Você está na página 1de 149

FUNDAÇÃO DE ENSINO “EURÍPIDES SOARES DA ROCHA”

CENTRO UNIVERSITÁRIO EURÍPIDES DE MARÍLIA – UNIVEM


MESTRADO EM DIREITO

MARCOS OLIVEIRA DE MELO

DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO E HUMANISMO


FRATERNAL: A IDEIA DE JUSTIÇA

MARÍLIA
2013
MARCOS OLIVEIRA DE MELO

DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO E HUMANISMO FRATERNAL:


A IDEIA DE JUSTIÇA

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado do Centro Universitário Eurípides de
Marília - UNIVEM, mantido pela Fundação
“Eurípides Soares da Rocha”, para obtenção do
Título de Mestre em Direito.
Linha de Pesquisa: Construção do Saber Jurídico.

Orientador:
Prof. Dr. OSWALDO GIACOIA JUNIOR

MARÍLIA
2013
MELO, Marcos Oliveira de.
Direito natural, direito positivo e humanismo fraternal: a ideia de
Justiça / Marcos Oliveira de Melo; Orientador: Oswaldo Giacoia Junior.
Marília, SP: [s.n.], 2013.
148 f.

Dissertação (Mestrado Direito) – Fundação de Ensino “Eurípides


Soares da Rocha”, mantenedora do Centro Universitário Eurípides de
Marília - UNIVEM, Marília, 2013.

1. Direito Natural 2. Direito Positivo 3. Humanismo 4. Fraternidade

CDD: 340.1
MARCOS OLIVEIRA DE MELO

DIREITO NATURAL, DIREITO POSITIVO E HUMANISMO FRATERNAL:


A IDEIA DE JUSTIÇA

Banca examinadora da Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Direito do


UNIVEM/F.E.E.S.R., para obtenção do Título de Mestre em Direito.

Resultado: _____

ORIENTADOR: ____________________________________________
Prof. Dr. OSWALDO GIACOIA JUNIOR

1º EXAMINADOR: __________________________________________

2º EXAMINADOR: __________________________________________

Marília, ____ de ____________ de 2013.


Ao eterno Professor Dr. Oswaldo Giacoia Jr.

Pela sua sabedoria me veio o conhecimento, e pela sua humildade, o


ensinamento. Que se alonguem seus dias em fé e paz.
DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Benedito e Eurides, por me ensinar, quando pequeno, nos caminhos de Deus;

quando adolescente, a perseverar nesse ensinamento; e agora, quando adulto, o significado

da vida. Reverto a vocês meus eventuais méritos.

À minha eterna princesa, Tânia Cristina, que me ensinou - e ensina - o incondicional do

amor, vinculo de perfeição e pureza.

Aos meus filhos, Anielly Cristina, Marcos Melo Filho e Caroline Cristina, pois herdaram

meus sonhos e renovaram em mim a esperança. Sejam amigos da sabedoria e tenha vossos

corações inclinados para o conhecimento.

Ao meu amigo e Professor Lafayette Pozzoli, pelo carinho e atenção com que me acolheu, de

forma a traduzir o conteúdo semântico da palavra fraternidade. Tens em mim um amigo.

Enfim, agradeço àqueles que em mim se fizeram eternos.


“O temor do Senhor é o princípio de toda a sabedoria,

e o conhecimento do Santo é prudência”.

(PROVÉRBIOS, 9:10)
MELO, Marcos Oliveira de. Direito natural, direito positivo e humanismo fraternal: a
ideia de Justiça. 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário
Eurípides de Marília - UNIVEM, Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha”, Marília,
2013.

RESUMO

A presente dissertação tem como núcleo temático um estudo sistemático e histórico do Direito
Natural, em relação com o Direito Positivo, com foco na referência de ambos à ideia de
justiça. Ideais de justiça têm acompanhado as principais escolas jusfilosóficas da cultura
ocidental, cujas doutrinas gravitam em torno de problemas ligados à justiça e legitimidade,
valores que constituem referenciais axiológicos fundamentais tanto do pensamento como da
ação humana ao longo da história. Nessa perspectiva, Direito Natural tem sido o eixo sobre o
qual se apoiam importantes debates acerca da concepção de justiça, notadamente no sentido
de estabelecer a validade e a fundamentação dos sistemas jurídicos. Isso é percebido desde a
escola clássica do Direito Natural, passando pelo pensamento teológico de Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino, e culminando nos pensamento dos principais filósofos racionalistas do
jusnaturalismo, como Grócio, Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Com o declínio
do pensamento jusnaturalismo oitocentista, observa-se a ascensão do positivismo jurídico. No
entanto, já desde algum tempo eventos históricos relevantes foram também determinantes
para deflagar uma crise permanente do positivismo jurídico, culminado com a necessidade de
voltar a postular, contra as exigências do positivismo, a pertinência da reflexão sobre valores
no campo de estudos científicos a respeito dos ordenamentos jurídicos, o que significou uma
nova reaproximação entre os domínios do Direito e da Moral. Decorre dessa reaproximação
uma relação entre Direito Natural e Direito Positivo com roupagem atual ─ de feitio
humanista ─ lastreada na fraternidade laica, cujo preciso significado esta dissertação
investiga. Assim, o trabalho procura refletir sobre a exigência de conexão necessária entre
Direito Positivo e Direito Natural, vínculo fundado no humanismo fraternal, bem como no
entendimento do modo como esta teoria pode influir nos debates atuais sobre problemas
fundamentais da justiça.

Palavras-chave: Direito Natural, Direito Positivo. Positivismo Jurídico, Jusnaturalismo,


Humanismo.
MELO, Marcos Oliveira de. Direito natural, direito positivo e humanismo fraterna: a
ideia de Justiça. 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário
Eurípides de Marília - UNIVEM, Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha”, Marília,
2013.

ABSTRACT

This dissertation is a systematic and thematic nucleus historical study of natural law , in
relation to positive law , with a focus on reference both to the idea of justice. Ideals of justice
have accompanied jusfilosóficas major schools of Western culture , whose doctrines gravitate
to issues related to justice and legitimacy , values which are fundamental axiological
frameworks of thought as much of human action throughout history . From this perspective ,
Natural Law is the axis on which to support important debates about the concept of justice ,
especially to establish the validity and justification of legal systems . It is known from the
classical school of natural law , through the theological thought of St. Augustine and St.
Thomas Aquinas , and culminating in the thought of the major rationalist philosophers of
natural law , as Grotius , Pufendorf , Hobbes , Locke , Rousseau and Kant . With the decline
of nineteenth-century natural law thinking, there is the rise of legal positivism . However ,
already for some time relevant historical events have also been instrumental in deflagrate a
permanent crisis of legal positivism , culminating with the need to return to postulate , against
the demands of positivism , the relevance of reflection on values in the field of scientific
studies about legal systems , which meant a new rapprochement between the domains of Law
and Morals . This rapprochement follows a relationship between natural law and positive law
with current guise ─ ─ humanist cutout backed the secular fraternity, whose precise meaning
of this dissertation investigates . Thus , the work seeks to reflect on the requirement of
necessary connection between positive law and natural law , founded on brotherly bond
humanism , as well as the understanding of how this theory can influence the current debates
about fundamental issues of justice.

Key words: Natural Law Positive. Positivism. Jusnaturalism. Humanism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1 - PERSPECTIVA HISTÓRIA DO DIREITO NATURAL .............................. 16


1.1 Direito Natural na filosofia clássica ................................................................................... 16
1.1.1 Sofistas ............................................................................................................................ 17
1.1.2 Sócrates ............................................................................................................................ 20
1.1.3 Platão ............................................................................................................................... 21
1.1.4 Aristóteles ........................................................................................................................ 24
1.1.5 Epicurismo ....................................................................................................................... 27
1.1.6 Direito Romano Clássico - Estoicismo............................................................................ 28
1.2 Direito Natural Teológico ................................................................................................... 30
1.2.1 Patrística .......................................................................................................................... 33
1.2.2 Escolástica ....................................................................................................................... 34
1.3 Direito Natural racionalista - Escola Jusnaturalista............................................................ 35
1.3.1 Hugo Grócio .................................................................................................................... 37
1.3.2 Thomas Hobbes ............................................................................................................... 38
1.3.3 Samuel Pufendorf ............................................................................................................ 40
1.3.4 John Locke....................................................................................................................... 40
1.3.5 Jean-Jacques Rousseau .................................................................................................... 42
1.4 Direito Natural em Immanuel Kant .................................................................................... 45
1.4.1 Moralidade como autonomia ........................................................................................... 47
1.4.2 Imperativos morais .......................................................................................................... 50
1.4.3 Obediência à lei moral ..................................................................................................... 53
1.4.4 Liberdade em Kant .......................................................................................................... 54
1.4.5 Direito à humanidade....................................................................................................... 58

CAPÍTULO 2 - POSITIVISMO JURÍDICO: DA ASCENSÃO À CRISE ............................. 61


2.1 Ascensão do Positivismo Jurídico ...................................................................................... 61
2.2 Direito Natural e Direito Positivo e sua relação recíproca ................................................. 66
2.3 Positivismo Jurídico no pensamento de Bobbio ................................................................. 71
2.4 A crise do Positivismo jurídico .......................................................................................... 89

CAPÍTULO 3 - DIREITO NATURAL CONTEMPORÂNEO ............................................... 93


3.1 Direito e Moral em Alexy: uma necessária reaproximação ............................................... 93
3.1.1 Noções preliminares ........................................................................................................ 93
3.1.2 Conceito e Validade do Direito em Alexy....................................................................... 95
3.1.3 Casuística em análise ..................................................................................................... 101
3.2 Realismo Jurídico de Javier Hervada ............................................................................... 104
3.3 Direito Natural em John Finnis ........................................................................................ 109

CAPÍTULO 4 - DIREITO NATURAL E HUMANISMO FRATERNAL ............................ 121


4.1 Mais uma casuística em análise ........................................................................................ 121
4.2 Direito Natural Moderno e o Humanismo fraternal ......................................................... 123
4.3 Humanismo moderno em Luc Ferry................................................................................. 128
4.4 Humanismo Fraternal como ideia de Justiça .................................................................... 131
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 138

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 142


11

INTRODUÇÃO

Os homens vivem em sociedade. Tomando em consideração esse fato, como ponto


de partida, os filósofos do direito têm perguntado se a natureza humana é, enquanto tal,
determinada pela sociabilidade, como por um atributo fundamental, ou se esse vínculo é
acidental. Da sociabilidade entendida como atributo natural do habitar humano no mundo
decorre a necessidade de estabelecer regras de conduta imprescindíveis para a convivência
harmônica, ancoradas nessa mesma naturalidade. O Direito Natural sempre foi pensado como
dotado dessa função harmonizadora e pacificadora, pois que fundado em ideais legítimos e
justos, ínsitos à própria natureza do ser humano.
Todavia, a celeuma se estabelece em torno da fundamentação, da própria existência e
da validade dessas regras, ou seja, das relações entre o Direito Natural e o Direito Positivo, o
direito positivado nos ordenamentos jurídicos historicamente existentes. A discussão reside na
necessidade de se estabelecer um núcleo mínimo de direitos naturais, inatos ao homem, que
possam ser considerados como um paradigma para a legitimidade do Direito Positivo,
servindo também como seu fundamento de validação.
O que podemos entender como Direito Natural não corresponde a um conceito
definitivamente estabelecido, de maneira unívoca, no interior de uma perspectiva histórica do
pensamento humano. Destarte, é impossível fixar uma acepção única para o uso conceitual da
expressão "Direito Natural" - posto que o termo deriva da confluência entre diferentes
correntes de pensamentos, impregnadas pela visão de mundo que corresponde à ideologia
própria de cada época histórica.
Como bem assinalou Reale (1984, p. 120), no decurso de um mesmo ciclo de cultura,
a compreensão jusnaturalista depende do entendimento que cada autor elabora a respeito do
ser humano e seus fins, o que torna o Direito Natural, por sua natureza, fluido e problemático.
Isso é algo que não pode deixar de ser ‘pensado’, muito embora não possa ser
‘conceitualmente determinado’.
E não poderia ser de outra forma, diferentemente do conhecimento científico
experimental, tornar-se uma missão difícil, senão impossível, conceituar e identificar a
essência de uma ideia de justiça imutável, perene e eterna que satisfaça a necessidade ímpar
da humanidade em todas as épocas.
Por outro ângulo, foram inúmeras as tentativas de negar a existência do Direito
Natural ao longo da história. Todavia, mesmo entre aqueles que negam a existência do Direito
12

Natural, é inegável que existem, de fato, princípios imutáveis, perenes e eternamente válidos,
por mais que fossem esquecidos, mal empregados ou desprezados no pensamento prático.
Mas percebe-se, numa perspectiva histórica, que grande parte do pensamento fisolófico-
jurídico vem marcado pelo binômio Direito Natural e Direito Positivo, ora estabelecendo uma
distinção de conteúdo, ora identificando uma diferenciação de grau. A discussão se assenta na
existência e fundamento de validade do Direito Natural e sua relação intrínseca com o Direito
Positivo.
O grande pensador Del Vecchio (1960, p. 276) considera que o Direito Natural
acompanhou desde sempre a humanidade, mas que os positivistas fizeram a ele algumas
importantes e sérias objeções, assentando que “o Direito Natural é essencialmente distinto do
Direito Positivo, precisamente porque se afirma como princípio deontológico, indicando
aquilo que deve ser, mesmo que não seja”.
Não podemos incidir no grande erro de pensar que Direito Natural e Direito Positivo
são “dois Direitos" distintos e contrapostos. O Direito Natural seria o nome com o qual se
designa, por tradição muito antiga, o critério absoluto do justo, e esse se fundou e assentou na
própria constituição das coisas e nunca no mero capricho do legislador momentâneo.
Em outras palavras, Direito Natural é a tradução da essencialidade da justiça
percebida pela razão humana expressada pelo Direito Positivo, no tempo e no espaço. Assim,
é pela razão que o ser humano evidencia sua natureza humana (humanidade) e expressa essa
natureza através do Direito Positivo.
Imprescindível, portanto, deter-nos no pensamento da Grécia antiga, marco inicial
das primeiras especulações sobre o direito e a justiça que deram fundamento ao Direito
Natural, posto que selado por uma ordem de princípios eternos, absolutos e imutáveis, que
têm na natureza a justificação do direito.
Tanto que Sócrates faz uma apresentação, no pensamento de Platão, sobre o corpo e
a alma: a parte mais perfeita que existe no homem, no ser, é a alma e tal parte (alma) reside no
divino. Essa divindade se manifesta na natureza. Assim, no Direito Natural clássico, o
pensamento central é copiar esse engendramento da natureza para a justiça.
Nota-se que na época Clássica do Direito Natural (Grécia antiga) não havia relação
de graduação entre Direito Natural e Positivo, mas basicamente de conteúdo, em que o Direito
Natural refere-se ao direito comum e o Positivo ao direito particular.
Vamos estudar inúmeros pensadores que trataram do assunto, desde a Grécia antiga,
passando pelo Direito Romano Clássico onde a essa dicotomia foi tema de estudo entre os
romanos (séculos II a.C. a II d.C.), presente na tríplice distinção entre jus natrurale, gentium e
13

jus civile, correspondendo à categoria do jus gentium o conceito de Direito Natural, enquanto
jus civile se refere ao Direito Positivo.
Na Idade Média, por sua vez, o Direito Natural foi considerado superior ao Positivo,
pois se acreditava tratar de norma fundada na própria vontade de Deus. Algumas vezes o
Direito Natural foi a reação contra a justiça positiva; outras, a observação de uma
conformidade entre regras jurídicas de diferentes povos, que induziu a postular uma justiça
superior. E, quanto aos modos pelos quais se demonstrou a autoridade do Direito Natural,
procedeu-se ora com argumentos teológicos, ora com dados puramente racionais.
Enquanto na Idade Clássica, o Direito Natural foi fixado na divindade e na natureza,
na Idade Média há um fortalecimento da Igreja cristã fulcrado no teocentrismo, ou seja, em
um único Deus, Jeová. Veremos a grande influência dos gregos na construção do pensamento
jurídico-filosófico ocidental na Idade Média, notadamente quanto às teorias da justiça e do
Direito Natural, desenvolvidas por Santo Agostinho e por São Tomás de Aquino que foram
uma quase compilação das ideias de Platão e Aristóteles.
Nessa época, a relação entre as duas espécies de direito se achava nos planos de
graduação: o Direito Natural é considerado superior ao Positivo, haja vista ser considerado a
própria vontade de Deus para os homens, inscrita na razão humana ou, parafraseando São
Paulo, como “a lei escrita por Deus no coração dos homens”1.
Na Escola Naturalista da Idade Média, o Direito Natural universaliza a razão humana
como fundamento para os direitos fundamentais eternos, naturais e imutáveis, culminando
com a consagração de alguns direitos em declarações universais2.
A partir do final do século XVIII o direito foi resumido em duas espécies: Direito
Natural e Direito Positivo, já não tendo como diferencial sua qualidade e substância, mas a
graduação (grau de posicionamento) de um em relação ao outro.
O racionalismo rompe com o pensamento teocêntrico, culminando no pensamento
racional. Vários pensadores surgem nesse período: Grotius, Locke, Hegel, Pufendorf,
Rousseau, Kant, dentre outros.
Kant tem um marco teórico em Rousseau, todavia diferente do idealismo de Platão e
realista de Aristóteles. Para Kant, a filosofia não é só ideia e realidade, mas também sujeito e
objeto. Há necessidade de entender o sujeito sem o qual não há como entender o objeto, ou

1
Livro de São Paulo aos Romanos, capítulo 2, versículo 15 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
2
Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789, art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As destinações sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum (DECLARAÇÃO..., 1789).
14

seja, da interação do sujeito com o objeto é que vai ser construído o conhecimento. Kant
propõe uma visão sistêmica do conhecimento.
Ao relacionar esses direitos universais e racionais chega-se às declarações escritas
desses direitos. Ocorre que esses direitos carecem de um critério de decidibilidade e
organização sistêmica. Há necessidade de estudar o Direito como ciência.
O Direito Natural foi considerado metafísico e abstrato e posto à margem da história
com a criação do Estado e a necessidade de estabelecer um critério científico ao direito. Disso
emerge o positivismo jurídico.
O termo positivismo3 é relativamente recente (HERVADA, 2006, p. 59). Nasce
quando há uma mudança de concepção do direito onde os conceitos de "Direito Natural" e
"Direito Positivo" se distanciam sobremaneira, elevando do Direito Positivo à categoria de
direito em sentido próprio, relegando ao Direito Natural a uma mera ideologia ética aparte do
conceito e conteúdo do direito.
Destarte, o presente estudo está dividido em quatro partes: a primeira traçando uma
perspectiva histórica do Direito Natural desde a Grécia antiga até o Direito Romano Clássico,
passando pelas principais escolas de Direito Natural teológico. Vamos estabelecer as
principais teorias jusnaturalista do Iluminismo nos pensamentos de Grócio, Pufendorf,
Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, em especial quanto ao nascimento do Estado como
guardião do Direito Natural à liberdade.
O segundo capítulo trata da superação do jusnaturalismo e ascensão do positivismo
jurídico, suas características e principais pensadores, especulando sobre suas bases teóricas
pelo escólio de Noberto Bobbio. Tentaremos estabelecer uma relação recíproca entre Direito
Natural e Direito Positivo na feliz lição de Hans Kelsen, para, ao final, determinar os motivos
culminantes da crise do positivismo.
No terceiro capítulo, trataremos da necessária reaproximação do Direito e Moral,
com uma leitura axiológica do ordenamento jurídico através de princípios humanísticos.
Estudaremos alguns pensadores da Escola de Direito Natural Moderno, procurando divorciar-
nos do caráter metafísico que impregna o pensamento jusnaturalismo.
No derradeiro capítulo, faremos uma necessária relação entre Direito Natural
contemporâneo e o humanismo fraternal, vale dizer, não um humanismo da razão e dos

3
Segundo o autor, o adjetivo "positivo" não foi usado até a Idade Média, mas anteriormente formam utilizados,
em seu lugar, outros adjetivos, como “legal” (o próprio das leis humanas); tal é o caso de Aristóteles, que
distinguiu o justo natural do justo legal. Os juristas romanos usaram uma divisão bimembre (Direito Pessoal ou
Natural e Direito Civil) ou trimembre (Direito Natural, Direito Pessoal e Direito Civil). A partir do século XIX,
propagou-se o positivismo.
15

direitos, mas um humanismo tomado pela afetividade nas relações pessoais fulcrado na ideia
de ver a si através do outro, rompendo com uma tradição metafísica, baseada em
transcendências, porém a que se firma na imanência do mundo.
O presente trabalho, além de fazer uma abordagem especulativa da histórica das
teorias da justiça fundamentada no binômio Direito Natural e Direito Positivo, também
estabelece um estudo metodológico do Direito Natural e sua influência conservadora ou
incisiva na política ocidental e sua vertente atual através do humanismo fraternal, como
melhor idéia de atual justiça.
A satisfação será plena se pudermos despertar no leitor a simples necessidade de
reflexão sobre a doutrina do Direito Natural moderno, sem um viés metafísico ou de
expressão de fé eclesiástica, mas investigando sua importância para o conceito
contemporâneo de justiça.
16

