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Espaços

educativos e
ensino de História

02
Abril

1
SUMÁRIO

PROPOSTA PEDAGÓGICA
ESPAÇOS EDUCATIVOS E ENSINO DE HISTÓRIA …............................................................................... 03
Helena Maria Marques Araújo

PGM 1
OS SENTIDOS DO ENSINO DE HISTÓRIA …............................................................................................. 24
Texto: Os sentidos do ensino de História
Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro

PGM 2
MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA ........................................................................................................... 36
Texto: Memória e ensino de História
Carmen Teresa Gabriel

PGM 3
LUGARES DE MEMÓRIA …......................................................................................................................... 54
Texto: Produção de Saberes nos lugares de memória
Helena Maria Marques Araújo

PGM 4
ESPAÇOS PÚBLICOS DE MEMÓRIA …...................................................................................................... 61
Texto: Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira
Mônica Lima

PGM 5
ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO-FORMAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES ....................................... 76
Texto: Para além de formar professores, dialogar com as experiências vividas
Elison Antonio Paim

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PROPOSTA PEDAGÓGICA

ESPAÇOS EDUCATIVOS E ENSINO DE HISTÓRIA


O SENTIDO DO ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA

Helena Maria Marques Araújo 1

O ensino de História no Ensino Fundamental, e também no Ensino Médio, tem como objetivo
fundamental proporcionar a nossos(as) alunos(as) as condições para que eles(as) consigam se
identificar enquanto sujeitos históricos, participando de um grupo social, ao mesmo tempo único e
diverso. Talvez este seja o nosso maior desafio, como professores: ensinar primeiramente a pensar,
criticar, propor! Despertar em nossos estudantes o desejo de conhecer, de participar ativamente da
sociedade em que vivem de forma crítica, reflexiva e transformadora. Mais essencial do que ensinar
conteúdos específicos, que também são importantes, o ensino de História na Educação Básica
possui o sentido maior de construção do cidadão crítico, que tenha a capacidade de participar
ativamente da sociedade em que vive e de se indignar com os acontecimentos do cotidiano.

Um trabalho sobre o ensino de História deve estabelecer o encontro ou, pelo menos, a junção de três
vertentes do conhecimento humano: a ciência histórica, o saber histórico escolar e as ciências da
Educação. Assim sendo, o objetivo do ensino de História é compreender mudanças e permanências,
continuidades e descontinuidades, para que o aluno aprenda a captar e valorizar a diversidade e
participe de forma mais crítica da construção da História. Faz parte, então, do procedimento
histórico a preocupação com a construção, a historicidade dos conceitos e a contextualização
temporal.

“Considero que um currículo adequado para o segmento do Primeiro Grau deve ser aquele que, na
5 a série, por exemplo, antes de abordar especificamente os conteúdos ligados a esta ou aquela
sociedade ou grupo humano, possa privilegiar a construção de conceitos fundamentais para a
compreensão da História, ou seja, é importante que o aluno domine alguns conceitos-chave”
(PACHECO, 1995, p. 49).

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Escola, memória e espaços educativos não-formais

Na perspectiva dos Estudos Culturais, segundo Tomaz Tadeu da Silva (1999), a cultura é
pedagógica e a pedagogia é cultural. Diversos programas de televisão, mesmo que não tenham o
objetivo explícito de ensinar, educam. Por outro lado, toda a pedagogia está inserida num contexto
histórico e cultural. Todo conhecimento se constrói, portanto, num sistema de significados.

A escola não é o único “lugar de conhecimento” e, portanto, de transformação de subjetividades,


como nos afirma o autor. Existem outros espaços de saber que também educam – espaços não-
formais de educação –, como museus, arquivos, programas de televisão e/ou rádio (educativos ou
apenas de lazer), filmes, peças de teatro, músicas, espaços de exposições etc.

Os museus, arquivos, locais de exposições e outros lugares de memória possuem cultura própria,
ritos e códigos específicos. Por outro lado, as escolas apresentam universos particulares, também
com lógica própria. Faz-se necessária, então, a busca de caminhos para a construção de uma
pedagogia de museus, como nos afirma Marandino (2000). Esta autora nos alerta para a necessidade
da construção de uma pedagogia de museus, levando em consideração a especificidade pedagógica
dos museus para otimizar as visitas escolares. Não se trata, segundo a autora, de opor o museu à
escola, mas de definir as especificidades relacionadas ao lugar, ao tempo e aos objetos no espaço do
museu, o que é essencial e deve ser incluído na formação de educadores numa didática de museu.
Nesse sentido, poderíamos ampliar esse entendimento não só para museus, como também para
outros espaços educativos: exposições, arquivos públicos, centros culturais, arquitetura de ruas
antigas, monumentos etc.

Vários motivos levam os professores a buscar os espaços educativos não-formais como lugares
alternativos de aprendizagem. Dentre tais objetivos, estariam a apresentação interdisciplinar dos
temas, a interação com o cotidiano dos estudantes e, por fim, a possibilidade de ampliação cultural
proporcionada pela visita. Assim, as visitas teriam o objetivo de fazer uma alfabetização científica
do cidadão. Para isso, trabalha-se com elementos de relevância social que informam os indivíduos e
os conscientizam de problemas político-sociais.

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Nas últimas décadas, a questão educacional passou a ser um dos alicerces dessa nova museologia.
Crescem pesquisas que analisam o processo de ensino, ou divulgam o conhecimento nesses
espaços, na perspectiva dos estudos sobre transposição didática ou museográfica.

O incentivo à participação e à interatividade que acontece nos museus de ciência e técnica se


estende aos museus como os de história, arqueologia, etnografia e ciências naturais através,
sobretudo, do advento de novas tecnologias. A base filosófica dessas mudanças reside na
democratização do acesso ao saber que está “depositado” nos museus.

Em contrapartida, a escola deve permitir a influência desses espaços educativos alternativos,


incentivando as visitas pedagógicas e as ações de parcerias.

“Há esperança de que a escola possa imbuir-se de uma nova função, a de ser um lugar de análises
críticas, de atribuição de significado às informações e reconstrução do conhecimento, para que possa
preservar seu status e função de formadora de sujeitos sociais e na qual o professor garanta seu
espaço de ação” (NOGARO, 1999, p. 29).

Para os gregos antigos, memória significava vidência e êxtase. É com tal alegria e êxtase que
esperamos que nossos alunos e alunas consigam perceber e apreender nossa memória através de
vivências extramuros escolares. A preservação da memória torna-se fundamental na ampliação de
vivências pedagógicas diferenciadas para nossos estudantes.

Espaços educativos não-formais

Como já foi dito anteriormente, faz-se necessário desvelar o horizonte universitário e pedagógico
para a utilização dos espaços educativos alternativos. Como exemplo de um espaço educativo não-
formal temos o “Espaço da Ciência de Olinda”, em Pernambuco, criado em 1994, que desenvolve
capacitação de professores através de centros de referência criados em 21 escolas da rede pública.
Também há o MAST/ CNP, que em 1997 estabeleceu um projeto denominado “Formação
continuada de professores de ciências e os espaços não-formais de Educação” para produzir
material didático junto às escolas públicas municipais.

Desta forma, em tais visitas pedagógicas seria oferecido aos nossos alunos e alunas diferentes

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leituras da ciência e do mundo. É essencial, cada vez mais, a parceria dos museus com as
universidades, secretarias municipais e estaduais para a realização de cursos de formação de
professores em todos os níveis. Além disso, é muito importante a implantação de pesquisas nos
museus e investigações sobre a relação museus/espaços culturais e escola. Esses estudos darão
subsídios maiores aos programas educativos e culturais desenvolvidos nessas instituições.

Em última instância, entender história é entender o tempo em movimento em múltiplos espaços. Se


entendemos que o ensino de História tem o sentido de formação da cidadania no Ensino
Fundamental e Médio, devemos ter o compromisso de proporcionar oportunidades para que os(as)
alunos(as) transportem esse conhecimento aprendido para suas vidas cotidianas, para que possam
participar de forma mais consciente da construção de um mundo mais justo e solidário.

“Contudo, a busca da cidadania nos países da periferia esbarra na falta de cumprimento de direitos
universais básicos, embora muitas vezes suas populações tenham esses direitos consagrados em lei.
Além disso, num mundo em constante transformação podem surgir novos direitos, frutos de novas
lutas e reivindicações. E é exatamente esse movimento que caracteriza a cidadania.” (CANDAU,
2002, p. 37)

Temas que serão debatidos na série Espaços educativos e ensino de História , que será apresentada
no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 3 a 7 de abril de 2006:

PGM 1- Os sentidos do ensino de História

No primeiro programa da série, vamos debater estes temas, entre outros: o papel da escola e a
importância do ensino de História para a formação da cidadania; o respeito pelo saber do educando;
o encontro entre saberes escolares e não-escolares, entre cultura erudita e popular; a construção do
conhecimento de forma dialógica, participativa, entre alunos e professores, a favor de uma educação
emancipatória; as concepções teóricas no ensino de História e na Educação que permeiam tais
opções educacionais; alternativas metodológicas ao método tradicional.

PGM 2 – Memória e ensino de História

O segundo programa tem como proposta discutir: o conceito de memória; a relação memória, tempo
e História; o tempo histórico e suas principais características: sucessão, duração e simultaneidade; a

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perpetuação dos povos através da memória ou do “esquecimento”; o que se quer lembrar e o que se
quer esquecer nas sociedades; o jovem e a sociedade presentista; a necessidade de se impor a
“ausência” de memória nas sociedades contemporâneas; mudanças e permanências nas sociedades.

PGM 3 – Lugares de memória

O terceiro programa vai enfocar estes temas: lugares de memória; a relação entre cultura e
pedagogia na perspectiva dos Estudos Culturais; a educação transformando subjetividades; a escola
não é o único lugar que educa; os espaços educativos não-formais, especialmente os museus e
exposições; os lugares de memória e suas culturas próprias, seus ritos e códigos específicos; a
democratização do acesso ao saber “depositado” nos museus; a busca pela construção de uma
pedagogia de museus; os espaços educativos não-formais como lugares alternativos de
aprendizagem.

PGM 4 – Espaços públicos de memória

Neste quarto programa, permanece a discussão sobre os espaços educativos não formais, analisando
estes temas, entre outros: a paisagem como algo socialmente transformado pelo tempo e depositária
de diferentes temporalidades; o espaço e o tempo-mundo fundidos na cidade; a necessidade de o
professor ensinar História fora dos muros da escola, utilizando excursões pedagógicas pelas ruas de
sua cidade, por exemplo; a análise das “migalhas” deixadas pelo tempo nas marcas da arquitetura,
monumentos, transportes etc. de uma cidade; o processo de ensino-aprendizagem nesses espaços
alternativos, na perspectiva dos estudos sobre transposição didática ou museográfica.

PGM 5 – Espaços educativos não-formais e formação de professores

O quinto programa vai abordar: a importância de se incorporar, nos estágios curriculares dos cursos
de Licenciatura, esses espaços educativos não-formais; a necessidade de se estreitar laços entre as
práticas curriculares nos cursos de formação de professores e os lugares de preservação da
memória; a urgência de se estabelecer políticas públicas de formação de professores que se
comprometam em reinventar a escola, visando à construção de uma cidadania participativa e

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democrática.

BIBLIOGRAFIA:

BETANCOURT, Nilda de Barros e GISSI, Jorge. El taller: integración de teoria y práctica.


Buenos Aires, Argentina: Editorial Humanitas, 1987.

BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979.

CANDAU, Vera Maria. Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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CANDAU, Vera Maria (org.). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

____________________ (org.). Reinventar a escola. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

_____________________(org.). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas .


Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CHERVEL, André. “História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de


pesquisas”, Teoria & Educação, n. 2, 1990, p.182.

DEMO, Pedro. Ironias da Educação - Mudança e contos sobre mudança. Rio de Janeiro:
DP&A ed., 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1997.

LE GOFF, Jacques. Calendário. In: Enciclopédia Einaundi. Memória- História, v.1, 1990.

