortodoxos e protestantes, ocidentais e orientais, com igual
direito a voto, para trabalhar os três assuntos da pauta, embora com o
título um tanto modificado: “Paz na Justiça”. Diferente de outras partes
do mundo, como na América Latina, onde se insistiu muito que não
poderá haver paz sem justiça e que, portanto, ela deveria vir antes da
paz no título, a Europa estava mais preocupada com a paz, ainda em
plena Guerra Fria. (Sinner, 2007, p. 20)

Um evento inovador foi a passagem de pessoas nos três países


fronteiriços, Alemanha, França e Suíça de maneira livre, sem necessidade de
apresentação de passaporte. Um dos destaques do evento foi o físico alemão
Carl Friedrich von Weizsäcker, que deu ênfase aos temas a serem debatidos,
levando em conta a necessidade de uma temática objetiva da parte das
comunidades da fé, destacando a proposta conciliadora de Bonhoeffer.
Junto ao programa oficial aconteceu uma oficina que se destacou. A
Oficina do Futuro foi uma forma de apresentar os movimentos, as diversas
congregações e diversos outros assuntos.
As reações dos grupos foram diversas. Uma associação de oficiais do
exército da Suíça defendeu uma ideia de paz garantida pela força militar. Por
outro lado, um grupo de frades franciscanos apresentou a ideia de transformar
os canos dos fuzis em flautas, inspirados por Isaías 2.4 (Miquéias 4.3): “ele
julgará entre os povos e corrigirá muitas nações; estas converterão as suas
espadas em relhas de arados e suas lanças em podadeiras; uma nação não
levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra”.
5
Após o evento as pessoas foram incentivadas a se engajar pela paz com
justiça e a preservação da criação realizada por Deus. A consequência principal
foi que, 6 meses depois, o muro de Berlim, que era o principal símbolo da guerra
fria e do mundo dividido, caiu. O resultado foi numa nova aurora, que se
assemelhava à antiga. A cortina de ferro e a separação entre o oriente e o
ocidente veio à tona, surgindo a necessidade de se organizar a 2ª Assembleia
Ecumênica Europeia, sob o tema da reconciliação, em Graz (Áustria), no ano de
1997.
Novamente houve boa participação de protestantes e católicos romanos
e uma convivência inspiradora e pacífica das diversas igrejas e movimentos que
estavam participando. Destacou-se um clima de paz e uma disposição de
cooperação principalmente com base nos principais eixos de debate na época:
justiça, paz e integridade. O bom resultado é que esses valores prevalecem nas
diversas igrejas e regiões do mundo e do ambiente religioso.

TEMA 3 – VALORES PARA UMA CULTURA DE PAZ

A palavra de Deus pode ser uma base conceitual e ideológica para


aqueles que buscam a paz. Cabe a cada povo e a cada cidadão tomar como
base para si mesmo e para a sociedade orientações e alternativas que estimulem
a paz. Tem-se observado que alguns líderes de impacto na história não têm
seguido a palavra de Deus e os ensinamentos de Cristo, que estimulam a paz e
orientam seus seguidores a praticá-la.
Em 1970 o primeiro-ministro alemão Helmut Schmidt, socialdemocrata e
cristão, afirmou, de forma negativa, que não era possível desenvolver ações
políticas levando em conta os princípios do sermão do monte. Frases como
Mateus 5.39: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer
que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” seriam pura ingenuidade.
Sua base de raciocínio era que o texto fora escrito em outras épocas, que a
Palestina do tempo de Jesus tinha uma realidade diferente do contexto da
Alemanha da guerra fria. Se esse raciocínio fosse correto, poderia se afirmar que
nenhum outro texto bíblico pode ser aplicado aos nossos dias.
Max Weber faz uma importante constatação: o sermão do monte seria
uma ética apenas para os que tem o anelo da santidade, contrária à ética
convencional. Ele analisa a ética tomando como base causa e efeito. Com
certeza não se deve usar o sermão do monte como base para ações políticas.
6
Portanto, pode-se usar como referencial valores que levam em conta os
princípios cristãos, e a mensagem principal pode ser utilizada: o amor e respeito
ao próximo.

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos
digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face
direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e
tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar
uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas
ao que deseja que lhe emprestes. (Mateus 5.38-42 citado por Sinner,
2007)

Por sua vez temos o princípio de talião.

O chamado princípio do talião, “olho por olho, dente por dente” (Êxodo
21.24), regia que não se podia aplicar mais violência ao infrator do que
o crime por este cometido, diferente, por exemplo, da vingança
exagerada de Lameque (Gênesis 4.24). Era, portanto, uma restrição
de retaliação para colocá-la dentro da lei. Jesus, porém, vai além e
exige a renúncia total à vingança, dando ao agressor até mais do que
exige. Paulo reforça essa ideia em Romanos 12.17-21, culminando na
regra principal: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o
bem” (Romanos 12.21). (Sinner, 2007, p. 76)

A tese principal é de não entrar na ideia do agressor que é de revidar a


violência com violência e sim oferecer uma alternativa para resolver as situações.
Outra forma de entender é que o sermão do monte pode servir de referencial de
ética que se aplica à política. Como de forma usual, a Bíblia se aplica a diversas
situações da vida, destacando o conceito de paz tanto no grego quanto no
hebraico, levando em conta o bem estar da pessoa de forma integral, seguindo
os valores apresentados pelo apóstolo Paulo, I Cor 13,1-13, a fé a esperança e
o amor.

TEMA 4 – CONFIANÇA E FÉ

Um valor imprescindível para que a paz aconteça é a confiança entre os


povos. Geralmente as guerras são consequências das desconfianças e intrigas
estabelecidas entre os povos. O engodo, a falsidade e as notícias falsas
promovem as desavenças e o espírito vingativo.
Deve-se destacar a confiança como um princípio fundamental.
Basicamente, a vida acontece com base na confiança. Não é possível viver sem
se acreditar no motorista de ônibus, no piloto de avião, na pessoa que faz as
refeições etc. Sem confiança, as coisas não acontecem.
Algumas pesquisas apresentam dados de que não existe confiança no
Brasil. As pessoas não acreditam nos órgãos representativos da sociedade.
7
Dezessete países da América Latina foram pesquisados e o Brasil aparece em
último lugar. Apenas 4% dos entrevistados afirmaram que confiam nas pessoas.
Não estão querendo dizer que não existe nada de confiança. Essas
pessoas afirmam que não confiam em pessoas que não conhecem. A mesma
pesquisa mostra que a população confia nos bombeiros, nos colegas de trabalho
nos amigos da escola e nos vizinhos. Ainda de acordo com a pesquisa, a igreja
católica está em primeiro lugar na lista de confiança, atrás apenas dos médicos.
Conclui-se que as igrejas são detentoras de confiança e, supõe-se, de
credibilidade. Portanto, elas têm a responsabilidade de serem dignas da
confiança e da credibilidade atribuídas a elas. Vale lembrar que a confiança é
um valor importante da fé cristã.