CAPÍTULO 1 - PERSPECTIVA HISTÓRIA DO DIREITO NATURAL

1.1 Direito Natural na filosofia clássica

O Direito Natural cosmológico tem origem na Grécia por volta do século VI a.C, no
período chamado de “cosmológico”, surgindo como a parte da filosofia que estuda a estrutura,
a evolução e composição do universo. Desenvolveu-se no período pré-socrático4, tendo como
principais características a substituição de mitos5 e divindades pela racionalidade na
explicação das origens.
Abandonar um mundo mítico e encontrar uma nova idéia de natureza fez com que os
gregos arcaicos travassem uma verdadeira guerra interior. Posteriormente a crença foi focada
na vontade de deuses e semideuses, portanto assumindo um caráter religioso.
Assim, acreditavam os gregos antigos que o direito era dominado pela vontade
legislativa dos deuses, passando a ser visto como um conjunto de leis sagradas. Se não fosse
usada a fórmula sagrada e consagrada, o ato não seria válido. Chama-se a isso de "Reino da
Magia", no qual quem conhecia o direito (as fórmulas sagradas) eram os sacerdotes, os
Pontífices, que tinham a incumbência de ligar o mundo dos deuses com o mundo terreno.
Nesse período, passou-se a defender a criação do mundo a partir de um princípio
natural, das coisas em sua essência e origem. Nessa época, não havia espaço para os
problemas éticos ou jurídicos.
Pitágoras (na segunda metade do século VII a.C.) fundou uma associação político–
religiosa centrada em valores e ideias éticas, que precederam Platão e influenciaram
Aristóteles. Foi o primeiro a estabelecer a relação entre a Matemática, a música e a harmonia
do cosmos, partindo do princípio de que o número era a essência das coisas. Assim elaborou
primeira teoria helênica solene e justa.
Para Pitágoras, a igualdade aparece como elemento essencial da justiça, e a justiça se
funda na ordem natural, simbólica, abstrata e ideal dos números, e não na vontade humana.
4
"Os pré-socráticos estão entre aqueles que primeiro pensaram. Se Aristóteles, Platão e Sócrates se
notabilizaram na história da filosofia ocidental não foi sem consideração direta ou indireta ao trabalho de
reflexão a que se entregaram estes primeiros vultos que se dedicaram a conhecer a causa de todas as coisas
(pánta)" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 61).
5
O mito, então, narrava, de forma irrefutável e inquestionável, a origem de alguma coisa, da terra, dos homens,
das doenças, dos astros celestes, do fogo, da água, da morte, do bem e do mal, das guerras, dos animais, assim
por diante. Ou seja, os mitos explicavam, a seu modo, a origem daquilo que gerava dúvida e curiosidade nos
homens. No final do século V a.C., os estudiosos passaram a buscar nos mitos um sentido profundo. Dentro
dessa tendência, alguns estudiosos dos mitos concluíram que os deuses eram considerados como homens que,
por seus méritos, receberam honras divinas. Procuravam nos relatos mitológicos uma significação racional,
embora muitas vezes trabalhassem com elementos puramente subjetivos (VERDI, 2005).
17

Todos os estudos filosóficos dessa época giravam em torno da cosmologia, buscando


a origem do universo e as causas das transformações da natureza. Extrai-se desses estudos
uma celeuma mais complexa, vale dizer, o conceito da própria “verdade”.
Desenvolveu-se o estudo sistemático sobre a origem da verdade, seu conceito e
conteúdo. Nesse passo, inúmeros pensadores6 se debruçaram em afirmar e justificar as
diversidades humanas fundamentadas na razão.
Os sofistas estão entre os maiores pensadores dessa época. De qualquer forma, é
possível afirmar que a transição do pensamento mítico ou pensamento filosófico operou-se
por meio dos pré-socráticos (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 61), assim como imperava a
preocupação mística, cosmológica, religiosa e pela natureza, cuja ruptura somente se deu-se
com os sofistas7.

1.1.1 Sofistas

Através dos sofistas, rompeu-se a tradição pré-socrática e, com ela, a crença em que
os mitos, as lendas ou os deuses definiriam o justo e o injusto. Abandona-se a noção de que o
cosmos, a natureza e os deuses eram guias absolutos, passando o homem a ocupar o centro de
suas preocupações. Esse movimento iniciou na Grécia no século V, tendo como característica
principal o discurso público retórico e pedagógico em auditórios, normalmente remunerado
para suas conferências e exibições.
A palavra sofista deriva da mesma raiz sofia, sabedoria.

O grande serviço dos sofistas foi voltar a filosofia para o estudo do homem,
considerado, quer como ser individual, quer como ser social (donde o seu
interesse pelas questões de justiça), a fim de alcançar os alicerces da
educação sistemática dos jovens (PEREIRA apud BITTAR; ALMEIDA,
1993, p. 441).

6
Cita-se Homero, como expoente da necessidade humana; Heríodo, como pensador do valor supremo, da
comunidade e do trabalho humano; Sólon e sua igualdade; Eurípides e a identificação com a legalidade.
7
A democracia em Atenas fez com que os cidadãos desenvolvessem a arte do falar bem e convencer, a fim de
verem aprovadas suas ideias nos plebiscitos. Isso é o que se chamou retórica. As obras dos sofistas não
chegaram de forma contínua até a atualidade. Somente fragmentos de seus pensamentos persistiram nas citações
feitas pelos pensadores clássicos, principalmente em Platão e Aristóteles que, por considerarem importantes os
pensamentos dos sofistas, citavam-nos antes de contestá-los. O termo sofista, entretanto, com o passar dos
tempos, começou a ser utilizado no sentido pejorativo, designando aqueles que empregavam um raciocínio para
o qual já se tinha uma resposta. E é em virtude disso que alguns consideram o pensamento sofista de maneira
negativa. Foram os sofistas que iniciaram a socialização dos debates filosóficos que se seguiram durante séculos.
Com eles, muitas das tradições começaram a ser questionadas e o pensamento grego, a partir de então, mudou
radicalmente (VERDI, 2005).
18

Ser um bom orador na Grécia, principalmente em Atenas, era a chave do poder. Eis a
importância dos sofistas, pois surgiram das necessidades democráticas da polis na preparação
dos jovens cidadãos gregos para o embate em espaços públicos, tribunais através da oratória e
retórica.
Nessa época, tudo girava em torno da palavra: os debates políticos, as estratégias
para as guerras, as deliberações e proposituras legislativas, as defesas e julgamentos nos
tribunais, o centro do debate estava na liberdade de expressão do cidadão na polis. Os sofistas
contribuíram com seus esforços para colocar em dúvida conceitos fixos e eternos, até então
entendidos como tradições imutáveis e definições absolutas.
Os sofistas de maior importância foram Hípias, Pródico, Eutidemo, Protágoras e
Górgias8. Não deixaram escritos vários, todavia suas ideias são conhecidas através dos
críticos, notadamente pelos diálogos platônicos. Direcionavam seus estudos para o homem e
seus problemas morais e sociais.
Mesmo Platão, ao reconhecer a capacidade de ensinar dos sofistas, afirmou:

[...] julgo admirável a capacidade de ensinar as pessoas, capacidade de


homens como Górgias de Leontini, Pródico de Ceos e Hípias de Elis9. De
fato, cada um desses homens, senhores, é capaz de dirigir qualquer cidade e
persuadir jovens [Apologia de Sócrates, 19e] (NADER, 2010, p. 104).

Em geral, os sofistas foram grandes opositores dos conceitos absolutos e eternos, das
tradições inalienáveis, inaugurando o relativo, o provável, sendo mais negadores do que
construtivos. Assim, foram eles que pela primeira vez fizeram as perguntas pelo fundamento
da lei, pela sua validade, pela definição do direito e da justiça.
Desse questionamento surge um certo relativismo, considerando que as leis e a
natureza podem entrar em rota de colisão, ou seja, um conflito entre a ordem moral e o
mundo físico natural.
Tanto assim que a proposição fundamental de Protágoras foi que “o homem é a
medida de todas as coisas, das que são pelo que são, e das que não são pelo que não são.”
A assertiva reflete um alto grau de relativismo, pois sendo o homem a "medida de
todas as coisas", então coisa alguma pode ser medida para os homens, ou seja, tudo deve ser
definido pelos homens, o que traz o entendimento de homem como indivíduo singular.

8
Os sofistas não chegaram a formar uma escola, pois não adotaram uma linha única de pensamento, sendo-lhes
comum a divergência ou contradição de ideias, embora dirigissem seu estudo para idêntico alvo: o homem e seus
problemas psicológicos, morais e sociais.
9
Todos prestigiados sofistas contemporâneos de Sócrates.
19

Não é exagero dizer que a Filosofia do Direito tem origem embrionária com os
sofistas. Inicia-se um debate que ainda hoje persiste, entre os que defendem na moral o
primado da natureza (naturalismo) e os que defendem o da convenção (convencionalismo),
em outras palavras, a grande questão que será trazida à Filosofia do Direito será a oposição
entre physis (referente à natureza) e nomos (imanente ao homem, convencionalismo).
Para Bittar e Almeida, "muitos dos cultores do movimento sofístico, embasados em
tal dicotomia, advogaram a ideia de que existiria uma oposição intrínseca entre a lei da
natureza (physis), e a lei convencionada pelo homem (nomos), lei esta que seria artificial e
que atentaria contra a ordem natural das coisas" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 96).
Surge então a distinção entre o Direito Natural (lei da natureza) e Direito Positivo
(lei posta pelos homens), aquele tem origem na verdade, e este no axioma humano. Nessa
dicotomia, nasce a ideia de que apenas o Direito Natural é válido e eterno, onde o Direito
Positivo encontra seu critério validade.
Nesse sentido, os homens são iguais por natureza, quer sejam gregos ou bárbaros.
Essa igualdade por alguns sofistas seria uma ruptura da ideia política da época. Em
decorrência, os sofistas muito contribuíram para o conceito de justiça, estabelecendo o
relativismo das leis civis, próprias de cada cidade, apontando a contraposição entre lei da
natureza e lei convencional, representados pelo Direito Natural e Direito Positivo.
Até então, o Direito Natural na Antiguidade era estudado pelo viés de direito eterno e
imutável que rege o funcionamento do cosmos (universo), vale dizer, do universo físico. Não
obstante importantes avanços no pensamento filosófico, posteriormente a escola naturalista
teve incomparável contribuição por obra dos três grandes gênios: Sócrates, Platão e
Aristóteles.
Em resumo, a partir dos sofistas o homem passou a ser o centro das questões e das
preocupações filosóficas. Apesar da grande contribuição dos sofistas, foi Sócrates quem
valorizou a descoberta do homem, pois o orientou para os valores universais, em busca da
essência e da verdade única.
20

1.1.2 Sócrates

Sócrates10 redireciona o pensamento para uma filosofia eminentemente ética,


fulcrada nos caminhos do ser e da verdade, acreditava que com a política haveria o bem da
pólis, em leis estáveis, universais e verdadeiras, busca da verdade, incitando seus discípulos a
descobri-la.
Para esse filósofo grego, homem virtuoso é aquele que pratica o controle efetivo das
paixões que tendem ao mal. A verdadeira virtude é uma purificação de todas as paixões.
Somente assim o homem poderá encontrar sua felicidade.
Sócrates encontra nas leis um conjunto de preceitos de obediência incontornável,
podendo essas serem justas ou injustas. Bem observou Bittar e Almeida (2011, p. 104) sobre o
pensamento socrático:

O direito, pois, aparece como um instrumento humano de coesão social, que


visa à realização do Bem Comum, consistente no desenvolvimento integral
de todas as potencialidades humanas, alcançável por meio do culto das
virtudes. Em seu conceito, que nos foi transmitido pelos diálogos platônicos
de primeira geração, as leis da cidade são inderrogáveis pelo arbítrio da
vontade humana.

Na exposição de suas ideias, Sócrates adotava sempre o diálogo, tanto que,


posteriormente, tornou-se conhecida a expressão "ironia socrática". É que a marca constante
em Sócrates refere-se a uma postura dialógica com o adversário, já que este assumia uma
atitude humilde de quem estava pronto a aprender e elaborava inúmeras perguntas até levar o
adversário, em geral confiante e orgulhoso de seu saber, a uma evidente contradição e
constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância.
Todavia, caso travasse um diálogo com seus discípulos, adotava um método
elaborando as perguntas, dirigindo-as com o fim de obter do outro um conceito, uma
definição geral do objeto em questão.
A esse processo pedagógico ele autodenomina de “maiêutica”, pois acreditava que
assim nascia o conhecimento, fundando-se na memória que tinha da profissão de sua mãe
(que era parteira), gerando a “obstetrícia do espírito”, que facilitaria a “parturição” das ideias.

10
Sócrates conviveu com o povo ateniense do século V a.C. Seu método maiêutico, baseado na ironia e no
diálogo, possui como finalidade a parturição de ideias. Para o filósofo a maior luta humana deve ser pela
educação (paideia), e que a maior virtude (areté) é a de saber que nada se sabe.
21

Sócrates acreditava que o único meio de alcançar a felicidade ou semelhança com a


divindade, fim supremo do homem, seria a prática da virtude. Foi assim o primeiro filósofo a
ensinar a prática da virtude. Reconheceu a existência de uma lei natural, independente do
arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo Direito Positivo e expressão da vontade
divina.
Foi Sócrates quem inaugurou a especulação filosófica acerca do conhecimento, do
Bem e da Justiça, mas Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates e a transforma no que ele
chama de dialética, conservando a idéia de que o método filosófico é uma contraposição,
partindo-se de uma hipótese primeira e posteriormente acrescentando-se críticas através do
diálogo, isto é, em um intercâmbio de afirmações e negações.

1.1.3 Platão

Platão avançou no conhecimento acerca do conceito de verdade. Sendo discípulo de


Sócrates e fundador da Academia, absorveu o pensamento do mestre da virtude como
conhecimento e o vício existente em função da ignorância, para posteriormente desenvolver a
teoria das ideias11.
Acreditava que existiria, além do mundo dos fenômenos, um outro mundo de
realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as
representavam. Essas realidades chamavam-se ideias.
Nas palavras de Bittar e Almeida (2011, p. 117),

[...] o platonismo, ao contrário do que faz o aristotelismo, prima pelo


idealismo e não pelo realismo. Isso porque o núcleo da teoria platônica
repousa na noção de ideia, que penetra inclusive o entendimento do que seja
o bem supremo do homem.

Platão trabalhou com dois mundos distintos, ou seja, o mundo das essências, onde
existiria a matriz fiel e perfeita de todas as coisas (o mundo das ideias) e o mundo das

11
Para Platão a realidade se dividia em duas partes: a primeira é o mundo dos sentidos, do qual não podemos ter
senão um conhecimento aproximado ou imperfeito, já que para tanto fazemos uso de nossos cinco (aproximados
e imperfeitos) sentidos. Neste mundo dos sentidos, tudo "flui" e, consequentemente, nada é perene. Nada é no
mundo dos sentidos; nele, as coisas simplesmente surgem e desaparecem; a outra parte é o mundo das ideias, do
qual podemos chegar a ter um conhecimento seguro, se para tanto fizermos uso de nossa razão. Este mundo das
ideias não pode, portanto, ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as ideias (ou formas) são
eternas e imutáveis.
22

aparências (mundo material). Para esse filósofo grego, o mundo das ideias era o fundamento
de toda a verdade. Já o mundo sensível seria um reflexo do mundo inteligível.
Ensina Platão que os homens deveriam seguir os mandamentos da razão, deixando de
lado os desejos da paixão (mundo sensível), posto que repleto de aparências e incertezas. No
mundo sensível só teriam da justiça uma imagem, uma ilusão, sendo impossível o alcance da
justiça ideal.
A ideia de justiça já está presente nas primeiras obras de Platão caracterizada como
virtude do cidadão. Com base no mito da caverna, conclui Platão que "só conhece a justiça
aquele que é justo".
Para Salgado, agir com justiça em Platão consiste exatamente na superação de toda
atitude egoísta, no sentido do reconhecimento da igualdade de direito do outro contra a
reivindicação de tudo para si. “Por colocar o outro na mira do agir humano, a Justiça torna-se
a maior das virtudes, pois que as demais, a sabedoria, a coragem e a temperança são apenas
interiores a ela e precisamente a quem atém diretamente ao Estado como um todo”
(SALGADO, 1986, p. 22)
Platão entendia que o homem não é capaz de sempre se estabelecer pela razão, o bom
e justo da cidade, sendo que as leis são necessárias para o conceito de justiça e felicidade dos
cidadãos. Nas Leis, livro IX, 874, já se dizia: “Sem leis, os homens se conduzirão
necessariamente como as feras mais perigosas”12 (SALGADO, 1986, p. 24). A lei provém da
razão humana, sem a qual seria impossível ao cidadão ser educado.
Para esse filósofo, agirá bem quem possui o conhecimento do Bem, sendo que a
formação do cidadão deve estar alicerçada sobre os fundamentos da verdade. Nisso diverge
do relativismo ético dos sofistas na educação do ser humano13 grego, pois para estes o critério
da verdade está no próprio ser humano que examina a questão conforme o seu interesse.
No pensamento platônico, os seres humanos, quando não educados corretamente,
tendem a seguir seus próprios interesses, serão conduzidos por seus afetos e paixões. O
filósofo grego ditava a razão como orientadora do comportamento humano. Em outras

12
Em A República, essa ideia central, que define a Justiça como virtude, consiste na observância da lei e
permanece, mas num outro plano: não já como dedução empírica da necessidade de observar leis na medida em
que essas leis sejam a expressão do costume da vida ética do povo, mas como ideia da razão que informa o
próprio Estado de Platão, num plano filosófico elevado, visto que não mais ligado ao empírico da observação
socrática. O Estado ideal é também o Estado de Justiça e nela não há diferença ente as leis e a Justiça. Suas leis
são justas porque editadas por quem pratica a virtude da justiça e, por isso, contempla a ideia de justiça. E
conclui: “o bem e o mal, o justo e o injusto são verdades racionais, essências eternas”.
13
Platão e os sofistas debatiam sobre como formar cidadãos. Platão acreditava que o exercício da cidadania na
Polis está intimamente ligada ao conhecimento da virtude e dos vícios.
23

palavras, sendo os sentimentos voláteis e transitórios, estes não podem ser fonte inspiradora
da verdade, considerando-se esta perene e eterna.
Mais adiante na República, Platão passa a expor sobre o conceito de Justiça. No
diálogo entre Sócrates e Glauco14, o filósofo grego expõe o que não considera ser justiça, e o
faz através do mito do anel de Giges, onde faz alusão à ideia de que os seres humanos são
justos unicamente por medo do castigo15.
Para Platão, não faz sentido uma Justiça que esteja alicerçada sobre uma paixão, vale
dizer, sobre o medo, haja vista que a justiça tem origem na razão e não na paixão (medo da
punição). A lei é inflexível; a alma humana, ao contrário, está forçosamente sujeita às
paixões16.
Partindo desses fundamentos é que Platão defende o pensamento político que está
alicerçado na noção da “alma”, divididas em três partes: parte racional (cognitiva), parte
irascível (colérica) e parte apetitiva (concupiscente)17.
Nesse contexto, Platão faz uma analogia entre alma e Estado. A alma racional deve
governar a alma irascível e a alma apetitiva, sendo que o governo do Estado deve ser exercido
por aqueles suficientemente capazes de usar a razão para controlar todas as paixões. Extrai-se
desse ensinamento que a infelicidade é o resultado do direcionamento equivocado das
paixões.
A filosofia de Platão tem orientação ética, ensinando o homem a desprezar os
prazeres, as riquezas e as honras, e praticar a virtude. Se no pensamento socrático a ética
possui conotação utilitária, ou seja, identificando o Bem como o útil e o agradável para o
homem, em Platão a ética é uma valor em si mesmo.
Assim, como um homem necessita do outro, dessas necessidades será fundada a
Cidade-Estado, criação do homem para suprir as suas deficiências. A composição do Estado
seria então uma sociedade de desiguais, não de indivíduos semelhantes.
Para Platão, a pacificação social necessária somente será possível através do Estado
organizado racionalmente. A teoria platônica, segundo a qual a virtude se identifica com o
conhecimento, e o Bem, com a Verdade, exercerá grande influência na filosofia grega

14
Livro II da República de Platão.
15
O personagem dessa história, um pastor chamado Gyges, encontra por acaso uma caverna onde jaz um cadáver
que usava um anel. Quando Gyges enfia o anel no próprio dedo, descobre que esse o torna invisível. Sem
ninguém para monitorar seu comportamento, Gyges passa a praticar más ações - seduz a rainha, mata o rei e
assim por diante. Essa história levanta uma indagação moral: algum ser humano seria capaz de resistir à tentação
do mal se soubesse que seus atos não seriam testemunhados?
16
A Política, 1286a.
17
Para o filósofo grego, a alma racional busca o conhecimento e a verdade. A alma irascível busca o desejo pela
glória e prazer. Já a alma apetitiva anseia os bens materiais.
24

posterior, notadamente em Aristóteles, nos estóicos e nos neoplatônicos, e será explorada


entre os filósofos cristãos.

1.1.4 Aristóteles

O pensamento filosófico clássico se completa em Aristóteles. Mesmo sendo


discípulo de Platão, não concordou com muitas das teses do seu mestre. A visão aristotélica é
de que o cosmo é um todo organizado e de que os seres humanos, assim como tudo no
universo, tendem a uma finalidade.
Aristóteles (384-322 a.C.), como discípulo predileto do idoso Platão, fundou a sua
própria escola no Liceu, ensinando informalmente pelos jardins. A sua filosofia desenvolveu
inúmeros temas ligados à filosofia jurídica, sendo considerado por alguns como o pai da
Filosofia do Direito.
As ideias de Aristóteles representam as bases teóricas do Direito Natural que
influenciaram renomados filósofos como Santo Tomás de Aquino. Sua obra tornou-se valiosa
para as ciências naturais e humanas ao analisar os conhecimentos.
Estabeleceu duas formas de justo ou direito: direito por natureza (dikaion phisikon) e
direito por definição legal (dikaion nomikon). O justo natural (dikaion phisikon) é aquele que
por si próprio, por todas as partes, possui a mesma potência (dýnamis) e que não depende,
para sua existência, de qualquer decisão, de qualquer ato de positividade, de qualquer opinião
ou conceito.
O que é por natureza o é, independentemente de outro fator senão a própria natureza
(phýsis). O justo legal (díkaion nomikón), em contraposição, é aquele que, de princípio, não
importa se seja desta ou daquela forma (indiferença inicial), porém, uma vez posto (positum,
positivado), deixa de ser indiferente, tornando-se necessário. A lei possui força não natural,
mas fundada na convenção (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 143).
Para Aristóteles, o Direito é a busca do bem comum. A finalidade do ser humano
então seria a busca do bem comum através da razão, sendo o Direito Natural a via perfeita
para a felicidade ligada ao Direito Positivo. Considerava o Direito como uma virtude dirigida
ao outro18.

