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Carnaval 2022: defesa da retomada ignora

condições desumanas de trabalho

André Santana
15/11/2021 04h00

Ainda sem confirmação pelo poder público, a realização


do Carnaval de Salvador em 2022 ainda segue indefinida. No debate,
defensores da festa se apoiam na diminuição dos números de vítimas da
pandemia e exploram os números da economia gerada pela festa.
Chegam a afirmar que o trabalho realizado nos dias de Carnaval
garante renda para as famílias se sustentarem por mais seis meses do
ano.

Só se for para as cervejarias, os donos dos grandes blocos, dos


camarotes badalados, dos hotéis de luxo ou de quem agencia as estrelas
da música.
Esta não é a realidade de uma massa de trabalhadores formada por
cordeiros, catadores de latinha, vendedores ambulantes e centenas de
artistas que sustentam a realização da festa em troca de baixa
remuneração.

Nos argumentos não constam que os lucros gerados pelo Carnaval


resultam da exploração de uma mão de obra pouco remunerada e do
trabalho informal daqueles que necessitam se submeter a péssimas
condições para garantir um mínimo de renda.

Nos debates sobre o Carnaval da retomada, nada se fala de como alterar


essa realidade de desigualdade que, com a pandemia e o aumento do
desemprego e da miséria, só tende a piorar a situação dos trabalhadores
da folia.
Essas pessoas estarão ainda mais vulneráveis à exploração e à
insegurança, em um ambiente que, mesmo com vacinação, ainda será
de risco.

Rio e São Paulo já se preparam para o Carnaval

Com elevado percentual da população vacinada e diminuição dos casos


de covid-19, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro já se prepararam
para a realização do Carnaval 2022.

A prefeitura de São Paulo anunciou esta semana a empresa de cerveja


que investirá R$ 23 milhões como patrocinadora oficial do Carnaval de
rua. As escolas de samba nas duas cidades já anunciam seus temas e
sambas-enredo.
Enquanto isso, a folia em Salvador segue sem confirmação oficial por
parte dos poderes públicos. Nem prefeitura, que gerencia o Carnaval,
nem o governo da Bahia, importante financiador da infraestrutura da
festa, garantem a realização do Carnaval na cidade em fevereiro de
2022.

O governador Rui Costa (PT) disse à imprensa, esta semana, que não
aceitará ultimato para antecipar o anúncio da festa. O gestor pretende
aguardar a situação dos números da pandemia pelo menos até
dezembro.

A pressão tem sido grande por uma posição do governo. Em reunião


nesta quinta (11), o Conselho Municipal do Carnaval de Salvador
decidiu pela realização da festa. Para os integrantes do Conselho, que
representam segmentos carnavalescos, o anúncio precisa ser feito logo
para que patrocinadores, turistas e foliões possam se programar.

No início da semana, uma comissão formada na Câmara de Vereadores


de Salvador para o acompanhamento da retomada de eventos na cidade
já havia aprovado um relatório com recomendações para que o
Carnaval aconteça, de fato, na capital baiana.

A comissão cobra que o anúncio por parte do poder público seja


realizado até esta segunda-feira (15), pois restariam apenas cem dias
para o Carnaval previsto para começar em 23 de fevereiro de 2022.

Festa é marcada por muita desigualdade

Os argumentos a favor estão na importância da economia movimentada


pela festa, que atrai visitantes do mundo inteiro, aquecendo o turismo e
o setor de serviços e gerando ocupações temporárias.

Quem conhece de perto o Carnaval de Salvador sabe que o que ele tem
de grandioso em espetáculo de música, alegria e diversão tem de
desigualdades.

A festa é um momento importante para perceber o quanto a cidade de


Salvador consegue manter a lógica de produzir prazer e lucro para
alguns pela exploração da mão de obra precarizada de uma massa
populacional pobre e necessitada de alguma renda para sobreviver.
Ambulantes enfrentam precárias condições nas ruas para a venda de bebidas e alimentos no Carnaval

Imagem: Joá Souza

O valor que se ganha para trabalhar no Carnaval pode ter alguma


relevância para as famílias pobres, mas passa longe dos exageros
colocados por quem exige a realização da festa a qualquer custo.

Até para o meio artístico, que tem no Carnaval uma importante vitrine
de visibilidade para carreiras de músicos, dançarinos e cantores, a
situação é bem difícil. Distantes dos elevados cachês concentrados em
alguns nomes midiáticos, há músicos que esperam por meses para
receberem pelas apresentações feitas na festa.

Ainda tem as entidades carnavalescas de matriz africana, como os


afoxés, blocos afro e do segmento do samba, que só conseguem realizar
o desfile com o fomento do poder público, já que as grandes marcas
patrocinadoras, em geral, não se interessem pela temática destas
agremiações.

A situação é ainda pior para os cordeiros, que seguram as cordas para


garantir a segurança dos foliões que compram o abadá dos blocos e
podem desfilar em um espaço reservado, separado pelas cordas.
Além das péssimas condições de trabalho, somente com muita
fiscalização dos órgãos públicos, os cordeiros conseguem receber água
e lanches dignos e equipamentos mínimos de segurança, como luvas e
protetores para os ouvidos que ficam muito próximos aos trios
elétricos, por longo período.

Famílias de ambulantes passam o Carnaval acampados nas ruas do circuito

Imagem: Nelson de Barros Neto / Folhapress

A renda dos cordeiros está muito longe dos argumentos de quem


defende a festa.

A diária média de um cordeiro varia entre R$ 50 e R$ 70 para trabalhar


por 6 ou mais horas no desfile. Digamos que um cordeiro consiga atuar
nos sete dias de festa. Ao final, o valor será em torno de R$ 490.

Como imaginar que essa renda, já pensada em números altos para a


média geral, pode sustentar uma família por meses?
Folia da retomada não deveria ser de volta ao normal

No caso dos vendedores ambulantes a situação degradante começa


semanas antes da folia, quando precisam se submeter a longas filas para
conseguir a licença da prefeitura.

Todos os anos, a imprensa local registra o drama de famílias inteiras


que passam dias guardando o lugar na fila de atendimento do órgão que
autoriza a comercialização de bebidas e alimentos.

Depois são outros dias já nos circuitos da festa, sem condições mínimas
de higienização, alimentação e de sono. Tudo isso para vender as
latinhas de cerveja da marca oficial e exclusiva negociada com a
prefeitura.

Retirando os gastos na compra dos produtos, gelo e o mínimo que


precisam para se alimentar nos dias de folia, como pensar em altos
lucros.

Tem é que torcer para que sua mercadoria não seja perdida em tumultos
gerados por brigas e pela ação policial. É de cortar o coração a cena de
ambulantes que têm seu isopor quebrado e os produtos espalhados na
multidão.
Cordeiros separam a multidão dos associados dos blocos, que podem curtir no espaço reservado das ruas

Imagem: Joá Souza

São situações que não despertam a sensibilidade dos grupos que


exploram a festa porque estas ocupações no Carnaval, para a maioria
populacional pobre, segue a lógica vivenciada o ano inteiro nas
relações de trabalho ainda coloniais e escravocratas.

No Carnaval 2022, a necessidade dos desempregados pela pandemia


será ainda maior, gerando um contingente de mão de obra disposta a
aceitar as condições desumanas do mercado da folia.

Fonte:

https://noticias.uol.com.br/colunas/andre-santana/2021/11/15/carnaval-2022-nao-deveria-ser-
volta-ao-normal-para-trabalhadores-da-folia.amp.htm

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