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VIEIRA, Antônio (Pe.). Sermões. De acordo tom a edição seiscentista, - Pregado na Cidade de S.

Luis do M aranhão, ano


“única autorizada. Edição brasileira adaptada
à ortografia oficial, . de lodo
: “acrescida de sumários explicativos antecedendo cada capítuloe com |:
“textos revistos e corrigidos por Frederico Ozanam Pessoa de Barros, - = o. a

— pregou O
sob a Supervisãdoo Padre Antônio Charbel (S. D. B.) e do Prot.A. | Este sermão — que todo é alegórico
Autor três dias antes de se embarcar ocultamente.
Della Nina. Volume ill. São Paulo: Editora das Américas, 1957. | para o Reino, a procurar o remédio da salvação
dos índios, pelas causas que se apontam no I
: Sermão do 1! Tomo. E nêle tocou todosos pontos
de doutrina, pôsto que perseguida, que mais
necessários eram ao bem espiritual e temporal
daquela terra, como facilmerite se pode entender
Ê das mesmas alegorias.

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS | Vos estis sal terrae (1).

PROF ÂNGELOPESSOA
(1) Vós sois o sal da terra (Mt 5, 18). -.
qureno maes
a]
51
Qual a causa da corrupção de uma terra cheia de
pregadores? . Ou é porque o sal não salga, ou
porque a terra se não deixa salgar. O que,se
há de fazer ao sal que não salga e à terra que
se não deixa salgar? O autor, a exemplo de S.
Antônio, volta-se da terra pará o mar, e prega
-aos peixes. -

331 Vós — diz Cristo Senhor nosso, falando


com os pregadores — sois o sal da terra; e chama-lhes
sal da terra, pórgue quer que façam na terra o que
faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção,
mas quando a terra se vê tão corrupta como está a
nossa, havendo tantos nela" que têm ofício de sal,
qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?
Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se
não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga; e os
“pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes,
sendo verdadeira a doutrina. que lhes dão,a não
querem receber; ou é porque o sal não salga, e os
pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque
a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem
antes imitar o que êles fazem, que fazer o que dizem:
ou é porque o sal não salga, e os pregadores se
pregam a-si, e não a Cristo, ou porque a-terra se .
im
SERMÓES . em
or6 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
como Cristo aconselha em outro lugar? Mas Antônio,
não deixa salgar, e os óuvintes, em vez de servir a com os pés descalços, não podia fazer esta protesta-
Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto ção, e uns pés, a que se não pegou nada da terra,
verdade? Ainda mal. não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-
Suposto pois que, ou o sal não salgue, ou a seia? Calar-se-ja? Dissimularia? Daria tempo ao
terra se não deixe salgar, que se hã de fazer a êste tempo? Isso ensinaria por ventura a prudência ou a
"sal, e que se há de fazer a esta terra? O que se há covardia humana; mas o Zêlo da glória divina que
de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes-
Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum partidos. Pois que fêz? Mudou sômente o púlpito e
valet ultra, nisi uí mittatur foras, et concuicetur ab o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as
hominibus (Mt 5, 13): Se o sal perder a substância praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar,
e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exem- e começa a dizer a altas vozes: — Já que me não
plo, o que se lhe há de fazer é lançá-lo fora'como querem ouvir os homens, ouçam-me'os peixes. — -
inútil, para que seja pisado de todos. Quem se atre- Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que
vera a dizer tal coisa, se o mesmo Cristo a não pro- criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas,
nunciara? Assim como não há quem seja mais digno “Começam a concorrer os peixes, os grandes, os maio-
de reverência e de ser pôsto sôbre a cabeça que o res, os pequenos, e postos todos por sua ordem, com
pregador que ensina e faz o que deve, assim é mere-. as cabeças de fora da água, Antônio pregava, e
cedor de todo" o desprêzo e de ser metido debaixo êles ouviam. -
dos pés o que com à palavra ou com a vida prega -333 Se a Igreja quer que preguemos de Santo
o contrário. oo o Antônio sôbre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis
332. Isto é o que se deve fazer ao sal que não sal terrae é muito bom texto para os outros santos
salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe Doutôres, mas para Santo Antônio vem-lhe muito
“há de fazer? Éste ponto não resolveu Cristo Senhor curto. Os outros santos Doutôres da Igreja foram
nosso no Evangelho, mas temos -sôbre êle a resolu- sal da terra; S. Antônio foi sal da terra, e foi sal
ção do nosso grande português, Santo Antônio, que do mar. Éste é o assunto que eu tinha para tomar
hoje celebramos, era mais galharda e gloriosa: reso- hoje. Mas hã muitos dias que tenho metido no pen-
lução que nenhum santo tomou: Pregava Santo samento que nas festas dos santos é melhor pregar
Antônio em Itália, na cidade de Arimino, contra os como êles, que pregar dêles. Quanto mais que o
hereges, que nela eram muitos, e como os erros de som da minha doutrina, qualquer que 2le seja, tem
entendimento são dificultosos de arrancar, não só tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo,
não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se Antônio em Arimino, que é fôrça segui-la em tudo.
levantar contra êle, e faltou pouco para que lhe não Muitas vêzes vos tenho pregado nesta Igreja e nou-
tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo gene- tras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre
“- zoso doigrande Antônio? Sacudiria o pó dos sapatos,
218 |. PADRE ANTÔNIO VIEIRA

com doutrina muito clara, muito sólida, muito ver-


dadeira, e a que mais necessária e importante é a
“esta terra, para emenda e reforma dos vícios que a
corrompem. O fruto que tenho colhido desta dou-
trina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado
dêle, vós o sabeis, e eu por vós o sinto. . gr.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de S. Antô-
nio, voltar-me da terra ão mar, e, já que os homens pregar aos peixes? Divide o autor o sermão
Que
se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está
tão perto, que bem me ouvirão. Os demais podem em dois pontos: no primeiro louva-lhes as vir-
deixar o sermão, pois não é para êles. Maria quer . tudes, e no segundo repreende-lhes os vícios.
dizer Domina Maris, Senhora do mar, e, pôsto que Entre tôdas as criaturas viventes é serisitivas,
os peixes foram as primeiras que Deus criou.
o assunto: seja tão desusado, espero que me não falte
coma costumada graça. Ave Maria. Louvor aos peixes pela devoção demonsirada
para com Jonas e Santo Antônio. Virtudes
naturais dos peixes. Por que não se afogaram
Os peixes no. dilúvio?

334 Enfim, que havemos de pregar hoje aos


peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os
peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem,
e não falam. Uma só coisa pudera desconsolar ao
pregador, que é serem gente os peixes que se não
hã de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que
já pelo costume quase se não sente. Por esta causa,
não falarei hoje em céu, nem inferno, e assim será
menos triste êste sermão do que os meus parecem
aos homens, pelos encaminhar. sempre à lembrança
destes dois fins. ,
335 Vos estis sal terrace. Haveis de saber,.
irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem .
- duas propriedades, as quais em vós mesmos se expe-
rimentam: conservar o são, e preservá-lo para que
” se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham
280 PADRE ANTÔNIO VIEIRA | SERMÕES - 281