No Antigo Testamento, o equivalente é o grupo de palavras ligadas a


‘amn’, palavra que conhecemos de cada oração e culto: “Amém!”
“Firme!”. O verbo significa “estar firme, confiar, ter fé, crer”. Portanto a
confiança e conceitos afins têm destaque muito grande na Bíblia,
sendo ligados à própria fé. (Sinner, 2007, p. 18)

A primeira promessa foi uma reação da fé de Abraão no senhor Deus,


“teve fé no Senhor, e por isso o Senhor o considerou justo” (Gênesis 15.6). Pela
fé, somos inseridos na comunhão com o Senhor. A fé ultrapassa as fronteiras
religiosas e sociais, e, diante de Deus, torna todos iguais. “Não há mais nem
judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais
o homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gálatas 3.28).
A confiança também acontece fora do ambiente da fé, procura ser
inclusiva e ajuda a superar as desigualdades, apresentando alternativas de
convivência e incentivando a igualdade. É um desafio constante para uma boa
convivência e confiança entre as pessoas. Não é possível a paz sem a base da
confiança. Não existe a ideia da perfeição, pois somos limitados como seres
humanos. Somos justos e pecadores ao mesmo tempo. O que sustenta essa
fundamentação é a confiança em Deus. Levando em consideração essa base,
cabe aos cidadãos construir uma cultura de paz e de confiança (Sinner, 2007, p.
13).
A confiança e o respeito fazem parte de um código de valores e princípios
que servem de base para que os povos vivam de forma harmônica e que a paz
prevaleça apesar das diferenças, aqueles que vivem e tem a paz como
referência devem promover ações que divulguem esses valores e ter como ideal
de vida que eles sejam transmitidos para várias pessoas.

8
TEMA 5 – VISÃO E ESPERANÇA

É fácil chegar-se à conclusão de que falta esperança para os povos. As


pessoas andam desiludidas com seus valores, as coisas não funcionam, os
governos não cumprem com seus programas, as capacitações não resultam em
melhorias de vida. A desilusão e a falta de esperança são comuns entre as
pessoas.
Tornou-se um lugar comum da expressão das pessoas: “a esperança é a
última que morre”. Essa ideia é muito boa, mas na realidade nem sempre
acontece, principalmente em decorrência da violência na sociedade. A fome, as
doenças, a violência contra as crianças, as guerras, o tráfico de drogas. De certa
forma, a dignidade humana foi comprometida devido às agressões e sofrimentos
que tem alcançado a muitos.
Deus criou o ser humano dando a ele a capacidade de escolher entre o
bem e o mal. Os princípios e valores estabelecidos por Deus se evidenciam pela
fala de Jesus e os princípios do seu reino. Chegará um tempo em que Deus irá
demonstrar seu amor de forma definitiva. Deus “lhes enxugará dos olhos toda
lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor,
porque as primeiras coisas passaram” (Apocalipse 21.4; cf. Isaías 25.8). “Eis que
faço novas todas as coisas” diz, na mesma visão, aquele sentado no trono
(Apocalipse 21.5).
A vida deve ser orientada com base na fala de Jesus: “buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas” (Mateus 6.33). “Estamos, portanto, norteados por uma visão,
uma esperança que, no entanto, já se faz presente. Vivemos, como diria Dietrich
Bonhoeffer (1906-1945), no penúltimo, já com a presença do derradeiro, mas na
tensão entre os dois” (Sinner, 2007, p. 78).
Como cristãos devemos formar nossos pensamentos segundo os
princípios ensinados por Jesus. Estamos sendo enviadas ao mundo “como
cordeiros para o meio de lobos” (Lucas 10.3) – e não vice-versa. Contudo, não
precisamos nos conformar com este mundo (Romanos 12.2), pois ele não é
como deveria ser. Nesse sentido, também a paz orientadora não é a paz do
mundo, mas a paz que Jesus nos deixa (João 14.27). Existe uma paz
transcendente, que vem da parte de Deus e está disponível para os seguidores
do Cristo, que apesar de todo sofrimento, não perdeu a sua paz (Sinner, 2007).

9
NA PRÁTICA

1) Para que a segurança entre as pessoas seja assegurada é preciso uma


estrutura policial eficiente, que tenha boa estrutura de trabalho. Pessoas
mal remuneradas, que estão em constante perigo, acabam transformando
sua falta de aptidão na morte de outras pessoas. É preciso uma
capacitação adequada e certo nível de acompanhamento por psicólogos,
capelães, a serviço desse grupo de profissionais que oferecem segurança
para a população.
2) A noção de segurança depende das bases da confiança, que por sua vez
não acontece se não for estabelecido um encontro constante entre as
pessoas. Destaca-se cada vez mais o isolamento das pessoas mais
abastadas em suas casas com muros altos e cercas elétricas e a
segurança cada vez mais fortalecida. Apesar de toda estrutura de
segurança, o medo não tem diminuído, pois cada pessoa que surge nesse
ambiente pode ser um ladrão. As comunidades religiosas podem oferecer
para as pessoas espaços para em que os encontros aconteçam e as
noções de confiança sejam fortalecidas. A cooperação entre as religiões
acaba se transformando em laços de amizade que influenciam a
sociedade.
3) A sociedade precisa oferecer apoio para aqueles que sofrem violência,
seja em qual instância for, na casa, no trabalho, na rua, nas escolas e às
vezes no ambiente da religião. Quando os atos de violência são
detectados, devem ser tratados para que não se multipliquem.
4) Frente ao desemprego, que tem sido uma constante na sociedade, o
crime se apresenta como uma solução. O dinheiro fácil se torna uma
tentação. É fundamental que sejam criadas oportunidades de trabalho
para todos e que o ser humano sinta a dignidade e possa viver de forma
satisfatória. Atividades com especificações devem ser desenvolvidas
como uma forma de ação preventiva. As igrejas podem se tornar uma
opção, oferecendo alternativas, sem interesse e sem autopromoção.
5) Cabe uma ação para pessoas que têm passado pelos presídios. A taxa
de pessoas que acabam voltando para as casas de detenção é elevada.
Isso se deve à falta de um programa de ressocialização. As pessoas
precisam de ajuda para serem reintegradas na sociedade. Com a falta de

10
perspectiva, alguns preferem voltar para a prisão. Algumas igrejas têm
cumprido uma importante tarefa nesse sentido.