MARANDINO, Martha. Museu e escola: parceiros na Educação científica do cidadão. In:


CANDAU, Vera Maria (org.). Reinventar a escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

MEDIANO, Zélia D. A formação em serviço de professores através de oficinas pedagógicas.


In: CANDAU, Vera Maria (org.). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes,

8
1997.

MONTEIRO, Ana Maria. A prática de ensino e a produção de saberes na escola. In:


SANTOS, Lucíola Licínio de C. P. O processo de produção do conhecimento escolar e a
didática. In: MOREIRA, Antonio Flávio B. Conhecimento Educacional e formação do
professor. São Paulo: Papirus, 1994.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 2 a ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

Nota:

1 Mestre em Educação - PUC-Rio. Professora Assistente de História do CAP/UERJ


e de Prática de Ensino de História do Departamento de História da UERJ.
Professora de História da rede particular de ensino. Consultora desta série.

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PROGRAMA 1

OS SENTIDOS DO ENSINO DE HISTÓRIA


Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro1

A constituição da história como disciplina escolar ao longo do século XIX, no Ocidente, implicou
um processo de seleção cultural e didatização necessário para tornar ensináveis os saberes então
selecionados para serem aprendidos pelas novas gerações.

As narrativas produzidas revelavam o espírito do povo, a alma das nações e o germe da identidade
nacional, expressos como histórias nacionais que contribuíam para afirmar poderes instituídos.

Essa operação cultural e política, de forte conteúdo simbólico, nos possibilita compreender
dimensões presentes no ensino de História, enquanto espaço/tempo no currículo escolar (ainda)
privilegiado nas sociedades contemporâneas, destinado à construção de significados necessários à
leitura e à compreensão do mundo, nacionalmente ou globalmente organizado.

Esses são alguns dos desafios do ensino de História: 1) Tornar acessível aos alunos o conhecimento
constituído sobre as sociedades e ações humanas do passado, passado recomposto pelos
historiadores a partir de documentos tomados como fontes; 2) Possibilitar a leitura de textos e
imagens, a escrita de suas apropriações-aprendizagens, a (re)construção de representações; 3)
Selecionar quais saberes, quais narrativas, quais poderes legitimar ou questionar.

Esse texto tem por objetivo discutir esses desafios e também as questões que se apresentam nos
processos inerentes ao ensino de História (e à sua pesquisa) que envolve não apenas o domínio de
saberes referentes ao passado mas, também, a compreensão da historicidade da vida social e do
diálogo com os diferentes saberes que circulam e se difundem nas sociedades. Este processo
implica um trabalho que auxilie os alunos a atribuir sentido às ações humanas e aos atores sociais,
em perspectiva sincrônica e diacrônica, e a aprofundar o pensamento crítico em face dos poderes
instituídos através da análise, e possível desmistificação, de rituais, atores, imagens e processos de

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participação, atribuição e questionamento do poder nas sociedades 2 .

1. Renovação teórica no campo do currículo e do ensino: o conceito de saber escolar

Nas três últimas décadas do século XX, os estudos e pesquisas voltados para as questões relativas
ao currículo escolar voltaram-se para a investigação das relações entre escola e cultura, buscando
melhor compreender o papel desempenhado pela escola na produção da memória coletiva, das
identidades sociais e da reprodução (ou transformação) das relações de poder.

Os saberes ensinados, na maior parte do século XX, não foram objeto de maior questionamento ou
reflexão. Eram definidos e apresentados nos currículos e programas como aqueles a ensinar,
oriundos de base científica e cultural ampla, através de meios e procedimentos adequados,
escolhidos num “receituário ou arsenal” construído e fundamentado cientificamente nos
conhecimentos oferecidos pela psicologia, pela psicopedagogia e pela didática.

Esta perspectiva racionalista, cientificista, que contém críticas ao modelo espontaneísta e empirista
até então dominante, é, por sua vez, atualmente, objeto de críticas que apontam a simplificação
inerente à concepção que a fundamenta.

Pesquisas confirmam que o currículo é campo de criação simbólica e cultural, permeado por
conflitos e contradições, de constituição complexa e híbrida, com diferentes instâncias de
realização: currículo formal, real, oculto (Moreira, 1997).

No campo da epistemologia, discutem-se a historicidade e a relatividade do conhecimento


científico, questionando-se a idéia de que a ciência produz a única forma de conhecimento válido e
verdadeiro, reconhecendo-se a diversidade das formas de conhecimento, com diferentes
racionalidades e formas de validação.

No meio educacional, os estudos reconhecem as características, cada vez mais evidentes, dos
fenômenos práticos: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflitos de valores. Os
diferentes sujeitos, com visões de mundo e interesses diferenciados, estabelecem relações entre si

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com múltiplas possibilidades de apropriação e interpretação.

Essas novas perspectivas permitem avançar em relação a estudos e análises que, ao não
reconhecerem a especificidade da cultura escolar, buscavam a melhoria do ensino através da maior
aproximação com o conhecimento científico. O ensino seria aperfeiçoado na medida em que mais
semelhante, coerente e atualizado fosse em relação à produção científica.

Essa orientação induzia, por exemplo, pesquisadores a identificar erros no ensino realizado nas
escolas, na medida em que sua atualização se faz mais lentamente, e também porque um processo
de síncrese é realizado, com a utilização de contribuições de diferentes autores, alguns deles com
pressupostos teóricos distintos, para configurar explicações ou exemplificações.

Ao ser radicalizada, esta crítica levou muitos a considerar o saber escolar um saber “de segunda
classe”, inferior ao conhecimento científico, porque resultante de simplificações necessárias para o
ensino a crianças e adolescentes, ou adultos em processo de aprendizagem 3 .

Não podemos negar que o diálogo com o conhecimento científico é absolutamente fundamental.
Mas é preciso compreender melhor como se dá a construção do saber escolar, que envolve a
interlocução com o conhecimento científico, mas também com outros saberes que circulam no
contexto cultural de referência.

Nesse sentido, o conceito de saber escolar, referenciado em pesquisadores do campo educacional da


área do currículo e da história das disciplinas escolares, oferece contribuição importante para a
melhor compreensão dos processos educativos.

Entre os primeiros podemos citar, na tradição francesa: Forquin, 1992, 1993, 1996; Moniot, 1993;
Develay, 1994; 1996; Allieu, 1995; Lautier, 1997 e, no Brasil, Santos, 1990; Moreira, 1997; Silva,
1999; Lopes, 1999; Monteiro, 2002, 2003.

Na história das disciplinas escolares, temos o trabalho de Chervel (1990) e, na vertente inglesa,
temos os trabalhos de Goodson (1995), que utiliza uma abordagem sócio-histórica para análise da

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construção curricular.

A perspectiva com a qual eu trabalho reconhece a especificidade epistemológica desta construção


que tem na escola o locus por excelência, escola que deixa de ser considerada apenas local de
instrução e transmissão de saberes, para ser compreendida como espaço educacional, configurado e
configurador de uma cultura escolar, na qual se confrontam diferentes forças e interesses sociais,
econômicos, políticos, culturais. Filia-se mais diretamente aos autores franceses que estudam os
processos de transposição didática.

Nesta perspectiva, os saberes escolares, antes inquestionáveis e universais, passam a ser objeto de
indagações que se voltam para aspectos relacionados à seleção cultural – quais saberes, motivos de
opção, implicações culturais e repercussões sociais e políticas das opções, negações, ocultamentos,
ênfases.

Mas não basta selecionar. É preciso tornar os saberes possíveis de serem aprendidos. Nesse sentido,
os estudos voltados para os processos de organização destes saberes investigam os processos de
didatização, buscando superar a perspectiva instrumental e técnica, utilizando o conceito de
transposição didática (Chevallard, 1991; Develay, 1992) ou mediação didática (Lopes, 1999)
para analisar os processos realizados para viabilizar aprendizagens. (Forquin, 1992; Lopes, 1997)
4.

Por último, e não menos importante, é preciso lembrar que o saber escolar, em sua constituição,
passa por um processo de axiologização (Develay, 1992), ou seja, ele é veículo de transmissão e
formação de valores entre os estudantes. A dimensão educativa, portanto, é estruturante deste saber,
não sob a forma de proselitismo, mas através da seleção e didatização realizada: saberes negados ou
afirmados; formas democráticas ou autoritárias de ensinar, métodos baseados na repetição e
memorização, ou baseados no desenvolvimento do raciocínio e pensamento crítico.

Cabe indagar como essas questões se expressam na história escolar, uma vez que a própria
área/disciplina História já traz, em sua constituição, a dimensão pedagógica.

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3. A História como saber escolar

A possibilidade de utilização dos conceitos de saber escolar e de transposição didática no campo da


História precisa ser discutida de forma a considerar problemas e características específicos aos
processos de sua constituição, que envolvem aspectos distintos daqueles relacionados à Matemática,
por exemplo. É importante avaliar possibilidades e limites dos conceitos quando eles são
transplantados do seu contexto de produção original e utilizados como instrumentos de
inteligibilidade em diferentes campos disciplinares 5 .

Esse trabalho tem sido realizado por alguns autores franceses que pesquisam a didática da História,
e que têm procurado incorporar e avaliar a potencialidade teórica das proposições de Chevallard 6 .

Entre eles, Moniot (1993) faz algumas ponderações importantes, ao discutir e contextualizar a
transposição didática no processo de elaboração da História em sua versão escolar. Inicialmente, ele
concorda com Chevallard sobre a anterioridade do saber acadêmico em relação ao saber escolar, ao
lembrar que, por exemplo, na França, a História dos historiadores precede a História escolar,
constituída num processo que se desenvolveu ao longo do século XIX (Furet, 1978). Mas, por outro
lado, como o autor destaca, a História escolar também fez a fortuna da História universitária,
havendo uma conivência entre uma e outra, de forma que até hoje uma legitima a outra. “Não há
dúvida de que, no século XX, a história escolar tem características próprias, numa configuração
com sua força instalada. Se, por um lado, ela depende moralmente da história acadêmica, ela
produz, para esta, uma reverência e uma segurança pública, pela cultura e pelos sentimentos que ela
destila: de fato, há uma troca de legitimações reais entre duas entidades específicas” (Moniot, 1993,
p. 26) 7 .

No Brasil, podemos dizer que um processo semelhante ocorreu. A constituição de uma História do
Brasil, pautada em princípios definidos com base em metodologia científica, se deu em meados do
século XIX, no contexto de uma instituição acadêmica que era o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (Guimarães, 1988). A elaboração da História Geral do Brasil em 1854, por Francisco
Adolfo de Varnhagen, constituiu a primeira versão que atendia aos princípios de uma História
“científica” escrita a partir de documentos e que serviu de base para a elaboração de livros
didáticos, entre eles aquele intitulado Brasil em Lições, de Joaquim Manuel de Macedo, usado

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durante décadas no Colégio Pedro II e que serviu de referência para a História do Brasil ensinada
em todo o país (Mattos, 2000) 8 .

Já a diferença entre o saber acadêmico e o saber escolar em História constitui, para Moniot, um
“segredo de polichinelo”. A História, diferentemente das matemáticas, que possuem uma definição
acadêmica muito clara, apresenta diferentes perspectivas de inteligibilidade – História positivista,
dos Annales, marxista e das análises macroeconômicas, Nova História, e de composições, que se
complementam freqüentemente, a partir de diferentes formas de definição e de organização dos
eixos de análise: temática – História política, História social, História econômica, História cultural;
geopolítica – História do Brasil, História da América, História da Europa, História do Extremo
Oriente, etc.; cronológica – Antigüidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea,
Tempo Presente, etc.; espacial – global, nacional e regional.

Essa característica suscita, de imediato, uma questão de alguma complexidade: qual História utilizar
como referência acadêmica para se contrastar com o saber a ensinar?