as pregações do vosso pregador, S. Antônio, como bus caeli, et bestiis, universaeque terrae (2). Entre
também as devem ter as de todos os pregadores. todos os animais do mundo, os peixes são os mais,
Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar e os peixes os maiores. Que comparação têm em
o bem para o conservar, e repreender o mal para número as espécies das aves e as dos animais terres-
preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só tres com as dos peixes? Que comparação na gran-
aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. “deza o elefante com a baléia? Por isso Moisés,
Assim o diz o grande doutor da Igreja, São Basilio: cronista da criação, calando os nomes de todos os
Non carpere solum, reprehendereque possumus pis- animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus
ces, sed sunt in illis, et.quae prosequenda sunt imita- cete grandia (3). E os três músicos da fornalha de
tione: INão- só hã que notar, diz o santo, e que Babilônia o cantaram também como singular entre
repreender nos peixes, senão também que imitar e todos: Benedicite cete, et omnia quae moventur in
louvar. — Quando Cristo comparou a sua Igreja à . aquis Domino (4). Éstes e outros louvores, estas e
rêde de pescar: Sagenae missae in mare — diz que, outras excelências de vossa geração e grandeza, vos
os pescadores recolheram os peixes bons, e lançaram pudera dizer, 6 peixes, mas isto é lã para os homens,
- > fora os maus: Collegerunt bonos in vasa, malos aiutem que se deixam levar destas vaidades, e é também.
- foras. miserunt (Mt 13, 47 s). E onde hã bens e para os lugares em que tem lugar a adulação, e não
- maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para o púlpito,
para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, 337 Vindo pois, irmãos, -às-vossas virtudes,
o vosso sermão em dois pontos: no primeiro, louvar- que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a
vos-ei as vossas virtudes; no segundo, repreender- primeira que se me oferece aos olhos, hoje, é aquela
vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos obediência com que, chamados, acudistes todos pela
às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, e
vivos, que experimentá-las depois de'mortos. quietação,.e atenção, com que ouvistes a palavra de
336 Começando, pois, pelos vossos louvores,' Deus da bôca de seu servo Antônio. Oh! grande
irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre louvor verdadeiramente para os peixes, e grande
-tôdas as criaturas viventes e sensitivas, vós fôstes afronta e confusão para os homens! Os homens,
as primeiras que Deus criou. À vós criou primeiro
perseguindo a Antônio, querendo-o lantar da terra;
e ainda do mundo, se pudessem, porque lhes repreen-
que às aves do ar, a vós primeiro que aos animais da dia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade,
terra, e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao
homem deu Deus a monarquia e domínio de todos os (2) Para que presida aos peixes do mar, às aves do céu,
animais dos três elementos, e. nas provisões em que e nos animais selváticos, e a tôda a terra (Gén 1, 26). Vs
(3) Criou Deus os grandes peixes (Gên 1, 21).
o honrou com êstes poderes, os primeiros nomeados (4) Baleias e peixes, todos os que se movem nas águas,
foram os peixes: Lt praesit piscibus-maris, et volati- bendizei ao Senhor (Dan 8, 79).
282 PADRE ANTÔNIO VIEIRA

e condescender com sets erros, e no mesmo tempo


os peixes, em inumerável concurso, acudindo à sua

meu levou -o às prai as de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aquêles homens,
lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que O co-
voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando
com silêncio e com sinais de admiração e assenso,
como se tiveram entendimento, o que não entendiam.
Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra,
e visse na terra os homens tão furiosos e obstinádos,
e no mar Os peixes tão” quietos e tão devotos, que
havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracio-
nais se tinham convertido em homens, e os homens,

An
não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus
uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso Os
homens tinham a razão sem o uso, .e Os peixes O Uso
sem a razão. Muito louvor mereceis, peixes, por Este
respeito e devoção que tivestes aos pregadores da
palavra de Deus, e-tanto mais quanto não foi só
esta a vez em que assim o fizestes. la Jonas, pre-
gador do mesmo Deus, embarcado em um navio, -
quando sé levantou aquela grande tempestade. E |
- como o trataram os homens, como o trataram os
peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido
dos peixes; e o peixe que o comeu levou-o às praias
de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aquêles
“homens. É possível que os peixes ajudam à salvação
“dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros
da salvação? Vêde, peixes, e não vos venha vangló-.

homens
ria, quanto melhores sois que os homens. Os homens
tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe
recolheu nas entranhas a Jonas, para O levar vivo

Os
à terra, :
- 338 Mas porque nestas duas ações teve maior
parte a onipotência que a natureza — como também
em tôdas as milagrosas que cobram os homens —
passo às virtudes naturais e próprias vossas. Fa-
SERMÕES 285

lando dos peixes, Aristóteles diz que só Eles, entre


todos os animais, se não domam nem domesticam.
Dos animais terrestres, o cão é tão doméstico, o
cavalo tão sujeito, c boi tão serviçal, o bugio tão
amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres
com arte e benefícios se amansam. 4 Dos animais do
ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco,
o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor
nos ajuda e nos recreia, e até as grandes aves de
rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de
quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário,
lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham
nos seus pegos, lã se escondem nas suas grutas, e
não- hã nenhum tão grande, que se fie do homem,
nem tão pequeno, que não fuja dele. Os autores -
- comumente condenam esta condição dos peixes, e a
deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza;
imas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno,
antes louvo muito aos peixes êste seu retiro, e me
parece que, se não fôra: natureza, era grande pru-
dência. Peixes, quanto mais longe dos homens tanto
melhor: trato e familiaridade com êles,. Deus vos
livre! Se os animais da terra e do ar querem ser
seus familiares, façam-no muito embora, que com suas
“pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o róuxinol,-
mas na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio, mas na
sua cadeia; vã com êles à caça O açor, mas nas suas
pioses; faça-lhes bulfonerias o: bugio, mas no seu
cêpo; contente-se o cão de lhe roer um ossec, mas
levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe
“chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sôbre
a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se
o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo
da vara e da espora; e se os S tigres eos leões lhes
ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES 287
286 "PADRE
dêles foram também castigados, é os que andavam
comem a ração da carne que não caçaram no bosque, longe ficaram livres. Vêde, peixes, quão grande bem
sejam presos e êncerrados com grades de ferro. E é estar longe dos homens. Perguntado um grande
entretanto, vós peixes, longe dos homens, e fora filósofo qual era a melhor terra do mundo, respondeu
dessas cortesanias, vivereis só convosco sim, nas
que a mais deserta, porque tinha os homens mais
- como peixes na água. De casa, e das portas a dentro, longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio,
tendes o exemplo de tôda esta verdade, o qual vos e foi êste um dos benefícios de que vos exortou a
quero lembrar, porque há filósofos que dizem que dar graças ao Criador, bem vos pudera alegar con-
não tendes memória. :
sigo, que quanto mais buscava Deus, tanto mais fugia
339 No tempo de Noé sucedeu o dilúvio, que dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa .
cobriu e alagou o mundo; e de todos os animais, quais | de seus pais, e se recolheu ou acolheu a uma religião
livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e onde professasse perpétua clausura. E porgue-nem
leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias aqui o deixavam os que êle tinha deixado, primeiro .
escaparam duas, fêmea e macho, e assim das óutras deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portu-
aves. E dos peixes? Todos escaparam: antes, não- gal. Para fugir e se esconder dos homens, mudou |
-só escaparam todos, mas ficaram muito mais. largos o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou,
que dantes, porque a terra e o mar, tudo era mar. ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião .
Pois se morreram naquele universal castigo todos os de idiota, com que não fôsse conhecido, nem buscado,
animais-da terra e tôdas as aves, por que não mor- antes, deixado de todos, como-lhe sucedeu com seus
reram tambémi os peixes? Sabeis por que? — diz próprios irmãos no Capítulo Geral de Assis. Dali
Santo Antônio — porgue os outros animais, como se retirou a fazer vida solitária em um êrmo, do |
“mais domésticos, ou mais vizinhos, tinham mais comu- qual nunca saíra, se Deus, como por fôrça, o não
nicação com os homens; os peixes viviam longe e
manifestara, e por fim acabou a vidã em outro deserto,
retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado
as águas fôssem venenosas e matassem todos os
dos homens.
peixes, assim cômo afogaram todos os outros animais.
Bem o experimentais na fôrça daquelas ervas, com
que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água
vos mata; mas como o dilúvio era um castigo univer-
sal que Deus dava aos homens por 'seus pecados, e
ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima
providência da divina justiça que nêle houvesse esta
diversidade ou distinção, para que o mesmo mundo
visse que da companhia dos homens lhe viera todo o
mal, e que por isso os animais que viviam mais perto
SERMÕES 289

dasse, porque lhe haviam de servir muito. Fa-lo


assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as
entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar,
respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da
cegueira, e o coração para lançar fora os demônios:
Cordis ejus particulam, si super carbones ponas,
fumus ejus extricat omne genus daemoniorum, et fel
o SI valet ad ungendos oculos, in quibus juerit albugo, et
“sanabuntur (5). Assim o disse o anjo, e assim O
O Santo Peixe de Tobias, retrato marítimo de Santo mostrou logo a experiência, porque sendo o pai de
Antônio. A virtude da têmora e a lingua do Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos. olhos um-
santo. As qualidades do torpedo. Os quatro- pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista, e tendo
olhos, do Brasil. Os peixes, companheiros do um demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos-
jejum e abstinência dos justos. O exemplo das. -a Sara, casou com ela o -mesmo 1. Tobias,- e queimand o
na casa parte do coração, fugiu dali o demônio, e
ma
irmãs sardinhas. e ,