18
A justiça natural é parte da justiça política que visa a permitir a realização plena do ser humano. Sendo
naturalmente um ser político, a plena realização do animal racional está condicionada à sua natureza. Reger-se
sob o signo de sua natureza, para o homem, significa estar sob o governo da razão, o que se traduz, no âmbito
social, estar sob o governo das leis, que são "razão sem paixão". É a justiça natural o princípio e causa de todo
25

A distinção conceitual entre Direito Natural e Direito Positivo já se encontrava em


Platão, mas tornou-se mais explícita em Aristóteles. Vejamos o seguinte trecho da Ética a
Nicômacos:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas


que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as
aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado
indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já
não é indiferente (ARISTÓTELES, 1985, 1103a).

Para Aristóteles, a natureza era a fonte essencial do direito, mas não a única. Direito
Natural e Direito Positivo deveriam se completar para a criação da solução boa, útil e justa.
Para o filósofo, o direito não seria deduzido apenas das leis positivas, mas deveria ser
procurado de forma dedutiva e indutiva, nas relações da vida cotidiana, nos fatos, na ordem
social, pois seria, afinal, parte do cosmos.
Aristóteles distinguiu dois tipos de justo: o justo natural e o justo político, mas não os
separou. O justo natural expressaria uma justiça objetiva imutável e que não sofreria a
interferência humana. Já o justo político era a lei positiva que teria sua origem na vontade do
legislador e que sofreria variação espaço-temporal. Ensina que há uma lei verdadeira,
conforme a natureza, difundida entre todos, constante, eterna e que comanda e incita ao dever,
única, imutável, governada por todos os povos em todos os tempos.
É que, para Aristóteles, o natural do ser humano é agir corretamente, pois a razão nos
faz agir de maneira correta. Nesse particular, divorcia-se da filosofia platônica de render
maior importância às leis.
Na obra A Política, Aristóteles faz uma necessária distinção entre a justiça natural e a
justiça legal. Resulta disso que o Direito Natural, proveniente da observação e da dialética,
não poderia ser formulado em leis e codificado. Justo é o justo por si e não poderia ser
resumido sob o aspecto da lei ou código. Entretanto, sua relação com o Direito Positivo seria
fundamental, pois constituiria a realidade jurídica em seu conjunto.
Justo seria o que estivesse de acordo com a lei e injusto o que lhe é contrário. A
justiça é considerada como uma virtude perfeita. “Justiça é a disposição em virtude da qual os
homens praticam o que é justo, agem justamente e querem o justo.”
E prossegue: “Chamamos justo ao que é de índole para produzir e preservar a
felicidade e seus elementos para a comunidade política” (ARISTÓTELES, 1985, 1129a).

movimento realizado pela justiça legal; o justo legal deve ser construído com base no justo natural. A justiça
natural realiza-se com a própria práxis da razão em sociedade.
26

Para Aristóteles, a justiça é uma virtude por excelência, compreendendo todas as


demais. “Uma só justiça contém todas as virtudes” (ARISTÓTELES, 1985, 1144 b. 35). Assim,
o Estado decorre da natureza social do homem assim considerado um ser político, sendo
imprescindível essa união orgânica para a perfeição da vida. E o faz através de leis positivas.
Quer dizer o filósofo que o ser humano é um animal político, que a cidade é a causa
final do primeiro modelo da sociedade natural, que é a família, e que a finalidade da cidade é
a de garantir a vida boa. Pela visão aristotélica, a vida social requer uma regulamentação por
lei, objetivando a satisfação da justiça.
Aristóteles foi o primeiro filósofo a observar os vários poderes existentes no Estado
(o Legislativo, o Executivo, e o Judiciário), bem como a forma de governo: a monarquia, a
aristocracia e a democracia, e suas degenerações, respectivamente ─ a tirania, a oligarquia e a
demagogia.
Segundo Bittar e Almeida (2011, p. 144), no pensamento aristotélico, não existe
dicotomia entre a justiça natural e a justiça legal, pois a justiça legal representa a polis e esta é
a representação social dos homens. O que existe para o mestre, segundo os autores, é a
necessidade de se estabelecerem sistemas de leis compatíveis com a natureza humana.
Passemos a relacionar, de acordo com Pereira (1980, p. 96), itens que resumem e
explicam a filosofia clássica do Direito Natural aristotélico:

a) O Direito Natural aristotélico não era formal e vazio, pois tirava o seu
conteúdo das relações sociais objetivas e da observação da natureza.

b) Não estava descrito em leis formuladas ou em códigos. Deveria ser


buscado como uma solução para um problema.

c) Não era imóvel nem estático. Tinha a característica de adequar-se à


mobilidade da natureza em geral e das sociedades em particular.

d) Não derivava do Estado, sendo diferente, pois, do positivismo.

e) Não resultava de uma ciência particular e positiva, derivava da prudência,


uma disposição sui generis, entre a ciência e a arte, buscando a justiça,
virtude moral própria do mundo jurídico.

f) Não pretendeu situar-se acima e paralelamente ao Direito Positivo.

g) Não era a fonte única de todo o universo jurídico, portanto, não dispensou
a existência simultânea das leis escritas com o fim de permitir soluções
concretas.
h) Não era um direito ideal e utópico, como foi o de Platão. Caracterizou-se
pelo seu realismo.
27

A seu turno, bem asseverou Bobbio (2006, p. 17) ao identificar dois critérios pelos
quais Aristóteles distingue o Direito Natural e Positivo:

a) Direito Natural é aquele que tem em toda a parte (pantachoü) a mesma


eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer
parte), enquanto o Direito Positivo tem eficácia apenas nas comunidades
políticas singulares em que é posto;

b) o Direito Natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tem o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem
boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja bondade é
objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos
medievais). O Direito Positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações
que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um
modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei, importa (isto é, correto e
necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei.

Pode-se dizer que a filosofia grega pós Sócrates preocupa-se com o problema ético-
moral estabelecendo um viés humanístico. As questões metafísicas foram superadas,
estabelecendo o ser humano como o eixo em torno do qual giram todas as preocupações de
organização social.

1.1.5 Epicurismo

A escola epicurista19 de pensamento, que organiza determinado conjunto de ideias, e


à qual se liga uma tendência doutrinal que elege no prazer a finalidade do agir, deve seu nome
ao pensador grego Epicuro de Samos (341-270)20.
A doutrina epicurista resume-se, em suas linhas gerais, a discutir e a traçar
contribuições em torno de temas como o da matéria, o do átomo e o das sensações.
Fundamentalmente empírica, essa doutrina anuncia uma explicação do mundo a partir dos
elementos que o integram (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 162).
E prossegue Bittar e Almeida ministrando que reconhecendo a importância dos
sentidos e o seu papel para o homem é que o epicurismo delineia seu princípio ético. Todo o

19
Epicurismo é o sistema filosófico ensinado por Epicuro de Samos, filósofo ateniense do século IV a.C., e
seguido depois por outros filósofos, chamados epicuristas. A ideia que Epicuro tinha era que, para ser feliz, o ser
humano necessitava de três coisas: Liberdade, Amizade e Tempo para meditar. O estoicismo é uma doutrina
filosófica que propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em
relação a tudo que é externo ao ser. O ser humano sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se como uma peça
na grande ordem e propósito do universo.
20
Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e
numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde
Lucrécio foi seu maior divulgador.
28

homem age, faz isso no sentido de evitar a dor e de procurar o prazer; a insatisfação dos
sentidos é a dor, enquanto a satisfação dos sentidos é o prazer.
Em linhas gerais, o epicurismo consiste em um grande apelo ao homem para que se
utilize da maior de suas faculdades, a saber: a prudência (phrónesis). É ela que permite a
sabedoria do discernimento na escolha de comportamentos, na prática de atos e na realização
de atitudes.
Assim, saber escolher e discernir é ser prudente; ser prudente é conquistar a ataraxia,
ou seja, a estabilidade de ânimo diante das coisas, dos prazeres, das paixões e, inclusive, da
própria dor. Para o epicurismo, isso é ser livre.

1.1.6 Direito Romano Clássico - Estoicismo

O estoicismo21 como doutrina alcançou todo o período da Grécia Antiga até o


Império Romano, tendo seu declínio em Justiniano, imperador de características pagãs e
contrárias à fé cristã.
Importante é assinalar que, no Direito Romano clássico, os grandes jurisconsultos,
em especial Cícero, retorna ao pensamento da relação íntima entre natureza e razão, porém
identifica a razão com a lei natural (pensamento estoicista) em detrimento da fundamentação
metafísica da antiga tradição pré-socrática.
Bem asseverou o Professor Reale (1994, p. 630) que:

[...] do ponto de vista da Filosofia do Direito, o pensamento pós-socrático


acaba por fundamentar uma concepção mais cosmopolita do ser humano,
adaptada à nova realidade do Estado-Império, cristalizando a ideia do Direito
Natural que irá impregnar a Roma antiga. A jurisprudência romana se
desenvolve, então, sob a égide da doutrina do Direito Natural, na esteira das
concepções herdadas do pensamento clássico. Em Roma, as ideias mais ou
menos difusas na moral estóica, de que os postulados da razão teriam força e
alcance universais, encontraram ambiência favorável à sua aplicação prática.
O Direito Natural passa a ser, então, concebido como a própria natureza
baseada na razão, traduzida em princípios de valor universal.

Bobbio (2006, p. 19) identifica no Direito Romano dois critérios sobre os quais se
baseia a distinção entre Direito Natural e Direito Civil:

21
Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período médio
ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.
29

a) o Direito Natural é universal e imutável (semper), enquanto o direito civil


é particular (no tempo e no espaço);
b) o Direito Natural estabelece aquilo que é bom (bonum et aequum),
enquanto o direito civil estabelece aquilo que é útil: o juízo correspondente
ao primeiro funda-se em um critério moral, ao passo que o relativo ao
segundo baseia-se em um critério econômico e utilitário.

Marcus Tullius Cícero (106 a 43 a.C.) deixou um legado diversificado de obras sobre
política, moral, teologia e direito. Sofreu grande influência das filosofias sofistas, socráticas,
platônicas e aristotélicas, principalmente do estoicismo.
Para Cícero, a razão é o que há "de mais divino" no homem e em todo o universo,
uma identidade entre o homem e a divindade, sendo comum em ambos. Essa razão é a lei
natural imanente ao homem, que define o justo e dá um paradigma supremo da lei humana
positiva. A essência de toda lei22 que provém da razão é saber escolher entre o verdadeiro e o
justo.
Cícero (p. 42) apud Bittar e Almeida (2011, p. 18) dirá que os homens e deuses
formam um só universo, onde as leis naturais presidem à coordenação de todos:

Pois ele é o único, entre todas as espécies e variedades de seres animados,


que tem acesso a uma razão e a um pensamento, de que carecem as outras.
Com efeito, o que é mais divino, não direi apenas no homem, mas em todo o
céu e a terra, do que a razão?
Mas os que possuem razão em comum, devem também possuir em comum a
razão justa. Ora, esta não é outra coisa senão a lei, logo a lei é um vínculo
que devemos reconhecer entre os homens e deuses.
Logo, devemos considerar que o nosso universo é uma só comunidade
constituída pelos deuses e pelos homens.

Cícero desenvolveu uma concepção de Direito Natural que marcou profundamente


essa idéia e até hoje seus pensamentos são citados para explicar o verdadeiro conteúdo do
Direito e da Justiça. O que interessou Cícero foi o direito e não a lei.
A lei natural e eterna é a fonte do Direito estampada na razão inata do homem,
incorruptível pelo pensamento humano, pois a razão e a inteligência do sábio são capazes de
comandar e proibir comportamentos.
Esse filósofo romano ensina que a reta razão (recta ratio) é que ordena a conduta de
todos os homens a partir de uma lei natural absoluta, preexistente, imutável, intocável,
soberana e perfeita:

22
Para Salgado (1986, p. 56): "Cícero distingue as leis em: a lei que procede da 'recta ratio' do supremo Júpiter e
a lei que procede da 'recta ratio' do sábio. Trata-se de uma distinção em razão da fonte e não propriamente em
razão da natureza, em ambos os casos a razão é a mesma, pois também no homem há um razão perfeita".
30

A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável,


eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que, proíbe e, ora
com seus mandados, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente
aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada,
nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu
cumprimento pelo povo nem pelo Senado; não há que procurar para ela
outro comentador nem intérprete (CÍCERO, p. 75 apud BITTAR
ALMEIDA, 2011, p. 178).

O homem que conhece a si mesmo torna-se sábio23 na medida em que descobre em si


uma lei natural que o orienta e comanda seus atos e ações na virtude e o afasta dos vícios.
Nesses termos, a razão deve sobrepor-se à paixão para implantar uma ordem natural entre os
homens, sendo a lei um mandamento de ordem e retidão, constituída de acordo com a lei
natural, necessária para os homens. E acrescenta que a República pressupõe o Direito, e o
Direito pressupõe as leis, e as leis pressupõem leis naturais, e as leis naturais pressupõem
Deus.
Del Vecchio (1979, p. 51) condensa bem a escola estoicista:

Os estoicos conceberam seguinte ideal do homem sábio: aquele que venceu


todas as suas paixões e se livrou das influências externas. Só deste modo se
obtém o acordo consigo mesmo, ou seja: a liberdade autêntica. Semelhante
ideal - pelos estoicos personificados, sobretudo em Sócrates - deve ser
cultivado pelo homem, pois a cada um é imposto pela reta razão. Existe uma
lei natural que domina e se reflete também na consciência individual. O
homem, por sua natureza, participa de uma lei universalmente válida. Eis
porque, para os estoicos, o preceito supremo da ética é o que manda viver
segundo a natureza.

No período medieval, a partir do século IV, o Direito Natural passa a ter sua nova
visão fundamentada em uma dimensão divina, como será analisada na sequência.

1.2 Direito Natural Teológico

O pensamento cristão, fundado na sagrada escritura (Bíblia), teve grande prestígio na


construção da teoria do Direito Natural. Para estabelecer uma idéia de justiça na cultura
ocidental, é imprescindível analisar a influência do pensamento cristão e sua evolução
histórica.

23
"O homem que for sábio está livre de afectos e paixões, basta a si mesmo e é temente a Deus, aspira ao Bem e
ao justo e é capaz de actuar segundo a natureza" (PEREIRA, 1993, p. 531).
31

Na Idade Média, o pensamento de Plantão foi retomado com Santo Agostinho


(patrística dos séculos V e VI). Mais tarde São Tomás de Aquino (escolástica do século XIII),
sofreu grande influência de Aristóteles.
O Cristianismo foi um passo largo da cultura antiga para medieval, pois permitiu
uma decisiva e fundamental distinção a respeito do ser humano. Até Cristo, o ser humano era
definido como um cidadão da polis, um animal político. Por influência cristã, o homem
passou a ser visto por sua dignidade humana.
O escólio de Ferraz Júnior (1994, p. 62) bem assinalou esse marco diferencial:

[...] um ser criado à imagem e semelhança de Deus que inscreveu no coração


do homem uma lei de consciência: o livre arbítrio. Por ser livre, o homem é
destinado à salvação. E para salvar-se há de se conformar à Ordem divina,
cuja expressão máxima é a lei.

Neste mesmo sentido, Bittar e Almeida (2011, p. 201) afirmam que:

[...] doutrina cristã e, citando Del Vecchio, ensinaram foi capaz de produzir
suficiente abalo no espírito humano que, apesar da doutrina de Cristo não ter
nenhuma conotação jurídica ou política e sim baseada nos princípios da
caridade, do amor e da fraternidade, provocou profundas transformações nas
concepções de direito e do Estado.

Com isso, Jesus Cristo esclareceu que existem diferentes ordens de leis, uma ordem
superior, irrevogável e imperecível, ou seja, as leis de Deus, e uma ordem circunstancial,
perecível, específica em função de cada povo e cultura, que são as leis humanas.
Estar diante de uma justiça divina, sujeito às ordens de Deus, explicam Bittar e
Almeida (2011), é estar diante de uma justiça presidida e aplicada pelo próprio Deus, que
julga cada um pelos seus atos, ou seja, estar diante de Deus no momento de seu julgamento é
apresentar a Deus suas obras e não seus títulos, suas honrarias, suas riquezas materiais, é
apresentar-se desnudo, revestido apenas de sua consciência, sua conduta e suas obras.
E essa é a responsabilidade do cristão. Segue a lição de Bittar e Almeida (2011, p.
206):

[...] o cristão não se ilude com as tentações do que é transitório, não age de
modo a desgostar do outro, guia-se e pauta-se de acordo com o que pode
fazer para melhorar sua condição pessoal e a de seu semelhante, vive na
carne tendo em vista o que é do espírito [...]. Aí está a liberdade de agir do
cristão; para além de considerar que o cristianismo constrange, sufoca,
oprime, predetermina, deve-se dizer que liberta a alma para ser conforme a
regra cristã.
32

Assim, o Direito Natural teológico teve forte apego ao conceito religioso de justiça.
Para essa doutrina, a verdadeira justiça está nas leis de Deus, único ser Onipotente, Onisciente
e Onipresente.
Deus é eterno e imutável24, sendo desenvolvida na Idade Média, essa crença marcada
pelo conteúdo teocentrista25, apresentando Jesus como único caminho, única verdade e única
via para a salvação da humanidade.
A principal inovação trazida nos ensinamentos de Jesus é o desprendimento de si
mesmo, pois amar somente os que nos amam, dizia Jesus, é muito fácil. “Tendes ouvido o que
foi dito: “Amarás o teu próximo e poderás odiar o teu inimigo. Eu, porém vos digo: amai
vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem”26.
A Justiça de Deus é um contraste aos esforços humanos de ganhar a justificação pelas obras
da lei. O apóstolo Paulo27 passa a descrever a justiça de Deus como aquela em que o Senhor
está pronto a outorgar a quem manifesta fé em Jesus Cristo.
Em Romanos 3:19-26, Paulo ensina que todos são pecadores e que todos pecaram,
sendo que ninguém poderá ser justificado perante Deus pelas obras da lei.

Porquanto pelas obras da lei nenhum homem será justificado diante dele;
pois o que vem pela lei é o pleno conhecimento do pecado justificado pela
fé. Mas agora, sem lei, tem-se manifestado a justiça de Deus, que é atestada
pela lei e pelos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para
todos os que creem; pois não há distinção. Porque todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs
como propiciação, pela fé, no seu sangue, para demonstração da sua justiça
por ter ele na sua paciência, deixado de lado os delitos outrora cometidos;
para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja
justo e também justificador daquele que tem fé em Jesus (BÍBLIA
SAGRADA, 2002, p. 1023).

Os mestres Bittar e Almeida (2011, p. 207), nesse sentido, escrevem:

A doutrina cristã, em sua pureza originária, está a indicar a tolerância


como sendo a ratio essendi do operar cristão. Isso quer dizer que se
24
Hebreus 13:8 “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e será para sempre” (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
25
É a visão de que Deus está no centro do universo. Está fundamentado no texto bíblico de João 14:6: "Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida".
26
Mateus 4:43-44 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
27
Paulo de Tarso, também chamado de Apóstolo Paulo, Saulo de Tarso e São Paulo, foi um dos mais influentes
escritores do cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa do Novo Testamento. A influência
que exerceu no pensamento cristão foi fundamental notadamente pela propagação inicial do Evangelho pelo
Império Romano.
33

mede o homem por suas obras, as quais deverão assinalar


benevolência, paciência, tolerância, caridade, compreensão, amor [...].

A doutrina cristã introduziu, como vimos, novas dimensões para a questão da


justiça, considerando a justiça humana como transitória, muitas vezes utilizada para os fins da
cobiça e do poder. A busca por Deus passa necessariamente por um desprendimento de si em
relação ao próximo (altero) no sentido de render amor incondicional, a exemplo da entrega de
Jesus Cristo à Igreja28. Dentro dessa filosofia, dois grandes movimentos se criaram: a
patrística e a escolástica.

1.2.1 Patrística

A patrística, nome que representa o movimento desenvolvido pelos Padres da Igreja


Católica ou Santos Padres entre os séculos II e VI, teve em Santo Agostinho seu maior
defensor. Esse movimento procurou aproximar a Teologia da Filosofia. Para Santo Agostinho,
o ser humano deve respeito, no convívio social das cidades, às leis terrenas (civitas terrana) e
leis celestiais (civitas caelestis). A primeira corresponde às leis do ser humano que vive em
um mundo de pecados, sem deixar de se submeter às leis celestiais, vindas do próprio Deus,
representadas na terra pelo Santo Padre.
Para esse filósofo patrístico, essas leis devem ser observadas em uma estrutura
escalonada desta forma: a lei de Deus, a lei natural e, depois, a humana. O "dar a Deus o que é
de Deus e a César o que é de Cesar" fundamenta-se no princípio da igualdade em dois níveis:
um referente à igualdade na "Cidade de Deus", portanto eterna e perene, e outra nà "Cidade
dos homens", temporária e instável.
A perfeita igualdade somente se opera na "Cidade de Deus", no mundo inteligível.
Todavia, na "Cidade dos homens" deve-se ordenar segundo a "Cidade de Deus", devendo ter
como fonte de referência a lei natural. Esse pensamento se aproxima da filosofia platônica do
mundo da ideias e do mundo dos sentidos. A "Cidade de Deus" representa aquele mundo,
enquanto a "Cidade dos homens", este.