Outra questão refere-se ao movimento que articula os saberes e que, para Chevallard, é
prioritariamente descendente: do saber acadêmico ao saber escolar. Allieu (1995, p. 152), ao discutir
a transposição didática no âmbito da História, questiona essa visão, afirmando que “a relação entre
o saber ensinado e as noções ‘científicas' correspondentes produzidas na academia é mais
ascendente do que descendente: mais do que uma transposição, nós preferimos falar de uma
interpelação.” Citando Audigier, Crémieu, Tutiaux-Guillon (1994, p. 6) ela complementa: “as
ciências históricas (...) são a referência para não dizer o falso.”

Quem é responsável por essa atribuição de sentido na história escolar? O professor de História
que, para isso, não segue um modelo predefinido, geral ou estrutural que oriente a transposição: a
história escolar é reinventada em cada aula, no contexto de situações de ensino específicas, onde
interagem as características do professor (e onde também são expressas as disposições oriundas de
uma cultura profissional), dos alunos e aquelas da instituição (aí podendo ser considerada tanto a
escola como o campo disciplinar), características essas que criam um campo de onde emerge a
disciplina escolar. Esses atores estão imersos no mundo, ou seja, numa sociedade dada, numa época
dada, em que as subjetividades expressam e configuram representações que, por sua vez, interferem

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na definição das opções que orientam os sentidos atribuídos aos acontecimentos (Allieu, 1995, p.
153-4).

Assim, Allieu prefere falar em interpelação, e não transposição, porque para atribuir sentido ao que
ensina, o professor recorre ao saber acadêmico, em suas diferentes escolas e matrizes teóricas, para
buscar subsídios que lhe permitam produzir versões coerentes com seus pontos de vista, e que
tenham uma base de legitimidade dentro do campo. Aliás, no saber escolar encontramos muito mais
uma síncrese de diferentes matrizes teóricas do que filiações definidas a determinadas correntes 9 .

Além do mais, lembra Moniot, diferentemente da Matemática e da Biologia, a História tem como
principal aplicação ser comunicada, divulgada, questão essa que tem ressonância tanto na referência
como na transposição. A História é fonte de referência e está presente em várias dimensões e
espaços da vida social atual, as chamadas “práticas sociais de referência” (Martinand, 1986). Ela
não é apenas um objeto, um relato do passado dos homens, ela é uma linguagem partilhada e uma
prática.

Para tantos usos e finalidades contribui a história acadêmica, ou as práticas sociais de referência, ou
a história escolar? Ou todas contribuem? Se estas finalidades não são explicitadas nos objetivos do
seu ensino, que muitas vezes apresentam formulações mais “nobres” e “politicamente corretas”,
elas estão presentes assim mesmo. Elas permitem compreender, então, como a História escolar tem
diferentes referências muito reais.

Para Moniot, a história escolar não precisa buscar nenhuma prática social de referência: ela própria,
no sentido de História vivida, é a primeira dessas práticas sociais. Mas, além disso, a História
escolar dialoga com as visões, os textos e as expressões históricas presentes em diferentes e
específicas “práticas sociais de referência”: a dos autores, diretores e narrativas de filmes históricos,
documentários, programas de televisão, novelas ou peças teatrais; na prática social de curadores de
exposições museológicas, artísticas, científicas; dos jornalistas e comentaristas políticos; dos guias
de atividades de turismo; nas práticas e discursos das diferentes religiões; nas práticas cotidianas
dos diferentes grupos sociais, entre eles o familiar, e que servem de referência e dialogam com o
saber acadêmico na constituição do saber escolar, chegando à escola através dos diferentes meios de
comunicação, dos alunos, dos professores e de seus pais.

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Além disso, as dimensões axiológica e política têm uma importância significativa na constituição da
História escolar que não pode ser desconsiderada. Perspectivas diferentes implicam ênfases,
negações, ocultamentos ou denúncias que têm profundas implicações na versão efetivamente
ensinada.

Esse autor reconhece, portanto, a existência de uma história escolar que possui três principais
referências, e não apenas a História acadêmica:

• a história acadêmica , da qual ela toma problemas e inteligibilidades e de onde retira sua
legitimidade;

• um conjunto de valores que dá sentido à vida coletiva e que inspira a socialização pela escola;
ninguém ensina publicamente a História sem motivo, não se contam as coisas simplesmente porque
elas pertencem ao passado. Mesmo aqueles que denunciam uma mitologia ou ideologia possuem
outra proposta para a substituir;

• a cultura que é transmitida pela História, em três sentidos: o que ela transmite faz parte do senso
comum e da experiência geral das relações humanas, com seu vocabulário e categorias, o código
semântico e referências sociais correntes; ela é portadora de uma cultura política, no sentido mais
amplo, e de uma cultura cultivada, constituída a partir de uma freqüentação qualitativa de lugares
do passado (Moniot, 1993, p. 24-33).

Assim, para Moniot, “a História escolar é uma enorme e polivalente lição de coisas sociais, morais
e intelectuais. Ela pode insuflar tanto a conformidade como o distanciamento, a continuidade e a
reavaliação. Terreno complexo para a definição de aprendizagens específicas” (1993, p. 35).

Essas considerações, baseadas no texto de Moniot (1993) e de Allieu (1995) oferecem uma
perspectiva bastante interessante e fértil para a análise da história escolar. No Brasil, rompida a
tradição da história oficial tradicional, oriunda do século XIX, e com uma acentuada vertente
nacionalista e integracionista, que ocultava ou negava as contradições sociais na busca de uma
imagem pacifista e legitimadora de formas de dominação seculares, vivemos, nas três últimas

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décadas do século XX, um processo de renovação da pesquisa histórica extremamente rico, que
propiciou o rompimento de verdades estabelecidas e iluminou aspectos desconhecidos de nosso
passado.

Essa renovação se comunicou ao ensino, expressando-se no movimento de reforma curricular que


sacudiu e mobilizou professores dos diferentes estados e depois do país, nos últimos quinze anos.

No contexto do processo de abertura política, após vinte anos de ditadura militar, as propostas para
o ensino de História foram, inicialmente, muito marcadas por uma militância que, de uma fase
inicial de ataque aos aspectos reprodutivistas da escola, passou a vê-la e ao seu ensino como os
instrumentos da transformação social, senão da revolução.

Com isso, o ensino assumiu uma perspectiva quase proselitista, em que a denúncia das situações de
exploração ocupava grande espaço nas aulas, com o objetivo de “conscientizar o cidadão” através
da superação de concepções de mundo ideologicamente configuradas, ideologia considerada na
concepção marxista de falsa consciência. Muitas vezes esta postura gerou, por parte dos
professores, atitudes voluntaristas e autoritárias voltadas para a afirmação de determinadas verdades
e rejeição de saberes e práticas dos alunos, vistos como expressão de alienação.

Sem perder a dimensão política e de formação da cidadania, fundamental para o ensino de História,
e presente em qualquer ato educativo, cabe considerar as reflexões de Moniot quanto à relação
complexa e profunda do ensino de História com a cultura, de forma ampla, e com a memória
coletiva.

Elas nos fazem perceber que a relação da educação realizada em espaços formais com aquela
efetivada em espaços não formais, que acontece de forma difusa, independentemente da ação
docente, é uma possibilidade de diálogo fértil e enriquecedor para professores e alunos.

Acredito que estas considerações nos ajudam a melhor compreender tantas dificuldades vividas por
alunos e professores, no dia-a-dia do seu trabalho. Ao mesmo tempo, abrem novas perspectivas para
pensar, com mais humildade, alternativas para o nosso fazer, e para que estejamos mais abertos para

18
ouvir os alunos e seus saberes, para que juntos possamos avançar na superação do senso comum
10 .

Se o trabalho for realizado com abertura para ouvir o outro e desenvolvendo a razão crítica,
estaremos contribuindo para auxiliar nossos alunos a compreender a historicidade da vida social,
com os seus riscos e suas possibilidades.

Referências bibliográficas:

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20
Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997.

________________. Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997.

PROST, A. Douze leçons sur l'histoire . Paris: Éditions du Seuil, 1996.

Notas:

1 Professora de Didática e Prática de Ensino de História e pesquisadora do Núcleo


de Estudos de Currículo do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação
da UFRJ. Mestre em História pela UFF e Doutora em Educação pela PUC-Rio.

2 Este texto é uma adaptação de artigo publicado com o título “Ensino de História e
História Cultural: diálogos possíveis” na obra: SOIHET,R. e outras. Culturas políticas.
Ensaios de história cultural, história política e ensino de história . Rio de Janeiro:
Mauad, 2005.

3 Não defendo aqui que todo ensino escolar é bem desenvolvido e imune a erros. A
crítica, apoiada em autores que ignoram a especificidade da cultura e do saber
escolar, tem, no entanto, dificultado avanços para sua melhor realização.

4 Por transposição didática, Chevallard denomina o processo que transforma um


saber acadêmico em saber a ensinar e , este, em saber ensinado. Para analisar as
diferenças entre os autores que operam com estes conceitos, ver Monteiro 2002 e
Monteiro, 2003.

5 Uma crítica à teoria da transposição didática, conforme formulada por Chevallard


com base no ensino da Matemática, é feita por Caillot (1996), que discute se esta
teoria é ela mesma transponível para outros campos disciplinares que não a
Matemática. Ele questiona fortemente o fato de Chevallard considerar o saber
acadêmico, científico, como a única referência para o saber ensinado, apoiando-se
na sociologia do currículo que tem mostrado a complexa rede de influências,
interesses e saberes que entram em jogo na sua formulação. Para ele, a teoria da
transposição didática tem uma validade limitada ao campo da Matemática
(Caillot,1996, p. 22-3).

6 Audigier, 1988; Develay,1992; Tutiaux-Guillon (1993); Audigier, Crémieux, Tutiaux-


Guillon (1994); Allieu (1995); Lautier (1997) são outros autores que, juntamente com
Moniot (1993), têm procurado incorporar e reelaborar as contribuições da teoria da
transposição didática ao campo da História.

7 Esta observação de Moniot vem ao encontro da perspectiva de Develay, no que


diz respeito aos fluxos simultaneamente ascendentes e descendentes entre o saber
escolar e o acadêmico.

8 Uma excelente análise desse processo é aquela feita por Guimarães, em artigo
intitulado “Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos Históricos 1 - Caminhos
da Historiografia . Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.5-27.

9 Na primeira metade da década de 1990, observamos a realização de um conjunto


de pesquisas que buscavam identificar as concepções de História presentes no seu
ensino. Discordo deste enfoque que supõe a identidade entre o saber acadêmico e o
escolar e, por causa disso, identifica como problemas ou erros aspectos que são
construções tipicamente escolares. Uma nova abordagem que reconhece a
especificidade da cultura escolar pode ser encontrada em Anhorn, 1999 e Monteiro,
2002 .

10 Acredito que a maior clareza sobre características do conhecimento histórico e da


história escolar permitem que os professores possam superar visões

21
excessivamente otimistas, e de certo modo ingênuas, sobre as potencialidades do
ensino de História para a transformação social e que deixam transparecer resquícios
do historicismo.

22
PROGRAMA 2

MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA

Carmen Teresa Gabriel 1

Um novo olhar sobre o passado e o futuro se elabora sob as pressões do presente vivido. A
partir do presente, a visão do passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro.
(Reis, 1994)

Como em toda discussão sobre um determinado tema, existem diferentes “portas de entrada” para
participar do debate em torno da relação que pode ser estabelecida entre Memória e ensino de
História. Essas entradas dependem do lugar do qual falamos, dos nossos olhares, dos nossos
interesses, das nossas escolhas políticas, das utopias pelas quais lutamos. É, pois, do lugar de
professora de História, tendo que muitas vezes, na sala de aula, “agir na urgência e decidir na
incerteza” (Perrenoud, 2001), apostando, ainda, na potencialidade desta disciplina para pensar a
possibilidade de mudança e na viabilidade da construção de um projeto de sociedade menos
dogmático e mais justo que me proponho a entrar neste debate

Optei começar este texto enunciando a questão que serviu de eixo em torno do qual desenvolvi
minhas argumentações. O que ensinamos nas aulas de História tem alguma relação com
Memória? Aparentemente simples e mesmo óbvia, essa questão exige, portanto, algumas reflexões
e posicionamentos prévios. Reflexão, em primeiro lugar, sobre a própria razão de ser deste tipo de
questionamento isto é, sobre o próprio contexto histórico no qual essa questão é formulada, que
permite explicar a centralidade, nas últimas duas décadas, da temática da memória e sua relação
com a história, e, conseqüentemente, também com o seu ensino. Esse esforço de contextualização é
importante, na medida em que nos leva a explicitar o que estamos chamando de memória e como
percebemos sua articulação com essa área de conhecimento.