nunca mais tornou. De sorte que o fel daguele


340 ste é, peixes, em comum, o natural que. - peixe tirou a cegueira a Tobias,.o velho, e lançou os
em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o - demônios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão
parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, - bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não
infinita matéria fôra se houvera de discorrer pelas louvara muito? Certo que se a êste peixe o vestiram
virtudes de que o Autor da natureza a: dotou e fêz de burel e o ataram com uma corda, pareceria um
em cada um de vós. De alguns sômente
admirável retrato marítimo de Santo Antônio. Abria Santo
farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre Antônio a bôca contra os hereges, e enviava-se a
“todos, como tão celebrado na Escritura, é aquêle eles, levado do fervor e zêlo da fé e glória diviná.
Santo Peixe de Tobias, a quemo texto sagrado não. E êles, que faziam? Gritavam como Tobias, e assom-
dá outro nome que de grande, comô verdadeiramente - . bravam-se com aquêle homem, e cuidavam que os.
o foi nas virtudes interiores, em: que só consiste a queria comer. Ah! homens, se houvesse um anjo,
verdadeira grandeza. la Tobias caminhando com O que vos revelasse qual é o coração dêsse homem, e
anjo S. Rafael, que 6 atompanhava, e descendo a êsse fel, que tanto vos amarga, quão proveitoso e
lavar os pés do pó do caminho nas margens de um quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis êsse '
- rio, eis que o investe um grande peixe com a bôca | Se tu puseres um pedacinho do seu coração sôbre as
aberta, em ação de que o queria tragar. Gritou (5)
brasas acesas, o seu fumo afugenta tôda a casta de demônios,
Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse e o fel é bom para untar os olhos que têm algumas névoas, e
no peixe pela barbatana, e o arrastasse para terra, sararão (Tob 6, 8 5).

que ojabrisse e lhe tirasse as entranhas, e as guar-


290 PADRE ANTÔNIO .VIEIRA

A uni
SERMÕES “agi

peito, e lhe vísseis as entranhas, como é certo que comparação juntas declaram maravilhosamente a
havieis de achar e conhecer claramente nelas que só ' virtude da rêmora, a qual, pegada ao leme da nau,

DERA
duas coisas pretende de vós e convosco: uma é alu- é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude
miar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os e fôrça da lingua de Santo Antônio. O lemé da

ate
- demônios fora de casa.. Pois, a quem vos quer tirar natureza humana é o alvedrio, o pilôto é a razão: mas

in Lap
“as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demônios, quão poucas vêzes obedecem à razão os ímpetos pre-

,
. perseguis vós?” Só uma diferença havia entré Santo cipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão deso-

e
Antônio e aquêle peixe: que o peixe abriu a bôca bediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio

í
contra quem se lavava, e Santo Antônio abria a sua quanta fôrça tinha, como rêmora, para domar e parar
contra os que se não queriam lavar. Ah! moradores

meia qraes
a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo
do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer fortuna na Nau-Soberba, com as velas inchadas .do
neste caso! Abri, abri essas entranhas; vêde, vêde vento e da mesma soberba — que também é vento
esse coração. Mas ah! sim, que me não lembrava! — se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam
Eu-não vos prego a vós, prego aos peixes. o por proa, se a lingua de Antônis, como rêmora, não
341 Passando dos da Escritura aos da His- tivesse mão no leme até que as velas se amainassem,
“tória Natural, quem haverá que não louve e admire como mandava à razão, e cessasse a tempéstade de
muito a virtude tão -celebrada da rêmora? No dia fora e a de dentro? Quantos, embarcados na Nau- |
de um santo menor, os peixes menores. devem pre- Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos
ferir aos outros. Quem haverá, digo, que-não admire acesos, corriam enfunados a dar-lhe batalha, onde
a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo, se queimariam ou deitariam a pique, se a rêmora da
é tão grande na fôrçae no poder, que não sendo maior | língua de-Antônio lhes não detivesse a fúria, até
de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da-Índia, que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz
apesar das velas, e dos ventos e de seu próprio pêso e se salvassem amigâvelmente? Quantos, navegando
grandeza, aprende e amarra mais que as mesmas na Nau-Cobiça, sobrecarregada até as gáveas, aberta
" âncoras, sem se poder mover nem ir por diante. Oh! com o'pêso por tôdas as costuras, incapaz de fugir
se houvera uma rêmora na terra que tivesse tanta nem se defender, dariam nas mãos dos coxsários,
fôrça como a do mar, que menos perigos haveria na “com perda do que levavam e do que iam buscar,
vida, e que menos naufrágios no mundo! Se alguma se a língua de Antônioos não fizesse parar como
rêmora houve na terra, foi a lingua de Santo Antônio, rêmora, até que, aliviados da carga injusta, escapas-
“na qual, como na rêmora, se verifica o verso de S. sem do perigoe tomassem pôrto? Quantos na Nau-
Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem
viribus omnia vincit. O apóstolo São Tiago, naquela sol de dia nem estrêla de noite, enganados do canto
sua eloguentissima Epístola, compara a língua ao- das sereias, e deixando-se levar da corrente, se iriam
leme da nau e ao freio do cavalo, Uma e outra perder cegamente ou em Sila, ou em Caribdes, onde
292 PADRE ANTONIO VIEIRA
e SERMÓES 293.

não aparecesse navio nem navegante, se a rêmora da pescam as varas — e tanta sorte de varas — pescam
lingua'de Antônio os não contivesse até que escla- as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões,
recesse a luz e se pusessem em via? Esta é a língua, e até os cetros pescam, e pescam mais
que também foi que todos,
peixes, do vosso grande pregador, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois, é
xêmora vossa, enquanto O ouvistes, e porque agora possível que, pescando os homens coisas de tanto
está muda — pôsto que ainda se conserva inteira — pêso, lhes não trema a mão e o braço? Se eu pregara
se vêem, e choram na terra tantos naufrágios. aos homens e tivera a língua de Santo Antônio, eu:
342 Mas, para que da admiração de uma tão os fizera tremer. Vinte e dois pescadores dêstes se
grande virtude vossa passemos ao louvor ou inveja acharam acaso a um sermão de S. Antônio, e as
de outra não menor, admirável é igualmente a qua- ii
palavras do santo os fizeram tremer a todos, de sorte
lidade daquele outro peixezinho, a que os latinos que todos, tremendo, se lançaram a seus pés, todos,
chamaram torpedo. : Ambos êstes peixes conhecemos tremendo, confessa
seus ram
furtos, todos, tremendo,
cã mais de fama que de vista, mas isto têm as virtu-. restituíram o que podiam — que isto é o que faz
des grandes, que quanto são maiores, mais se escon- tremer mais neste pecado que nos outros — todos,
dem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no - enfim, mudaram de vida e de ofício, e se emendaram.
fundo e a bóia sôbre a água, e'em' lhe picando na
isca o torpedo, começa.a lhe tremer O braço. Pode 343 Quero acabar êste discurso dos louvores
e virtudes dos peixes, com um que não sei se foi
haver. maior, mais breve. e mais admirável efeito?
ouvinte de Santo Antônio, e.aprendeu dele a pregar. -
De maneira que num momento passa a virtude do A verdade é que me pregou a mim,e se eu fôra outro,
peixezinho da bôca ao anzol, do anzol à linha, da
também me convertera. Navegando daqui para o
linha à cana, e da cana ao braço do pescador. Com
Pará — que é bem não fiquem de fora os peixes da
muita razão disse que êste vosso louvor o havia de
- nossa costa — vi correr pela tona da água, de quando '
referir com inveja: Quem dera aos pescadores do
nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade
em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que
não conhecia, e como me dissessem que os portu--
tremente em tudo o que pescam na terra! Muito
pescam, mas não me espanto do muito; o que me guêses lhes chamavam quatro-olhos, quis averiguar
espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco.:
ctularmente a razão dêste nome, e achei que verda--
Tanto pescar e tão pouco tremer? Pudera-se fazer
deiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e
problema onde há mais pescadores e mais modos e perfeitos. Dá graças a Deus; lhe disse, e louva a
traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo: liberalidade de sua divina Providência para contigo,
que na terra. INão quero discorrer por êles, ainda pois às águias, que são os linces do ar, deu sômente
dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra,
que fôra grande consolação para os peixes; baste
também dois, e a ti peixinho, quatro. Mais me admi-
fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento rei ainda considerando nesta maravilhaa circunstância
do nosso caso. No mar pescam as canas, na terra do lugar: Tantos instrumentos de vista a um bichinho
204 PADRE ANTÓNIO VIEIRA . SERMÕES 295