28
Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos
inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele
faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes aos que vos amam,
que recompensa tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos,
que fazeis demais? Não fazem os gentios também o mesmo? Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso
Pai celestial. Mateus 5:43-48 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
34

Assim, na ordem humana, a lei eterna se mostra como um conjunto de essências, o


que se chama lei natural, que está inserta no coração de todo ser racional, cristão ou não,
como já havia escrito o Apóstolo Paulo.
Deus é o autor da lei eterna, sendo a lei natural uma manifestação da lei eterna no
coração dos seres humanos, sendo a lei natural é a lei eterna na alma do ser humano. A lei de
Deus para o homem tem sido proclamada pela consciência e pela Sagrada Escritura, sendo lei
eterna e inalterável.

Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas
que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a
obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua
consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os
(BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 1022)29.

Ora, quanto mais a lei humana se aproximar das leis inscritas no coração do homem
(lei divina que governa o todo universo), mais caminhará ao encontro da justiça na sua
plenitude. Nesse sentido, a lei humana deve regular o comportamento entre os seres humanos,
porém deve obediência à lei natural que corresponde à moralidade registrada na alma humana.
Essa moralidade é a perfeição de justiça, no sentido de dar a cada um o que é seu. A
perfeita justiça está em “amar o teu próximo como a ti mesmo”30. Assim, viver a justiça de
Deus é agir segundo a lei registrada nos corações dos homens que encontra sua perfeição na
máxima do amor ao próximo.

1.2.2 Escolástica

De outro lado o movimento escolástico é representado por Santo Tomás de Aquino,


influenciado pelo pensamento aristotélico31, doutrinando que a fé e a razão são diferentes
caminhos para se chegar ao conhecimento. A justiça é concebida como uma virtude, cujo
objeto é o direito.
O Direito, objetivo da justiça, não se confunde com a lei, pois esta é uma certa razão
do direito. Todavia, a lei humana (escrita) somente determina o justo se estiver em

29
Romanos 2:14-16 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
30
Nesse sentido: Lucas 10:27-28 “Respondeu-lhe ele: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda
a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo” (BÍBLIA
SAGRADA, 2002).
31
A fonte da teoria tomista da justiça como virtude específica é a Ética a Nicômaco de Aristóteles, no seu livro
V, onde a justiça se define como "o hábito com o qual se fazem coisas justas".
35

conformidade com a lei natural (ou não contrária) que, por sua vez, é a lei própria do ser
racional dirigida ao bem comum e que participa da lei eterna, que se dá como vontade do
criador nas criaturas (SALGADO, 1986, p. 66).
O que se quer dizer é que estudar a teoria tomista é refletir sobre três concepções de
leis: uma no sentido humano, outra no sentido natural e, outra ainda no sentido divino. A lei
divina é a razão de que deriva todo o universo, inclusive o ser humano.
A lei natural é o reflexo da lei divina no ser humano, uma participação racional da lei
eterna. E, por último, a lei humana concretiza a lei natural, fruto de uma convenção e de uma
necessidade, para manter a ordem e a paz social.
Assim, para São Tomás de Aquino, o Direito Positivo é necessário para, ao Direito
Natural, primeiro, dar a forma do direito no sentido restrito e próprio da palavra, para conferir
a ele a vis coativa, que a ele, como falta, falta.
As leis positivas são fundamentais para o convívio social harmônico. Para os
tomistas são dois os elementos essenciais que compõem o conceito de lei humana: razão e
bem comum. Nesse particular, os tomistas deixam evidente uma concepção de vontade que se
assemelha à desenvolvida por Kant que será objeto de análise adiante.
Em resumo, a lei positiva, sendo contrária à lei natural, produzirá um direito injusto,
ilegítimo e iníquo, produto da irracionalidade do homem. A desobediência da lei humana se
justifica quando houve afronte à lei divina, ou seja, o Direito Positivo é derivado do justo
natural, paradigma necessário do legislador. Na visão teológica, o Direito Natural tem uma
abordagem teocêntrica, isto é, Deus como última justificativa das leis humanas.
Enfim, esta concepção de Direito Natural prevaleceu até a chegada dos racionalistas,
especialmente a partir do século XV, cuja compreensão mais abrangente será o próximo
objeto de estudo.

1.3 Direito Natural racionalista - Escola Jusnaturalista

Conforme observado, a escola teológica do Direito Natural prezava pela existência


de uma lei divina (eterna) como paradigma da lei humana. Tal pensamento é marcante nas
concepções de Santo Agostinho (patrística) e Santo Tomás de Aquino (escolástica).
O século XVI inaugura um movimento de "laicização" da cultura moderna fundado
no conceito de que a verdade das ciência residia na razão matemática e geométrica, afastando
o teocentrismo predominante no pensamento anterior, dando lugar a uma concepção
36

iluminista da reta razão como orientadora das ações humanas. O homem passa a formular
questionamentos sobre a origem do conhecimento e se inserindo no centro do universo.
Nesse cenário, começa a ser desenhado o Estado moderno, liberal e democrático
através de movimentos contrários ao Estado absoluto medieval. O problema fundamental era
impedir o abuso do poder pelo soberano, buscando soluções para, senão impedir, limitar o
poder.
Bobbio (1992, p. 15) identifica três grandes grupos desse movimento contra o abuso
do poder:

1) Teoria dos direitos naturais ou jusnaturalismo. Para esse movimento, o


poder do Estado tem um limite externo que decorre do fato de que, além do
direito proposto pela vontade do príncipe (Direito Positivo), existe um
direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertencente ao
indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens,
independentemente da participação desta ou daquela comunidade política.
Esses direitos são os direitos naturais que, preexistindo ao Estado, dele não
dependem, e, não dependendo do Estado, o Estado tem o dever de
reconhecê-los e garanti-los integralmente. Os direitos naturais constituem
assim um limite ao poder do Estado, pelo fato de que o Estado deve
reconhecê-los, não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos
cidadãos o seu livre exercício. O Estado que se modela segundo o
reconhecimento dos direitos naturais individuais é o Estado liberal, no
sentido originário da palavra.

2) Teorias da separação dos poderes, no sentido de que a massa do poder


não pode ser concentrada numa só pessoa, mas dividida em diferentes
pessoas com funções estatais específicas de legislar, executar e julgar (Poder
Legislativo, Executivo e Judiciário), independentes e harmônicos entre si.
3) Teorias da soberania popular ou democracia, opondo-se ao Estado
absoluto do príncipe pela participação de todos os cidadãos na distribuição
do Poder. Fundamenta-se no consenso popular para evitar os abusos.

Dentro destas três concepções se desenvolve o pensamento político dos séculos XVII
e XVIII até Kant. Assim se estabelece o Direito Natural racional, livre das concepções mítico-
religiosas, buscando seu fundamento último na razão humana. Podemos então dividir o
Direito Natural em duas fases bem distintas.
A primeira fase, também chamada clássica, com início na Grécia (Cidade-Estado),
usando a natureza com fonte da lei que erradia a mesma força em todas as partes,
indistintamente.
37

A segunda fase, inaugurada por Hugo Grócio32, defendia que o princípio último de
todas as coisas seria a reta razão, afastando-se Deus e a natureza dessa concepção
centralizadora, contudo sem alterar as convicções sobre a própria existência de Deus.

1.3.1 Hugo Grócio

O pensamento acerca do Direito Natural de Hugo Grócio está estampado na obra Do


direito da Guerra e da Paz, de 1625, considerada por muitos como obra mestre do Direito
Natural por atribuir ao termo "Direito" três sentidos: Direito como justo; Direito como
faculdade ou aptidão; e Direito como sinônimo de lex. Para Grócio, um sistema de Direito
Natural poderia ser racionalmente construído gozando de validade universal tal como as leis
da Matemática.
Tanto assim que justifica ser o Direito Natural tão imutável como também o são as
equações matemáticas e própria vontade de Deus. Grócio assim define o Direito Natural: “O
mandamento da reta razão que indica a lealdade moral ou necessidade moral inerente a uma
ação qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional" (BITTAR;
ALMEIDA, 2011, p. 279).
Muito embora tenha uma imagem de defensor do Direito Natural escolástico, Hugo
Grócio representa uma passagem para o período seguinte, ou seja, o Direito Natural
racionalista, sem rejeição à existência do mandamento divino fora da esfera do Direito.
Macedo (2006, p. 33), comentando o assunto, afirmou:

Ambiguidade permeia toda a leitura de Grócio. A sua teoria de Direito


Natural afasta-se dos preceitos escolásticos e oferece uma alternativa ao
ceticismo de Montaigne e Pierre Charron. Vontade e razão, universalismo e
individualismo, teísmo e laicismo conjugam-se sem exageros nos escritos de
Grócio; o que se poderia especular sobre a fidelidade deste ao meio-termo
aristotélico como método para conciliar tradições tão antagônicas. À época
de Grócio, entretanto, a revolução moderna ainda estava por nascer ou
nascendo, e essa contraposição só seria patente mais tarde.

Inaugura-se a escola clássica do Direito Natural sendo imperioso admitir que o


Jusnaturalismo33 abriga diversos autores e ideias, inúmeros representantes que irradiaram seus

32
Hugo Grócio ou Hugo Grotius foi um jurista a serviço da República dos Países Baixos. É considerado o
precursor do Direito internacional, baseando-se no Direito Natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta e um
grande nome da apologética cristã. Suas ideias exerceram notável influência sobre o pensamento racionalista e
iluminista do século XVII (MACEDO, 2006).
33
Jusnaturalismo: escola que estuda o Direito Natural. O Direito Natural é objeto de estudo do Jusnaturalismo.
38

conhecimentos por séculos, filósofos como Pufendorf, Hobbes, Leibniz, Locke, Kant e
Rousseau.
Na lição de Bittar e Almeida (2011, p. 09), se o iluminismo introduziu alguma
contribuição definitivamente importante para a história contemporânea, esta contribuição foi a
ideia de que não há indivíduos autônomos se não houver espaço para o desenvolvimento da
razão emancipatória, se não houver espaço para a razão e para a crítica. Razão e crítica
significam liberdade. Ora, se essas ideias encontram sua consagração em Kant, não é de
menos importância ressaltar que fora da razão, ou se está à pura mercê do determinismo
natural, ou se está à pura mercê da promessa teológica.
Noberto Bobbio (Bobbio, 1992, p. 38) ensina que as doutrinas do jusnaturalismos
podem ser divididas em duas grandes categorias:

1) as que, na passagem do estado de natureza para o estado civil, consideram


extintos os direitos naturais, ou pelo menos transformados, e segundo as
quais então o estado civil se sobrepõe completamente ao estado natural, até
suprimi-lo (Hobbes e Rosseau);

2) as que, na mesma passagem, consideram conservado o que existe de


melhor no estado de natureza, e apresentam o estado civil não como uma
substituição do estado de natureza, mas como a sua mais plena e eficaz
conservação. Tanto Locke quanto Kant pertencem a este segundo grupo.

Assim, o jusnaturalismo racionalista adotava a razão humana como um código de


ética universal, presente no ser humano em todo momento e em todo lugar. A razão é inata ao
ser humano. Tem base antropocêntrica, vale dizer, com fundamento em uma razão humana
universal. Nesse passo, apartou-se o discurso metafísico, adotando-se a razão humana como
ordenadora da vida social.

1.3.2 Thomas Hobbes

O modelo jusnaturalista racionalista tem em Thomas Hobbes (1588-1679)34 a teoria


política que pensa os fundamentos da vida social a partir do estado de natureza, fulcrado na
dicotomia “estado de natureza” e “estado civil”. No “estado de natureza”, os seres humanos

34
Thomas Hobbes é considerado ao lado de Jean-Jacques Rousseau um expoente do pensamento jusnaturalista.
Nasceu em 1588, na Inglaterra, em Malmesburg, onde viveu o conturbado período da guerra civil inglesa.
Assim, é fortemente influenciado pelos acontecimentos políticos ingleses do século XVII, conflitos políticos e
religiosos e pelas recentes descobertas de novos continentes.
39

são isolados e são iguais e livres entre si. Há a transição entre o “estado de natureza” para o
“estado civil” através do contrato consensual entre seres humanos livres.
Este filósofo inglês procurou fundamentar a autoridade do governante fora da
natureza, como, aliás, fez Aristóteles, afastando o direito divino dos reis para fundamentar o
seu pensamento.
Assim, o Estado não é resultado da natureza humana e a autoridade do rei não é obra
de Deus, pensamento daqueles que acreditavam que todo poder emana de Deus e é exercido
pelos reis. Pelo contrário, para Hobbes o Estado é artificial e a autoridade do governante é
proveniente de um pacto entre os seres humanos. Percebe-se que seu pensamento tem suporte
na tese aristotélica de ser humano como ser apto para a vida social.35
Sua tese parte de que todo o ser humano busca a companhia dos outros por dois
motivos: por glória ou por lucro. Extrai-se que o ser humano não tem amor natural pelo outro
ser humano36, antes pelo contrário, os seres humanos são levados a agir motivados por
paixões que determinam suas ações.
Para este filósofo, os seres humanos no estado de natureza37 gozam de igualdade na
parte corporal e intelectiva (corpo e inteligência). Por haver igualdade natural, há uma
predisposição humana pelo desejo das mesmas coisas.
Assim quando dois seres humanos desejam a mesma coisa eles se tornam inimigos e
dessa inimizade nasce a desconfiança. O resultado final é a guerra de todos contra todos. O
Direito Natural hobbesiano é o direito que cada ser humano tem de usar dos meios que achar
convenientes para proteger a própria vida, garantindo a sua existência.
O medo da morte e a esperança de uma vida confortável fazem com que o ser
humano racionalmente procure a paz. O ser humano se associa por algum interesse e não pelo
amor, sendo o Estado um meio de atingir, de satisfazer esse interesse.
Na primeira parte do Leviatã38, Hobbes compara o corpo social à estrutura do corpo
humano. Resulta dessa comparação de que o Estado seria o ser artificial e o principal objetivo
deve ser o de garantir “proteção” e “defesa” ao corpo natural daqueles que juntos formam esse

35
Esses pensamentos estão estampados em duas obras de Hobbes: De cive (Do cidadão) de 1642 e Leviatã de
1652.
36
Nesse particular, contrapõe a tese de Cícero de que os seres humanos naturalmente amam os outros da mesma
espécie.
37
Para Hobbes, o estado de natureza é o estado pré-social dos seres humanos, ou seja, é a situação do ser
humano fora do estado civil, fora da sociedade.
38
O Leviatã é uma criatura mitológica, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos
navegantes europeus da Idade Moderna. Hobbes fez uma comparação ao governo central que seria uma espécie
de monstro - o Leviatã - que concentraria todo o poder em torno de si, e ordenando todas as decisões da
sociedade.
40

corpo artificial, ou seja, os súditos. Prossegue o autor na analogia de que a alma artificial é a
soberania do Estado.
Isso somente é possível através de um pacto social entre os seres humanos, chamado
de contrato, pois o direito a todas as coisas é contrário ao direito da paz, tornando-se
imprescindível o cumprimento do contrato social para garantir a transferência do Direito
Natural e, por consequente, do direito a todas as coisas, para um ser central (Estado). Essa
transferência mútua de direito dará origem ao Estado.

1.3.3 Samuel Pufendorf

Para Samuel Pufendorf39, a regra fundamental do Direito Natural é que todos têm o
dever de preservar a comunidade e de servir ao todo social. Usando da reta razão, o homem
deve se conduzir perante Deus, perante si mesmo e perante os outros. Assim três são esses
deveres: 1. não prejudicar o outro; 2. considerar o outro como igual em direito; 3. ser útil aos
outros, tanto quanto possível (SALGADO, 1986, p. 73).
Sobre as diversas leis que regem o homem, Pufendorf (2007, p. 47) apud Bittar e
Almeida (2011, p. 283), assim, ministrou:

As leis da natureza fazem do homem um animal social, as de cada cidade


fazem do homem um cidadão, e, as divinas, determinam a condição do
cristão perante Deus. As diversas leis são concomitantes e agem em níveis
diversos na determinação da vida. A diversidade dessas leis dá consistência
às ciências que a estudam, a ciência do Direito Natural, a ciência do Direito
Civil e a Theologia moralis.

Samuel Pufendorf é considerado um nome importante na formação da concepção de


Justiça e do direito de Kant, colocando-se como precursor deste filósofo.

1.3.4 John Locke

Ao encontro do pensamento de Hobbes, vem John Locke40, não obstante ter uma
visão diferente do estado de natureza do homem. Não há, nesse estado, uma guerra de todos

39
Samuel von Pufendorf foi um dos defensores da corrente jusnaturalista, tendo os seus escritos influenciado de
forma duradoura o ensino do Direito na maioria da Europa.
40
John Locke está entre os filósofos empiristas, assim chamados devido a abrirem espaço para a ciência junto à
filosofia, valorizando a experiência como fonte de conhecimento. John Locke destaca-se pela sua teoria das
ideias e pelo seu postulado da legitimidade da propriedade inserido na sua teoria social e política. Para ele, o
41

contra todos, mas um estado de paz perpétua. Essa paz seria aniquilada pelos constantes
conflitos sem a presença de um juiz imparcial.
No pensamento lockeano, há espaço simultâneo no Estado Civil com o Estado de
Natureza. Bittar e Almeida (2011, p. 96) bem observaram que:

O Estado Civil é erigido para garantir a vigência e proteção dos direitos


naturais que correriam grande perigo, no estado de natureza, por
encontrarem-se totalmente desprotegidos. Assim, é a guerra e a desordem
que ameaçam os homens e os motivam a formar as regras que constituem o
modo de vida regido pelo Estado e pelas leis.

Para Locke, o Estado Civil tem por finalidade garantir a proteção dos direitos
naturais que corriam perigo no estado de natureza. Crítico severo do inatismo41, John Locke
entende que as leis naturais não são inatas e impressas na mente humana, antes estão na
natureza e podem ser facilmente conhecidas pelo uso da razão. A razão natural do homem é a
sua própria preservação.
Assim, afirma esse filósofo que o primeiro e inalienável Direito Natural é a
propriedade, algo que o homem possui desde o estado de natureza. O segundo é a liberdade, a
qual define em dois aspectos: a liberdade natural, no sentido de submeter somente à lei da
natureza como regra, e a liberdade na sociedade, submetendo apenas ao que se estabelecer por
consentimento da comunidade.
Para Bobbio, este é o ponto característico da doutrina de Locke, que o coloca como
um representante típico do estado burguês, baseado no reconhecimento da propriedade como
um Direito Natural.
Assim, ministra Bobbio (1992, p. 38):

Dizer que a propriedade é um Direito Natural significa que o direito de


propriedade não deriva do estado, precede qualquer constituição civil, é um
direito que caba ao indivíduo independentemente do Estado. Para Locke, o
direito de propriedade é um Direito Natural porque não segue, como para
Hobbes, da lei do estado, e, portanto, deriva da constituição civil, e nem de
um livre acordo ente indivíduo no estado de natural, como para Puffendorf,
mas surge de uma atividade pessoal do indivíduo, e esta atividade pessoal do
indivíduo é o trabalho.

direito de propriedade é a base da liberdade humana "porque todo homem tem uma propriedade que é sua
própria pessoa". O governo existe para proteger esse direito.
41
Ideia segundo a qual o ser humano tem estampado em si todo o conhecimento, sendo que o escopo da
Filosofia é tão somente despertá-lo.
42

Para Locke, o estado civil nasce do desejo do homem em dar guarida aos direitos
naturais fundamentais da vida e propriedade. Em outras palavras, para Locke os direitos
naturais são ditados pela razão, não podendo ser contrapostos pelo "estado civil", criado
justamente para conservar esses mesmos direitos sem, contudo, renunciá-los, como pensava
Hobbes.
A criação do estado civil deve-se dar pelo consenso, acordo com outros homens. O
estado civil é essencialmente limitado, pois pressupõe os direitos naturais e não pode violá-
los, exercendo o poder dentro dos limites estabelecidos.
Para Locke, em última análise, no estado de natureza o homem tem direitos naturais,
mas eles não estão garantidos. No estado civil, o homem não perde os seus direitos naturais,
mas os conserva garantidos pelo poder supremo, uma vez que o fim fundamental do Estado é
conservar os próprios direitos naturais.

1.3.5 Jean-Jacques Rousseau

Depois veio Rousseau42, considerado um dos últimos jusnaturalistas. Partindo de


conceitos formulados anteriormente acerca do estado de natureza, estado civil, contato social,
liberdade e propriedade, Rousseau trouxe um estudo sobre a origem da autoridade.
Contemplou a vontade geral como fundamento da liberdade.
A alternativa que estava colocada na mente dos jusnaturalistas era a seguinte: ou a
anarquia no estado natural ou a servidão no estado civil. O estado natural era um estado de
liberdade, mas levava à guerra de todos contra todos; o estado civil era um estado de paz e de
segurança, mas admitia a obediência dos súditos até a opressão (BOBBIO, 1992, p. 44).
A solução do problema é buscada por Rousseau na fórmula do contrato social, para
quem a origem e evolução do ser humano explicam seu atual estágio, já que na origem os
seres humanos viviam isolados, livres e felizes.
Não vivendo em sociedade, os problemas dos seres humanos limitavam-se quanto à
alimentação e reprodução. Havia, neste momento, um amor-de-si, ou seja, um amor na
própria espécie. Sendo perfectível, o ser humano evoluiu com o passar dos tempos,
necessitando da ajuda de outros seres da mesma espécie para fazer coisas mais complexas,
notadamente pela união do casamento. Nesse momento forma-se a sociedade.