Em seguida, trata-se de pensar sobre o papel desempenhado pela memória no processo de


construção dos saberes históricos escolares e na relação que os sujeitos envolvidos – professores/as
e alunos/as – estabelecem com esses saberes ensinados e aprendidos. As breves considerações que
se seguem são apenas um ponto de partida para futuras reflexões mais aprofundadas, sem a menor

23
pretensão de serem exaustivas.

A memória na berlinda

Aceleração da história (...). Fala-se tanto de memória somente porque ela não existe mais.
(Nora, 1993)

É nos momentos de ruptura da continuidade histórica que as alterações mais se voltam para a
memória e a duração. (Duvignaud. Apud D'Aléssio, 1992)

Memória e História são formas de “visitar” o passado, que durante muito tempo, no âmbito da
trajetória de construção desta disciplina – seja na sua versão acadêmica, seja na versão escolar e, em
particular, no que se refere à História Nacional – tenderam a serem confundidas.

Essa (con)fusão já estava presente no momento da própria emergência deste campo disciplinar no
século XIX, na medida em que a sua constituição pode ser explicada e justificada pela necessidade
de elaboração de uma memória nacional que pudesse garantir e legitimar a consolidação dos
Estados nacionais modernos. Tratava-se de inventar naquele presente um passado comum, isto é, de
fazer esquecer e de fazer lembrar as experiências passadas que interessavam à construção dos
projetos de sociedade estruturados em torno de cada um dos Estados-Nação reconhecidos como tais,
no cenário político daquela época.

Com efeito, o período que vai do século XIX até as primeiras décadas do século XX correspondeu
ao apogeu da História-memória , da História Nacional, na qual memória, nação e história eram
percebidas através de uma relação de "circularidade complementar, uma simbiose em todos os
níveis: científicos, pedagógico, teórico e prático" (Nora, 1993). Essa história-memória, a despeito
das particularidades de cada contexto, desempenhou um papel central na constituição do nacional e,
por conseguinte, da construção do sentimento de pertencimento a essa marca identitária. A história e
o seu ensino se apresentavam, dessa forma, como guardiãs importantes da identidade nacional
concebida até então como um elemento unificador e homogeneizador das diferenças regionais,
políticas, sociais e culturais consideradas indispensáveis para a construção e manutenção dos
Estados-Nacionais modernos. Até época relativamente recente não havia, pois, espaço para o
questionamento ou problematização desta forma de significar esse tipo de relação.

24
Como entender, então, as citações acima? Em que momento e por que razão essas duas formas de se
relacionar com o passado se distanciaram e tenderam a se opor de tal maneira que hoje alguns
estudiosos chegam a afirmar não apenas o distanciamento mas o próprio desaparecimento de um
desses pólos? Expressões como “apagamento da memória” ou “enfraquecimento da historicidade”
(Jameson, 1997) são comuns nos dias de hoje, indicando uma mudança considerável na forma de
conceber essa relação.

Essas novas formas de percepção de passado, presente e futuro e da relação entre memória e
história não podem ser naturalizadas. Ao contrário, elas foram sendo construídas historicamente.
Estudos tendem a mostrar que momentos de simbiose, de autonomia e de (re)fusão aparecem como
fases neste processo de construção permanente da relação entre história e memória e refletem uma
faceta do equacionamento buscado nos diferentes presentes entre os campos de experiência
(passado) e os horizontes de expectativa (futuro).

O processo de distanciamento entre memória e história se fez de forma gradativa. A aceleração do


ritmo das mudanças geradas a partir do advento da modernidade só fez acirrar este processo de
distanciamento, fazendo-o chegar ao ponto convulsivo que marca esta passagem de século, onde o
esgarçamento dos fios das tramas que se tecem entre passado e futuro situa-nos em um presente que
se apresenta como um mero simulacro, no qual memórias e projetos, tradição e utopia perdem o
sentido.

Basta pensarmos na problemática da(s) identidade(s) tão em voga, igualmente, na atualidade, para
melhor compreendermos as implicações no nosso cotidiano dessa perda de sentido. O ritmo
desenfreado das transformações acarretou um intenso movimento de presentificação em detrimento
tanto do passado como também do futuro. De um lado, estas mudanças incessantes e cada vez mais
aceleradas passam a ameaçar a legitimidade da própria concepção monolítica, estática e
essencialista de identidade tal como estava na base da concepção de identidade nacional nos moldes
descritos acima. A concepção de identidade passa a ser vista como lealdades construídas em
contextos específicos, sendo pois considerada necessariamente como relacional, dinâmica e
processual. Essa mudança de concepção coloca em xeque diferentes marcas identitárias de graus
variados de generalização, como, por exemplo, a que define o pertencimento da idéia de Nação
moderna. De outro lado essa aceleração do processo de mudanças obscurece igualmente o horizonte

25
de espera. O fim da crença no progresso e na credibilidade das grandes narrativas, que caracteriza
também este final de século, faz com que o presente não desempenhe mais o papel de mediador
entre passado e futuro: a certeza trazida pela idéia de um futuro de sentido predeterminado é
substituída pela incerteza e a insegurança frente à imprecisão e ao descrédito da possibilidade de
qualquer forma de utopia.

Todavia, e de forma aparentemente paradoxal, é esta insegurança que levaria também à necessidade
de tudo reciclar em objeto memorial. Com efeito, essa mesma crise identítária que, apesar de vivida
de forma diferenciada nos diversos países, configura a experiência coletiva nas sociedades
industrializadas deste final de século e reafirma o apego aos traços, aos vestígios, à história e à
memória, tornando-se responsável pela emergência de um verdadeiro “culto da memória” nas
sociedades pós-industriais, tradutor de uma vontade de se contrapor a esta crise através da
reafirmação da necessidade de um enraizamento, como bem analisa Rousso na citação abaixo:

Esta vontade de conservar, de preservar de "colocar no museu" o passado, concomitantemente à


valorização atual da memória, parece mais uma forma de resistência ao sentimento vivido da
alteridade do tempo, uma resposta à incerteza atual do presente e do futuro do que a vontade de
estabelecer um laço dinâmico entre passado, presente e futuro (Rousso, 1998).

No campo político, esta preocupação pode ser identificada com a implementação, em diversos
Estados industrializados, de uma política pública da memória que pode ser percebida, por exemplo,
pela extensão da noção de "patrimônio" ou pelas novas direções assumidas pelas políticas públicas
de comemoração (no sentido de "rememorar juntos"), visando reunir a comunidade nacional. Esta
gestão pública do passado estaria, senão de forma exclusiva, fortemente guiada por esta vontade de
superar o sentimento de desenraizamento, de perda, marca da nossa contemporaneidade. Ela
emerge, pois, de uma interrogação atual cada vez mais angustiada sobre a identidade coletiva.

Uma breve incursão na trajetória da construção da História Nacional nos oferece algumas chaves de
leitura para a compreensão desse processo, no qual História-nação, memória nacional e identidade
nacional passam a serem vistas, elas próprias, como objetos de investigação para o historiador. A
história deixa de se confundir com a história da nação, a memória nacional passa a ser apenas uma
modalidade de memória entre outras tantas memórias coletivas.

26
Por volta dos anos 30 do século passado, no campo da historiografia, em particular da historiografia
francesa, a nação deixa de ser o quadro unitário que encerraria a consciência da coletividade,
libertando-se dessa forma de sua identificação nacional. Memória, História e Nação assumem uma
autonomia em relação ao período precedente. O objeto de investigação privilegiado pelos
historiadores deixa de ser o passado glorioso da nação e centra-se sobre a própria sociedade,
abrindo espaço para a emergência de outras memórias particulares e coletivas. Este movimento de
passagem da memória para a história obriga cada grupo a redefinir a sua identidade pela
revitalização da sua própria história. É como se ocorresse uma verdadeira implosão da história
nacional, da história-memória, dando origem a uma pluralidade de memórias particulares que
reclamam a sua própria história. Em síntese, esta fase poderia ser resumida pela dilatação,
democratização, descentralização e multiplicação da memória e se insere num contexto histórico
específico marcado pelas crises do nosso presente.

Todavia, se de um lado este momento é apresentado como um momento de agudização do processo


de distanciamento de história e memória, de outro, é nele também que emerge, a partir dos anos 80,
a possibilidade do novo, de uma nova síntese – os lugares de memória – cuja proposta é a (re)
aproximação destes dois conceitos a partir de novas bases. O conceito de lugares de memória
cumpriria justamente esta função mediadora entre o mundo dos mortos e o mundo do vivos. Eles
nascem e vivem do sentimento de que não há mais memória espontânea, defendem algo ameaçado e
pertencem a dois domínios: o da memória espontânea e o da memória alcançada pela história. Nesta
perspectiva os lugares de memória são "restos", "rituais de uma sociedade sem rituais”, "sinais de
reconhecimento e de pertencimento de um grupo numa sociedade que só tende a conhecer
indivíduos", "um vai e vem entre memória e história" "um jogo de memória e história" (Nora, 1993)
no qual esses usos sociais do passado são considerados diferentes, mas nem por isso dicotômicos.

A memória como fonte e/ou objeto de pesquisa permanece um conceito central para o campo da
História, exigindo tomadas de posição frente a essas diferentes concepções.

A construção da história nacional e o seu ensino não podem deixar de enfrentar, hoje, as tensões
entre memória e história. Sem confundi-las nem tampouco ignorá-las, surgem leituras plurais do
passado nacional orientadas pelos interesses em disputa. A memória não é mais monopólio de um
grupo e sim um campo de lutas política e cultural, onde lembrar e esquecer depende de quem

27
comemora e memoriza e dos interesses que estão em jogo no presente em que a relação com o
passado é estabelecida.

Saberes históricos escolares: entre o dever de memória e a reflexão crítica

Se a disciplina “história” (matéria de ensino ou domínio de pesquisa) está particularmente exposta


aos solavancos da história viva, é porque ela coloca em questão a identidade coletiva, e mais
precisamente a identidade nacional (Colliot-Thélène, 1997).

Em que medida essas mudanças na forma de apreensão da relação entre memória e história e suas
implicações para pensar a questão das identidades podem influenciar o ensino de História? A
citação acima deixa transparecer que essas influências são inevitáveis e diretamente relacionadas à
função social dessa disciplina.

Como já mencionado, tanto a História produzida por pesquisa acadêmica como a História ensinada
nas escolas de educação básica são vistas como portadoras de uma missão formadora, pedagógica,
muito forte e estreitamente relacionada com a construção de identidades individual, social e cultural
dos cidadãos. Atualmente, entre os objetivos mais apontados para o estudo desta disciplina se
encontram os de reconstruir memórias coletivas, sejam elas nacionais ou de um grupo social e
cultural mais restrito, de formar cidadãos críticos, e de explicar ou dar um sentido ao presente em
que se vive.

Essa função político-cultural da disciplina de História é fundamental para entender a especificidade


do saber histórico, em termos da sua capacidade de absorção das diferentes tensões como, por
exemplo: afirmação de verdades versus construção de sentidos, explicação versus compreensão,
objetividade versus subjetividade, universalismos versus relativismos; ciência versus consciência
etc.

Como professores de História, enfrentamos no cotidiano das nossas aulas as implicações


decorrentes dessas tensões inerentes à natureza do conhecimento histórico e que estão diretamente
vinculadas à forma privilegiada de equacionarmos memória e projeto, passado e futuro no processo
de reelaboração didática. Esse processo diz respeito tanto à seleção dos conteúdos históricos a
serem ensinados, das tramas a serem narradas, quanto à escolha dos sujeitos envolvidos, enfim, das

28
memórias coletivas que servem de fonte para a história contada, interpretada, ensinada nas salas de
aula desta disciplina.