FINALIZANDO

Vive-se numa sociedade violenta e o medo impera em todas as


localidades do mundo atual. Cabe às religiões serem exemplo a respeito desse
assunto.
A Teologia tem uma função ética e moral na sociedade. O teólogo deve
conhecer e apresentar para os outros os princípios e valores para que uma
cultura de paz prevaleça.
Se a religião tem a tarefa de apresentar alternativas de paz para a
sociedade, ela primeiro deve praticá-la em seu próprio ambiente.
O trabalho pela paz exige um preço, tanto para indivíduos quanto para as
instituições. O preço da paz é trabalho, dedicação e abnegação da parte
daqueles que estão envolvidos no processo.
Existem alguns valores e práticas que devem ser desenvolvidos para que
uma cultura de paz aconteça. Esses valores são pontuados de forma prática e
abrangente. A paz não acontece por acaso, ela é resultado de compromisso.
Nesta aula apresentamos uma série de princípios e valores a serem
praticados para que a cultura da paz aconteça.

11
REFERÊNCIAS

BARTH, K. Comunidade Cristã e Comunidade Civil. In: ALTMANN, W. (Org.).


Dádiva e Louvor. Artigos selecionados. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996.

BONHOEFFER, D. Ética. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um


empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio; São
Bernardo do Campo: UMESP, 1997.

CONIC. Dignidade humana e paz. Novo milênio sem exclusões.. São Paulo:
Salesiana, 2000.

CULLMANN, O. Cristo e o tempo: tempo e história no cristianismo primitivo.


Completado por um exame retrospectivo. São Paulo: Custom, 2003

KÜNG, H. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da


sobrevivência humana. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1990.

KÜNG, H. Paz mundial – religião mundial – ethos mundial. Concilium, n. 253, p.


159-173, 1994.

MEYER, H. Diversidade reconciliada – o projeto ecumênico. São Leopoldo:


Sinodal, EST, 2003

SINNER, R. Confiança e Convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São


Leopoldo: Sinodal, 2007

TIEL, G. Ecumenismo na perspectiva do reino de Deus. Uma análise do


movimento ecumênico de base. São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 1998

WEBER, M. O político e o cientista. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1979.

WEIZSÄCKER, C. F. O tempo urge. Assembleia mundial de cristãos em prol de


justiça, da paz e da preservação da natureza. Petrópolis: Vozes, 1991.

12
TEOLOGIA E SOCIEDADE
AULA 5

Prof. Cicero Bezerra


DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

CONVERSA INICIAL

“Diante de uma briga entre ascetas, sacerdotes e monges itinerantes


sobre a verdade, o buda contou a seguinte parábola: um rei mandou
chamar todos os cegos da cidade para se reunirem num determinado
local. Assim que todos tinham chegado, ele mandou colocar um
elefante diante deles. O servidor do rei mostrou o elefante para eles:
para uns, a cabeça, para outros, a orelha, o dente, a tromba, o pé e
assim por diante.
Depois, o rei chegou perto dos cegos e perguntou: “viram o elefante?”
“vimos, senhor”, responderam eles. “então me digam”, continuou o rei,
“com que se assemelha o elefante?”. Disseram-lhe aqueles que viram
a cabeça: “o elefante, senhor, é como uma vasilha”. Os que viram o
dente disseram: “o elefante, senhor, é como um arado”. E de
semelhante modo falaram os outros.
Começaram a brigar entre si: “o elefante é assim”; “não, não é assim,
é assim...”, e bateram um no outro. O rei assistiu à briga, divertindo-se.
Essa famosa parábola é, muitas vezes, contada para mostrar como
todas as religiões e suas vertentes percebem algo da verdade, mas
não sua íntegra, portanto, todas seriam igualmente verdadeiras e
restritas. Porém, esquece-se um importante fator nessa leitura: o rei,
que na parábola representa o próprio buda, vê tudo, tanto o elefante
inteiro quanto os cegos e a cegueira deles. Na sua distância, o buda
conhece a verdade toda. Somente a partir desse pressuposto pode-se
falar de certa igualdade entre os diferentes grupos à busca da verdade,
que seriam como cegos que veem apenas parte da verdade, e ainda
com pouca precisão. (Sinner, 2005)

Em suma: o tema religião tem vários pontos de vistas, depende de quem


está analisando, a forma como a análise está sendo desenvolvida e as
conclusões são permeadas por questões diversas.
O diálogo a respeito das religiões não é simples. Precisam ser feitas
diversas concessões para que as conversas aconteçam. Cada religião tem sua
base de fé. Quando se fala do cristianismo, estamos falando de uma religião
monoteísta e que preza por um só Deus, uma só fé e um só batismo. Tudo o
circula em torno das verdades cristãs são específicas e centralizam na pessoa
de Jesus Cristo. Já o budismo tem a figura do buda, o hinduísmo, uma multidão
de deuses, o islamismo, de Alá e de Maomé (seu profeta), e o Judaísmo gira em
torno da pessoa do deus único, Jeová. Nesta aula, estudaremos as bases
dessas religiões e a forma como elas dialogam entre si.