do mar nas praias daquelas mesmas terras vastíssi- olhos para onde quisesse? Do modo que êle queria,
“mas, onde permite Deus que estejam vivendo em não. Éle queria voltados os seus olhos de modo que
cegueira tantos milhares de gentes hã tantos' séculos? não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste
Oh! quão altas e incompreensíveis são as razões de mundo para qualquer parte que voltasse os olhos, -
Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos! porque neste mundo tudo é vaidade: Vanitas vani-
344 Filosofando, pois, sôbre a causa natural tatum, et omnia vanitas (Ecl 1, 2). Logo, para não
desta providência, notei que aquêles quatro olhos verem os olhos de Davi a vaidade, havia-lhos de
estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para
cada par dêles, unidos como os dois vidros de um o outro mundo, em ambos seus hemisférios: ou para
relógio de areia; em tal forma, que os da parte supe- o de cima, olhando direitamente só para o céu, ou:
rior olham diretamente para. cima, e os da parte para o de baixo, olhando direitamente só para o
inferior diretamente para baixo. E a razão desta inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquêle
“nova arquitetura é porque êstes peixinhos, que sem- | grande profeta, e esta a doutrina que me pregou
pre andam na superfície da água, não só são perse- aquêle peixinho tão pequeno. :
guidos dos outros peixes maiores do mar, senão 345 Mas ainda que o céu e o inferno se não
também de grande quantidade de aves marítimas, "fêz para vós, irmãos peixes, acabo e dou fim a vossos
que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais
mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sen- “air ao céu, e não ao inferno, os que se sustentam de
tinelas, e deu-lhes: dois olhos, que diretamente olhas- vós. Vós sois os que susténtais as Cartuxas e os
sem para cima, para se vigiarem das aves, e Óutros. Bussacos, e tôdas as santas famílias que professam..
dois; que diretamente 'olhassem para baixo, para se mais rigorosa austeridade; vôs os que a todos. os
vigiarem dos peixes... Oh! que bem informara êstes verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das
quatro olhos uma alma racional, e que bem empre- - quaresmas; vós aquêles com que o mesmo .Cristo
gada fôra nêles, melhor que em muitos hômens! Esta . festejou a sua Páscoa, as duas vêzes que comeu
é a pregação que me f&z aquêle peixezinho, ensinan- com seus discípulos depois de ressuscitado. Pre-
do-me que, se tenho fé e uso de razão, só devo olhar zem-se as aves e os animais terrestres de fazer
diretamente para cima, e só direitamente para baixo: esplêndidos é custosos os banquetes dos ricos,e vós
para cima, considerando que hã céu, e para baixo, gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abs-
lembrando-me que há inferno. Não me alegou para tinência dos justos. Tendes todos quantos sois tanto
isso passo da Escritura, mas então me ensinou O parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo |
que quis dizer Davi em um, que eu não entendia: Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede
Averte oculos meos, ne videant vanitatem (SL UI. o melhor e mais delicado peixe. E pôsto que na
37): Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam semana só dois se chama vossos,
m nenhum dia vos
a vaidade. — Pois, Davi não podia voltar os seus. ê vedado. Ulm só lugar vos deram os astrólogos entre .
1
,
298". PADRE ANTÔNIO VIEIRA

os signos celestes; mas os que só de vós se mantêm.


na terrã, são os que têm mais seguros os lugares
do céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento cuja
fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo:
Spiritus Domini faecundabat aquas (6). |

— e
346 Deitou-vos Deus a bênção que crescêsseis
e multiplicásseis; e para que à Senhor vos confirme
essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres
com o seu remédio. Entendei que, no sustento dos Repreende o autor aos peixes. por se comerem uns
pobres, tendes seguros os vossos aumentos. Tomai aos Outros, e os grandes aos pequenos, e os
- O exemplo nas irmãs sardinhas. Por que cuidais que incita a considerar a sua crueldade observando
as multiplica o Criador em número tão inumerável? os homens, que também se comem uns aos outros.
Porque são. sustento de pobres. Os solhos e os sal-: Os pequenos, pão cotidiano dos grandes. O
- mões são muito contados, porque servem à mesa dos castigo-da gula, O engôdo dos anzóis e a vai.
reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a dade dos hábitos.. ,
fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo o multi-
plica e aumenta. Aquêles dois peixes, companheiros 347 Antes, porém, que vos vades, assim como
dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto que ouvistes os vossos louvores, ouvi também
deram de comer a cinco mil homens. Pois, se peixes agora as
vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já
mortos, que sustentam a pobres, multiplicam tanto, que não seja de emenda.
quanto mais e melhor. o farão, os vivos. Crescei
À primeira coisa que me
desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos
- peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a outros. Grande escândalo é Este, mas a circunstância
sua bênção. ' o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que Os grandes comer 6s pequenos. Se fôra
pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos
comeram os grandes, bastara um grande para muitos
pequenos; mas, como os grandes comem os pequenos,
não bastam cem pequenos, hem mil para um só
grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho:
Homines pravis, perversisque cupiditatibus jacti
veluti pisces invicem se devorantes: sunt
Os homens, com
+
Suas mas e perversas cobiças, vêm a ser como os
peixes, que se comem uhs aos outros. Tão alheia
(9) Bo Espírito de Deus fecundava-as águas (LX Gén 1, 2). o coísa é, não só da razão, mas da mesma natureza,
.- +
*

ANTÔNIO VIEIRA o SERMÕES 299

jeqemeroemememe rata
298 |. PADRE

que, sendo todos criados do mesmo elemento, todos sais a que chega a vossa crueldade, considerai,
cidadãos da mesma pátria, e todos, finalmente, irmãos, peixes, que também os homens se comem vivos, assim
vivais de vos comer. Santo Agostinho, que pregava como vós. Vivo estava Jó quando dizia: Quare per-

semen
Soquémini
aos homens, para encarecer a fealdade dêste escân- me, et carnibus meis saturamini (Jó 19,
dalo, mostrou-lho nos peixes, e eu que prego aos ):Por que me perseguis tão desumanamente, vós .

ei
peixes, para que vejais quão íeio e abominável é,. que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha
quero que 'o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá carne? — Quereis ver um Jó dêstes? Vede um
do mar para'a terra. Não, não: não é isso o que homem, dêsses que andam perseguidos de pleitos ou
- vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo.
o sertão? Pára cá, para cá: para a cidade é que Comeu o meirinho, comeu .o carcereiro, comeu o
haveis de olhar. Cuidais que só os tapuias se comem escrivão, comeu o solicitador, comeu o advogado
“uns aos outros? Muito maior açougue é O de cá, comeu o inquiridór, comeu a testemunha, comeu o
muito mais se comem os brancos. Vêdes vós todo julgador, e ainda não está sentenciado, e já está
aquêle bolir, vêdes todo aquêle andar, vêdes aquêle comido. São piores os homens que os corvos. O
concorrer às praças e cruzar as ruas; vêdes aquêle triste que: foi à fôrca, não o. comem os corvos, senão
subir e descer as calçadas, vêdes aquêle entrar e sair depois de executado e morto; e o que anda em juízo
"sem quietação, nem sossêgo? - Pois tudo aquilo é ainda não está executado nem sentenciado, e já está
andarem buscando os homens como hão de comer, e comido. os
como se hão de comer. o 349 | E para que vejais como êstes comidos na
348 “Morreu algum dêles: vereis logo tantos terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com
“ sôbre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Co- que vós. vos comeis no mar, ouvi a Deus. queixan- '
“ mem-ho cs herdeiros, comem-no os testamenteiros, do-se dêste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui
comêem-no os legatários, comem-no os acredores, operantur iniquitatem, qui devorant plebem meam ut
- comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos... * cibum panis (7)? Cuidais, diz Deus, que não há de -
& ausentes: comeu o médico que o curou, ou ajudou vir tempo em que conheçam e paguem o seu mere-
a morrer; comeu o sangrador que lhe tirou o sangue: cido aquêles que cometem a maldade? — E que mal-
- comeu a mesma mulher, que de mã vontade lhe' dá dade é esta, à qual Deus singularmente chama a
para mortalha, o lençol mais velho da casa; comeu maldade, como se não houvera'outra no mundo? E
o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os quem são aquêles que a cometem? A maldade é
que, cantando, o levam a enterrar; enfim ainda ao Comerem-se os homens uns aos outros, e -os que a
pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido
tôda a terra. já se os homens se comeram sômente .. o Ru ) Acaso. não terão conhecimento todos os que obram a
depois de mortos, parece que eta menos horror. e inigiidade,
"pão (SI 18, 4)?
os que devoram o meu povo, como um pedaço de
“menos matéria de sentimento. Mas, para que conhe-
*
= SERMÕES 301
300 "PADRE ANTONIO VIEIRA.