Nesse sentido, o que ensinamos hoje nas nossas aulas está fortemente imbricado com a questão das
memórias coletivas, incluindo a memória nacional, sem, no entanto, se confundir com elas. Que
estratégias discursivas o ensino dessa disciplina mobiliza, contribuindo para que nos tornemos
brasileiros? Que campos de experiência e que horizontes de expectativa interagem na narrativa
histórica nacional da atualidade, possibilitando entrever o significado de "estar sendo" brasileiro nas
diferentes práticas discursivas dos alunos e professores?

Como articular – no ensino da História do Brasil, por exemplo – a necessidade tanto de garantir a
transmissão de uma memória nacional legitimada como a de desenvolver a reflexão crítica sobre
essa mesma memória, condição imprescindível para fazer emergir novas identidades e
possibilidades de representação de brasilidade? Ou, dito de outro modo: Como articular o ensino de
uma forma de pensar historicamente e de uma memória já acumulada e consagrada pelas gerações
precedentes? Como reelaborar didaticamente capacidade crítica e necessidade de memória?

O que está em jogo, aqui, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de História do Brasil
ensinável, mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e
político. Apesar de o Estado Nacional não poder ser mais considerado como o principal e único
fator dos destinos dos povos e de ser necessário reconhecer o enfraquecimento dos laços de lealdade
a uma cultura nacional – vista como homogênea e estável –, a “possibilidade de um ensino de
História totalmente liberado do esquema nacional” (Colliot-Thélène, 1997) parece-me dificilmente
concebível e muito menos desejável.

Diferentes presentes históricos constroem diferentes narrativas de História nacional e do povo


brasileiro. Em cada uma delas, diferentes passados são lembrados e ou esquecidos e diferentes
futuros são sonhados. Caberá a cada professor de História selecionar os conteúdos a serem
ensinados, ingredientes de uma intriga possível – acontecimentos, sujeitos, concepção de tempo,
conceitos, etc. – de forma a permitir a emergência de uma diversidade de narrativas da brasilidade,
contribuindo para a construção de um Brasil mais plural e inclusivo. O desafio é pois, saber como
usar essas armas da narratividade histórica a favor da inclusão das diferenças (de posições, de

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perspectivas, de identidades) na interpretação histórica. O desafio está posto, o enfrentamento
apenas começando.

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Histoire et Memoire . Genoble: CNDP, 1998.
Nota:

1 Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Doutora em Educação – PUC/RJ.

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PROGRAMA 3

LUGARES DE MEMÓRIA

Produção de saberes nos lugares de memória

Helena Maria Marques Araújo 1

Educar para cidadania

Nos dias de hoje, muito se tem discutido e comentado sobre educação. Em reuniões de professores,
em escolas, em universidades e em outros espaços sociais – mídia, jornais, rodas de amigos etc. –
são pensados e repensados caminhos para a educação brasileira. Paralelamente, impõe-se a
importância de se educar para a cidadania. Mas de que tipo de cidadania estamos falando? E que
tipo de educação desejamos para se chegar a essa cidadania? Qual o papel da escola, da
universidade, dos professores e dos espaços educativos não-formais nessa educação para a
cidadania?

A função primordial da educação é formar cidadãos capazes de gerir sua própria História, função
contrária aos interesses neoliberais. Sendo assim, acreditamos que a educação deva formar cidadãos
autônomos, capazes de atuar como leitores, consumidores e agentes críticos no mundo.

Este texto pretende refletir sobre a produção de conhecimento nos espaços educativos não-formais,
especialmente nos museus. Pretendemos enfatizar a importância de se estreitar laços entre as
práticas escolares e os lugares de preservação da memória.

Breve histórico sobre os museus

“Os museus podem ser considerados reflexos de concepções de ciência vigentes em determinados momentos
históricos.”

Marandino, Museu e escola: parceiros na Educação científica do cidadão. In: CANDAU (org.).
Reinventar a escola, 2000, p. 190.

31
Os estudiosos dos museus afirmam que estes possuem um caráter educacional vinculado à sua
própria origem, logo desde o início se configuravam como espaços de pesquisa e ensino.

Nos séculos XV e XVI, os Gabinetes de Curiosidades, por exemplo, não tinham preocupação
científica ao expor os fragmentos da natureza. Apresentavam um conhecimento enciclopédico.
Somente ao final do século XVIII o enciclopedismo acaba gerando uma preocupação educativa do
museu.

A partir do século XIX, os Gabinetes foram substituídos pelos museus científicos. Estes refletiam a
necessidade de ordenação do mundo natural e de organização das coleções.

O processo de mudança da relação do público com o museu foi bem devagar e até 1914 os museus
não foram espaços democráticos ou em processo de democratização.

Somente no século XX se proliferaram museus que queriam divulgar as coleções com base em
propósitos mais populares, aumentando, assim, a popularização do saber dos museus, especialmente
na França. Cabe lembrar que isto não atinge, de forma uniforme, todos os tipos de museu, sem
dúvida os museus de ciência e tecnologia tiveram um papel preponderante no estreitamento das
relações museu-escola.

Nas últimas décadas, um dos alicerces da nova museologia é a questão educacional. Os anos 80
serão marcantes na história dos museus de ciência do Brasil, devido à preocupação e busca por uma
função educativa. Por exemplo, poderíamos citar nesta linha o Museu do Instituto Butantã, em São
Paulo, dentre outros.

Também nos anos 80 proliferaram os chamados “museus vivos ou interativos”. Atualmente, eles
sofrem críticas no Brasil e no mundo inteiro.

Com certeza, os museus e Centros de Ciência ainda têm muito a ensinar aos museus de História.
Porém, sabemos que, ao longo dos séculos e de forma lenta, os museus, de uma forma geral, foram
alcançando um maior público e se democratizando no acesso.

32
Memória, museu e escola

“Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza. Ordena o tempo, localiza
cronologicamente. Na aurora da civilização grega, ela era vidência e êxtase.” (Bosi, Memória e
sociedade, 1979, p. 89)

Como nos afirma no trecho acima Ecléa Bosi, a função da memória hoje é o conhecimento do
passado. Porém, conceituar memória é crucial, complexo e nos levaria a um trabalho sem fim. É
importante, então, minimamente, entendermos que um dos meios de se chegar aos problemas do
tempo e da história é através do estudo da memória social E são os espaços ditos de memória, onde
se pretende preservar o passado para auxiliar a entender e participar do presente, que nós iremos
abordar neste texto.

Como já afirmamos na nossa proposta pedagógica, na perspectiva dos Estudos Culturais, segundo
Tomaz Tadeu da Silva (1999), a cultura é pedagógica e a pedagogia é cultural.

“Tal como a educação, as outras instâncias culturais também são pedagógicas, também têm uma
‘pedagogia', também ensinam alguma coisa. Tanto a educação quanto a cultura em geral estão
envolvidas em processos de transformação da identidade e da subjetividade.” (SILVA, 1999, p.139)

A escola é o espaço formal da construção/transmissão do conhecimento, existindo pois, outros


espaços de saber que também educam – espaços não-formais de educação – que são os museus,
arquivos, programas de televisão e/ou rádio (educativos ou apenas de lazer), filmes, peças de teatro,
músicas, espaços de exposições etc.

Todos esses lugares – como os museus, arquivos etc. – possuem cultura própria, ou seja, apresentam
determinadas especificidades. O museu é um espaço social particularmente diferente da escola.
Segundo Marandino (2000), são espaços marginais de educação, daí esta autora nos afirmar a
necessidade de se construir uma pedagogia museográfica, ou seja, uma pedagogia dos museus.
Estes são espaços fundamentais de educação não-formal.

Cada vez mais aumentam as pesquisas que procuram entender os museus como espaços educativos.
Atualmente, o público é o elemento central para a elaboração das exposições e programas culturais
e educacionais oferecidos nos museus.

33
Nesses espaços educativos não-formais, percebemos que os temas são oferecidos aos alunos de
forma interdisciplinar, podendo ampliar o universo cultural dos visitantes.

Nos últimos anos, alguns pesquisadores estão se dedicando ao estudo das possibilidades e caminhos
educacionais nos museus de ciência. Tais estudos estão se estendendo aos museus de história,
antropologia e ciências afins. Em todos eles percebemos a necessidade de se construir e/ou
aprimorar uma pedagogia museográfica pautada e adaptada em conceitos de transposição didática
ou de recontextualização.

Segundo Marandino, alguns autores têm procurado diferenciar escolas e museus frisando as
particularidades de cada um desses espaços educativos. Essa autora apresenta um quadro-síntese
(2000, p. 202) baseado em algumas diferenças propostas por Allard et alii (1996). Fizemos uma
nova diagramação para apresentar tal quadro. Para entendê-lo, relacione-o quanto ao:

- objeto: na escola, deve instruir e educar; já nos museus deve recolher, conservar, expor e estudar;

- cliente: na escola ele é cativo e estável, por outro lado, no museu é livre e passageiro;

- atividade: fundada no livro e na palavra na escola; já no museu, fundada no objeto;

- programa: na escola é imposto, pode fazer diferentes interpretações da lei, mas deve ser fiel a ela;
no museu, as exposições são próprias ou itinerantes e suas atividades pedagógicas dependem de sua
coleção;

- tempo: na escola, de um ano; no museu de 1 a 2 horas.

Urge que cada vez mais a escola use esses espaços educativos alternativos, através das visitas
pedagógicas e das ações de parcerias.

É preciso que inovemos em nossas aulas, que utilizemos outros espaços além daqueles da escola. A
aula reprodutiva reduz o aluno, não permite a formação de sua autonomia, já que apresenta modelos

34
prontos, repetitivos e descolados de sua vivência real. Aprender é construir e reconstruir o
conhecimento, elaborando e exercendo a autonomia de sujeito histórico. Crianças e jovens devem
ser partícipes ativos de sua sociedade, gerando a transformação social e política da mesma. Logo,
precisamos reinventar a escola comprometida com uma cidadania participativa e democrática,
ampliando e vencendo os seus próprios “muros”.

Como já vimos, a escola e o museu têm diferentes propostas e são diferentes espaços educacionais.
A escola é o espaço privilegiado de aquisição do saber hegemônico. É o lugar central como espaço
de educação.

Já no espaço do museu se produz um saber próprio, o saber museal. Logo, a relação dos sujeitos
com a produção e aquisição do saber no museu também é diferente. Daí, a necessidade de serem
criados modelos pedagógicos próprios.

Ainda segundo Marandino, no Brasil, existem diversos programas educacionais proporcionados


pelos museus de ciência, em parceria com as escolas, e poderíamos agrupá-los em:

• Programas de atendimentos a visitas escolares, por exemplo: no Museu de Astronomia e Ciências


Afins – MAST/CNPq (Rio de Janeiro), no Museu da Vida da FIOCRUZ (Rio de Janeiro) e na
Estação Ciência da USP (São Paulo);

• Programas de Formação de Professores: no Espaço Ciência de Olinda (Pernambuco), no Museu de


Ciência e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, dentre outros;

• Programas de Produção de Material para Empréstimo: nos Museus de Zoologia, de Anatomia


Veterinária e de Oceanografia da USP etc.

Antes de finalizar, não podemos deixar de abordar rapidamente – já que teremos um outro texto que
tratará especificamente desse tema – a formação de professores. Faz-se necessário desvelar o
horizonte universitário e pedagógico para a utilização dos espaços educativos alternativos. Assim
sendo, entendemos ser necessário uma atenção especial à formação inicial dos professores.

35
Deve-se aproveitar o preconizado pelas novas Diretrizes Curriculares para Formação de
Professores, particularmente a ampliação da carga horária das práticas de ensino e estágio, para
estabelecer a diversificação dos campos de estágio curricular, incluindo os campos educativos não-
formais.