TEMA 1 – MODELOS DE RELACIONAMENTO INTER-RELIGIOSO

Vamos ler sobre um panorama dos modelos de relacionamento inter-


religioso, seguido por uma exposição da compreensão de Karl Rahner sobre o
que ele chamou de cristãos anônimos. Em seguida, a posição do Raimon
2
Panikkar sobre o “Cristo desconhecido” e, logo, sua hermenêutica. Por fim, uma
“hermenêutica da confiança” como base do diálogo inter-religioso.
Paul Tillich (1886-1965), já trabalhando a correlação da cultura com a
religião cristã, abriu-se mais e mais para o conhecimento de e o diálogo com
outras religiões.
Depois de uma grande abertura no século XIX, especialmente com
Friedrich Schleiermacher (1768-1834), e no início do século XX, com pensadores
de peso como Ernst Troeltsch (1865-1923), a devastadora experiência de duas
guerras mundiais revelou graves erros na teologia contemporânea e propiciou
uma forte suspeita de cada empreitada humana, cultural e religiosa.
Karl Barth (1886-1968), com base nas devastadoras experiências feitas
no nazismo na Alemanha e seu caráter quase religioso, chegou a ver a religião
como nada mais do que uma fútil procura humana que não pode chegar a Deus,
pois seria nada mais do que a construção autônoma de uma imagem de Deus
diante da qual o ser humano tentar-se-ia justificar e santificar a si mesmo. A
verdadeira fé, no entanto, partiria de Deus, e somente Dele.
Dessa forma, Barth conseguiu bloquear a discussão sobre religião nos
meios protestantes ocidentais por várias décadas. Não por último, por causa dos
colegas católicos que chegaram, gradativamente, a retomar a religião e,
portanto, as religiões como tema da teologia, a “guinada antropológica” de
Rahner veio bem na contramão da “suspeita antropológica” de Barth.

TEMA 2 – PRINCIPAIS ABORDAGENS DO MODELO INTER-RELIGIOSO

Desde os anos 1980, virou lugar comum na literatura sobre o diálogo inter-
religioso distinguir entre três modelos principais de relacionamento entre
religiões: o exclusivismo, o inclusivismo e o pluralismo. Assim como toda
esquematização, essa também tem seus problemas. No entanto, essas
categorias são úteis para mostrar o caráter da linha de pensamento de
denominado autor.
Karl Barth é um claro representante do exclusivismo, embora de forma
mais aberta do que em geral se pensa. Karl Rahner entra no inclusivismo.
Panikkar faz a transição para o pluralismo. O que indicam, então, essas
categorias?
No exclusivismo afirma-se que existe apenas uma religião verdadeira: o
cristianismo. É a afirmação de que “minha religião é a única verdadeira”. Baseia-
3
se em afirmações bíblicas, tais como esta de Jesus: “Eu sou o caminho, e a
verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, 14.6), e esta de
Pedro em Jerusalém: “não há salvação em nenhum outro [sc. que não Jesus
Cristo]; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os
homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (Atos, 4.12).
O inclusivismo também pressupõe uma religião verdadeira, a cristã, mas
admite que haja elementos da verdade em outras religiões. Afirma-se que “minha
religião é a melhor”. Na teologia católica romana, é o modelo dos círculos
concêntricos: ao redor do Cristo, giram as religiões numa maior ou menor
distância do centro, ficando a Igreja Católica Romana a mais perto do Cristo.
Tem base na posição de Paulo no areópago de Atenas: “Passando e observando
os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: ao
Deus desconhecido. Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente
aquele que eu vos anuncio” (Atos, 17.23).
O pluralismo acredita na igual autenticidade de cada religião, nenhuma
sendo superior a outra. Podemos resumir na afirmação de que “todas as religiões
são verdadeiras”. É a posição dos diferentes autores da “teologia pluralista das
religiões”. Na Bíblia, encontramos traços dessa posição no livro de Jonas, no
qual os marinheiros “clamavam cada um a seu deus” e exigiram que Jonas
também o fizesse: “Levanta-te, invoca teu deus; talvez, assim, esse deus se
lembre de nós, para que não pereçamos” (Jonas, 1.4-6).
O cientista da religião Andreas Grünschloss, em estudos feitos sobre a
percepção da outra fé no islamismo, hinduísmo, budismo e cristianismo, introduz
mais um modelo: o exotismo, que seria a afirmação de que “a outra religião é
melhor do que a minha”.
Esse conceito reflete bastante bem o que acontece em círculos de classe
média urbana, em que, por exemplo, as religiões orientais – ou uma versão
ocidentalizada delas – parecem mais atraentes do que a tradicional religião
cristã. Contudo, ao falar do relacionamento entre religiões, duvido que o
“exotismo” seja um modelo adicional, já que quem se sente atraído, desta forma,
por outra religião, de fato já saiu da sua religião anterior. Quem está realmente
enraizado na sua religião dificilmente prefere outra, ainda que possa achar
atraentes elementos dela. Para fins deste artigo, ficarei com os três modelos já
tradicionais.

4
TEMA 3 – OS “CRISTÃOS ANÔNIMOS” DE KARL RAHNER

Karl Rahner era muito perspicaz em relação aos “sinais dos tempos”,
expressão bíblica (Mateus, 16.3) que recebeu proeminência na constituição
pastoral Gaudium et Spes (GS 11), do Concílio Vaticano II, e nos documentos
do Episcopado Latino-Americano, incentivando o desenvolvimento consciente
de uma teologia contextual.
Para ele, era inevitável reconhecer o pluralismo religioso, cada vez mais
óbvio também no ocidente cristão, e persistente mesmo com 2000 anos de
missão cristã. Rahner percebeu que essa situação permaneceria assim dentro
da história.
Ao mesmo tempo, mais do que outras religiões, o cristianismo afirma sua
exclusividade de salvação. Como, então, pensar, numa perspectiva teológica –
e não neutra como na(s) ciência(s) da religião – este pluralismo religioso? Ao
mesmo tempo que somente Deus revelado em Cristo dá a salvação, ele quer
essa salvação para todas e todos (1 Timóteo 2.4: “[Deus] deseja que todos os
homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”).
O ser humano, por sua própria natureza, está aberto para e está à procura
dessa salvação (este é o existencial sobrenatural) e a recebe a partir da graça
de Deus.
A graça de Deus é um favor imerecido que está disponível para todas
pessoas, basta acreditar nessa possibilidade. A salvação e o perdão dos
pecados são possíveis por meio de Jesus. Ele, sendo Deus, possibilita o perdão
dos pecados e a salvação eterna.
Todos os seres humanos têm a oportunidade do perdão dos pecados
como também a posse da vida eterna, tudo isso é possível mediante a obra
redentora de Jesus.
Rahner tinha uma compreensão ampla a esse respeito em virtude de sua
experiência com as demais religiões. Ele obteve uma compreensão ampla a
respeito da graça bondosa da parte de Deus para com todos que acreditam
nessa benção.
A graça, então, é dada, “sempre e por toda parte”. No entanto, é um fato
que o Cristo e, com ele, a revelação cristã entraram na história apenas num
momento específico, relativamente tardio. O que seria, portanto, das pessoas
buscando a salvação antes da vinda do Cristo? E o que seria das pessoas que