42
Jean-Jacques Rousseau (nasce em Genebra, 28 de Junho de 1712 — morre em Ermenonville, 2 de Julho de
1778) foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. É considerado um dos
principais filósofos do Iluminismo e um precursor do Romantismo.
43

Segundo o autor, na medida em que o gênero humano se expandiu, as dificuldades se


multiplicaram com os seres humanos. Junto com a evolução e suas dificuldades, o ser humano
experimenta um processo lento e progressivo de degradação do Ser.
A vaidade é estabelecida no coração do ser humano pelo sentimento de comparação
com os outros. Percebe-se que somente há vaidade pela convivência em sociedade, não
existindo quando os seres humanos viviam isolados. A reciprocidade da vaidade gerou o
desprezo. Vaidade e desprezo recíprocos culminaram na vingança, tornando o ser humano um
ser cruel.
O contrato social nasce, então, de uma necessidade imperiosa de proteção e de
garantia da liberdade existente no estado de natureza. Em outras palavras, proteção esta na
plena realização daquilo que o homem teria no estado de natureza. Esse contrato social
origina-se na vontade geral no desiderato de realizar o bem comum. Portanto, os direitos civis
originam-se após o advento do contrato social.
Todavia parece haver no pensamento rousseauniano uma contradição aparente. A
convenção social não é o fim dos males, antes persiste a tormenta humana. É que a passagem
do estado de natureza para o estado civil se dá com a cessão das liberdades individuais ao
Estado, derivado do contrato social.
Todavia, os direitos civis (decorrentes do estado civil), por representarem uma ordem
jurídica justa, legítima própria do estado de natureza, devem alcançar os chamados direitos
naturais. Direitos civis são, portanto, os direitos naturais declarados pelo Estado, ou seja, o
contrato social tem seu limite nos direitos naturais. Nisso reside a tormenta, quando os
direitos civis tornam-se ilegítimos e arbitrários na medida em que distancia do Direito
Natural.
Em um jusnaturalista como Locke, o contrato que dá origem ao Estado não é ato de
renúncia total aos direitos naturais43; para Hobbes, o contrato é uma renúncia e de
transferência dos próprios direitos naturais em favor de um terceiro (o soberano). Rousseau se
filia ao pensamento de Hobbes, todavia enquanto para este a alienação acontece em favor do

43
Locke parte da definição do Direito Natural como direito à vida, à liberdade e aos bens (propriedade privada)
necessários para a conservação de ambas. No pensamento político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade
privada não é um Direito Natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no estado de natureza (em Hobbes)
e no estado de sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que
nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um
decreto do soberano.
44

soberano44, para Rousseau a alienação acontece em favor da comunidade inteira, ou do corpo


político, o qual é a manifestação suprema da vontade geral.
Renuncia-se à liberdade no Estado de natureza para reencontrá-la no estado civil, que
é a liberdade civil (BOBBIO, 1992, p. 47).
Segundo Bobbio (1992, p. 48):

[...] a liberdade natural é liberdade no sentido de ausência de leis; a


liberdade civil é liberdade no sentido de submissão somente àquelas leis que
cada um dá a si mesmo. O homem natural é livre porque não tem leis; o
homem civil é livre porque somente obedece às leis que dá a si mesmo. Se
identificarmos a faculdade de fazer leis para si mesmo como um conceito de
"autonomia", podemos dizer que o homem no estado civil é livre porque é
autônomo.

Pode-se dizer que Rousseau é o último grande jusnaturalista de sua época, inspirando
seu pensamento nos ideais da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Nesse diapasão, afirma Bobbio (1997, p. 72):

Quando, no início do Contrato social, Rousseau escreveu as fatídicas


palavras o homem nasceu livre, e por toda parte encontra-se em cadeias,
indicou na liberdade das cadeias, no ideal da liberdade, o sentido da história.
A Revolução Francesa apareceria a seus grandes contemporâneos como a
primeira e entusiasmante realização desse ideal (ainda que nem sempre plena
e justa, como todos os seus execráveis horrores).

Em última análise, a teoria de justiça de Rousseau deve ser lida com olhar crítico no
respeito à natureza humana, produto da vontade racional de todos para todos, "a fim de se
conservarem socialmente íntegros os direitos que o homem por natureza possui" (DEL
VECCHIO, 1979, p. 121).
Assim, para Rousseau a sociedade evoluiu para um estado de guerra; para defender-
se das opressões vindouras e proteger os que eram seus, os seres humanos firmaram um
contrato social, segundo o qual cada um, ao se dar a todos, não se dá a ninguém e, não existindo um

44
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O
fundamental é a determinação de quem possui o poder ou a soberania, desde que se respeite dois direitos naturais
intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e
a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como
vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre e corpo político de cidadãos. Assim sendo, o governante não é o
soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil: aceitam
perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela
se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa
chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.
45

associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si, ganha-se o equivalente
de tudo que se perde e mais força para conservar o que se tem.

1.4 Direito Natural em Immanuel Kant

Outro brilhante pensador racionalista foi Immanuel Kant45, filósofo iluminista que,
ao discutir sobre a moral humana, trouxe novos rumos para as teorias da moralidade até então
elaboradas.
Significativas mudanças ocorreram no século XVII, notadamente pela Revolução
Científica que impuseram significativas transformações estruturais no pensamento filosófico,
ante a prevalência do Racionalismo.
Doravante, as explicações teológicas e metafísicas deram lugar às ideias
iluministas46, servindo de fundamento a diversas revoluções liberais, dentre elas à Revolução
Francesa. Esse movimento trouxe novos contornos à teoria da moralidade, tendo como um de
seus principais pensadores o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).
Por sua vez, a teoria da moralidade de Kant trouxe uma concepção inovadora, a da
autonomia da vontade47. Referida formação teórica, fundamentada na lei moral, explicou a
moralidade como um elemento interno do homem que o direciona necessariamente a uma
conduta moral, salvo se estiver sujeito a uma vontade viciada, independentemente da
imposição de leis por um agente externo.
Ao comentar sobre Newton e Rousseau, Kant diz que Newton descobriu a lei oculta
que organizava o mundo físico; ao passo que o último explicou a desordem no mundo moral,
mostrando que a culpa não é de Deus e sim dos homens. Assim, se Newton mostrou a lei
oculta revelando uma ordem divina no mundo natural, Rousseau fez algo semelhante para o
mundo moral.
Entretanto, para Rousseau, a única forma de criar a ordem seria a formação de um
contrato social, mas Kant não concorda com esse posicionamento, pois ele contradiz a sua

45
Immanuel Kant (nasce e morre em Königsberg, 22 de abril de 1724 / 12 de fevereiro de 1804) foi um filósofo
prussiano, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna,
indiscutivelmente um dos pensadores mais influentes.
46
Movimento intelectual da Europa dos séculos XVII e XVIII. Uma atitude geral de pensamento e de ação
fundado no domínio da razão sobre a visão teocêntrica, a fim de combater a intolerância e os abusos da Igreja e
do Estado.
47
Para Kant, é impossível um discernimento empírico do aspecto da vontade que fundamenta a autonomia. Kant,
assim como Locke, distingue prazer de desejo. O prazer é um sentimento agradável causado por elementos
externos, o desejo é um impulso em direção a alguma coisa, mas que nada informa sobre o que nos move. Kant
construiu a vontade como sendo a exigência racional de consistência na ação. A vontade serve para testar nossa
moral frente a um desejo clamoroso, proporcionando um motivo para resistir a ele e satisfazer a moral.
46

ideia de que a moralidade pode ser conhecida por meio de um olhar interno,
independentemente do que se aprenda nos livros. Não seria necessário um legislador que
imponha leis aos homens como Deus o faria, necessidade que é defendida por Rousseau
(SCHNEEWIND, 2005, p. 534-535).
Na verdade, esta é a principal diferença entre a moralidade de Kant e a de Rousseau:
embora ambos acreditassem na capacidade moral de todas as pessoas, Rousseau somente
entendia possível tal capacidade dentro de um contrato social, enquanto Kant percebia a
moralidade em qualquer circunstância ou sociedade.
As concepções da moralidade como obediência tinham dois componentes essenciais:
um referente à posição humana em relação a Deus, pelo qual os homens deveriam demonstrar
reverência e gratidão antes de obedecerem às Suas ordens; outro quanto às habilidades morais
humanas, segundo o qual a maioria das pessoas são incapazes de pensar, necessitando de uma
orientação moral adequada, devendo se submeter a poucos excepcionais a quem Deus
permitiu entender, seguir e ensinar Suas ordens morais. Os filósofos que defendiam a
moralidade como autogoverno faziam repetidos esforços para quebrar essas duas ideias.
Kant foi criado na concepção filosófica da moralidade como autogoverno, que fazia
esforço para superar as concepções da moralidade como obediência.
Destaca Schneewind (2005, p. 560):

A autonomia kantiana pressupõe que somos agentes racionais cuja liberdade


transcendental nos tira do domínio da causação natural. Ela pertence a todo
indivíduo, no estado de natureza e também na sociedade. Por meio dela, cada
pessoa tem uma bússola que permite “à razão humana comum” dizer o que é
consistente e o que é inconsistente com o dever. Nossas habilidades morais
tornam-se conhecidas de cada um de nós devido ao fato da razão, à nossa
consciência de uma obrigação categórica que podemos respeitar em
contraposição ao atrativo do desejo.

Então, no pensamento kantiano, a razão humana não se sujeita aos fatores da


natureza, ou seja, aos fatores empíricos, e pertence a todos, constituindo, assim, uma razão
comum que permite a cada um saber exatamente o modo correto de agir, independentemente
do atrativo do desejo. Logo, a autonomia é uma característica geral do ser humano, que
proporciona a autodeterminação dele conforme uma vida digna e ética.
47

1.4.1 Moralidade como autonomia

Dentro da concepção de autonomia de Kant, somos livres porque detemos o


conhecimento da lei moral e podemos sempre agir conforme a mesma: embora na prática o
homem possa ceder aos seus desejos e agir contra a lei moral, nunca poderá se enganar no
sentido de que não sabia que o dever moral lhe impunha atitude diversa.
De maneira geral, verificou-se que a concepção de moralidade como autonomia tem
origem nas discussões de uma teodiceia, ou seja, de uma teoria que buscasse determinar a
possibilidade e as razões de uma suposta existência de Deus.
Como visto, Kant nunca negou que a existência de Deus era possível, pelo contrário,
mesmo em sua teoria moral madura trouxe o incondicionado como pressuposto de
aplicabilidade prática da lei moral.
A existência de Deus foi um tema filosófico investigado em profundidade através
dos tempos, seja pela negação absoluta, como a feita por Friedrich Nietzsche, seja por uma
crença filosófica base, como na obra de Santo Tomás de Aquino. Os pensadores muito
discutiram sobre o papel de Deus no plano concreto e a tradução de seus supostos objetivos na
alma humana.
Assim, quando se fala em moral, necessariamente o aspecto da divindade é abordado.
Na obra de Kant, tanto em suas origens quanto em sua construção teórica solidificada, não foi
diferente. Antes de conceber a moralidade como autonomia, Kant elaborou sua teodiceia, isto
é, uma teoria que explica de modo racional a justiça e a natureza de Deus.
Essa construção teórica influenciou de maneira relevante o seu pensamento moral,
essencialmente sob o aspecto de Kant ter considerado possível a existência de Deus, embora
ela não seja essencial para a moralidade.
Partindo, pois, de uma base teológica, da mesma forma que a existência do mundo
físico pode ser explicada pelas Leis de Newton, a criação do universo a partir da matéria bruta
pode ser explicada levando-se em consideração a existência de Deus.
Ao se conceber a existência de Deus, Sua posição de criador do universo lhe confere
os atributos da perfeição, da infinitude e da independência de qualquer coisa externa a Ele. Se
se lançar mão dos princípios aristotélicos da identidade e da não-contradição, chegar-se-á à
conclusão de que, sendo Deus o Ser de seres, perfeito por definição, o mundo por Ele criado
deve exibir a Sua glória, sendo também perfeito.
48

Kant rejeita o voluntarismo48, que afirma que Deus deve ser incompreensível em
certos aspectos, e lança mão do entendimento de que a natureza divina deve ter como móvel
um e somente um princípio que permita à criação ser o resultado da natureza interna divina
(bondade e perfeição). Tal princípio informa que Deus age de maneira autônoma.
Para os antivoluntaristas, o voluntarismo impedia o amor a Deus e prejudicava o
discernimento moral comum das relações humanas: “uma moralidade composta de tirania e
servilismo só pode ser evitada se Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos
membros sejam mutuamente abrangentes por aceitarem os mesmos princípios”
(SCHNEEWIND, 2005, p. 554-555).
Assim, segundo os fundamentos antivoluntaristas, a moralidade envolve princípios
que são válidos tanto para Deus como para nós; Deus e nós temos motivação similar para a
ação, de forma que ambos agimos livremente segundo uma mesma regra; não é válido o
pensamento de dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, nem que este
outro seja Deus; Deus é essencial à moralidade (afirmar o contrário seria ateísmo), mas não é
o seu criador.
Dentro do pensamento antivoluntarista se encontra uma afirmação de que Deus não é
o responsável pelo agir moral dos homens, porque os homens possuem a mesma capacidade
moral que Ele, não ocorrendo uma imposição externa das regras da moralidade. De acordo
com o exposto, qualquer concepção de moralidade como obediência seria absurda.
Kant compartilha com os antivoluntaristas a rejeição ao servilismo e a admissão de
Deus como essencial à moralidade. Kant e os antivoluntaristas em geral:

[...] atribuem a Deus a tarefa de nos garantir que vivamos em um universo


moralmente ordenado, em que a virtude seja finalmente recompensada e o
vício punido. Somente em um mundo desse tipo a moralidade faz sentido
para criaturas livres e inteligentes, porém carentes e dependentes
(SCHENEEWIND, 2005, p. 556).

Então, na concepção antivoluntarista, o papel de Deus não é o de criar a lei da


moralidade e impô-la aos homens, mas sim de proporcionar um mundo no qual seja mais
adequado viver de acordo com a lei moral, ainda que eventual punição por algum vício
cometido ocorra num plano universal e atemporal, isto é, fora do âmbito terreno.

48
O voluntarismo, doutrina de que Deus cria a moralidade por um decreto da vontade, foi fundamental para o
desenvolvimento da filosofia moral moderna, pois foi a partir desse aspecto teológico que se iniciaram os
questionamentos dos defensores da moralidade como autogoverno, que são antivoluntaristas (Hume, Bentham,
alguns pensadores franceses radicais) (SCHNEEWIND, 2005, p. 554).
49

De certo modo, aqui se encontra uma das bases para a construção da teoria moral
kantiana, que coloca Deus e o homem como seres autônomos, guiados por uma lei moral
comum existente em cada ser, divino ou não, de maneira individualizada e adaptável às
situações concretas.
Kant afirma que as leis mecânicas do universo e a construção das possibilidades por
Deus promovem a perfeição do mundo (do mundo natural). Em tal contexto, o homem
apresenta uma natureza diferente das coisas mecânicas.
O homem e os demais seres racionais, os habitantes de outros planetas, os anjos e
até mesmo Deus, apresentariam uma alma imortal. No que se refere ao ser humano, após a
morte ele seria libertado do jugo da carne, sofrendo uma transformação em seu ser de forma a
comungar com o Criador a verdadeira felicidade (SCHNEEWIND, 2005, p. 541-542).
Enquanto não sofre tal transformação, o homem, pelo exercício da inteligência, é
capaz de resistir aos desejos da carne. Os seres racionais seriam mais ou menos morais de
acordo com a força com que a matéria atuasse sobre a alma.
Kant encontrara a explicação do mundo físico por meio das leis de Newton. Se o
mundo físico é composto por átomos, elaborados individualmente por Deus e dotados de
movimentos internamente determinados, criando as grandes belezas, utilidades e harmonias
do mundo natural, a teodiceia de Kant se pergunta se há no mundo moral o mesmo princípio
do físico, pelo qual o moral se sujeita à ação independente de suas unidades constituintes,
gerando a perfeição.
Mas a inteligência do ser racional leva à conclusão de que ele é feito de uma alma,
que se coloca em uma ordem de valor acima das coisas físicas. Dessa forma, no mundo moral,
suas unidades não agem de maneira independente, pois nele estão envolvidos agentes que
possuem alma, que deverão agir de maneira correta para gerar a perfeição.
Comparando-se o átomo, no mundo das coisas, ao ser racional, no mundo moral,
tem-se que Deus criou as possibilidades para os seres racionais, incutindo em cada um sua
essência divina, que o capacita a realizar as possibilidades no mundo moral: o livre arbítrio do
homem, a sua liberdade, revela-se na obediência à lei que ele prescreve para si mesmo, mas
essa lei é uma lei moral, independente da concepção do que seja bom ou ruim.
Tal escolha deriva da essência divina comum entre Deus e o homem e, como o que
vem das decisões de Deus é sempre perfeito, o que resulta das escolhas autônomas dos
homens é, de maneira necessária, moralmente bom.
Disso resulta que não há fatores externos a tolher a vontade de Deus e, por via de
consequência, as escolhas humanas autônomas independem de qualquer coisa externa.
50

Portanto, o exercício do livre arbítrio é responsabilidade nossa, não se podendo computar à


natureza a responsabilidade por não sermos sempre bons (SCHNEEWIND, 2005, p. 544).
Então a bondade humana está relacionada com a existência de um princípio racional
comum entre Deus e o homem, o que proporciona uma ação necessariamente perfeita. O
descumprimento do que esse princípio determina levará à imperfeição, mas não por força da
natureza ou de outro fator externo, e sim por uma escolha individual. Nesse contexto, Kant
definiu vida como sendo a capacidade interior para se autodeterminar através de um poder de
escolha.
Tratando do assunto mais especificadamente, de acordo com Kant (2005, p. 48), a
liberdade é a base das leis morais, logo, as leis práticas são possíveis apenas porque há
liberdade e esta, por sua vez, é necessária porque aquelas leis existem como postulados
práticos. Por isso, nas palavras de Kant (2005, p. 49), “a lei moral é, na realidade, uma lei de
causalidade pela liberdade e, portanto, da possibilidade de uma natureza suprassensível".

1.4.2 Imperativos morais

A maior originalidade de Kant se concentrou na criação de um único princípio


formal capaz de levar ao agir moral, o que se verifica em seu método ético, resumido na lei
fundamental da razão pura prática: “age de tal modo que a máxima de tua vontade possa
valer-te sempre como princípio de uma legislação universal” (KANT, 2005, p. 32).
Importante é analisar alguns aspectos das notas de Kant que formaram as origens da
concepção de moralidade como autonomia. Nelas, Kant distingue dois tipos de necessidade
objetiva na ação: necessidade condicional, que “é hipotética e se os apetites individuais que
são considerados condições para uma ação forem reais, trata-se de uma necessidade de
prudência”; e necessidade categórica, que “não é tão envolvida quando esta”
(SCHNEEWIND, 2005, p. 530).
Vale lembrar que, em sua teoria, o filósofo fez distinção entre o imperativo
hipotético e o categórico. Segundo Kant (2005, p. 20-21), os imperativos49 são regras

49
Imperativos são, portanto, a forma de um princípio ou expressão da lei para o ser humano. A lei moral só se
transmuda em dever ser, para o ser que se constitui razão e sensibilidade, de liberdade e de necessidade. O dever
ser (e por isso imperativo, sua expressão) não tem sentido para um ser puramente racional ou cuja vontade fosse
exclusivamente pura; somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinações sensíveis
pode ser destinatário de um comando que se expresse de forma imperativa: "tu deves" (SALGADO, 1986, p.
211).
51

designadas por um dever ser50 capaz de provocar a ação adequada, dividindo-se em


hipotéticos e categóricos51; constituindo os hipotéticos meros preceitos de habilidade, ou seja,
um pensamento condicionado, existente apenas por conta de um efeito visualizado; e os
categóricos preceitos absolutos e incondicionados, válidos sem condições subjetivas.
Em outras palavras, uma vez dito que as leis de conduta humana são preceitos, no
pensamento kantiano há duas espécies desses preceitos: categóricos e hipotéticos. Categóricos
são os que prescrevem uma ação boa para si mesma, como exemplo: "você não deve mentir".
Hipotéticos são aqueles que prescrevem uma ação boa para alcançar um certo fim, dentro de
um juízo hipotético, como por exemplo: "se você quer evitar ser condenado por falsidade,
você não deve mentir" (BOBBIO, 1992, p. 64).
Salgado (1986, p. 223) identifica três fórmulas apresentadas por Kant para expressar
o imperativo categórico, a partir da fórmula geral - "age apenas segundo a máxima, em
virtude da qual possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal":

a) a fórmula da equiparação da máxima à universalidade da lei da natureza:


‘age de tal modo que a máxima da tua ação se devesse tornar em lei
universal da natureza’

b) a da humanidade ou da consideração da pessoa como fim em si mesma:


‘age de tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa
de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio
simplesmente’

c) a da autonomia ou da liberdade positiva no reino dos fins: age de tal forma


que ‘a tua vontade, através de suas máximas, se possa considerar ao mesmo
tempo como legisladora universal’.