Conclusão

Segundo Marandino (2000), não se trata de opor o museu à escola, mas de definir as especificidades
relacionadas ao lugar, ao tempo e aos objetos no espaço do museu, o que é essencial e que deve ser
incluído na formação de educadores numa didática de museu. Nesse sentido, penso que poderíamos,
com as suas devidas proporções e particularidades, ampliar esse entendimento não só para os
museus, como para outros espaços educativos não-formais em geral, como o de exposições,
arquivos públicos, centros culturais etc.

Quando os professores procuram os museus querem e desejam encontrar um lugar alternativo à


aprendizagem, além de se depararem com temas apresentados de forma interdisciplinar. Isto é
fundamental para que possamos pensar que precisamos ampliar a parceria dos museus com as
universidades, secretarias municipais e estaduais para a realização de cursos de formação de
professores em todos os níveis. Além disso, é muito importante a implantação de pesquisas nos
museus e investigações sobre a relação museus/espaços culturais e escola. Esses estudos darão
subsídios maiores aos programas educativos e culturais desenvolvidos nessas instituições para que
se estabeleça uma parceria museu/escola. Para que isto aconteça, há que se admitir e estudar
previamente a existência de uma cultura escolar e de uma cultura museal.

Marandino afirma que se encontra em construção uma pedagogia museal, que respeite as
particularidades do museu e também, considere as reflexões teóricas e práticas que se acumulam há
muitos anos na escola. Com certeza, os museus de ciência e Centros de Ciência, que estão com esse
tipo de trabalho bem mais encaminhado, terão muito a ensinar aos museus de História no plano da
dimensão educacional.

36
BIBLIOGRAFIA:

ALLARD, M. et alii. La Visite au Musé. In: Réseau. Canadá, déc. 1995/jan. 1996.

BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiróz, 1979.

CANDAU, Vera Maria. Pluralismo cultural, cotidiano escolar e formação de professores. In:
CANDAU, Vera Maria (org.). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

____________________ (org.). Reinventar a escola. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

_____________________(org.). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

DEMO, Pedro. Ironias da Educação - Mudança e contos sobre mudança. Rio de Janeiro:
DP&A ed., 2000.

LE GOFF, Jacques. Calendário. In: Enciclopédia Einaundi. Memória- História, v. 1, 1990.

MARANDINO, Martha. Museu e escola: parceiros na Educação científica do cidadão. In:


CANDAU, Vera Maria (org.). Reinventar a escola. Petrópolis: Vozes, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo .
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Nota:

1 Mestre em Educação - PUC-Rio. Professora Assistente de História do CAP/UERJ


e de Prática de Ensino de História do Departamento de História da UERJ.
Professora de História da rede particular de ensino. Consultora dessa série.

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PROGRAMA 4

ESPAÇOS PÚBLICOS DE MEMÓRIA

Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira

Mônica Lima 1

“À volta da fogueira,
os mais velhos disseram
vão então caçar nuvens
que já fogem de nossos olhos.
Nós pedimos um guia
armas, munições
e farnel para a longa jornada.
Mas eles sorriram
terão de levar apenas
estes sons de tambores
na memória.”
(Caçadores de Nuvens , do poeta angolano João Melo)

A aprovação da Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História
da África e da História dos africanos nas escolas de todo o país, além de atender a uma antiga e
justa reivindicação, trouxe uma série de conseqüências para o ensino desta área/disciplina em sua
totalidade e para a formação dos profissionais que atuam no magistério, em especial aqueles desta
área específica – a História. As mudanças ocasionadas pela citada Lei ainda estão em processo. E
não influenciarão apenas os educadores. Elas podem trazer resultados para o amplo grupo que
pretendem atingir. Crianças e adolescentes, jovens e adultos entrarão em contato com o tema. O
alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo. E elas poderão ser aceleradas ou
adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade de setores interessados intervirem no
processo. O impacto da medida merecerá certamente estudos aprofundados, preferencialmente
tendo como base dados vindos de diferentes partes do país, com suas diversas experiências.

O ensino-aprendizagem destes conteúdos abre muitas perspectivas para o trabalho com espaços
educativos não-formais. Museus, centros culturais, sítios históricos (tombados ou não) são lugares
de memória e objetos de estudo e de sensibilização para a aprendizagem por excelência. Os
exemplos são os mais diversos, se pensarmos em termos de Brasil: igrejas, casas de cultura,
terreiros, espaços públicos de reunião e festejos também são locais para se aprender e ensinar a

38
história afro-brasileira.

E, se pensarmos no nosso patrimônio imaterial, este universo se amplia ainda mais: histórias, contos
populares, contos infantis de matriz africana e/ou afro-brasileira, cantigas, canções de festas
religiosas populares (assim como a Congada, por exemplo) podem tornar-se um mote e o próprio
objeto de estudo, trazendo viva a africanidade da cultura brasileira. Além destes de caráter mais
geral, estão presentes, em diversas de nossas comunidades, os mais velhos que podem relembrar e
trazer para nossos alunos muito deste patrimônio em momentos de congraçamento e aprendizagem.

Só para lembrar: não importa nossa origem familiar: todos nós, brasileiros, carregamos ‘áfricas'
dentro de nós. Essas ‘áfricas' (no plural, pois são múltiplas) são e foram permanentemente
reinventadas aqui no Brasil, mas revelam sua profunda origem a cada momento: no vocabulário
(moleque, quitanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras – vale uma pesquisa!), nos costumes, na
expressão de fé, na comida.

Todos estes aspectos convergem para a abertura de muitas possibilidades de trabalhar com o ensino
de História em espaços não-formais e em situações não-formais. Estes lugares e momentos
certamente enriquecerão nossos estudos e a aprendizagem que com eles se viabiliza.

Estaremos lidando com uma matéria-prima fascinante e delicada: os diversos matizes da nossa
formação cultural, a memória dos nossos ancestrais e, especialmente, suas heranças, tão longamente
invisibilizadas. Todo o cuidado será sempre pouco para não resvalarmos pelas trilhas aparentemente
fáceis do maniqueísmo, da simplificação e da folclorização. Vamos pensar, então, na prevenção
destes perigosos males que podem enfraquecer nossa percepção e nos distanciar dos nossos
objetivos. Alguns destes cuidados podem parecer óbvios, mas muitas vezes o aparentemente óbvio
merece ser re-visto e re-visitado , para refletirmos sobre ele.

Vamos lá...

• Os africanos e seus descendentes nascidos da diáspora no Novo Mundo (as Américas, incluindo o
Brasil) eram seres humanos, dotados de personalidade, desejos, ímpetos, valores. Eram também

39
seres contraditórios, dentro da sua humanidade. Tinham seus interesses, seu olhar sobre si mesmos e
sobre os outros. Tinham suas experiências de vida – vinham muitas vezes de sociedades não-
igualitárias nem equânimes na África ou nasciam aqui em plena escravidão. Não há como
uniformizar atitudes, condutas e posturas e idealizarmos um negro sempre ao lado da justiça e da
solidariedade. O que podemos e devemos ressaltar são os exemplos destes valores de humanidade,
presentes em muitos, e injustamente negados e tornados invisíveis pela sociedade dominante,
durante tanto tempo. Mas sugerimos, veementemente, evitar dividir o mundo em ‘brancos maus' e
‘negros bons', o que não ajuda a percebermos o caráter complexo dos grupos humanos. A idéia é
valorizar o positivo, mas sem idealizar.

• O nosso desconhecimento sobre a história e a cultura dos africanos e dos seus descendentes no
Brasil e nas Américas pode fazer muitas vezes com que optemos por utilizar esquemas
simplificados de explicação para um fenômeno tão multifacetado quanto a construção do racismo
entre nós. O racismo é um fenômeno que influiu e influi nas mentalidades, num modo de agir e de
ver o mundo. E as diferentes sociedades interagiram com ele de diversas maneiras – o Brasil não
tem a mesma história de relações raciais que os Estados Unidos, para usar um exemplo clássico. No
entanto, durante muito tempo se defendeu a idéia de que aqui não havia discriminação e, ainda, que
o que separava as pessoas era ‘apenas' sua condição social. Hoje, não só vemos pelos dados da
demografia da pobreza brasileira que ela tem uma inequívoca marca de cor, como sabemos que um
olhar mais atento à História e à vida dos afro-descendentes no país revela a nossa convivência
permanente com o preconceito e seus efeitos perversos. Mas, para podermos enxergar isso, tivemos
que ouvir relatos, ver dados e entender como foi esta História. Só assim pudemos desnaturalizar as
desigualdades e ver a face hostil do nosso ‘racismo envergonhado'. O que isto quer dizer? Que
devemos nos dedicar ao tema: estudar, ler, nos informar, sempre e mais. Afinal, o que está em jogo
é bem mais que a nossa competência profissional, é o nosso compromisso com um país mais justo e
com um mundo melhor para todos e todas.

Nós nos acostumamos a ver as manifestações culturais de origem africana confinadas ao reduto do
chamado ‘folclore'. Este conceito de folclore, que remete às tradições e práticas culturais populares,
não tem em si nenhum aspecto que o desqualifique, mas o olhar que foi estabelecido sobre o que
chamamos de ‘manifestações folclóricas', sim. E, sobretudo no mundo contemporâneo, em que a
modernidade está repleta de significados positivos, o folclore e o popular se identificam não poucas

40
vezes com o atraso – algo curioso, exótico, porém de menos valor. Logo, se não problematizarmos a
inserção da cultura africana neste registro, correremos o risco de não criar a identidade nem
estimular o orgulho de a ela pertencermos. Podemos desmistificar a idéia de folclore presente no
senso comum e, também, mostrar o quão complexa e sofisticada é a nossa cultura negra brasileira.
Envolve saberes, técnicas e toda uma elaboração mental para ser construída e se expressar. E, assim
como nós, está em permanente mudança e não é nada óbvia.

Além destes três cuidados básicos de caráter geral, há outros dados sobre os quais devemos refletir
e estar sempre atentos:

• A África é um amplo continente, em que vivem e viveram desde os princípios da humanidade


(afinal, segundo pesquisas, foi na região onde atualmente se localiza o Continente Africano que a
humanidade surgiu), grupos humanos diferentes, com línguas, costumes, tradições, crenças e
maneiras de ser próprias, construídas ao longo de sua História. Referir-se a “o africano” ou “a
africana”, como uma idéia no singular é um equívoco. Podemos até utilizar estes termos quando
tratarmos de processos históricos vividos por diversos nativos da África, mas sempre sabendo que
não se trata de um todo homogêneo e sim de uma idéia genérica que inclui alguns indivíduos, em
situações muito específicas. Por exemplo: podemos dizer “o tráfico de escravos africanos” – ou
seja, estamos nos referindo à atividade econômica cujas mercadorias eram indivíduos nativos da
África, conhecido nos seus anos de declínio como “o infame comércio”. Nestes tipos de caso, vale
dizer, de um modo geral, ‘africanos' ou ‘negros africanos'. Mas, devemos evitar atribuir a estas
pessoas qualidades comuns, como se fossem tipos característicos.

• Um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e afro-descendentes, é com relação às
suas práticas religiosas e um suposto caráter maligno contido nestas. Este tipo de afirmação não
resiste ao confronto com nenhum dado mais consistente de pesquisa sobre as religiões africanas e
sobre a maioria das religiões afro-brasileiras. Por exemplo: não há a figura do diabo nas religiões da
África tradicional nem de nenhum ser ou entidade que personifique todo o Mal. As divindades
africanas e suas derivadas no Brasil, em geral, se encolerizam se não forem cultuadas e
consideradas, e podem vingar-se; mas jamais agem para o mal de forma independente dos agentes
humanos que a elas demandam. O grande adversário das “forças do Bem” não existe, não há este
poder em nenhum ente do sagrado africano, a não ser naquelas religiões influenciadas pelo

41
monoteísmo cristão, ou pelo monoteísmo islâmico. Não é certo considerar Elegbará, Elegbá, Exu,
como um demônio ou seu representante. Exu é o mensageiro, o embaixador dos pedidos humanos
aos orixás, e exige seu pagamento pelo serviço e se aborrece se não for atendido. Mas não tem
nenhuma maldade congênita, como nenhuma outra divindade do panteão africano.