5
nunca ouviram dele? O resultado dessa preocupação pela salvação dos não
cristãos, na base dos conceitos teológicos mencionados, é o conceito dos
“cristãos anônimos”. “Todo homem deve ter a possibilidade de participar de uma
relação autêntica e salvadora com Deus”.
Enquanto Rahner tinha uma visão muito ampla, seu conhecimento
imediato, sua experiência com outras religiões era restrita. Portanto, parece
oportuno passar para um teólogo que se assemelha, inicialmente, ao
pensamento de Rahner, mas que teve a presença de mais de uma religião já no
seu berço e depois viveu um diálogo muito profundo com outras religiões, de
modo especial na Índia.

TEMA 4 – O “CRISTO DESCONHECIDO” DE RAIMON PANIKKAR

Na sua tese de doutorado, publicada em 1964, Raimon Panikkar


identificou um “Cristo desconhecido do hinduísmo”. Parece que esse conceito
reflete exatamente o que Rahner quis dizer com seus “cristãos anônimos”.
De fato, Panikkar entendeu que se pode reconhecer o Cristo em outras
religiões, por exemplo, no hinduísmo, mas que este Cristo seria mais visível no
cristianismo. Em uma carta a um intelectual hindu, escrita em 1957, Panikkar
escreve: “Deixa-me dizer, simplesmente, o que penso”.
O senhor já pertence à igreja – mesmo que de forma não completa. Cristo
está inspirando o senhor e acolhe sua colaboração para integralizar toda
verdadeira cultura indiana. Portanto, assumiu também uma posição inclusivista.
Verificaremos isso nestes dois trechos.

A fé consiste precisamente em reconhecer que Cristo, isto é, o Messias


de Israel, o Isvara do hinduísmo, o Tathágata do budismo, o Senhor, a
Luz, o Mediador, o Princípio, o Deus temporal, a Face visível do
Altíssimo, o Redentor, etc., segundo a nomenclatura das várias
religiões, é Jesus de Nazaré, o Filho de Maria e o esposo da Igreja [...].

Pelo próprio fato de que Cristo não veio para fundar uma nova religião,
em substituição às velhas religiões, mas veio para completar,
aperfeiçoar e conduzir à sua plenitude tudo o que Deus fez germinar
neste mundo, por este fato dizemos, a relação das religiões do mundo
com Cristo é análoga àquela que a história nos mostra já ocorrida no
caso do judaísmo.

Estritamente dito, não existem “não cristãos”, pois o Cristo está presente
sempre que tiver “um amor verdadeiro entre seres humanos”. E o cristianismo
na Europa é o “paganismo” europeu convertido, assim como o cristianismo na
Índia “é o próprio hinduísmo convertido a Cristo.

6
Portanto, para Panikkar, a Trindade também vira figura: Não é o Pai, o
Filho e o Espírito Santo, mas o inter-relacionamento entre as três dimensões da
realidade, um tipo de pericórese lido pelo relacionamento não dualista (a-dvaita).
Outro aspecto central, já presente em Rahner, é a ênfase dada a “ortopráxis”: “a
fé não é uma simples ‘ortodoxia’, mas é uma ‘orto-praxis’ existencial, mediante
a qual o homem pode crer em Cristo, mesmo se não tem a mínima ideia do seu
nome e da sua existência”.

TEMA 5 – UMA HERMENÊUTICA DA CONFIANÇA NO DIÁLOGO INTER-


RELIGIOSO

O diálogo inter-religioso dá-se em diferentes níveis.

1. Em um primeiro nível, existem proposições, ensinamentos, doutrinas e


outros tipos de conteúdo que podem estar diretamente opostos.
2. Em um segundo nível, mais profundo, temos atitudes diferentes, que
podem ser, no que nos interessa aqui, de abertura ou de fechamento, de
inclusividade ou exclusividade.
3. Em um terceiro nível, mais profundo ainda, temos a confiança de que ali
está o mesmo Deus; nas palavras de Panikkar: a mesma realidade
cosmoteândrica. Panikkar mesmo tem falado da “confiança cósmica”
(cosmic confidence).

A palavra soa, sem dúvida, um tanto harmoniosa, quase ingênua, como


se não existissem contradições e conflitos. Com base em uma perspectiva
libertadora com sua opção preferencial pelos pobres, Paul Knitter tem criticado
precisamente esse ponto, com a crítica no que tange ao problema da aparente
exclusão de conflitos em Panikkar.
Este vem usando a imagem de uma orquestra sinfônica composta de uma
grande variedade de instrumentos. Pergunta: quem garante que, desta
orquestra, sairá uma sinfonia e não uma kako-fonia, completamente dissonante
ou caótica?
Dissonâncias até podem fazer parte da composição, como nos mostram
muitas composições eruditas do século XX e da contemporaneidade. Contudo,
voltando à confiança, parece-me que ela é, realmente, a base de toda e qualquer
convivência – na sociedade e no ambiente cristão, como vimos anteriormente,
no diálogo inter-religioso. Ela significa apostar no acesso que o outro, a outra

7
tem na sua religião a Deus, que eu conheço apenas a partir da minha religião
específica.