Basicamente, ao aplicar o método ético de Kant é possível, por uma única regra,
delimitar a adequação moral de qualquer espécie de agir, justificando por que uma ação é
mais ou menos correta do que a outra sob o aspecto ético.
Sobre a moralidade como autonomia, esclarece Schneewind (2005, p. 527):

50
A razão para Kant se desdobra em: razão teórica e razão prática. A razão teórica é o que, na tradição filosófica,
se convencionou chamar intelecto, tendo por finalidade conhecer o objeto e a lei da natureza expressa em
relações necessárias de causa e efeito. A razão prática, a que se denominou vontade, ou seja, razão que age e que
doa finalidade a si e às coisas, dirigindo conhecimento às coisas, enquanto princípio da ação, determina o que
deve acontecer e se expressa por uma relação de obrigatoriedade, não de necessidade. É da vontade que surge a
noção de dever ser, visto que só ela cria esse dever ser. Assim, o intelecto se ocupa do ser, a vontade cria o dever
ser ou como diz Hegel, "enquanto a inteligência se ocupa tão somente de captar o mundo como ele é, a vontade,
ao contrário, tão somente procura fazer do mundo, antecipadamente, como ele deve ser" (SALGADO, 1986, p.
174).
51
Em outras palavras, o imperativo categórico é a lei prática válida e buscada por si só e não por um fim. Por
isso, os desejos não se justificam se contrariarem o fim da lei moral, que é puro e isento de fatores empíricos;
não há obrigação contrária à lei moral.
52

No cerne da filosofia moral de Immanuel Kant (1724-1804) está a


declaração de que a moralidade se centra em uma lei que os seres humanos
impõem a si próprios, necessariamente se proporcionando, ao fazê-lo, um
motivo para obedecer. Os agentes que são desse modo moralmente
autogovernados Kant chama de autônomos. [...] Sua concepção da
moralidade como autonomia é algo novo na história do pensamento.

Em sua obra, Schneewind afirma a originalidade em Kant porque seu método ético
trazia uma lei para a ação, vista em um princípio da moral, que além de determinar o agir de
tal forma, justifica por que esse agir deve ocorrer.
No mais, a moralidade é identificada como a necessidade objetiva que não se pode
apoiar na vontade de Deus, enfim, não é a busca de bons resultados ou a obediência à vontade
divina (SCHNEEWIND, 2005, p. 530). Enfim, a moralidade se baseia no puro entendimento
racional em si, não pretendendo recompensas de qualquer natureza52.
Nessa linha, Kant diz que subordinar a moralidade à religião é provocar hipocrisia e
idolatria, mas controlar a religião por meio da moralidade torna as pessoas generosas, bem-
intencionadas e justas. Mais uma vez se evidencia a preocupação do filósofo, que se repetiu
em sua fase madura, de que o homem não precisasse de nada, nem mesmo da religião ou de
Deus, para ser capaz de agir conforme a lei moral.
Kant diz ainda que as leis da liberdade são fundamentais para a obediência, mas não
responde como a liberdade no entendimento moral pode ser o princípio mais elevado da
virtude e também de toda a felicidade.
Kant aceita a problemática da lei natural, como se pode ver no fato de ele tomar
como básico o conceito de lei moral, de onde definiu seus demais conceitos, e em algumas
afirmações sobre os aspectos empíricos da natureza humana: somos naturalmente propensos a
discordar; somente a razão permite que nos movimentemos na direção da paz um com o
outro; nossos interesses em honra, poder e posse podem nos levar a um conflito sem fim.
Kant retrata os seres humanos como necessitados de companhia e apoio, ao mesmo
tempo em que resistem ao controle social e tendem para um autoengrandecimento ilimitado.
De acordo com esse pensamento, o homem é um ser destinado à sociedade (embora seja
também um ser antissocial).
Então, Kant reconheceu o caráter pacificador da lei moral à semelhança do que os
pensadores anteriores fizeram quanto à lei natural. Contudo, a lei moral, apesar de também

52
Para os defensores da lei natural, os bens e os males estão ligados aos comandos de Deus através de leis que
derivam sanções. Para Kant, se obedecermos a essas leis apenas para evitar o castigo divino, não seremos
moralmente admiráveis, e a moral terá um caráter mercenário.
53

desempenhar uma função de controle dos conflitos sociais, é dotada de elementos peculiares
mais aprofundados que os do conceito de lei natural.
Nota-se que os defensores iniciais da lei natural formaram seu pensamento dentro da
corrente voluntarista, a qual defende a imposição das regras morais de uma fonte divina
externa, ao passo que Kant defendeu, desde o início, uma posição antivoluntarista, a única que
se coadunava logicamente com sua concepção de autonomia.

1.4.3 Obediência à lei moral

Kant, assim como Pufendorf, também enfrentou este problema de explicar um


motivo não mercenário para a obediência moral. Ele pensa que a lei e a obrigação precisam
ser explicadas em termos da necessidade moral.
Nesse sentido, Kant estabeleceu a ideia de que nossos desejos por bens específicos
são contingentes e podem ser abandonados se o custo de sua satisfação for muito alto. Isso
permite fugir de qualquer obrigação particular em relação aos meios e fins. Para Kant, a
moralidade é constituída por uma lei que obriga, independente, dos objetivos de alguém
(SCHNEEWIND, 2005, p. 565-566).
Dessa forma, a autonomia kantiana não permite que a lei moral seja dada pela ordem
de um ser racional a outro, apesar de conseguir tornar a obrigação e a necessidade moral
fundamentais à moralidade, preservando simultaneamente a liberdade de desobedecer à lei.
Logo, Kant reelaborou princípios fundamentais da teoria da lei natural.
Na Metafísica da Moral, Kant apresenta uma concepção alterada, havendo agora dois
princípios: um dirigindo os deveres da lei ou justiça e outro da virtude ou moralidade,
conforme expõe Schneewind (2005, p. 571):

O princípio dos deveres legais é que só devemos agir externamente de


maneiras que permitam que ‘a liberdade da vontade de cada um coexista
com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal’. O princípio da
virtude é que devemos “agir de acordo com uma máxima de fins que pode
ser uma lei universal para todos”. Esses objetivos, diz Kant, são a nossa
própria perfeição e a felicidade dos outros.

Então, a perfeição em Kant está relacionada à capacidade de agir virtuosamente53


sempre, ou seja, em obediência constante à lei moral, gerando felicidade para os outros.

53
Kant abandona a lei natural segundo a qual as virtudes são hábitos de obediência às leis. Assim, a virtude
requer que sejamos movidos por nossa consciência do principio moral básico e não pelo simples sentimento.
54

1.4.4 Liberdade em Kant

Os defensores da lei natural também fizeram a distinção entre lei moral e legal: a lei
moral é aquela que obriga todos os seres humanos, e a segunda constitui as leis que variam de
país para país.
Assim, as fortes discussões racionalistas acabaram resultando em uma visão
clarividente do direito objetivo ou posto, relevando sobremaneira o Direito Natural. E sobre o
binômio Direito Natural e Direito Positivo, ensina-nos Bobbio (1992, p. 122) que:

Kant segue Locke no que diz respeito à solução do problema da relação entre
o Direito Natural e Direito Positivo. Mas Locke distingue o fato de que, para
este último, a passagem do estado de natureza para o estado civil acontece
por motivo de utilidade, e, portanto segundo um cálculo interessado (o
estado de natureza sendo considerado de fato como um estado incômodo e
prejudicial), enquanto que, para Kant, esta mesma passagem deve ser
realizada para obedecer a uma lei moral.

De qualquer forma, para Kant o estado civil não nasce para anular o Direito Natural,
mas para possibilitar o seu pleno exercício. Assim, ambos os direitos (civis e naturais) não
estão em rota de colisão, mas interagem e se integram, senão na forma, mas na substância. O
conteúdo é o mesmo, porém a forma de fazer valer é que se torna o diferencial.
Pode-se dizer que o direito civil está a dar guarida ao Direito Natural. Bobbio (1992,
p. 121), em sua obra, registra um trecho de uma importante carta de Kant dirigida a Heirinch
Jung-Stilling (1789), que começa assim:

O princípio essencial supremo da legislação civil é realizar o Direito


Natural dos homens que, no statu naturali (ou seja, antes da união
civil), é uma mera ideia, ou seja, de submetê-lo a normas gerais
públicas acompanhadas por coação adequada, com base nas quais
possa ser garantido ou procurado para cada um direito próprio.

Enquanto, para Locke, a passagem do estado natural para o civil se dá por motivos de
utilidade, para Kant essa passagem se dá para obedecer a uma lei moral, sendo um dever, uma
exigência moral, uma vez que se trata de ação que visa não a satisfazer interesses ou evitar
prejuízos, mas a alcançar um estado de justiça que suprime o estado de natureza, injusto e
imoral.

Para Kant, o agente virtuoso é forte e resoluto, capaz de resistir ao impulso do desejo que o tenta a agir contra a
moralidade.
55

Passando do estado natural para o civil, o indivíduo depõe de sua liberdade natural
para receber uma nova liberdade no estado civil, independente da natural, todavia dependente
da própria vontade de legislar, ou seja, a faculdade de criar leis. Logo, na medida em que cria
suas próprias regras, o homem é livre.
Nesses termos, opera-se um duplo conceito de liberdade: a liberdade como faculdade
de fazer sem ser impedido (teoria liberal) e a liberdade como obediência à própria lei (teoria
democrática) que nós mesmos nos demos (conceito de liberdade como autonomia). Em
resumo, criando lei para si mesmo o homem é autônomo.
A primeira (liberdade como não impedimento) representa o momento da liberdade
natural do homem enquanto não dominado por leis externas e coercitivas. Já a liberdade como
autonomia representa o momento em que o homem tornou-se ligado às leis do Estado,
conservando-se livre enquanto seja ele o criador dessas leis às quais se submete.
Bem asseverou Bobbio (1992, p. 131) ao afirmar que:

As duas liberdades são tão pouco inconciliáveis, que a luta pelo Estado
moderno foi empreendida em favor de uma e de outra, as constituições
modernas dos Estados democráticos reconheceram as duas, a primeira sob a
forma de atribuição dos assim chamados direitos de liberdade (liberdade de
imprensa, de pensamento, de associação, de reunião), a segunda sob a forma
de atribuição dos assim chamados direitos políticos (ou seja, os direitos
relativos à participação direta ou indireta do cidadão na formação das leis).

Sendo o homem livre (ser racional), deve ser considerado um fim em si mesmo na
pessoa do outro racional, nunca como meio. A liberdade que caracteriza uma pessoa e a torna
fim em si mesma - porque não se submete a outras leis senão àquelas que ela dá a si mesma -
é o bem maior e único direito inato no ser racional e que, por isso, deve ser distribuído
igualmente (SALGADO, 1986, p. 252).
O exercício da liberdade de cada um deve ser compatibilizado com o da liberdade de
todos dentro da sociedade, de modo a estabelecer um princípio da igualdade que se apresenta
sob duas vertentes: como direito de liberdade inato e igual para todo ser racional e como
limitação igual para todos no sentido de possibilitar a sociedade civil, ou a vida em comum
dos seres que são fins em si mesmo.
Na filosofia kantiana, a liberdade e igualdade aparecem como princípios basilares da
sociedade civil, todavia somente a liberdade pode ser considerada um Direito Natural inato do
homem. Liberdade é, portanto, a faculdade de obedecer somente às leis externas a que eu
56

tenha dado a minha aprovação. Tanto mais justa é uma lei quanto mais ela expressa a
realização da liberdade.
Bem asseverou Salgado (1986, p. 295) que o

[...] contrato social é obra da vontade dos homens e tem uma


finalidade: criar a ordem jurídica. A ordem jurídica, por sua vez, como
fruto da vontade dos homens, tem uma finalidade: cuidar da sua
liberdade. O contrato nasce da liberdade para a liberdade.

Concluiu dessa assertiva que o direito não existe por si e para si, mas para a
liberdade.
Nesses termos, há um direito inato e originário nos homens, fundamento de todos os
demais, inclusive o de propriedade54, que é a liberdade.
Haverá, portanto, uma liberdade interna e outra externa. A primeira se refere à
faculdade de agir pela razão internamente, enquanto a segunda é a faculdade de agir (uso
externo do arbítrio) na sociedade no momento do contado com o "outro".
Nisso se extrai um conceito de humanidade, ligado ao postulado do imperativo
categórico que ordena que a humanidade seja considerada, tanto em nós como nos outros, um
fim em si mesma (pessoa).
Kant se afasta da Escola do Direito Natural, pois não há um Direito Natural como
regras tiradas da natureza (Direito Natural cosmológico), nem um Direito Natural assentado
em uma razão universal estoica, visto que a participação do homem nessa harmonia total é,
em última instância, a identificação da natureza; nem um Direito Natural transcendente,
ditado pela autoridade divina, que acabaria por se constituir em um código moral externo;
nem um Direito Natural deduzido pela razão, como no jusnaturalismo clássico, pois a própria
liberdade é uma ideia.
Segundo Salgado (1986, p. 275), Kant pode ser chamado de jusnaturalista somente
no sentido de que o Direito Positivo, para ele, não encontra o seu fundamento de validade
última em si mesmo ou no arbítrio do legislador, mas na razão ou, em última palavra, na
liberdade, o único Direito Natural.
Na Metafísica dos Costumes, Kant (2010, p. 59) reconhece a liberdade como único
direito originário do homem:

54
Colocando a liberdade como único direito inato e originário do homem, Kant se afasta da concepção de Locke
de que a propriedade é um Direito Natural.
57

A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia), na


medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros com uma
lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em
virtude da humanidade destes. Este princípio de liberdade inata implica as
seguintes competências, que não são realmente distintas dela (como se
fossem integrantes da divisão de algum conceito superior de direito):
igualdade inata, isto é, independência de ser obrigado por outros a mais do
que se pode, por sua vez, obrigá-los.

Assim, para Kant, o Direito Natural é condição a priori da existência do Direito


Positivo e seu critério de validade, considerando que a justificação última do Direito Positivo
é a liberdade, Direito Natural inato do homem que dá fundamento de autoridade ao legislador.
Esse Direito Natural é o mais sagrado direito do homem.
Disso deflui o direito de compelir os demais a ingressarem em uma ordem jurídica
em que os arbítrios de todos se limitem por leis universais. Essa coercibilidade está no
momento da formação da sociedade civil; conclui-se que tudo que é um obstáculo ao pleno
exercício da liberdade é injusto. Sendo injusto, deverá ser repetido mediante a coação, que
passa a fazer parte do direito. A liberdade legitima o contrato social, e o contrato social
legitima a coação.
Essa sanção só tem sentido na medida em que aparece o outro, isto é, em que a ação
atinja a liberdade do outro. O ético do direito está em preservar a esfera da liberdade do outro
(SALGADO, 1986, p. 289).
Em termos gerais, para Kant o conceito a priori é o Direito Natural e é o resultado do
autoconhecimento da razão, pois o princípio de validade de todo o direito se desdobra em
liberdade e igualdade. Assim, ao exercer o primado da liberdade e igualdade, o homem realiza
os princípios fundamentais do Direito Natural, que são critérios de validade do Direito
Positivo.
Percebe-se que, em Kant, o Direito é a plenitude do ético que somente se torna
possível pela liberdade externa, todavia encontra seu critério de validade nos princípios da
razão pura prática, ou seja, na legislação autônoma da razão. Justa é a lei que deriva da
liberdade, assim como justa é a lei elaborada pelos destinatários em igual medida.
Socorrendo-se do escólio de Salgado, a idéia de justiça em Kant (que não é apenas
virtude do particular) desdobra-se em três momentos. Segue a lição do mestre:

1 - Justo é, em primeiro lugar, o que reconhece o único Direito Natural


(inato), a liberdade, como igual para todos os seres racionais (o homem na
humanidade);
58

2 - Justo é, de outro lado, o que realiza as liberdades externas de todos os


indivíduos, limitadas por um princípio de igualdade, isto é, segundo uma lei
universal, no sentido de compatibilizá-las e tornar possível a sociedade
organizada (o homem na sociedade civil);

3 - Justa é, finalmente, a lei que realiza a liberdade no sentido de autonomia,


ou seja, a lei que cada vez mais se aproxima do princípio da racionalidade,
criando uma legislação jurídica universal, no sentido de ser a expressão da
vontade geral da qual cada um deve participar, como garantia da paz
perpétua num reino dos fins (o homem na república e no contexto da
sociedade das nações). A ideia de igualdade se mostra sob três aspectos: 1.
igualdade de todos os seres racionais que possuem direitos inatos, a
liberdade; 2. igualdade como limitação dos arbítrios individuais para a
formação da sociedade civil; 3. como igual participação paritária na
legislação jurídica, enquanto expressão da vontade geral na perspectiva do
republicanismo (SALDADO, 1986, p. 341).

As ideias de lei moral, boa vontade, dever e respeito se propagaram através das
teorias filosóficas contemporâneas. Aliás, produziram também reflexos nas obras filosófico-
jurídicas e, consequentemente, na visão do Direito na sociedade contemporânea. Com efeito,
a contribuição de Kant se faz presente no pensamento de justiça social, notadamente no
conceito de dignidade humana e da exigência do Bem supremo como ideal de vida racional de
toda a humanidade que decorre de uma sociedade de consenso, considerando o homem como
um fim em si mesmo e nunca como meio. A assertiva é corolário lógico da liberdade inata do
homem.
As críticas que se podem fazer a Kant por ter ficado, no momento, abstrato da
liberdade da igualdade, embora próprias, não anulam o dado positivo inerente à ideia (projeto)
de uma república pura fundada no conceito de liberdade e de uma paz perpétua55.

1.4.5 Direito à humanidade

O mérito de Kant foi ter introduzido do ponto de vista da fundamentação teórica, em


definitivo, a idéia de liberdade no conceito de justiça, que nunca mais poderá ser dela
separada, por já constituir um valor da nossa cultura.
O fato é que desde a Declaração Universal de Direitos Humanos, quando o
fundamento da dignidade da pessoa humana foi legalmente estabelecido, busca-se
compreender em que consistiria tal dignidade.

55
A paz perpétua configura o supremo bem político do homem, não só no sentido de mais alto (moralidade),
como também no sentido de mais completo (moralidade e felicidade), e é considerado por Kant como o
coroamento da história do homem vista do lado da liberdade (não da natureza) como constante.
59

O direito de humanidade está ligado ao imperativo categórico que ordena que a


humanidade seja considerada, tanto em nós como nos outros, fim em si mesma (pessoa). A
partir desse princípio de moralidade, a filosofia kantiana faz uma distinção entre direito de
humanidade na própria pessoa (correspondente ao dever diante de si mesmo) e o direito dos
homens na pessoa dos outros (correspondente a um dever diante dos outros). O primeiro exige
de mim que eu faça valer a minha dignidade de pessoa, o segundo que eu respeite essa
dignidade no outro (SALGADO, 1986, p. 273)
A dignidade é estabelecida como um valor e não faria o menor sentido se o homem
não pudesse compreender e aplicar o seu conteúdo, ou seja, se não fosse dotado de autonomia
a ponto de compreender a lei moral.
Afinal, o homem dá a si próprio a regra de sua ação, com uma base racional
universal, decorrente do patrimônio racional comum da humanidade, ou seja, por ser homem
é dotado de razão, a qual detém os mesmos pressupostos lógicos em qualquer lugar do
mundo.
A dignidade é o valor absoluto do Direito, o parâmetro de leitura para todos os
direitos fundamentais e para as leis submetidas hierarquicamente à Constituição Federal. Da
mesma forma, a lei moral é o fundamento racional do homem, que o torna não só livre, mas
também autônomo.
Assim, a autonomia está para o homem da mesma forma que a dignidade está para o
Direito, de modo que dignidade é sinônimo de autonomia e o homem é digno por ser
autônomo.
Vale lembrar que mesmo o conceito de lei natural, o qual fundamentou a elaboração
de um documento jurídico numerador dos direitos humanos, ou seja, dos direitos naturalmente
inerentes a todo aquele que detém a condição humana, possui íntima relação com o de lei
moral, base essencial do conceito de autonomia da vontade.
Importante trazer à baila a observação de Finnis (2007, p. 195) que a designação
Direitos Humanos substitui, na contemporaneidade, o termo Direito Natural em âmbito
interno, supranacional e internacional, usando as expressões como sinônimas: "Direitos
Humanos, sendo expressão contemporânea para Direitos Naturais: eu uso os termos como
sinônimos".
E somente podemos falar em Direitos Humanos (ou Naturais no pensamento de
Finnis) porque o liberalismo exacerbado apenas consolidou as desigualdades, posto que, na
feliz exposição de Nalini (2012, p. 98), o individualismo é incensado e o coletivo reside
60

apenas no discurso, pois o ser contemporâneo não hesita em eleger seus exclusivos interesses,
em detrimento do bem comum.
Em outros termos, o homem autônomo é dotado de livre discernimento, de
racionalidade pura, a qual o impulsiona a manter sua condição de dignidade, exigindo pelos
instrumentos jurídicos que se mostrem disponíveis à preservação de tal condição.
Então, o homem verdadeiramente autônomo possui não apenas um livre-arbítrio de
se impor na sociedade tal qual um animal, seguindo seus instintos e buscando fazer valer os
seus interesses pessoais conforme suas necessidades empíricas, mas possui racionalidade a
ponto de buscar a sua felicidade de maneira digna.
Entretanto, cabe ao Estado propiciar condições de desenvolvimento para que o
homem aperfeiçoe sua condição de autônomo e alcance o status pleno de dignidade. Esse é o
compromisso por ele assumido nos tratados internacionais e em toda Constituição Federal que
possa se chamar de democrática.
Grande parte do pensamento filosófico dos séculos XIX e XX será uma releitura ou
interpretação da filosofia de Kant. Estes neokantismos abdicarão de uma posição francamente
antimetafísica e pretenderão reduzir o kantinismo à crítica do conhecimento. Desse
pensamento resulta o Positivismo, objeto do próximo estudo.
61

CAPÍTULO 2 - POSITIVISMO JURÍDICO: DA ASCENSÃO À CRISE

2.1 Ascensão do Positivismo Jurídico

Com a formação do Estado moderno nos séculos XVIII e XIX, o Estado toma para si
a monopolização da produção jurídica, isto é, a exclusividade de criar o direito, ou mais
precisamente as leis que regerão a sociedade.
A alteração no modo de produção do direito culminou com uma mudança nas
categorias do direito. Estado e Direito se equivalem, posto que o direito deriva do Estado.
Enquanto no Estado primitivo em geral as normas jurídicas eram produto da sociedade
pluralista56, adotando uma concepção dualista de direito (Direito Natural e Positivo), no
Estado moderno há uma concepção monista, ou seja, apenas vigora o Direito Positivo.
Positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando "Direito Positivo"
e "Direito Natural" não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o Direito
Positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio e o Direito Natural é
excluído da categoria do direito.
A partir desse momento o acréscimo do adjetivo "positivo" ao termo "direito" torna-
se um pleonasmo. Positivismo é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão
o positivo (BOBBIO, 2006, p. 26).
Antes da formação do Estado moderno, não havia vinculação exclusiva na lei para as
soluções das controvérsias, antes pelo contrário, existia uma certa liberdade de escolha na
determinação da norma a aplicar, deduzindo regras dos costumes, da equidade e da razão
(Direito Natural).
Na formação do Estado moderno há um imposição para aplicar as normas e penas
impostas pelo Estado, único criador do direito. Esse processo de monopolização da produção
jurídica por parte dos Estados modernos tem precedentes na compilação de Justiniano.
Todo o complexo de normas que regiam o direito romano foi condensado por
determinação de Justiniano, no Corpus juris civilis, transmudando de direito de origem social
para direito de Estado que encontra fundamento na vontade do príncipe.