Como vimos, toda a atenção é necessária e o exercício permanente que fazemos de ouvir pessoas e
valorizar saberes não nos deve eximir de estarmos atentos às armadilhas do senso comum. E no
mais, deixemo-nos encantar pela história africana e afro-brasileira, porque, como bem sabemos, a
aprendizagem se dá pela rota da sensibilidade, e nada melhor que a via do afeto para (re)ver
preconceitos. Esta é a perspectiva amorosa de trabalho que valorizamos: que inclui respeito à
diferença, que convoca e se propõe à participação, e que atua cooperativa e solidariamente.

BIBLIOGRAFIA:

BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas,
2003.

BELUCCI, Beluce. Introdução à História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de


Janeiro: CEAA - UCAM/CCBB, 2003.

CANEN, Ana. “Relações raciais e currículo. Reflexões a partir do multiculturalismo”. In:


Cadernos Pedagógicos PENESB, n. 3, Niterói: Editora da UFF, 2001. p.65-77.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea. São
Paulo: Selo Negro, 2005.

LIMA, Mônica. “A África na sala de aula”. In: Nossa História n. 4, Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, 2004. p.84-87.

LIMA, Mônica: “Fazendo soar os tambores: o ensino de História da África e dos africanos no
Brasil”. In: Cadernos Pedagógicos PENESB n. 4,. Niterói: Editora da UFF, 2004. p.65-77.

MATTOS, Hebe. “O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil”. In:
ABREU, Martha e SOHIET, Rachel. Ensino de História. Conceitos, temáticas e Metodologia.
Rio de Janeiro: FAPERJ/Casa da Palavra, 2003. p.127-136.

OLIVA, Anderson Ribeiro. “A História da África nos bancos escolares. Representações e


imprecisões da literatura didática”. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, nº 3, 2003. p. 421-
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OLIVER, Roland. A experiência africana. Da Pré-História aos dias atuais. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1994.

42
PANTOJA, Selma (org.). Entre Áfricas e Brasil . Brasília: Paralelo 15, 2001.

_______________ & ROCHA, Maria José (orgs.). Rompendo silêncios. História da África
nos currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações, 2004.

PRIORE, Mary del e VENÂNCIO, Renato (orgs.). Ancestrais: uma introdução à história da
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SALLES, Ricardo e SOARES, Mariza. Episódios de história afro-brasileira . Rio de Janeiro:


DPA/FASE, 2005.

SECAD (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) - Ministério da


Educação. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03. Brasília:
MEC-SECAD, 2005.

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MEC-SECAD, 2005.

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Janeiro: Nova Fronteira, 1996. 2ªed.

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. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: Centro Editorial
Didático/Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), 1995.

THORNTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro:


Campus/Elsevier, 2004.

Nota:

1 Professora de História do CAP- UFRJ, de História da África nos cursos de Pós-


Graduação do Programa de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira da
Universidade Federal Fluminense (PENESB/UFF) e do Centro de Estudos Afro-
Asiáticos da Universidade Cândido Mendes(UCAM/RJ). Doutoranda em História na
Universidade Federal Fluminense(UFF).

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PROGRAMA 5

ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO-FORMAIS E FORMAÇÃO DE


PROFESSORES

Para além do formar professores, dialogar com as experiências vividas

Elison Antonio Paim 1

Acabaram almejando fazer do homem um produto objetivo, negando-lhe a historicidade e a capacidade de


produção autônoma. (Manoel S. Matos).

Pretendo aqui problematizar, através de historicização, como a racionalidade técnica instrumental


“formou” e continua “formando” professores e professoras idealizados para um dado modelo
pautado na hierarquização e na reprodução de conteúdos prontos, deslocados das experiências
vividas por eles e seus alunos. Num segundo momento, pautado em minha experiência como
professor da Prática de Ensino de História e formação continuada de professores, aponto algumas
considerações procurando ir além da perspectiva de “formação” pensando que há um fazer-se, um
construir-se dos professores e professoras de forma relacional com outros sujeitos. Parto do
pressuposto de que, nós acadêmicos, precisamos deixar de olhar para ou sobre o professor e sim
dialogarmos dentro das diferenças e especificidades de nossos saberes.

Com o avanço da modernidade capitalista, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, a
ciência e a técnica passaram a agir em conjunto, tentando controlar, racionalizar, medir, comprovar,
avaliar as ações humanas. Acabaram almejando fazer do homem um produto objetivo, negando-lhe
a historicidade e a capacidade de produção autônoma, gerando a racionalidade técnica instrumental.
A técnica associou-se ao fazer e a ciência ao como fazer . A técnica não se resume à invenção e ao
uso de instrumentos; caracteriza-se por uma intencionalidade, ou seja, há uma predeterminação na
elaboração e usos da técnica, justificável a partir da necessidade de aperfeiçoamento das ações
humanas.

As artes de fazer, as técnicas, estão divididas em diferentes aspectos e princípios. Por um lado, estão
voltadas para aqueles que explicam tudo pela técnica, as chamadas ciências exatas e, por outro, para
aqueles que relativizam determinados aspectos, ou percebem que nem tudo é possível de ser

44
explicado tecnicamente, que são as ciências humanas.

Num tempo em que já não era possível manter-se assentada na idéia de um destino natural, de uma
leitura “providencialista da realidade”, a educação, como ciência, foi se tornando cada vez mais
dependente das condições sociais, culturais, políticas e econômicas vigentes. Dessa forma, ocorreu
uma nítida divisão entre os produtores e os consumidores do conhecimento produzido. Em muitos
casos, ocorreu a mecanização do pensamento, a tentativa de negação do mundo das experiências
vividas. O conhecimento em geral e, especialmente, o conhecimento do professor foi sendo
reduzido à técnica. Houve grande preocupação com a objetividade do conhecimento produzido e,
assim, foi separado do significado humano, deixando de ser analisado, questionado e negociado
para se tornar administrado e dominado.

A racionalidade técnica instrumental impôs uma relação de subordinação dos níveis mais aplicados
e próximos da prática aos níveis mais abstratos de produção do conhecimento, ao mesmo tempo em
que se acentuam as condições para o isolamento dos profissionais. Esse modelo foi ressignificado
no sistema educacional, no qual a separação ocorre entre os técnicos, administradores,
pesquisadores e os professores.

A racionalidade técnica instrumental promoveu uma “autêntica divisão do trabalho” (GÓMEZ,


1998), assentada numa espécie de naturalização de uma organização do trabalho docente tal como o
modelo taylorista da organização do trabalho industrial (CORREIA, 1999). Ocorreu a subtração dos
saberes dos atores e, portanto, dos poderes decorrentes do uso desses saberes, os professores não
passaram a ser “bonecos de ventríloquo” (TARDIF, 2002), aprofundando o fosso que separa os
“actores dos decisores” (NÓVOA, 1992). Os professores, ao ficarem submetidos às estruturas de
racionalização de seu trabalho, tendem a tornarem-se cada vez mais dependentes do conhecimento
especializado, as técnicas de ensino.

A mesma hierarquização do conhecimento fez-se presente entre os professores. O professor


universitário foi concebido como pesquisador construtor do conhecimento. Quanto ao professor da
escola fundamental e média, definiu-se que sua função é ensinar o conhecimento produzido na
universidade. Dessa forma, os professores da escola desempenham um papel de consumidores, não
de criadores.

45
Visando atender aos ditames da hierarquia, da cientificidade e da racionalidade técnica instrumental,
os cursos de formação de professores foram sendo organizados para formar um professor ideal, ou
“bom” professor, dentro de um modelo pré-concebido com o desenvolvimento de determinadas
competências para o exercício técnico-profissional. Esse tipo de formação pragmática,
simplificadora e prescritiva acaba sendo de abrangência restrita, pois prepara o prático, o tecnólogo,
isto é, aquele que faz, mas não conhece os fundamentos do fazer. Então, são definidas normas,
regras, formas de fazer, que serão transmitidas ao futuro professor. A este futuro professor vai sendo
ensinado “o que deve fazer, o que deve pensar, o que deve evitar para adequar a situação educativa
ao modelo proposto” (ESTEVE, 1991, p.118).

Para atingir o perfil ideal de professor , inicialmente, deverá ocorrer a construção de um cabedal de
conteúdos capaz de “dotá-los de recursos oriundos de um componente científico-cultural, para
assegurar o conhecimento do conteúdo a ensinar e um componente psicopedagógico, para aprender
a atuar eficazmente na sala de aula” (MONTEIRO, 2002, p. 11). Além do componente científico-
cultural, a formação inicial nestes moldes deverá dotar os futuros professores de um saber-fazer
prático que conduza ao desenvolvimento de esquemas de ação que, adquiridos de forma racional e
fundamentada, permitam aos professores desenvolverem-se e agirem em situações complexas de
ensino. Portanto, a formação da racionalidade técnica está assentada no entendimento de que a
escola é um campo de aplicação.

A formação, utilizada para igualar as práticas e comportamentos para desvincular os aspectos


profissionais dos políticos, em que o professor-profissional da educação foi sendo transformado em
um ser apolítico – sem envolvimento, sem participação, sem poder de decisão e ainda sem
instrumental científico – apresentou-se de maneira peculiar na formação dos professores de Estudos
Sociais no Brasil, durante as décadas de 1970 e 1980. Nesse período, o professor foi submetido a
um treinamento generalizante e superficial, o que conduziria fatalmente a uma deformação e a um
esvaziamento de seu instrumental científico, de modo que não havia necessidade em fornecer-lhe
elementos que permitissem analisar e compreender a realidade que o cercava. Ele também não
precisava refletir e pensar, deveria apenas aprender a transmitir (FENELON, 1994).

O importante para ser um bom professor era dominar o como fazer e não o que fazer, ou para que
fazer. As atividades do professor acabavam tornando-se instrumentais, de treinamento, baseadas na

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aquisição de competências e habilidades, voltadas para a aplicação de teorias e técnicas. Desde
então os professores vinham sendo formados como “um especialista que rigorosamente põe em
prática as regras científicas e/ou pedagógicas” (PEREIRA, 2002), ou ainda, como “tecnólogo do
ensino” (VEIGA, 2002). Formados para “serem ensinantes, para transmitir conteúdos, programas,
áreas e disciplinas de ensino” (ARROYO, 2000). Portanto, o perfil de professor desejado para essa
concepção era aquele que deveria dominar o saber disciplinar (BOLÍVAR, 2002).

Ao realizar a adoção extremada dos princípios da racionalidade, o sistema educacional foi


possibilitando brechas para que os próprios professores, ao resistirem a determinadas imposições,
desenvolvessem mecanismos que minaram as estruturas do modelo, realizando, assim, atividades
educativas em que alunos e professores tornam-se produtores de conhecimento.

O que impede a racionalidade técnica de se concretizar plenamente é que as situações de ensino, por
um lado, são incertas, únicas, variáveis, complexas e portadoras de conflitos de valores na definição
das metas e na seleção dos meios; por outro lado, não existe uma teoria científica única e objetiva,
que permita uma identificação unívoca de meios, regras e técnicas a utilizar na prática, uma vez
identificado o problema e clarificadas as metas. A perspectiva da racionalidade técnica é simplista
ao conceber o professor apenas como um canal de transmissão de saberes produzidos por outros.

Isto porque ,

(...) nega a subjetividade e saberes dos professores e dos alunos como agentes no processo educativo,
e parece desconhecer a crise de paradigmas no campo do conhecimento científico nas últimas
décadas. A provisoriedade, o questionamento das verdades, o pluralismo metodológico, os critérios
de validação do conhecimento científico revelam que no mínimo é preciso perguntar que
conhecimento estamos ensinando e queremos ensinar (MONTEIRO, 2002, p. 13).

Embora pareça distante e irreal nos dias de hoje, essa perspectiva de formação de professores não
está morta; pelo contrário, ressurge com muita força através de iniciativas governamentais, como os
PCN, Diretrizes Curriculares e Propostas Curriculares, que têm sido implantados em vários países,
inclusive no Brasil. Essas “mudanças” vêm numa perspectiva de reforçar a separação entre os que
pensam e os que fazem, em que o professor idealizado é o que possui competências e habilidades.