NA PRÁTICA

Portanto, a atitude a ser adotada no diálogo inter-religioso, um


exclusivismo pluralista, reconhecendo o evangelho da minha religião com tudo
que implica, mas reconhecendo ao menos a possibilidade de que Deus possa
efetuar salvação também por meio de outras religiões.
A confiança em Deus, que é sempre maior e pode salvar de outras
maneiras do que aquela por mim conhecida, mas que certamente atua pelo
caminho revelado em Jesus Cristo pelo Espírito Santo, é a base dessa postura.
Nisto, no entanto, não posso nem devo abrir mão do Cristo como Jesus Cristo,
Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, caso contrário perderia o alicerce
principal da religião cristã que é minha fé.
Também a Trindade não é qualquer conjunto pericorético, mas é o Pai, o
Filho e o Espírito Santo em diálogo e como testemunhado pela Bíblia. Assim, ser
testemunho da minha fé e cumprindo a missão da igreja não é excluindo a
possibilidade da salvação em outras religiões, nem vice-versa.
O diálogo implica uma posição própria e uma postura de abertura frente
ao outro. Somos de religiões diferentes, de certo modo incomensuráveis. Mas a
partir da confiança em Deus que quer salvar a todas e todos, tenho uma base
comum – embora bastante vaga – que é a condição da possibilidade da
aprendizagem. Eu pressuponho, portanto, que posso aprender algo do outro e
da outra.
Aqui começa o diálogo, com base na confiança em Deus. Leio minha
própria fé e a fé do outro e da outra por essa confiança e penso que nós nos
ajudamos mutuamente na aprendizagem sobre Deus e nosso lugar e atuação no
mundo, portanto é uma hermenêutica da confiança.
Essa postura é a mais importante contribuição de Raimon Panikkar para
o diálogo inter-religioso, continuando, radicalizando e aprofundando aquilo para
que Karl Rahner apontou com seu falar dos “cristãos anônimos”.

FINALIZANDO

8
Quando se abordam os temas relacionados a religião, deve-se levar em
conta a complexidade da temática. Não é simples tirar conclusões, uma
fundamentação que precisa ser respeitado é a hermenêutica da confiança, o
resgate que precisa ser feito a respeito da credibilidade das religiões e sua
abrangência, um povo não existe sem religião, sejam as mais complexas, sejam
as mais simples, todos têm uma esfera de fé que atinge algum aspecto da sua
vida.
Os relacionamentos religiosos passam por vários modelos, que devem
seguir algum método de análise. Os vários teóricos que têm estudado sobre
esses temas nos fornecem algumas pistas a serem seguidas.
O cristianismo afirma seu exclusivismo religioso, suas propostas são
únicas, em torno de Jesus Cristo e a salvação única proposta pela fé cristã.
A imagem de uma orquestra sinfônica, sendo regida por um maestro
soberano e criador de todas as coisas, cabe bem nessas questões, no final
apenas de vários instrumentos, a harmonia, melodia e ritmo transmitem uma só
forma de pensar.

9
REFERÊNCIAS

BERNHARDT, R. Teologia da Trindade como fundamento de uma teologia


protestante das religiões. Estudos Teológicos, a. 44, n. 2, p. 58-72, 2004.

BRAKEMEIER, G. Fé cristã e pluralidade religiosa – onde está a verdade?


Estudos Teológicos, a. 42, n. 2, p. 24-29, 2002.

BRANDT, H. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”: a exclusividade do


cristianismo e a capacidade para o diálogo com as religiões. Estudos
Teológicos, a. 42, n. 2, p. 7s. e passim, 2002.

HICK, J. O caráter não absoluto do cristianismo. Numen, a. 1, n. 1, p. 11-44,


1998;

_____. A metáfora do Deus encarnado. Trad. Luiz Henrique Dreher. Petrópolis:


Vozes, 2000.

_____. Teologia cristã e pluralismo religioso. Trad. Luiz Henrique Dreher. São
Paulo: Attar, 2005.

PANIKKAR, R. Toda religião autêntica é caminho de salvação. In: VV.AA.


Ecumenismo das religiões. O catolicismo obrigado a sair do seu gueto.
Petrópolis: Vozes, 1971a. p. 118.

SINNER, R. E. v. Diálogo inter-religioso: Dos “cristãos anônimos” às teologias


das religiões. Cadernos Teologia Pública, a. 2, n. 9, 2005.

SMITH, W. C. O sentido e o fim da religião. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

10
TEOLOGIA E SOCIEDADE
AULA 6

Prof. Cicero Bezerra


CONVERSA INICIAL

Parecem faltar, por parte das igrejas ortodoxas, recursos teológicos para
atribuir um status eclesial às igrejas não-ortodoxas. Ironicamente, é a Igreja
Católica Romana que, não sendo membro do CMI, encontrou na reformulação
de sua eclesiologia durante o II Concílio Vaticano, a possibilidade de reconhecer
“elementos ou bens que (...) constituem e vivificam a igreja” e que “podem existir
fora das fronteiras visíveis da Igreja Católica”.
Referente às igrejas ortodoxas, esses “elementos” são mais evidentes,
pois “embora separadas (...) conservam os sacramentos, especialmente, por
causa da sucessão apostólica, o sacerdócio e a eucaristia, [sendo esta] mais
uma razão para uma estreita união”.
Quanto às outras “igrejas e denominações separadas”, existem “grandes
diferenças, sobretudo no que diz respeito à interpretação da verdade revelada,
por isso a importância da análise da igreja em perspectivas atuais.
Nessa aula veremos alguns aspectos a respeito da igreja e sua relevância
na sociedade atual. Também serão abordados temas sobre a igreja em uma
configuração maior, levando em conta a estrutura da igreja católica e seu
relacionamento com as diferentes igrejas e outras religiões.
É fundamental que o teólogo conheça sobre a igreja e suas características
e relacionamentos com as diferentes religiões, quando se analisa e estuda a
igreja no contexto do cristianismo deve-se levar em conta a forma de culto e
expressões diferentes de outras religiões.

TEMA 1 – COMUNIDADES ECLESIAIS

Adotou-se a terminologia comunidades eclesiais, principalmente pela falta


do sacramento da ordem e por não terem “conservado integralmente a
substância do mistério eucarístico”. Contudo, o Concílio expressou alegria pelo
fato dos fratres seiuncti, os “irmãos separados”, se voltarem “para Cristo como
fonte e centro da comunhão eclesial”, fazendo referência clara, embora não
explícita, à chamada base do CMI (Sinner,2019).
Trataremos esse tema pelos seguintes aspectos: a auto compreensão
eclesiológica do CMI, as eclesiologias presentes no CMI, o estudo atual sobre a
“Natureza e a Missão da Igreja” a encargo da Comissão de Fé e Ordem do CMI

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e, em termos de conclusão, exploraremos questões hermenêuticas ligadas à
problemática (Sinner,2019).