56
Sociedade pluralista, pois cada grupo social tinha seu próprio direito: havia o direito feudal, o direito das
corporações, o direito das comunas ou civitates (dito "direito estatutário", porque os atos que o constituíam
chamavam-se "estatutos"), o direito dos "reinos". Todos esses direitos eram, em geral, subordinados ao romano,
assim como todas as organizações sociais eram subordinadas ao Império (BOBBIO, 2006, p. 31).
62

Na Idade Média, o direito romano difundiu-se com o nome de "direito comum" (jus
commune), contrapondo-se ao direito próprio das diversas instituições, característica da
sociedade pluralista.
No conflito entre o jus commune e o jus proprium, aos poucos vai se firmando e
prevalecendo o primeiro (jus commune), pois emana da vontade do Imperador. Com a
constante prática, o direito se reduz ao jus commune, produto do Estado. Percebe-se que a
monopolização jurídica tem estreita relação com o Estado absoluto.
O termo final do contraste entre direito comum e direito estatal é representado pelas
codificações (final do século XVIII e início do século XIX ), através das quais o direito
comum foi absorvido totalmente pelo direito estatal. Da codificação começa a história do
positivismo jurídico verdadeira e propriamente dito (BOBBIO, 2006, p. 32).
A filosofia jusnaturalista passou por severas críticas notadamente quanto a seus mitos
estado de natureza, lei natural, contrato social, todos ligados ao pensamento racionalista do
século XVIII. Mas foi o movimento chamado historicismo que conduziu o Direito Natural à
margem da concepção jurídica.
O historicismo teve sua origem com a escola histórica do direito, surgindo na
Alemanha no final do século XVIII e começo do século XIX, representando em Savigny seu
maior expoente.
Por esse movimento, o Direito Natural não é mais entendido como um sistema
normativo de regras e sim, tão somente, um conjunto de considerações filosóficas sobre o
próprio Direito Positivo, vale dizer, uma filosofia do Direito Positivo.
Bobbio (2006, p. 49) muito bem observou algumas características fundamentais do
historicismo:

1) O sentido da variedade da história devida à variedade do próprio homem:


não existe o Homem (com H maiúsculo) com certos caracteres fundamentais
sempre iguais e imutáveis, como pensavam os jusnaturalistas; existem
homens, diversos entre si conforme a raça, o clima, o período histórico.

2) O sentido do irracional na história, contraposto à interpretação racionalista


da história própria dos iluministas: a mola fundamental da história não é a
razão, o cálculo, a avaliação racional, mas sim a não-razão, o elemento
passional e emotivo do homem, o impulso, a paixão, o sentimento (de tal
modo o historicismo se torna Romantismo, que exalta o quanto de
misterioso, de obscuro e de turvo existe na alma humana). Os historicistas
escarnecem assim das concepções jusnaturalistas, tal como da ideia de que o
Estado tenha surgido após uma decisão racionalmente ponderada de dar
origem a uma organização política que corrigisse os inconvenientes do
estado de natureza.
63

3) Estreitamente ligada à ideia de irracionalidade da história está a ideia de


sua tragicidade [pessimismo antropológico]: enquanto o iluminista é
fundamentalmente otimista porque acredita que o homem com sua razão
possa melhorar a sociedade e transformar o mundo, o historicista é
pessimista porque não compartilha dessa crença, não crê nos "magníficos
destinos e progressos" da humanidade.

4) Um outro caráter do historicismo é o elogio ao passado e o amor a este:


não havendo crença no melhoramento futuro da humanidade, os historicistas
têm, em compensação, grande admiração pelo passado, nítido contraste com
os iluministas, os quais desprezam o passado exaltante as "luzes" da Idade
racionalista.

5) O amor à tradição, isto é, pelas instituições e pelos costumes existentes na


sociedade e formados através de um desenvolvimento lento, secular.

A ideologia jurídica dos historicistas resulta do princípio de que o direito não é uma
ideia da razão, mas sim produto da história, pois nasce e se desenvolve na História (fato
histórico cultural) com variações no tempo. Nasce do sentimento de justiça, não obstante
cultue um pessimismo antropológico, desconfiando de novas instituições jurídicas.
Por esses aspectos, o historicismo é considerado precursor do positivismo jurídico
tão somente no sentido de que teceu duras críticas à escola jusnaturalista de um direito
universal e imutável.
Mas foram as grandes codificações ocorridas entre o fim do século XVIII e o início
do século XIX que fixaram marco histórico na ascensão do Positivismo. Paradoxalmente,
essas codificações foram resultado do movimento iluminista no final do século XVIII, que
buscava a "positivação do Direito Natural", produto da razão humana.
Os iluministas consideram necessário substituir as várias normas consuetudinárias
(herança da Idade das trevas) por um direito constituído por um conjunto sistemático de
normas jurídicas derivadas da razão humana reduzidas em leis. Assim, nota-se que o
movimento da codificação que ascendeu o Positivismo teve origem no jusnaturalismo.
Das codificações, duas tiveram grande influência na nossa cultura: a justiniana e a
napoleônica. Por Justiniano foi fundada a elaboração do direito comum romano na Idade
Média e na Moderna; já o Código de Napoleão influenciou sobremaneira nas codificações
posteriores. É que na legislação napoleônica temos um código sistematizado e não somente
um amontoado de leis.
O movimento pela codificação, na França, tem como principal referência doutrinária
a Escola de Exegese, assim como bem asseverou Bittar e Almeida (2011, p. 383)
64

A escola de exegese deve ser nome à técnica adotada pelos seus primeiros
expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão, técnica que
consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de
distribuição de matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal
tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código.

Assim, essa escola defende que o ordenamento jurídico é completo e autossuficiente,


sendo desnecessário e impertinente socorrer-se do Direito Natural para sua completude.
Eventuais lacunas devem ser solucionadas pelo próprio ordenamento jurídico.
Ao lado da escola da exegese vem a escola analítica na Inglaterra, cujo principal
representante, John Austin, define o Direito Positivo como aquele direito emanado
diretamente dos soberanos, afirmando que "toda lei positiva, ou bem toda lei simples e
estritamente dita, é posta por uma pessoa soberana ou por um corpo de soberano de pessoas a
um ou mais membros da sociedade política independente na qual essa pessoa ou esse corpo é
soberano ou supremo" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 384).
Essas escolas têm um ponto em comum: a negação dos fundamentos jusnaturalistas.
Mas foi em Hans kelsen57, no século XX, que houve o desenvolvimento científico do
positivismo jurídico.
Para esse filósofo, Direito se entende sob Direito Positivo, realmente fixado por
pessoas, distinto da moral, ou um direito, correspondente à moral ou a uma moral correta,
justo, natural - é, essencialmente norma, um sentido específico, cuja expressão idiomática é
uma proposição-dever (HECK, 2010, p. 52).
A teoria Pura de Kelsen tem o escopo de pesquisar a norma jurídica pelo seu critério
de validade (existência de uma norma jurídica), a vigência (produção e efeitos de uma norma
jurídica) e a eficácia (condutas obedientes a uma norma jurídica). É que para Kelsen o sentido
de "norma" é algo que deve ser, especialmente que seres viventes, sobretudo, pessoas, devem
sob determinadas circunstâncias, comportar-se de modo determinado, segundo o que foi
prescrito. Norma é uma prescrição de comportamento, algo de deve ser. Uma prescrição não é
uma declaração, algo que é, mas que se deve ser.
Kelsen propõe a norma hipotética fundamental: ela não é posta, é pressuposta.
Kelsen teve grande influência de seus antecessores; a teoria pura do direito não se

57
Hans Kelsen nasceu em Praga e com três anos se mudou para Viena. Estudou direito na Universidade de
Viena. Judeu, Hans Kelsen foi perseguido pelo nazismo e emigrou para os Estados Unidos, onde fez magistério
na Universidade de Berkeley, vindo a falecer nesta mesma cidade. Publicou cerca de quatrocentos livros e
artigos, com destaque para a Teoria Pura do Direito (''REINE RECHTSLEHRE'') pela difusão e influência
alcançada.
65

desenvolveu de forma monolítica, ou seja, teve significativa contribuição da academia de


Viena.
A chave para o entendimento do Kelsen está na afirmação de que "toda indagação
sobre algo procura antes de tudo legitimar-se por meio de 'como é permitido perguntar'".
Alinhado ao pensamento de toda descrição de um fenômeno científico, deve-se passar por
uma definição metodológica, por regras e princípios a partir dos quais será descrito o direito.
O caminho determina o objetivo final, ou seja, a elaboração de uma definição científica de
direito.
Inicialmente delimitou seu positivismo jurídico através de uma teoria positiva do
direito. Kelsen se coloca em confronto com duas grandes teorias que se avizinhava na sua
época: o Direito Natural da escola história do direito e a teoria chamada positivista (por
Kelsen, pseudopositivista) que procurou elaborar um teoria do Direito Positivo, porém não se
mostrava fiel a seus propósitos.
A teoria de Kelsen está fundamentada em quatro pilares metodológicos. O primeiro é
o de que toda teoria do direito é derivada de atos humanos; Direito Positivo é exclusivo
direito posto pelo homem. O parece ser, pressuposto de fácil entendimento, é importantíssimo
em Kelsen, que mostrará que uma norma não existe no pensamento, mas no ato posto pelo
legislador. O segundo é o de que não existe uma moral única, um arcabouço de valor único,
perene, estático que possa guiar um ordenamento jurídico. O terceiro é o da idéia sobre o ser e
dever ser. Kelsen utiliza o ser e o dever ser como categorias de descrição. O ser para
descrever os fatos e o dever ser como descrição das normas jurídicas. O quarto é o da teoria
da objetividade da ciência do direito. A ideia de que fazer ciência, descrever o direito,
pressupõe uma descrição objetiva e imparcial.
A partir desses pressupostos metodológicos, Kelsen procurou construir, ajustar e
polir a sua teoria do direito concreto. Procurou descrever uma ciência do direito através de
pressupostos metodológicos que pudessem identificar a validade das normas de qualquer
ordenamento jurídico.
Quando se pensa em sistemas, necessariamente, pensa-se em ciência e a ciência
cumpre um papel de decidibilidade e classificação. Na antiguidade e medievalidade, há
proposta de organização de sistema, mas com falhas científicas quanto a critérios de
decidibilidade e classificação. Mesmo no Direito Romano de Justiniano, há uma aglomerado
de leis sem um critério científico de classificação.
Bem asseverou Bittar e Almeida (2011, p. 389) que
66

[...] o positivismo jurídico, como movimento de pensamento


antagônico a qualquer teoria naturalista, metafísica, sociológica,
histórica, antropológica, etc, adentrou de tal forma nos meandros
jurídicos, que suas concepções se tornaram estudo indispensável e
obrigatório para a melhor compreensão lógico-sistemática do Direito.

2.2 Direito Natural e Direito Positivo e sua relação recíproca

Percebe-se que, até o final do século XVIII, o Direito poderia ser definido sob dois
aspectos: o Direito Natural e o Direito Civil (ou Positivo). A diferenciação estava no grau do
sentido para cada instituto, ou melhor, os planos de graduação relacional entendendo o Direito
Natural como paradigma do Direito Positivo.
O que se quer dizer é que para os oitocentistas racionais, Direito Natural e Direito
Positivo são postos em planos diferentes de graduação no sentido de que uma espécie (Direito
Natural) é considerada superior a outra (Direito Positivo).
Essa relação de graduação não existiu na época clássica, notadamente em Aristóteles.
De fato, o Direito Natural era tido como "direito comum" (koinós) e o Positivo como direito
de cada cidade. No conflito de ambos os direitos, prevalecia o Direito Positivo.
É importante assinalar que, conforme bem observou Noberto Bobbio, essa distinção
já era encontrada em Aristóteles e registrada no capítulo VII, do livro V, de sua Ética a
Nicômaco:

Da justiça civil uma parte é origem natural, outra se funda em a lei. Natural é
aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e não depende de o
fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao
contrário, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim
como é, uma vez sancionada (Bobbio, 2006, 16).

Para Aristóteles, o Direito Natural não resultava de uma ciência particular e positiva,
derivava da prudência, uma disposição sui generis, entre a ciência e a arte, buscando a justiça,
virtude moral própria do mundo jurídico. Não pretendeu situar-se acima e paralelamente ao
Direito Positivo, conforme anteriormente observado.
Bobbio (2006, p. 17) identificou dois critérios pelos quais Aristóteles distingue o
Direito Natural do Positivo:

a) Direito Natural é aquele que tem em toda parte (pantachou) a mesma


eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer
67

parte), enquanto o Direito Positivo tem eficácia apenas nas comunidades


políticas singulares em que é posto;

b) o Direito Natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de
parecerem boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja
bondade é objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos
medievais). O Direito Positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações
que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um
modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto
e necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito em lei.

E arremata Bobbio com um exemplo: antes da existência de uma lei ritual é


indiferente sacrificar a uma divindade uma ovelha ou duas cabras; mas uma vez existente uma
lei que ordena sacrificar uma ovelha, isto se torna obrigatório; é correto sacrificar uma ovelha
e não duas cabras não porque esta ação seja boa por sua natureza, mas porque é conforme
uma lei que dispõe desta maneira.
Esta dicotomia também está presente no direito romano sob o rótulo de jus gentium
(Direito Natural) e jus civile (Direito Positivo). O jus civile tem seu limite a um determinado
povo, enquanto o jus gentium não tem limites, sendo de aplicação universal. Assim, jus civile
é posto pelo próprio povo pelo qual é regido, enquanto o jus gentium é posto naturalis ratio,
posto que imutável.
A seu turno, na Idade Média, essa relação se inverte. O Direito Natural passa a ser
considerado superior ao Positivo, haja vista não mais ser entendido como direito comum,
antes pelo contrário, era a própria vontade de Deus escrita nos corações dos homens.
Lembramo-nos dos ensinamentos de São Paulo58 ao ministrar que "quando os
gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para
si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações" (BÍBLIA
SAGRADA, 2002, p. 1022).
A Escola do Direito Natural foi marcada, ao longo dos tempos, por peculiaridades
bem expostas na lição de Bobbio (2006, 22-23), que assim assinalou:

a) o primeiro se baseia na antítese universalidade/particularidade e contrapõe


o Direito Natural, que vale em toda parte, ao Positivo, que vale apenas em
alguns lugares (Aristóteles – Inst. – 1ª. definição);

b) o segundo se baseia na antítese imutabilidade/mutabilidade: o Direito


Natural é imutável no tempo, o Direito Positivo muda (Inst. – 2ª. definição -
Paulo); esta característica nem sempre foi reconhecida: Aristóteles, por

58
Bíblia Sagrada, Romanos, 2:14-16 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
68

exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe imutabilidade


no tempo, sustentando que também o Direito Natural pode mudar no tempo;

c) o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, refere-se à fonte


do direito e funda-se na antítese natura-potestas populus (Inst. – 1ª.
Definição -, Grócio);

d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o


modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na antítese
ratio-voluntas (Glück): o Direito Natural é aquele que conhecemos através
de nossa razão (Este critério liga-se a uma concepção racionalista da ética,
segundo a qual os deveres morais podem ser conhecidos racionalmente, e, de
um modo mais geral, por uma concepção racionalista da Filosofia.) O
Direito Positivo, ao contrário, é conhecido através de uma declaração de
vontade alheia (promulgação);

e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos


comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo
Direito Natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles
regulados pelo Direito Positivo são por si mesmos indiferentes e assumem
uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de
um certo modo pelo Direito Positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto
o que é vetado) (Aristóteles, Grócio);

f) a última distinção refere-se ao critério de valoração das ações e é


enunciado por Paulo: o Direito Natural estabelece aquilo que é bom, o
Direito Positivo estabelece aquilo que é útil.

Extrai-se dessa concepção que o Direito Natural, para os pensadores da Idade Média,
era superior ao Direito Positivo. Todavia essa distinção de graduação não importava distinção
de qualificação. Direito Natural e Direito Positivo são "direito" na mesma acepção do termo.
Esse pensamento domina toda a geração jusnaturalista oitocentista.
Percebe-se que a importância decisiva para a doutrina do Direito Natural é
estabelecer qual sua relação com o Direito Positivo. Parte-se do pressuposto de ser Direito
Natural um sistema de normas que, diferentemente do Direito Positivo, não são postas por ato
humano, antes são disposições naturais quer seja resultante da natureza, de Deus, da razão ou
mesmo de um princípio objetivo semelhante. São normas tidas como boas, corretas e justas.
Nesse particular, Kelsen59 estabelece uma diferença entre Direito Natural e Direito
Positivo pelo fundamento de validez ou - o que é o mesmo- pelo princípio de validez que, no
caso do Direito Natural, é um material, no caso do Direito Positivo, um formal.

59
Extraído do artigo "Direito Natural e Direito Positivo. Uma investigação de sua relação recíproca", que
encontra-se publicado na Internationale Zeitscherift fur Theorie des Rechts. Jahrg. II, Brunn: Rudolf M. Rohrer,
1927-1928, S. 71 ff. Título no original: Naturrecht und positives Recht. Eine Untersuchung ihres gegenseitigen
Verhaltnisses.
69

São Direito Natural e Direito Positivo dois sistemas de normas distintos? Para o
mestre austríaco, isso poderia parecer contraditório e duvidoso considerando o fato de que
ambas as ordens (Direito Natural e Direito Positivo) dizem respeito ao mesmo objeto, vale
dizer, a conduta recíproca das pessoas.
Todavia, para Kelsen em Heck (2010, p. 26), o modo no qual Direito Natural e
Direito Positivo regulam esse seu objeto é essencialmente diferente. E explica:

Uma ordem o faz, a ela fixar como devida a - socialmente desejada -


conduta sob determinadas condições, a outra, ao ela estatuir para o
oposto contraditório dessa conduta um ato de coerção contra aquele
que assim se comporta, portanto, apresenta-se, à diferença da primeira,
como ordem de coerção.

Tem-se, portanto, que ambas as normas provêm de diversos sistemas de validez, ou


seja, formam dois sistemas distintos que remontam uma diversidade do fundamento de
validez, com normas fundamentais distintas, independentes uma da outra, reciprocamente
excludentes, significando que ambas não encontram lugar em um mesmo sistema de normas.
O Direito Positivo é um ordenamento de coerção; já o Direito Natural decorre da operação de
ideias puras.
É que para o mestre austríaco, o Direito Natural se desenvolve segundo um sistema
estático em que as normas se desenvolvem - a partir da norma fundamental - por uma mera
operação das ideias sem que necessite de um ato humano de fixação de norma que as criam.
Explicando: da norma fundamental do amor deriva que não devemos violar ninguém,
ajudar o necessitado, e assim por diante: através da operação de ideias que decorrem da norma
fundamental derivam outras normas sem que haja necessidade do estabelecimento destas por
ato humano.
Por outro lado, o Direito Positivo se desenvolve segundo um sistema dinâmico no
qual as normas se desenvolvem por delegação da norma fundamental - posto que elas foram
fixadas, precisamente, no modo que a norma fundamental prescreve. Em outras palavras, pelo
sistema dinâmico, as normas não decorrem da operação de ideias, mas delega autoridade -
pela norma fundamental - a uma vontade humana determinada para a fixação de normas.
Toda a oposição entre Direito Natural e Direito Positivo deixa, em certo sentido,
apresentar-se como oposição entre um sistema de normas estático e um dinâmico. E a
contradição se estabelece, para Kelsen, justamente nessa confusão de sistemas:
70

Na mesma medida que a teoria do Direito Natural deixa sua ordem 'natural'
desenvolver-se não segundo um princípio estático, mas segundo um
dinâmico, que ela deixa penetrar e tem de deixar penetrar no Direito Natural
o princípio da delegação, contanto que ela seja atenta à realização, à
aplicação do Direito Natural às relações humanas fáticas, transforma-se o
Direito Natural, de repente, de certo modo sob suas mãos, em um Direito
Positivo (HECK, 2010, p. 27).