Todas essas propostas vêm com algumas categorias comuns, tais como habilidades, competências,

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autonomia da escola e do professor, voltar-se para as realidades locais. Dessa forma, ao pensar a
educação como uma questão de eficácia, cabem determinadas funções ao professor, como numa
linha de produção industrial, da qual deverá sair um bom produto, isto é, um aluno com
determinados perfis. Para se atingir este determinado produto, o professor precisa possuir certas
competências, ao invés de saberes profissionais, ocorrendo, assim, o deslocamento do olhar do
trabalhador para o local de trabalho, ficando este vulnerável à avaliação e controle de suas
competências. Se estas não se ajustam ao esperado, facilmente poderá ser descartado. Para a
avaliação ou conferência do produto – alunos – foram criadas formas de controle de qualidade,
como as provas do ENEM para o ensino médio e o ENADE para os cursos de graduação.

Evidentemente, concordando-se com tudo que afirmam os autores sobre a perspectiva da


racionalidade técnica, estar-se-ia pensando em robôs e não em pessoas. Seria negada toda a
capacidade humana que os professores têm de se colocarem em conflito e, até mesmo, em oposição
à sua condição de técnicos repassadores de conteúdos. Assim, a própria racionalidade é criadora de
possibilidades diferentes de formação de professores.

No diálogo direto com o filósofo Walter Benjamin e o historiador Eduard Thompson, proponho
pensarmos o “Fazer-se Professor ou Professora”. Tal tese se apresenta na perspectiva de se pensar a
partir das ruínas articuladas intimamente às possibilidades de superação, nunca de maneira
determinista. Assim, a formação de professores descortina-se como um imenso campo de
possibilidades.

Ao trazer para o campo da formação de professores as categorias benjaminianas e thompsonianas –


experiência, experiência vivida, memória, cultura, narrativa, escovar a história a contrapelo, tempo
saturado de agoras, fazer-se sujeito – verifica-se que é possível, no diálogo com as idéias já
canonizadas da formação para a racionalidade técnica, anteriormente apresentadas, ir um pouco
além e pensar outra “formação”. Formação esta que firme a possibilidade do professor fazer-se.

O “Fazer-se Professor” é entendido como um processo ao longo de toda vida, e não situado num
dado momento ou lugar - universidade. Possibilita-nos pensar a incompletude do ser humano e no
seu eterno fazer-se. Neste sentido, são fundamentais as contribuições expressas na obra “A
Formação da Classe Operária Inglesa” de Thompson (1989), que nos mostra como essa classe

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operária não nasceu pronta, foi se construindo, fazendo-se, tornando-se sujeito, nascendo enquanto
categoria histórica.

Na esteira desse pensamento de Thompson é que proponho pensarmos o fazer-se profissional dos
professores e professoras sem descartar outros aspectos da vida, pois somos sujeitos inteiros, não
podemos separar o profissional do pessoal e vice-versa. Pensar o professor na totalidade do seu
fazer-se possibilita perceber as ambigüidades que vão se construindo nas relações estabelecidas nos
diferentes espaços em que os professores relacionam-se com outros sujeitos – alunos, pais, diretores
de escola...

Thompson, ao trabalhar com o binômio dominação/resistência, foi explicitando que ambas não
aparecem como blocos monolíticos e opostos, mas que dominação e resistência acontecem de forma
entrecruzada, ou seja, são parte da mesma moeda e só acontecem quando inter-relacionadas.
Benjamim, por sua vez, mostra que são ambivalentes e constituem-se em cenários móveis, a partir
de um mesmo fio.

Então, conhecendo as lutas, as experiências do passado, os sujeitos se instrumentalizam, passam a


ter esperança na mudança, na utopia como algo que está se fazendo e não que virá de qualquer
forma. Deste modo, as professoras e professores, ao buscarem suas memórias e experiências
vividas, passam a ser sujeitos do processo, sentem-se produtores, participantes.

Para ocorrer essa passagem do “formar” ao fazer-se professora ou professor é necessário pensar o
ato educacional como um campo de possibilidades, com uma história que está aberta, por se fazer, e
não como algo pronto, fechado, determinado, no qual falam, expõem e os alunos ouvem e repetem.
Assim, ocorreriam diálogos entre diferentes saberes.

Para o diálogo entre diferentes saberes, considero as condições socioeconômicas, político-culturais


de cada grupo social onde a escola está inserida. O trabalho pedagógico seria com as “realidades” e
as especificidades locais, regionais, ou seja, iniciar-se-ia o trabalho com o que está mais próximo
dos alunos e professores, o que foi expresso por Paulo Freire em diversos livros: seria o “ponto de
partida”. Portanto, o local não estaria desvinculado do contexto global.

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Para se compreender o que efetivamente acontece na Escola, faz-se necessário perceber as marcas
culturais da experiência, do vivido, do enraizamento, para compreendermos o trabalho de um
profissional, a história mais ampla que precisa ser desvelada. Marcas culturais nas quais os sujeitos,
atores e autores da cultura docente, possam expressar o fazer e saber ser professor, de forma a
relacioná-lo com outros saberes e fazeres, visualizando com mais nitidez as experiências vividas.

Ao trabalhar considerando os professores e professoras como sujeitos do processo de seu fazer-se,


sou levado a dialogar com Benjamim sobre o que a modernidade capitalista fez com a experiência
vivida. Para, ele, até então:

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre foi comunicada aos jovens. De forma
concisa, com autoridade da velhice, em provérbios, de forma prolixa, com a loquacidade, em
histórias; muitas vezes com narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e
netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como
elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras duráveis que possam ser transmitidas
como um anel, de geração a geração? Quem é ajudado hoje por um objeto oportuno? Quem tentará
sequer lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1986, p. 115).

Em diálogo com Benjamin, Jorge Larrosa também expõe uma série de aspectos referentes à
experiência e de como a modernidade privou os sujeitos modernos de viverem experiências devido
ao “excesso de informações”. Para este autor, as informações não deixam lugar para a experiência;
também o excesso de opinião seria impeditivo das experiências; a falta de tempo é outro fator que
impede os sujeitos de terem experiências e, também de terem memória; o excesso de trabalho é
outro fator que impede a experiência. Para o autor, a experiência e o saber que dela deriva são o que
nos permite apropriar-nos de nossa própria vida.

As questões levantadas por Benjamim e Thompson são fundamentais para que possamos discutir a
formação de professores junto com professores, e suas experiências ou a falta delas, levando-se em
consideração o que os professores pensam, como vivem, quais experiências têm para contar, que
metodologias desenvolvem, que relações fazem entre teorias e práticas cotidianas; enfim,
precisamos deixar de pensar a formação para ou sobre o professor, para pensar na relação junto
com os professores.

Não podemos esquecer que o fazer-se dos professores e professoras se dá num processo relacional,
ou seja, constrói-se na interação com os outros, isto é, com os professores universitários, os colegas

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de trabalho, os alunos, com os autores dos livros, com a comunidade escolar, ou ainda, outros
situados em diferentes espaços da produção de saberes: na troca de experiências, no diálogo
constante é que ocorre a feitura profissional do professor. Esse processo, portanto, dá-se de maneira
social e nunca individual; e, em sendo social, não pode ser homogêneo.

Proponho, pois, pensar a experiência na sua dimensão de totalidade, para além do científico e do
racional, pois como Benjamim defende, é preciso “escovar a história a contrapelo”, trazer para ela o
insignificante, o miúdo, o relegado. Tal encaminhamento remete a Sonia Kramer, quando, em
diálogo com Benjamin, aponta as contribuições do seu pensamento para falar em educação:

O professor teve sua experiência empobrecida: seu conhecimento não é visto como ‘verdade aurática'
e, ele não é narrador por não ter uma experiência coletiva a contar. Quem é ele? Professor e alunos
são cada vez mais impedidos de deixar rastros. (...) Tornaram-se, professor e alunos, meras
mercadorias? (...) Como operário (na linha de montagem), o jogador (sempre começando), o
passante (vagando na multidão), professores e alunos estão também condenados ao eterno recomeço?
Há possibilidade do ‘novo' ou sua ação se reduz ao ‘sempre-igual'? Para se buscar a possibilidade de
mudança, precisa-se buscar (me parece) a relação que é construída por professores e alunos, com o
conhecimento produzido na prática social viva, para que deixem de se deslocar como autômatos...
(...) Como recuperar a capacidade de deixar rastros? Ou seja, de deixar marcas? Ou ainda, de ser
autor? Como ler em cada objeto a sua história? (2002, p. 58).

Muitos têm pensado a formação de professores desconsiderando o que os professores pensam. São
discussões genéricas sobre um professor sem rosto, sem nome, sem identidade, sem experiência;
fala-se do ‘professor', no masculino e genérico e não especificamente do João, da Maria, do Pedro.

Ao trabalhar com a idéia de rememoração, Benjamin nos instiga a pensarmos como as memórias
dos professores podem contribuir para o seu fazer-se. Possibilita que questionemos em que medida
as memórias de formação escolar, de suas vidas, de sua construção como cidadãos, como
profissionais da educação, podem contribuir para que a academia passe a conhecer e respeitar os
professores e professoras. E, mais do que isto, pensar em que medida os próprios professores e
professoras podem se fortalecer, respeitando-se mais, em contato vivo com suas próprias memórias
e ensinando a academia a conhecê-los e respeitá-los?

Neste sentido, penso que para irmos além de dados modelos de “formação” de professores
precisamos pensar este sujeito – professor – como um todo, ou seja, um sujeito com experiências
vividas que precisam ser ouvidas e, assim, desenvolvermos outras práticas de formação que

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possibilitem a ocupação de outros espaços para além da universidade e da escola como lugares de
formação. Cabem aqui alguns exemplos, que podem contribuir para que os professores se façam ao
desenvolver suas atividades educativas nos chamados espaços não formais de formação, ao
ocuparem museus, casas de cultura, centros de memória e tantos outros e desenvolverem outras
práticas formativas que os possibilitem tornarem-se sujeitos autores e atores de suas práticas,
deixando de ficar à mercê do conhecimento que outros produzem, rompendo com a dicotomia
produção/reprodução, ou produção/transmissão.

Enquanto professor de Prática de Ensino de História, venho incentivando que os professores em


formação realizem seus estágios em diferentes espaços de produção cultural e guarda de memórias,
pois acredito que as relações entre os diferentes sujeitos, considerando-se as experiências vividas
como ponto de partida, possibilitarão a construção de novas práticas escolares.

Para encerrar e não concluir, pontuo agora alguns exemplos de experiências que desenvolvi ao
orientar os alunos do curso de História da UNOCHAPECÓ para que realizassem seus estágios em
espaços não convencionais como: numa empresa de transportes coletivos, problematizando a
história do transporte no município de Chapecó-SC; com grupos de mulheres agricultoras,
discutindo a historicidade do Movimento de Mulheres Agricultoras; com grupo de mulheres da
Pastoral da Criança, enfocando o papel da mulher na política; com grupos vinculados ao
Movimento Sem Terra; com uma comunidade de descendentes de italianos abordando imigração e
colonização da Região Oeste Catarinense, dentre muitos outros espaços não formais em que
aconteceram aulas de História para além do espaço escolar. Dessa forma, a experiência foi
indicando como os professores produzem conhecimento, como são autores, como se fazem nas
relações que desenvolvem. Assim, entendo ser necessário pensarmos a “formação” considerando a
possibilidade de diálogo com as experiências vividas e não mais termos modelos formatados do que
deve ser um professor.

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Nota:
1 Professor de Prática de Ensino de História e coordenador do Centro de Memória
do Oeste de Santa Catarina – CEOM, ambos da Universidade Comunitária Regional
de Chapecó - UNOCHAPECÓ. Graduado em História pela Universidade Federal de
Santa Maria, Mestre em História pela PUC de São Paulo e Doutor em Educação
pela UNICAMP.

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