TEMA 2 – A COMPREENSÃO ECLESIOLÓGICA DO CMI

Ao ser criado, em 1948, o CMI adotou uma declaração teológica que


serviria como base para o conjunto de igrejas nele reunidas. Inspirada por
declarações semelhantes das Associações Cristãs de Moços, de 1855, e de
Moças, de 1894, e formulada pelos comitês dos movimentos que deram origem
ao CMI, Vida e Ação e Fé e Ordem, afirmou que: “O Conselho Mundial de Igrejas
é uma comunhão que aceita nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador”.
É importante destacar o fato de o CMI compreende o termo comunhão
(fellowship) de igrejas, e não apenas a simples associação (Sinner,2019).
Está implicado nisso a palavra grega de koinonia, noção que vem
marcando o debate ecumênico desde o final dos anos 1980 e foi destaque na
declaração adotada pela 7ª Assembleia do CMI em Canberra (Austrália), sob o
título A koinonia da Igreja: Dom e vocação (Sinner, 2019).
A 3ª Assembleia do CMI, realizada no ano de 1961 em Nova Déli (Índia)
modificou essa base e acrescentou elementos importantes, como uma referência
doxológica à Trindade, às Escrituras e à vocação comum das igrejas.
Assim, o CMI passa a ser definido como uma comunhão de igrejas que
aceita o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador segundo as Escrituras, e
que, portanto, se empenha em responder conjuntamente à sua vocação comum,
para a glória do Deus único, Pai, Filho e Espírito Santo”. Até hoje a base
permanece inalterada.
Na mesma linha, o documento, para a compreensão e visão comum do
Conselho Mundial de Igrejas afirma que “a essência do Conselho é a relação
mútua das igrejas. O Conselho é a comunidade de igrejas rumo à plena koinonia
(Sinner, 2019).

TEMA 3 – COMPREENSÕES DA IGREJA PRESENTES NO CMI

O CMI, fundado em 1948, é composto, hoje, por 348 igrejas,


representando cerca de 572 milhões de cristãos e cristãs, quase um quarto do
cristianismo mundial. Suas igrejas-membro pertencem às mais diversas
tradições: anglicanas, batistas, independentes, luteranas, metodistas, ortodoxas

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do leste e sudeste europeu, ortodoxas orientais, pentecostais, reformadas,
veterocatólicas, entre outras (Sinner, 2019).
A Igreja Católica Romana, embora não membro, colabora em muitos
aspectos, especialmente através da Comissão de Fé e Ordem, que desde 1968
tem seus doze representantes com voz e voto pleno, e do Grupo Misto de
Trabalho, criado em 1965. Cada uma dessas igrejas representa um tipo
específico de igreja e compreensão eclesiológica (Sinner, 2019).
Partindo das igrejas presentes no CMI e ao redor dele, sugiro aqui
discriminar quatro tipos fundamentais de igrejas, ressaltando que, como toda
tipologia, representa a simplificação de um quadro altamente complexo. Além
disto, elementos de cada tipo podem encontrar-se em igrejas tidas como
pertencentes a outro tipo. Contudo, a colocação segue os elementos mais
dominantes naquela igreja (Sinner, 2019).

TEMA 4 – ELEMENTOS DOMINANTES NA ÉPOCA

1. O tipo sacramental: contempla as igrejas que atribuem uma natureza


ontológica à igreja, aproximando ou até identificando a igreja crida,
espiritual com a igreja visível, institucional. A igreja é mais do que seus
membros e anterior a estes. Como noiva e representante do Cristo, ela
existe de forma concreta e visível, mantendo a continuidade com os
apóstolos pela sucessão episcopal. Segundo essa compreensão, a igreja
não apenas celebra os sacramentos pelos seus sacerdotes, mas é ela
mesma, sacramento da presença de Deus no mundo.
2. O tipo reformatório: parte da constituição da igreja por Cristo, ficando
visível na comunhão dos fiéis pela pregação da palavra de Deus e pela
administração dos sacramentos (Batismo e Eucaristia) segundo o
evangelho, que são as marcas da igreja. A igreja invisível contém as
pessoas fiéis ou, especialmente na concepção de Calvino, os eleitos e as
eleitas, não coincidindo integralmente com a igreja visível, institucional.
Pode, portanto, haver crentes fora da igreja institucional, e não crentes
dentro dela.
3. O tipo conversionista: aqui localizamos igrejas oriundas, amplamente
ditas da Reforma do século XVI, porém, sem apoio do Estado e que foram,
muitas vezes, combatidas pelas igrejas reformatórias estabelecidas –
como os chamados anabatistas. Radicalizando a Reforma e buscando
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sua aplicação na prática de cada uma, são igrejas que colocam todo o
peso na fé do indivíduo (o que também acontece nos movimentos pietista
e puritano em igrejas do tipo b e constituem-se, em princípio, por
conversão pessoal e adesão consciente. Em geral, exige-se uma prática
visivelmente cristã.
4. O tipo carismático: Este tipo é o mais recente, embora tenha existido,
sob várias formas, desde os primórdios da igreja cristã. Estão incluídas
aqui as igrejas pentecostais, bem como as igrejas chamadas de
independentes, no sentido de autóctones, da África. É um tipo muito
diversificado, sem doutrina unificada, crescendo e transformando-se com
grande velocidade. Por isso mesmo é visto com suspeita pelos outros
tipos. Generalizando, pode-se dizer que neste tipo destacam-se os dons
do Espírito, como o “falar em línguas”, a profecia e revelações divinas
recebidas por seus líderes; muitas também praticam o ministério da cura.
Esses fenômenos existem também dentro de muitas igrejas dos outros
tipos, neste caso, fala-se de movimentos carismáticos (Sinner, 2019).

TEMA 5 – ANÁLISE DOS TIPOS

Enquanto os tipos (b) a (d) conseguem – embora nem sempre – certo grau
de comunhão, este é mais difícil com o tipo (a), situando-se a maior ruptura entre
as eclesiologias ontológica e funcional. Contudo, surgiram alianças
surpreendentes, por exemplo, entre ortodoxos, africanos de várias confissões e
evangelicais do mundo inteiro, no combate ao que vêem como a maior ameaça
às igrejas hoje: a tolerância em relação aos homossexuais, sua ordenação ao
ministério e a bênção de parcerias homossexuais, práticas hoje adotadas em
algumas (poucas) igrejas.
O bispo ortodoxo russo Hilarion (Alfeyev) de Vienna e toda Austria, na sua
intervenção em Kuala Lumpur, localizou a maior discrepância atual entre “as
versões tradicional e liberal” do cristianismo, sendo “a liberalização de ‘fé e
ordem’, de dogma e moralidade em algumas igrejas ocidentais da Reforma o
que tem alienado estas das igrejas tradicionais – especialmente da Católica
Romana e das Ortodoxas – mais do que vários séculos anteriores de história
Protestante”.
Na parte final o documento trata da noção da igreja como comunhão de
igrejas locais, pressupondo que, em cada uma delas, resida a plenitude da igreja.
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Ressalta, porém, que há diferentes compreensões sobre o que é uma igreja local
– para algumas, é a comunidade de fiéis congregados; para outras, é a
comunidade ao redor do bispo, ambas ouvindo a Palavra e celebrando os
sacramentos (Sinner, 2019).