i mesmo é o que vôs fazeis. Os maiores comeis os


cometem são os maiores, que comem os pequenos: pequenos, e os muitos grandes, não só os comem

msemtiisem is
Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas um por um, senão os cardumes inteiros, e isto conti-
palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que nuadamente, sem diferença de tempos, não só de dia,
advirtais muito outras tantas coisas quantas são as senão também de noite, às claras e às escuras, como

As
mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens também fazem os homens.
não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe:
Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são 350 Se cuidais, porventura, que estas injus-
os mais pequenos, os que menos podem e os que tiças entre vós se toleram e passam sem castigos,
menos avultam na república, êstes são os comidos. E enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos
não só diz que os comem de qualquer modo, senão homens, assim também, por seu modo, as castiga em
que os engolem e os devoram: Qui devorant, porque vós. Os mais velhos que me ouvis e estais presentes,
os grandes, que têm o mando das cidades e das bem vistes neste estado, e quando menos owvireis
; "murmurar aos passageiros nas canoas,
|| províncias, não se contenta a sua fome de comer 'os e muitos mais
pequenos um por um, ou poucds a poucos, senão lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maio-
que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devo- res, que cá foram mandados, em vez de governar e
rant plebem meam. E de que modo os devoram e aumentar o mesmo Estado, o destruíram, porque tôda
. comem? Ut.cibum panis: não como os outros come- 'a fome que de lá traziam, a fártavam em comer e
res, senão como pão. À diferença que há entre o devorar os pequenos. Assim foi. Mas se entre vós
pão e-os outros comeres, é que para a carne há dias | -Sse acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira
de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as - dos navios, vão com gles a Portugal é tornam.para
frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer os mares pátrios, bem ouviriam êstes lá no Tejo, que
de todos os dias, que sempre e continuadamente se êsses mesmos maiores que cá comiam os pequenos,
come, e isto é o que padecem os pequenos. São o. e quando lá chegam, acham outros maiores que os co-
pão cotidiano dos grandes, e assim como o pão se, mam também a eles. Fste é o estilo da divina justiça,
come com tudo, assim com tudo e em tudo são comi- tão antigo e manifesto, que até os gentios o conhe-
dos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo
ceram e celebraram: - o
ofício em que os não carreguem,em que os não mul-
tem, em que os não defraudem, em que os não comam, s

traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut Vos quibus rector maris, atque terrae
cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Repre- Jus dedit magnum necis, atque vitae;
senta-se-me que com o movimento das cabeças estais Ponite inflatos, tumidosque vultus:
todos dizendo que não, e com olhardes uns para os | Quidquid a vobis minor extimescit.
outros, vos estais admirando e pasmando de que entre o
Major hoc vobis Dominus minatur.
- os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto t
302 PADRE ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES 303

Notai, peixes, aquela definição de Deus : Rector e farpam os anzóis, contra vós as fisg
as e os arpões?
“Não vêde
maris, aíque terrae: governador do mar e- da terra, s que contra vós
4 até as canas

|
são lanças,
duvideis que o mesmo estilo que a e as cortiças armas ofensivas?
para que não Não vos basta, pois,
homens na terra, observa no = que tenhais tantos e tã o armados
guarda com os
senão que também vós, de voss
inimigos de fora,"
convosco no mar. Necessário é, logo, que olheis por as. portas a dentro,
vós, e que não façais póuco caso da quíxina que o haveis de ser mais cruéis, perseg
uindo-vos com uma
vos deu o grande Doutor da Igreja, Santo 4 m úsio, guerra mais que civil, e comendo-v
os uns aos outros?
quando, falando corivosco, disse: Cave se um alum esse, Cesse já, irmãos peixes; e
tenha fim algum
insequeris, incidas in validiorem: Guarde-se O p dia esta tão perniciosa discórdia
; e pois vos chamei,
que persegue o mais fraco, para o comer, não se e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações dêste nom
Não estáveis vós muito e.
ache na-bôca do mais forte, que o engula a êle. % quietos, muito pacíficos, e
Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo “muito amigos todos, grandes e
pequenos, quando vos
atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê pregava S. Antônio? Pois continuai assi
felizes. m, e sereis
o cego que lhe vem nas costas o tubarão, com qua
ordens de dentes, que o hã de engolir e um ceado. 352 Dir-me-eis, como também
homens, que não tendes outro m dizem os..
É o que com maior elegância vos disse também anto odo de vos sustentar.
Agostinho: Praeda minoris fit praeda majoris. Mas E de que se sustentam entre vós
muitos que não
não bastam, peixes, Estes exemplos, para que A e comem os outros? O mar é mui to
largo, muito fértil,
de se persuadir a vossa gula que a mesma crue , muito abundante, e, só com o
que bota-às praias,
que usais com os pequenos, tem já aparelhado o. pode sustentar gran de parte dos
que vivem dentro
i
castigo acidade « dos granndes?
na voracidadé nêle. Comerem- se uns animais. aos outros
cidade e sevícia; e não est é vora-
E já que assim o experimentais com tanto atuto da natureza. Os da
dano vosso, importa que, daqui por diante, sejais terra e do ar,.q ue hoje se comem,
no princípio. do
. mais repúblicos-e zelosos do bem comum, e que Este mundo não se comiam, sen
do assim conveniente e
prevaleça conira o apetite particular de cada um, para . . DEcessário para que as
espécies de todos se multi-
que não suceda que, assim como hoje vemos a mui o Plicassem. O mesmo foi, ainda mais
depois do dilúvio, porque, ten claramente,
de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir do escapado sômente
“todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora, e' dois de cada espécie, mal se
podiam conservar, se
tantos perseguidores tão astutos e pertinazes quantos se comessem. E finalmente, no tempo do
são os pescadores, que nem de dia, nem de noite, dilúvio, em que todo S viveram mesmo
juntos dentro na Arca,
deixam de vos pôr em cêrco, e fazer guerra por tantos O lôbo estava vendo
o cordeiro, o gavião
modos! Não vêdes que contra vós se emalham e leão o gamo, e cada um aquêles em que a perdiz, o
se costuma
cevar, e,
entralham as rêdes, contra vós se tecem as nessas, se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe.
resistiram e se acomodaram
contra vós se torcem as linhas, contra vós se- dobra com a ração do paiol.
eme
PADRE ANTÔNIO VIEIRA: SERMÓÕES 305
304

o ae Eee
comum, que Noé lhes repartia. Pois se os animais mesmo-que a vós. O que engoliu o ferre, ou ali ou
capazes noutra ocasião, ficou morto,
dos outros elementos mais cálidos foram e os mesmos retalhos
desta temperança, por que o não serão os da águas de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar
Enfim se êles em tantas ocasiões, pelo desejo natura cutros. Por Este exemplo vos concedo, peixes, qué
da própria conservação e aumento, fizeram da neces- cs homens fazem o mesmo que vós, pôsto que me
sidade virtude, fazei-o vós também, ou fazei a vit» parece que não foi êste o fundamento da vossa res-
tude sem necessidade, e será maior virtude. . posta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que
353 Qutra coisá muito geral, que não tanto se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem essa
vós, é -
me desedifica quanto me lastima em muitos de ambição de hábitos. , ,
aquela tão notável ignorância e cegueira que em
tôdas as viagens experimentam os que navegam per 354 Mas nem por isso vos negarei que também
estas partes. Toma um hómem do: mar um anzo , cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano,
atalhe um pedaço de pano cortado, e, aberto em duas menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca
ou três pontas, lança-o por um, cabo delgado até as vidas a todos os homens do Maranhão, e tom que?
tocar na água, e, em o vendo o peixe, arremete cego Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem
a êle, e fica prêso e boqueando, até que, assim sus- um mestre de navio de Portugal coin quatro varse-
penso no ar ou lançado no convés, acaba de morrer. duras das lojas, com quatro panos e quatro sêdas,
Pode haver maior ignorância e mais rematada ce- que já se lhes passoua era e não têm gasto, e que
gueira que esta? Enganados por um retalho de pano, faz? Isca com aguêles trapos aos moradores da
perder a vida? 'Dir-me-eis que o mesmo fazem os nossa terra, dá-lhes uma: sacadela, e dá-lhes outra,
homens. Não vo-lo-nego. Dá um exército batalha com que cada vez lhes sobe mais o preço, e os bonitos,
contra outro exército; metem-se os homens pelas ou os que.o querem parecer, todos esfaimados aos
pontas dos pigues, dos chuços, e das espadas, e trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas |
"por que? Porque houve quem os engodou e lhes fêz de um ano para outro ano, e de uma safra para outra
“isca com dois retalhos de pano. A vaidade, entre os safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento:
- xácios, é o pescador mais astuto, e que mais fâcil- Todos a trabalhar tôda a vida, ou na reça ou na
mente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe cana, ou-no engenho ou no tabacal, e êste trabalho
por isca nas pontas dêsses pigues, dêsses chuços e de tôda a vida, quem o leva? Não o levam os côches,
dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que nem.as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros,
se chama Hábito de Malta, ou verde, que se chama nem os pajens, nem os lacaios, hem as tapeçarias,
de Aviz, ou vermelho, que sé chama de Cristo e de nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias: pois,
São Tiago, e os homens, por chegarem a passar êsse em que se vai e despende tôda a vida? No triste
retalho de pano ao peito, não reparam ei tragar ó farrapo com que saem à rua, e para isso se matam
engolir o ferro. E depois disso, que sucede? ( todo o ano, . o T
306 — “PADRE ANTÔNIO VIEIRA

355 Não é isto, meus peixes, grande loucura


-dos homens, com que vos escusais? . Claro está.
que sim, nem vós o podeis negar. Pois, se é
grande louçura esperdiçar. a vida por dois reta-
lhos de pamo quem tem obrigação de se vestir,
vós, a. quem Deus vestiu do pé até a cabeça,
ou de peles de tão vistosas e apropriadas côres, ou

A
“de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca $V
se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam
ou podem variar com as modas, não é maior igno-
- Os roncadores e a ronca de Pedro. À baleia e o
o Gigante Golias. Os pegadores. Davi e S. Antô-
. rância e maior cegueira deixar-vos enganar, ou dei-
xar-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? nio, pegadores de Deus. Os voadores e a vai-
Vêde o vosso Santo Antônio, que pouco o pôde- dade de voar. O vôo de Simão Mago. À
enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço dissimulação do polvo. Tiltima advertência aos
- peixes acêrca dos bens dos naujragantes. |
e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se
preza, trocou-as por uma lôba de sarja euma correia
356 Descendo ao particular, direi agora, pei-
"de cônego regrante, e, depois que se viu assim ves”—
xes, o que tenho contra alguns de-vós. E começando
tido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa
agui pela nossa costa, no mesmo dia em que cheguei
aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia
a ela, ouvindo os roncadores, e vendo o seu tamanho,
- pela corda. Com aguela corda e com aquêle pano, a!
tanto me moveram a riso como a ira. É possível
pescou êle muitos, e só êstes se não enganaram e
- . que, sendo vós uns peixinhos tão: pequenos, haveis
foram sisudos.
de ser as roncas do mar? Se com uma linha de coser
Sa. e um alfinête-torcido vos pode pescar um aleijado,
por que haveis de roncar tanto? .Mas por isso mesmo
roncais. Dizei-me, o espadarte, por que não ronca?
Porque ordinariamente quem. tem muita espada, tem
potca lingua. .Isto não é regra geral, mas é regra
geral que Deus não quer rontadóres, e que tem parti
- cular cuidado de abater é humilhar aos que muúito
roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram
vossos antepassad tinha
os,tão boa espada que ele
só. avançou contra um exército inteiro de soldados:
romanos, e se Cristo lha não mandara meter na
bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais
SERMÕES 309
808 PADRE ANTÔNIO VIEIRA

soberbos tomam-se-com Deus, e quem se toma com


orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu Deus, sempre fica débaixo. Assim que, amigos ron-
naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado cadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a S.
Pedro que, se todos fraqueassem, só êle havia de Antônio. Duas coisas hã nos homens que os costu-".
ser constante até morrer, se fôsse necessário, e foi mam fazer roncadores, porque ambas incham: o
tanto pelo contrário, que só êle fraqueou mais que saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos
todos, e bastou a voz de uma mulhérzinha para O
nescitis quidquam (8). . Pilatos roncava de poder:
fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado Nescis quia potestatem fiabeo (9)? E ambos contra
na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse- Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, Antônio, tendo
lhe Cristo no Hórto que vigiasse; e, vindo daí a pouco tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como
a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, vôs mesmos experimentastes, ninguém. houve jamais
que não só o acordou do sono, senão também do que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais
que tinha brasonado: Sic non potuisti una hora vi- brasonar disso. E'porque tanto calou, por isso deu
gilare mecum (Mc 14, 37)? Vós, Pedro, sois o' tamanho brado.
valente que havíeis de morrer por mim, e não pudes- 358 Nesta viagem de que fiz menção, e em tô-
“tes uma hora vigiar. comigo? — Pouco há, tanto . das as que passei a linha equinocial, vi debaixo dela
roncar, agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O " o que muitas vêzes tinha visto e notado nos homens,
“muito roncar antes da ocasião é sinal de dormir nela. e me admirou que se houvesse estendido esta' ronha,
Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto -
e pegado também aos peixes. Pegadores se cha-'
sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao mam êstes de que agora falo, e com grande proprie-
menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco dade, porque, sendo pequenos, não só se chegam
fundamento tendes de brasonar, nem roncar. a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos
357 Seas baleias roncaram, tinha mais desculpa costados, que jamais os desaferram. De aiguns ani-
a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mais de menos fôrça e indústria se conta que vão se- -
. mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O guindo de longe aos leões na caça, para se sustenta-.
que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias rem do que a êles sobeja. O mesmo fazem êstes
entre os homens. Seo Rio Jordão e o Mar de Tibe- pegadores, tão seguros ao perto como aquêles ao lon-
ríades têm comunicação com o Oceano, como devem ge, porgue o peixe grande não pode dobrar a cabeça,
ter, pois dêle manam todos, bem deveis de saber que nem voltar a bôca sôbre os que traz às costas, e assim
êste gigante era a ronca dos filisteus. Quarenta lbes sustenta o pêso e mais a fome. Bste modo de
dias contínuos. estêve armado no campo, desafiando -vida,-mais astuto que generoso, se acaso se passou
a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe
atrevesse. E no cabo, que fim teve aquela arrogân- (8) Vós não sabeis nada (Jo 11, 49).
cia? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma (9) Não sabes que tenho poder (Jo 19, 10).
funda, para dar com êle em terra. Os arrogantes e
s
j
a