NA PRÁTICA

O que foi dito até agora deve ter evidenciado que as diferenças
eclesiológicas estão na raiz das divisões entre as igrejas. Implicitamente, sempre
estavam presentes nos debates da Comissão de Fé e Ordem. E é lá que estão
sendo estudadas as razões teológicas, tanto da unidade, quanto da diversidade
entre as igrejas, e vislumbrados os caminhos para uma melhor convivência entre
elas, superando o que as separa.
A ideia é elaborar um texto de convergência, semelhante ao famoso texto
de Lima sobre Batismo, Eucaristia e Ministério (1982).
Convergência significa que constam tanto aspectos de consenso – no
texto principal –, quanto de divergência, graficamente realçados em caixas com
bordas.
O resultado é um texto que se compreende como um passo rumo ao
consenso, sem, contudo, ter certeza como este último se dará concretamente.
Portanto, não se trata de uma visão unificada, nem de uma simples soma de
todas as posições representadas (Sinner, 2019).
O destino final de todo o universo é o reino de Deus, proclamado por
Jesus. O serviço (diakonia) é intrínseco à igreja. Diferente da versão anterior,
destaca-se primeiro a evangelização como “tarefa principal” da igreja (Sinner,
2019).
Em seguida, o documento afirma que “a fonte de sua (dos cristãos) paixão
pela transformação do mundo está na sua comunhão com Deus em Jesus
Cristo”. Essa paixão implica em lutar contra a fome e pela saúde das pessoas,
por uma ordem social justa, pela paz, vida humana e dignidade, de acordo com
cada contexto, inspirados por Jesus que afirmou ter vindo.
Como ler, interpretar, compreender a Bíblia e a tradição?
Eis o desafio para cada igreja em si, mas também para uma leitura em
conjunto.
Como ler, interpretar e compreender os sinais dos tempos?
De novo, é um desafio para cada igreja e para o conjunto delas.
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E ainda: Como ler, interpretar e compreender a eclesialidade das outras
igrejas?
O primeiro passo necessário parece-me ser o reconhecimento da
primazia de Deus.
Confiando nele, sabendo que ele é sempre maior do que nossas
estruturas e nossos conceitos humanos, nós nos dirigimos a ele humildemente
em oração e adoração. Eis a razão primária para sermos pessoas cristãs, para
sermos igreja (Sinner, 2019).
Essa paixão implica em lutar contra a fome e pela saúde das pessoas, por
uma ordem social justa, pela paz, vida humana e dignidade, de acordo com cada
contexto, inspirados por Jesus que afirmou ter vindo “para que tenham vida e a
tenham em abundância” (João 10.10).
A igreja tem como base a justificação por graça e fé e não alcances
morais, mas essa graça “chama e moldura a vida moral dos crentes. O
discipulado exige um compromisso moral”.
Cristãos deveriam buscar colaboração com pessoas “de boa vontade”
para promover “os bens sociais de justiça, paz e a proteção do meio ambiente”,
numa postura “na tradição dos profetas” (Sinner,2019).

FINALIZANDO

A comunhão divina serve, analogicamente, como modelo para a


comunhão humana e eclesiástica. Encontramos a reivindicação de uma base
trinitária, hoje tanto para o ecumenismo, quanto para a missão e para o diálogo
inter-religioso.
Em outro nível, é preciso, no diálogo, identificar e formular, tanto a própria
posição, quanto a percepção da posição da outra e do outro. Somente a partir
dessa abertura e procura de compreensão mútua é possível avançar a
comunhão ecumênica.
A partir dessa percepção, pode-se perguntar: Em que medida é possível
reconhecer a igreja una, santa, católica e apostólica em uma expressão
eclesiástica diferente da minha?
Esse reconhecimento, muito antes de ser de direito, consiste numa
intuição e, posteriormente, numa reflexão teológica. Antes de poder atribuir,
oficialmente, um status de igreja.

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Vivendo nesse espírito, estando “sempre dispostos a justificar nossa
esperança perante aqueles que dela nos pedem conta” (1 Pedro 3.15), entre
igrejas e como testemunho fora delas, viveremos, de uma forma real, a igreja
além das nossas igrejas.

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REFERÊNCIAS

BOFF, L. Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung. Paderborn 1972,


e agora em: Novas Fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho.
Campinas: Verus, 2004.

CALVINO, J. Institutas da Religião Cristã [1559], IV, 1, 9; também BIRMELÉ,


André. Église. In: GISEL, Pierre et al. (Eds.). Encyclopédie du protestantisme.
Paris: Cerf; Genebra: Labor et Fides, 1995.

CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Para uma compreensão e uma visão


comuns do Conselho Mundial de Igrejas. Declaração de política. Trad.
Yolanda Musa Licio. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1999.

FÉ E CONSTITUIÇÃO; Conselho Mundial de Igrejas. Batismo, eucaristia


ministério: convergência da fé. Trad. A. J. Dimas Almeida. 3. ed. Brasília: Conic;
2001.

GRUPO MIXTO DE TRABAJO de la Iglesia Católica Romana y el Consejo


Mundial de Iglesias. Octava Relación (1999-2005). Genebra: CMI, 2005.

MEYER, H. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. Trad. Luís Marcos


Sander. São Leopoldo: Sinodal, 2003.

NILES, D. Justiça, paz e integridade da criação. In: LOSSKY et al. (Eds.), 2005.

SINNER, R. O debate eclesiológico no conselho mundial de igrejas.


Disponível em: <file:///c:/users/92007710/downloads/1751-6331-2-pb%20(1).pdf
>. Acesso em: 7 ago. 2019.

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