310 PADRE ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES . 31


e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o functi sunt qui quaerebant animam pueri. Eis aqui,
aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos
- " - peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e en-
portuguêses o navegaram, porque não parte vice-rei | ganoso é êste modo de vida que escolhestes. ' Tomai
Ou governador para as conquistas, que não vá rodea- exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, |
do de pegadores, Os quais se arrimam a êles, para que nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio.
cá lhes matem a fome de que lá não tinham remédio. 360 Deus também tem os seus pegadores.
Os menos ignorantes, desenganados da experiência, Um dêstes era Davi que dizia: Mihi autem adhaere-
despegam-se e buscam a vida por outra via: mas os re Deo bonum est (10). . Peguem-se outros aos
que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus.
maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pega- Assim o fêz também Santo Antônio, e se não, olhai
dores do mar. para o mesmo santo, e vêde como está pegado com
359 Rodeia:a nau o tubarão nas calmarias da Cristo, e Cristo com êle. Verdadeiramente se pode
linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos duvidar qual dos dois é ali-o pegador, e parece que
com a pele, que mais parecem remendos ou manchas é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega
naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam- ao maicr, e o Senhor fêz-se tão pequenino para se pe-
lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro solda-
gar a Antônio. Mas Antônio também se fêz menor,
dos, arremessa-se furiosamente à prêsa, engole tudo para se pegar mais a Deus. Daqui se segue
de um bocado, e fica prêso. Corre meia campanha
que todos os que se pegam a Deus, que é imortal,
-a alá-lo acima, bate fortemente o convés-com os úl-
seguros estão de morrer como os outros pegadores, .
timos arrancos, enfim morre o tubarão, e morrem com
êle os pegadores. e tão seguros-que, ainda no caso em que Deus se fêz
Parece-me que estou ouvindo a.
S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo homem e morreu, só morreu para que não morressem
isto mesmo na terra. Morto Hercdes, diz o evange- todos os que se pegassem a êle. Bem se viu nos que
- estavam já pegados, quando disse: Si ergo me quae-
lista, apareceu o anjo a José no Egito, e disse-lhe que
já se podia tornar para a pátria, porque eram mortos
rítis, sinite hos abire. (Jo 18,8): Se me buscais a
todos aquêles que queriam tirar a vida ao Menino: mim, deixai ir a êstes. — E. pôsto que dêste modo
Defuncti sunt enim qui quaerebant animam, pueri só se podem pegar os hemens, e vós, meus peixezi-
(Mt 2,20). uhos, não, ao menos devereis imitar aos outros. ani-
Os que queriam tirar à vida a- Cristo
menino, eram
mais do ar e da terra, que, quando se chegam aos
Herodes e todos os seus, tôda a sua.
família, todos os seus aderentes, grandes e se amparam do seu poder, não se pegam
todos os que se- de tal scrte que morram juntamente com êles. Lá
guiam e pendiam da sua fortuna. Pois, é possível que
todos. êstes morressem juntamente com Herodes? diz a Escritura daquela famosa ârvore, em que era
Sim, porque, em morrendo o tubarão, morrem tam- significado o grande Nabucodonosor, que tôdas as
bém com êle os pegadores: Defuncto Herode, de- (10) Mas para mim é bom unir-me a Deus (SI 72, 28).
312 PADRE ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES 313

aves do céu descansavam sôbre seus ramos, e todos porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis
os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns de fazer das barbatanas asas? Mas ainda mal, porque
e outros se sustentavam de seus frutos: mas. também tantas vêzes vos desengana o vosso castigo. Quisestes
diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as aves ser melhor que os outros peixes, e-por isso sois mais
voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os
embora aos grandes, mas não de.tal maneira pega-. o anzol ou a fisga; a vós, sem fisga nem anzol, mata-

ee
4.
dos, que vos mateis por êles, nem morrais com êles. vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vaio navio
.361 Considerai, pegadores vivos, como mor- navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca

EO
. reram os outros que se pegaram àquele peixe grande, na vela, ou na corda, e cai palpitando. Aos outros
e por que. O tubarão morreu porque comeu, e êles E
peixes mata-os a fome, e engana-os a isca; ao'vcador
“morreram pelo que não comeram. Pode haver maior mata-o à vaidade de voar, ea sua isca é o vento.
ignorância que morrer pela fome e bôca alheia? Que Quanto melhor lhe fôra mergulhar por baixo da qui-
morra.o tubarão porque comeu: matou-o à sua gula; lha, e viver; que voar por cima das antenas, ecaix
mas que morra o pegador pelo que não comeu, é morto. Grande ambiçãoé que, sendo o mar tão imenso,
.a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e
que também nos peixes havia pecado original! Nós, queira outro elemento mais largo. : Mas vêde, peixes,
os homens, somos tão desgraciados, que outrem co- o castigo da ambição.. O voador fê-lo Deus peixe,
meu, e nós o pagamos. Tôda a nossa morte teve e êle quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha
princípio na gulodice de Adão e Eva, e que hajamos os perigos de ave e mais os de peixe. Tôdas as velas
de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! para êle são rêdes, como peixe, e tôdas as cordas
"Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca laços, como ave. Ve, voador, como correu pela
de àgua, e vós não vos podeis lavar da vossa igno- posta o teu castigo. Pouco há, nadavas vivo no mar
rância com quanta água tem o mar. com as barbatanas, e agora jazes em um convés,
“362, Com os voadores tenho também uma pa- amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe,
:lavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voado-
quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar
res, não vos fêz Deus para peixes. Pois, por que.
vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, poderás já, nem nadar. A natureza deu-te água:-tu
eo ar para. elas. Contentai-vos com o mar e com não quiseste senão o ar, e eu já te vejo pôsto ao fogo.
nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se
vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas, e o voador não quisera passar do segundo ao terceiro,
para vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava Ble
senão péixe, e ainda, entre os peixes, não dos melho- do fogo quando nadava na água; mas porque quis
zes. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores ser borboleta das ondas, vieram-lhe a queimar as
barbatanas que aos outros do vesso tamanho. Pois asas. *
1

314 PADRE ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES É 315

— 363 À vista dêste exemplo, peixes, tomai para baixo e não para cima. Já S. João viu no Apo-
todos na memória esta sentença: Quem quer mais calipse aquela mulher, cujo ornato gastou tôdas as
«do que lhe convém perde o que quer e o que tem. suas luzes ao firmamento, e diz que lhe foram dadas
Quem pode nadar, e quer voar, tempo virá em. que duas grandes asas de águia: Datae sunt mulieri alae
não voe, nem nade. Ouvi o caso de um voador da duae aquilee magnae. E para que? Lit volaret in

am: SÊ,
terra. Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual desertum (Apc 2,14): Para voar ao deserto. No-
era famosíssimo, deu o sobrenome; fingindo-se que tável coisa, que não debalde lhe chamou o mesmo
êle era o verdadeiro Filho de Deus, sinalou o dia profeta, grande maravilha: Esta mulher estava no
em que nos olhos de tôda Roma havia de subir ao “céu: Signum magnum apparuit in ceelo, mulier amicta
céu, e com efeito começou a voar muito alto; porém sole (11). Pois se a mulher estava no céu, e o deserto
a oração de S. Pedro, que se achava presénte, voou na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto?
mais depressa que êle, e, caindo lá de cima o mago, Porque hã asas para subir e asas para descer. As
não quis Deus que moxzresse logo, senão que nos asas para subir são muito perigosas; as asas para |
olhos também de todos quebrasse, como quebrou, descer muito seguras, e tais foram as de S. Antônio.
os pés. Não quero que repareis no castigo, senão * Deram-se à alma de Santo Antônio duas asas de
no gênero dêle. Que caia Simão, estã muito bem caído; águia, que-foi aquela duplicada sabedoria naturale
que morra, também estaria muito bem morto, que o seu | “sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele, que

ptb qe o
atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas -fêz? Não estendeu as asas para subir: encolheu-as
que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre - para descer, e tão encolhidas, que, sendo Arca do -
a cabeça. ou os braços, senão os pés? Sim, diz São: Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo
Máximo, porque quem"tem pés para andar e quer e sem ciência. Voadores do mar — não falo com os da
asas para voar, justo é que perca as asas, e mais os | terra — ixmitai o vosse santo pregador. Se-vos pare-
pés. Elegantemente o Santo Padre: Lt qui paulo ce que as vessas barbatanas vos podem servir de
“ante volare tentaverat, subito ambulare non posset: asas, não as estendais para subir, por que vos não
et qui 'pennas assumpserat, plantas amifteret. "E: suceda encontrar com alguma vela, ou algum costa-
Simão tem pés, e quer asas, pode andar, e quer voar? do: encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo
Pois quebrem-se-lhe as asas, para que não voe, e em alguma cova, e se aí estiverdes mais escondidos,
também os pés, para que não ande. Eis aqui, voado- estareis mais seguros. R .
res do mar, o que sucede aos da terra, para que cada 365 Mas já que estamos-nas covas do mar,
um Se contente com o seu elemento. Seo mar toma- antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, con-
ra-exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no tra o qual tem suas queixas, e grandes, não menos
Danúbio, não haveria tantos Ícaros no Oceano. que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo, com
364 Oh, alma de Antônio, que só vós tivestes
asas e voastes sem. perigo, porque soubestes voar
(11) Apareceu wm grande sinal no céu (Ape 12, 1).
316. PADRE ANTÔNIO VIEIRA. "SERMÕES 317

aguêle-seu capelo na cabeça, parece um monge; com como o da água, espelho natural não só da terra, se-
aqueles seus raios estendidos, parece uma estrêla; não do mesmo céu! Lá disse o profeta por encareci-
com aquêle não ter osso, nem espinha, parece a mes- mento que, nas nuvens do ar, até a águaé escura:
ma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta Tenebrosa aqua in nubibus aeris (SI 17,12). E
aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir
testemunham contestamente os dois grandes doutô- a escuridade ao outro elemento, e não à água, a qual
res da Igreja Latina e Grega que o dito polvo é o em seu próprio elemento sempre é clara, diáfana e
maior traidor do mar. “Consiste esta traição do polvo “transparente, em que nada se pode ocultar, enco-
primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas brir, nem dissimular. E que neste mesmo elemento-
côres de tôdas aquelas côres a que está pegado. As se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do
côres, que no camaleão são gala, no polvo são ma- bem público um monstro tão dissimulado, tão fingi-
lícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo “do, tão astuto, tão enganoso, € tão conhecidamente
são verdade é artifício. Se-está nos limos, faz-se. traidor? - Vejo, peixes, to
que, pelo conhecimenque
verde, se está na areia, faz-se branco, se está no lô- tendes das terras em que batem os vossos mares, me
do, faz-se pardo, e se estã em alguma pedra, ,como estais respondendo-e convindo que também nelas há
mais ordinâriamente costuma estar, faz-se da côr da ' falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas,
- mesma pedra. E daqui. que sucede? Sucede que o e muito maiores e mais perniciosas traições. E sôbre
outro peixe, inocente da traição, vai passando desa- o mesmo sujeito que defendeis, também podereis
cautelado, e o salteador, que está de emboscada den- aplicar aos semelhantes outra propriedade muito
tro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de re- própria; mas pois vós a calais, eu também a calo.
pente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e
fizera mais, porque nem fêz tanto. Judas abraçou a muito mais do que dizeis, pois o não posso negar.
Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que “Mas ponde os olhos em Antônio, vosso pregador, e
- abraça, e mais o que prende. Judas com os braços vereis nêle o mais puro exemplar da candura, da sin-
fêz-se o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as ceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fin-
cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com gimento ou engano. E sabei também, que para haver |
lanternas diante: traçou a traição às escuras, mas - tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente
executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo- ser português; não era necessário ser santo.
se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e acabado, irmãos peixes, os vossos
368 Tenho
roubo que faz é à luz, para que não distinga as côres.|
louvores e repreensões, e satisfeito, como vos pro-
Ve, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois
meti, às duas obrigações de sal, pôsto que do mar,
Judas em tua comparação já é menos traidor.
e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-
367 Oh! que excesso tão afrontoso e tão indig- vos uma advertência muito necessária, para Os que
- no de um elemento tão puro, tão claro, e tão cristalino viveis nestes mares. Como êles são tão esparcelados e
318 - PADRE ANTÔNIO VIEIRA SERMÕES
Sto
-Cheios de baixios, bem sabeis
à costa muitos. navios, que se perdem e dão com o alheio atravessado e garganta, porque é re
com que se enriguece o mar e. que o mesmo 5. Pe ro
ea terra se empobrece, ,
Importa, pois, que adv PO dão pode absolver. E pôsto que os homens
que nesta mesma irtais
riqueza tendes umgrande perigo, incorrem a morte eterna, de que não são Nes sos
Porque todos os que se
aproveitam dos bens dos peixes, êles, contudo, apressam a sua mrnora , mo
naufragantes ficam excomu
ngados e malditos. Esta- neste caso, se materialmente, como tenho dito, s
Pena de excomunhão, que
é abstêm dos bens dos naufragantes.
a vós, senão aos homeás, mas gravíssima, não se pôs
muitas vêzes que quando
. tem mostrado Deus por .
os animais cometem mate
rialmente o que é Proibido -
incorrêm, por seu modo,
por esta lei, também êles
nas
Ponto começam a definhar, penas dela, e no mesmo
até que acabam miserã-.

TO que os demais? Ora,


não batem moeda no fundo estai atentos. Os peixes
“tos.com os homens, dond do mar; nem têm contra-
e
logo, a moeda que êste pei lhes possa vir dinheiro:
algum navio que fizera na xe tinha engolido, era de
uf
quis mostrar o Senhor que rágio naqueles mares, E
Seus
as penas que S. Pedro, ou
sucess
ores, fulminam
mam os bens dos naufraga contra os homens. que to-
por seu modo, as incorrem, ntes, também os peixes,
outros, e com o mesmo
morrendo primeiro que os
dinheiro que engoliram atr
vessado na garganta. a-
esta, paraa terra se eu Oh! que boa doutrina
era
não Pregara para o mar!
Os homens não há mais Para
miserável morte quemorrer
.SERMÓES . 321

tal! Peixes, dai muitãs graças a Deus de vos livrar


dêste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifi-
cio, que chegar morto.- Os outrós animais ofereçam, '
a Deus o ser sacrificados: vós oferecei-lhe o não.
chegar ao sacrifício; os outros sacxifiquem a Deus o”
sangue e a vida: vós sacrificai-lhe o respeito e à re-
' .
$ VI verência.
370 Ah! peixes, quantas invejas vos tenho a

Despedida e advertência final aos peixes. Por que | essa natural irregularidade! Quanto melhor me fôra
foram êles excluidos por Deus dos sacrifícios da não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo tão indigna-
lei antiga. : o mente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reco-
nheço muitas vantagens. À vossa bruteza é melhor
369 Com esta última advertência vos despido, que a minha razão, e o vosso instinto melhor que o:
ou me despido de vós, meus peixes. É para que va- meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus
des consolados do sermão, que não sei quando ouvi- com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis
reis outro, quero-vos aliviar de uma. descônsolação a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não
mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em ofendeis à Deus com o entendimento; eu quero, mas
que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica, ou vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes
ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que criados por Deus para servir ao homem, e conseguis
“lhe haviam de ser sacrificados, mas todos êles, ou o fim para que fostes criados; a tim criou-me para
animais terrestres"
oii aves, ficando os peixes total- o servir a êle, e eu não consigo o fim para que me
mente: excluídos “dos sacrifícios. E quem duvida criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis
que esta exclusão tão universal era digna de grande aparecer diante dêle muito confiadamente, porque O
desconsolação e sentimento para todos os habitado-- não ofendestes: eu espero que. o hei de ver, mas com
res de um elemento tão nobre, que mereceu dar a que rosto hei de aparecer diante de seu divino aca-
matéria aq primeiro sacramento? O motivo principal tamento, sé não cesso de o ofender? Ah! que quase:
de serem excluídos os peixes foi porque os outros " estou por dizer que me fôra melhor ser como vós, pois
animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes ge- de um homem que tinha as minhas mesmas obriga- .
- ralmente não, senão mortos, e coisa morta não quer ções, disse a Suma Verdade que melhor lhe fôra não
Deus que se lhe ofereça nem chegue aos seus altares. nascer, ou não nascer homem: Si natus'non fuisset ho-
Também êste ponto era mui importante e necessário mo ille (12). E pois os que nascemos homens res-'
aos homens, se eu lhes pregara a Eles. Oh! quantas Lu.

almas chegam àquele altar mortas, porque chegam, (12) Melhor fôra ao tal homem não haver nascido
.
(Mt

e não têm horror de chegar, estando em pecado mor- 26, 28)...


a
32 | PADRE ANTÓNIO VIBIBRA
pondemos tão mal'às obrigações de nosso nascimen-
to, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus-
.
pelo vosso. :
371 Benedicite cetes,- et omnia, quae mioven-
fer in aquis Domino: Louvai, peixes, a Deus, os'
grandes e os pequenos, e repartidos em dois coros e

tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente; lou-


: vaia Deus, porque Yos criou eim tanto número. ' Lou- SERMÃO PARA O DIA DE
vai a Deus, que vos distinguiú em tantas espécies; .
louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e 'S. BARTOLOMEU .
formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de-todos -
Os instrumentos necessários para a vida; louvai:a “EM ROMA
Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro;
louvai à Deus, que vindo a êste mundo, viveu entre
vós, e chamou para si aguêles que convosco e de vós
- viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a
Deus que vos conserva; louvai a Deus que vos multi-
plica; louvai a Deus, enfim, servindo é sustentando
ao homem, que é o fim para que vos criou, e assim
como no princípio vos deu sua bênção, vo-la detam- Na ocasião de promoção de Cardeais.
bém agora. Amém: Como não sois capazes de gló- «

ria, nem graça, não acaba O vosso sermão em graça


e glória.
. " Elegit duodecim ex ipsis, quos e apostolos nomi-
e nao (1). o

É
po
'
k

(1) Escolheu dentre eles doze, que chamou apóstolos (Le'


6, 13). o oo : .

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