Disso decorre que são, de fato, dois sistemas de normas distintos, em sua validez
independentes um do outro porque se baseiam em duas normas fundamentais diferenciadas,
que dizem respeito ao mesmo objeto (regulação das condutas recíprocas entre pessoas). Como
têm o mesmo âmbito de validez, então não está excluída a possibilidade de uma contradição
lógica insolúvel entre ambos.
Existindo, pois, dois sistemas de normas distintos, então não podem ser aceitos
ambos os sistemas, devendo um ser preterido em favor de outro, posto que somente um
sistema poderá ser aceito como válido (HECK, 2010, p. 28).
Essa assertiva decorre da contradição do sistema. Imaginemos uma casuística em que
a norma de um sistema exige de uma determinada pessoa, sob determinadas condições, que se
comporte de modo "a". A norma do outro sistema estatui, sob as mesmas condições, para a
mesma pessoa, a conduta "não-a".
Essa contradição evidencia-se ao afirmar que a norma "a" (como norma moral) e a
norma "não-a" (como norma jurídica) valem simultaneamente. Ao se considerar ambas as
normas do mesmo sistema de conhecimento, haverá uma contradição lógica como aquela de
lei da física que constata a influência de duas forças dirigidas em sentido contrário sobre um
determinado corpo.
Observa-se que, para Kelsen, não há contradição alguma afirmar a validade da norma
"a" (como norma jurídica), embora exista o fato de ser em que pessoas acreditam, ideiam-se,
querem que "não-a" deve ser (como norma moral), sem, contudo, emprestar-lhe validade.
Reconheceu-se, assim, Direito Natural e Positivo como dois sistemas de normas distintos um
do outro segundo seu fundamento de validez supremo, podendo somente ou o Direito Natural
ou o Direito Positivo ser afirmado como sistemas de normas válidas (HECK, 2010, p. 30).
Kelsen foi categórico ao afirmar que

[...] a consequência essencial do positivismo jurídico é a separação do direito


e da moral e, por isso, também o chamado Direito Natural, que forma um
componente da moral, que pode ser considerado como metafísica do direito
e que não fixado por atos da vontade humana, mas - segundo a doutrina do
Direito Natural - deduzido da natureza (HECK, 2010, p. 92).
71

Essa forma exclusiva de validade última de normas leva à dedução lógica, à validez
de uma ordem positiva, então não pode, simultaneamente, ser aceita uma ordem "natural"
dentro do mesmo âmbito de validez. Por outros termos, ao lado do Direito Positivo, um
Direito Natural é impossível logicamente.

2.3 Positivismo Jurídico no pensamento de Bobbio

Bobbio (2006, p. 131-133) identificou com precisão sete características fundamentais


do positivismo jurídico que podem assim serem resumidas:

1) O modo de abordar, de encarar o direito no sentido de entender o direito


como um fato e não como um valor. O direito é considerado um conjunto
de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do
mundo natural; o jurista, portanto, deve estudar o direito do mesmo modo
que o cientista estuda realidade natural, abstendo-se de juízos de valor;

2) A definição do direito em função do elemento coação, de onde deriva a


teoria da coatividade do direito. As normas são feitas para valer por meio
de força cogente;

3) Identificar as fontes do direito sendo que historicamente o positivismo


jurídico adere à teoria da legislação como fonte preeminente do direito, isto
é, como este considera o direito sub specie legis, colocando a problemática
sobre a existência de outras fontes do direito, bem como estabelecer uma
relação entre lei e costume;

4) Estabelecer a teoria da norma jurídica, ou seja, considerar a norma


como um comando, formulando a teoria imperativista do direito, que se
subdivide em numerosas subteorias, dentre elas a definição de normas
permissivas;

5) Firmar uma teoria do ordenamento jurídico que considera a estrutura


não mais da norma isoladamente tomada, mas do conjunto de normas
jurídicas vigentes numa sociedade, dirimindo as antinomias [contraditórias
ou contrárias] e estabelecendo uma completitude para excluir eventuais
lacunas do direito.
6) Fixar um método da ciência jurídica quanto ao problema da
interpretação ou o modo de compreender toda a atividade científica do
jurista;

7) Por final, entender a teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal,


tratando-se de uma abordagem ética do Positivismo. [GRIFO NOSSO]
72

Nesses termos, o Positivismo jurídico nasce com a justificativa de transformar


metodologicamente o direito em verdadeira ciência, tais como a Matemática e a Física,
desprovida de valor, haja vista que a ciência consiste somente em juízo de fatos.
O juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade no escopo de
apenas informar, de comunicar a um outro a constatação. De outra banda, o juízo de valor
representa um posição frente à realidade no desiderato de não apenas informar, mas de influir
sobre o outro, ou seja, dirigir a escolha do outro segundo seus interesses.
A ciência se afasta dos juízos de valor notadamente porque deseja um conhecimento
puro e objetivo da realidade, considerando que os juízos de valores constituem-se de um
conhecimento subjetivo, portanto pessoais. É que a partir da revolução científica, a ciência
abandonou a concepção teleológica da natureza, renunciando as premissas moralista ou
metafísica, adotando um conhecimento puramente experimental.
Para Kelsen (1998, p. 79), a ciência jurídica procura apreender o seu objeto
"juridicamente", isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode,
porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica
ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica.
É que, para Kelsen, quando uma ciência é designada como ciência social por se
dirigir à conduta recíproca dos homens, uma tal ciência social, à medida em que procura
explicar casualmente a conduta humana, não se distingue essencialmente das ciências Física,
Biologia ou Psicologia.
E acrescenta o referido autor:

Uma distinção essencial existe apenas entre as ciências naturais e aquelas


ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens, não
segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio da imputação;
ciências que não descrevem como se processa a conduta humana
determinada por leis causais, no domínio da realidade natural, mas com ela,
determinada por normas positivas, isto é, por normas postas através de atos
humanos, deve-se processar (KELSEN, 1998, p. 96).

Mesmo as ciências sociais acabaram por adotar essa metodologia, tanto que o
Positivismo assume uma atitude científica frente ao Direito, estando o direito a partir do que
ele é, e não como deveria ser60.

60
Ser e dever-ser diferem entre si assim como as ciências sociais (humanas) diferem das ciências naturais
(físico-matemáticas). Essa diferenciação repousa na distinção provocada pelos termos causalidade e imputação e
suas consequências lógico-teóricas. Condição e consequência estão ligadas não segundo o princípio da
causalidade, mas segundo o princípio da imputação. De fato, condição e consequência ligam-se pela imputação
de uma sanção a um comportamento, na esfera do Direito; nesse sentido, a sanção pode ser, como pode não ser
73

Bem observou Bittar e Almeida (Bittar e Almeida, 2011, p. 389) que:

As categorias do ser (Sein) e do dever-ser (Sollen) são os pólos com os quais


lida Hans Kelsen, para distinguir realidade e Direito, que caminham em
flagrante dissintonia, em sua teoria. Mais precisamente, é com a quebra de
relação ser/dever-ser que pretende Hans Kelsen operar para diferir o que é
jurídico (fenômeno jurídico puro) do que é não jurídico (cultura, sociológico,
antropológico, ético, metafísico, religioso).

O dever-ser jurídico61, isto é, a cópula que, na proposição jurídica62, liga pressuposto


e consequência abrange três significações: a de um ser-prescrito, a de um ser competente (ser-
autorizado) e a de um ser ─ positivamente ─ permitido das consequências (KELSEN, 1998, p.
97).
O dever-ser jurídico em Kelsen não se origina de qualquer fato social, histórico,
antes tem suas raízes no próprio Direito que lhe da validade. Com bem consignou Almeida e
Bittar, "para o positivismo kelseniano, a norma jurídica é o alfa e o ômega do sistema
normativo, ou seja, o princípio e o fim de todo o sistema" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p.
390).
Em outras palavras, o Positivismo jurídico procurou estudar o direito como fato, não
como valor, vale dizer, estudar o direito real sem se perguntar se além desse existe também
um direito ideal (Direito Natural), excluindo o direito ideal como critério de validade do
direito real.
Quanto à matéria, bem assinalou Kelsen (1998, p. 243):

Uma doutrina consequente do Direito Natural distingue-se de uma teoria


positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento de validade do Direito
Positivo, isto é, de uma ordem coercitiva globalmente eficaz, num Direito
Natural diferente do Direito Positivo e, portanto, numa norma ou ordem
normativa a que o Direito Positivo, quanto ao seu conteúdo, pode
corresponder, mas também pode não corresponder; por tal forma que,

aplicada. Causa e efeito, estudadas pelas ciências naturais, comportam-se com regularidade, e, então, o que é
causa provoca necessariamente o efeito respectivo (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 390).
61
A distinção entre ser e dever-ser é um dado imediato da nossa consciência, afirma Kelsen. E prossegue
dizendo que ninguém pode negar que o enunciado: tal como é ─ ou seja, o enunciado através do qual
descrevemos um ser fático ─ se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser ─ como o qual
descrevemos uma norma ─ e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da
circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja (KELSEN, 1998, p. 6).
62
Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que, quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser,
mesmo quando B, porventura, efetivamente não seja. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na
lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma
estabelecida pela autoridade jurídica ─ através de um ato de vontade, portanto, enquanto que a ligação de causa e
efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie (KELSEN, 1998, p.
87).
74

quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser


considerado como não válido.

Essa forma de pensar o direito contrapõe frontalmente ao jusnaturalismo


anteriormente estudado, máxime por dois conceitos bem delineados em ambos os
pensamentos: validade e valor do direito.
Bobbio (2006, p. 137) explica bem os conceitos de ambos:

A validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma segundo a


qual existe na esfera do direito, ou, em outros termos, existe como norma
jurídica. Dizer que uma norma jurídica é válida significa dizer que tal norma
faz parte do ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada
sociedade.
O valor de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, pela qual
esta é conforme o direito ideal (entendida como síntese de todos os valores
fundamentais nos quais o direito deve se inspirar); dizer que uma norma
jurídica é válida ou justa significa dizer que esta corresponde ao direito ideal.

Desse binômio juízo de fato/juízo de valor delimitaram-se as fronteiras entre Ciência


e Filosofia do direito. Renunciando a Ciência do direito ao estudo do juízo de valor lançou
para a Filosofia do direito esse estudo que passou a investigar o fundamento e a justificação
do direito diante da problemática valorativa.
Os positivistas não aceitam as definições filosóficas de problemática valorativa pelo
fato de possuírem uma estrutura teleológica (escopo finalístico), já que historicamente o
direito foi definido segundo essa perspectiva.
Com efeito, uma das mais tradicionais definições filosóficas é a que define o direito
em função da justiça, tal como encontrada no pensamento de Aristóteles, que a propósito
usava o termo díkaion, que significa propriamente "justo", para explicar o direito.
Em Santo Tomás de Aquino encontramos a definição de direito em função do bem
comum. Outra não menos importante definição de direito foi dada por Kant para quem "o
direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode entrar em acordo
com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal de liberdade".
Por sua vez, abandonando as concepções valorativas do direito, o Positivismo adota
uma definição do direito estritamente fatual, como juízo de fato e não juízo de valor. Quando
se trata de avançar em direção à compreensão do tema justiça em Kelsen, devemos
primeiramente compreender a relação mantida entre as normas jurídicas (objeto de estudo do
Direito) e as normas morais (objeto de estudo da Ética) (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 396).
75

Assim, para Kelsen, o pensar no Direito não significar pensar ético, ou seja, as
normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito, deixando para o estudo da Ética a
justiça das normas. Discutir sobre Justiça não é discutir sobre Direito, e vice-versa63.
Nesses termos, validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valores
diversos, estando em lugares distintos sem comunicação. Conclui-se que uma norma pode ser
válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; e inválida e injusta.
Um dos primeiros pensadores dessa definição neutra do Direito é Marsílio de Pádua,
pensador medieval citado por Bobbio (2011, p. 140), que destinge os vários significados do
termo "lei":

A lei pode [...] ser considerada de dois modos. No primeiro, pode ser
considerada em si, enquanto mostra somente o que é justo ou o que é injusto,
vantajoso ou nocivo... Pode-se, em seguida, considerar a lei ainda de um
outro modo, segundo o qual pela sua observância é dado um preceito coativo
ligado a uma punição ou a uma recompensa serem atribuídas neste mundo,
ou segundo seja derivada de um tal preceito; é somente quando é
considerada deste último modo é chamada de "lei" e o é propriamente.

Nesse mesmo compasso, o Positivismo jurídico introduziu um único elemento de


validade do direito: a produção de normas emanadas pelo soberano, não introduzindo nesta
definição do Direito o requisito eficácia.
Aliás quanto ao requisito eficácia, bem lembrou Bobbio (2011, p. 142) que uma
corrente jurídica contemporânea (surgida no início do século passado), ramificada no
Positivismo, chamada Escola realista do direito, sustenta que o direito é o conjunto de regras
que são efetivamente seguidas em uma determinada sociedade.
Nisso se distancia dos juspositivistas, que enfocam o direito pelo ângulo visual do
dever ser, considerando assim o direito como uma realidade normativa; os realistas enfocam o
direito do ângulo visual do ser, considerando assim o direito como uma realidade fatual.
Percebe-se que essa diversidade de pensamento se limita, em última análise, no
modo de individualizar a fonte do direito, ou seja, residindo tão somente na problemática de
como se deve considerar o direito: sob o ponto de vista da validade (do dever ser) ou da
eficácia (do ser).

63
Justiça e injustiça nada têm a ver com a validade de determinado Direito Positivo; é essa a nota distintiva entre
Direito e Ética. A validade de uma ordem jurídica não vem contrariada pelo simples fato de que o Direito se
tenha construído contra a mora. O que é válido prepondera sobre o que é justo, pois o que é válido está de acordo
com os modos de existência normativa de dado ordenamento jurídico; o que é justo, por sua vez, está no plano
das especulações, dos valores. E aceitar que o justo prepondera com relação ao válido é trocar o certum pelo
dubium. O que pode determinar o princípio de validade de todo um ordenamento é a sua norma fundamental,
pressuposto lógico-técnico do sistema, e não qualquer norma de justiça.
76

De qualquer forma a definição do Positivismo (em sentido estrito) e a do Realismo


jurídico comungam do mesmo pensamento anti-ideológico do direito, em total contraposição
ao jusnaturalismo.
É que ambas procuram estabelecer o que é direito abandonando uma concepção
substancial ou material, ou seja, sem defini-lo a partir do seu conteúdo, da matéria a ser
regulada, posto que, por regular comportamentos em uma sociedade plúrima (Estado Liberal,
Estado Social, relações internacionais, ordenamentos canônicos), os ordenamentos podem ser
diversos e dos mais variados conteúdos.
Nesse particular, vem a lição de Kelsen ministrar que, assim como a lei natural é
uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não o objeto a descrever, assim também
a lei jurídica é um enunciado ou afirmação descritiva do Direito, a saber, da proposição
jurídica formulada pela Ciência do Direito, e não o objeto que a descreve, isto é, o Direito à
norma jurídica (KELSEN, 1998, p. 90).
Assim, serve-se de uma concepção estritamente formal para definir o Direito,
também chamada de "formalismo jurídico", haja vista que define o direito exclusivamente em
função da sua estrutura formal ─ dispensando uma leitura substancial ─ pois considera
somente como o direito se produz e não o que ele estabelece.
Bobbio (2006, p. 146) foi preciso ao identificar duas principais acepções de
formalismo empregadas na linguagem jurídica: o formalismo científico e o formalismo ético -
que terão pontos de identificação com a doutrina do Positivismo jurídico:

a) Entende-se por formalismo científico a concepção da ciência jurídica que


a releva predominantemente à interpretação lógico-sistemática, de
preferência à teleológica. Segundo a concepção formalista da interpretação
(característica, como já vimos, da escola de exegese), as concretas regulae
decidendi são extraídas da norma legislativa, desconsiderando a finalidade
perseguida por esta, o conflito de interesses que se deve dirimir e, assim por
diante, mas essencialmente com base em uma operação de caráter lógico.

b) Entende-se por formalismo ético a concepção própria do Positivismo


jurídico como Weltanschauung, segundo a qual a ação justa consiste pura e
simplesmente no cumprimento do dever imposto pela lei, qualquer que seja
esta, qualquer que se seja seu conteúdo (nesse sentido, fala-se também da
concepção legalista da moral).

Se a norma jurídica encontra posição nuclear no pensamento positivista, o conceito-


chave, e de maior importância de sua teoria, é o conceito de validade. Ser válida não significa
o mesmo que ser verdadeira ou falsa, mas estar de acordo com os procedimentos formais de
77

criação normativa previstos por determinado ordenamento jurídico (BITTAR; ALMEIDA,


2011, p. 391).
Outra característica do Positivismo é a possibilidade de definir o direito em função
da coação. Hobbes já tentou teorizar essa concepção já no século XVII, todavia a tradição nos
remete a Christian Thomasius, não obstante ser um pensador mais expoente do
jusnaturalismo, através de uma obra intitulada "Fundamenta juris naturae et gentium", de
1705, onde expõe uma teoria clássica da coação.
Esse pensador não se limitou a definir como normas jurídicas somente as normas
coercitivas, antes procurou estabelecer a que tipos de ação as normas jurídicas devem se
referir, excluindo do campo do direito todas as normas relativas à vida interior do homem (de
conteúdo moral).
Thomasius traz uma tripartição para distinguir todas as regras de conduta humana:
honestum, justum e decorum. O direito se identifica somente nas normas pertencentes à esfera
do justum, enquanto o honestum e o decorum64 refere-se a ações que o homem realiza para
cumprir um dever para consigo mesmo. O que distingue o direito (justum) das outras duas
categorias de normas (honestum e decorum) é que só o direito pode se fazer valer mediante a
força.
Mesmo para Kant (2010, p. 55), a coação é um elemento característico e essencial do
Direito, afirmando que:

A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar
desse efeito e se combina com esse.
Tudo aquilo que é injusto é um impedimento à liberdade, enquanto esta é
submetida a leis universais, e a própria resistência é um obstáculo que se faz
à liberdade.
Por conseguinte, quando um certo uso da própria liberdade é impedimento à
liberdade, segundo leis universais (quer dizer, é injusto), então a resistência
oposta a tal uso, na medida em que serve para impedir um obstáculo feito à
liberdade, coincide com a própria liberdade segundo as leis universais, o que
é justo. Daí que ao direito se une, de acordo com o princípio da contradição,
a faculdade de obrigar quem o ofende.

Em outras palavras, para Kant, um direito estrito pode também ser representado
como a possibilidade de um uso inteiramente recíproco de coerção que é compatível com a
liberdade de todos de acordo com leis universais.

64
Para Thomasius, a função do honestum é evitar os vícios e favorecer a perfeição pessoal. Funda-se na
máxima: faz para si mesmo o que queres que os outros façam para si mesmo. O decorum visa assegurar aquilo
que hoje chamamos de solidariedade humana e social, sendo uma categoria intermediária entre o justum e o
honestum. Traduz-se isso na expressão: Não faz aos outros o que não queres que os outros façam a ti.
78

E acrescenta:

[...] se meu ato ilícito representa um abuso da minha liberdade, com o qual
eu invado a esfera da liberdade do outro; com o propósito de reconstruir em
favor do outro a sua esfera de liberdade por mim injustamente invadida, o
único remédio é usar a coerção, de modo a fazer-me desistir do meu abuso.

Diria Bobbio (2006, p. 152) que o significado dessa preposição kantiana é que a
coação é uma não-liberdade (devida ao Estado), que repele minha não-liberdade. Esta é,
portanto, uma negação da negação e, em consequência, uma afirmação (e precisamente é a
reafirmação da liberdade do terceiro lesado pelo meu ilícito).
A doutrina da natureza coercitiva do direito ganha outras vozes no século XIX,
notadamente por Rudolf Von Jhering. Para Jhering, a coação define o mundo do Direito e
adquire existência pelo Estado. Direito, coação e Estado são, portanto, três elementos
indissoluvelmente ligados.
Percebe-se que, para esse autor, o Estado é tido como uma organização definitiva de
uso do poder para as finalidades humanas65, o Estado como organização social detentora do
poder coativo.
Essa teoria clássica ou tradicional66 da coação, em que coação é o meio para se fazer
valer as normas jurídicas, ganhou novos contornos. Modernamente se estabeleceu uma teoria
em que a coação é o objeto das normas jurídicas, isto é, o direito é um conjunto de normas
que regulam o uso da força coativa.
Bem observou Bobbio (2006, p. 158) que, segundo a moderna formulação da teoria
da coação, o Direito é, por conseguinte, um conjunto de regras que têm por objeto a
regulamentação do exercício da força em uma sociedade. Para tanto, o autor aprofundou sua
lição fazendo uma análise na passagem do estado de natureza ao estado civil:

O estado de natureza é caracterizado pelo uso indiscriminado da força


individual. Cada um usa o próprio arbítrio de sua força, sem que tal
comportamento possa jamais ser qualificado como ilícito (Hobbes falava
neste sentido em um bellum omnium contra omnes). O direito surge quando
cessa este exercício indiscriminado da força individual e se estabelecem as
modalidades de exercício da força, com referência a quatro pontos
fundamentais: quem, quando, como e quanto:
a) O direito estabelece antes de mais nada quem deve usar a força;
65
Aliás, Jhering elencou quatro categorias fundamentais de ações humanas: a) o ganho e a coação que
caracterizam, respectivamente, a esfera do econômico e a esfera do jurídico; b) sentimento do dever e o amor
que caracterizam as esferas das atividades éticas (BOBBIO, 2006, p. 153).
66
A propósito, para a teoria clássica ou tradicional, a coação é o meio mediante o qual se faz valer as normas
jurídicas, ou, em outras palavras, o Direito é um conjunto de normas que se fazem valer coativamente.
79

b) O direito estabelece, em segundo lugar, quando o grupo monopolizador


pode usar a força;

c) Em terceiro lugar, o direito estabelece como a força deve ser exercida;

d) E, enfim, o direito regula também a quantidade da força.

Para Kelsen (1998, p. 37), dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as
suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica. E acrescenta que:

Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O


momento coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem
como consequência de uma situação de fato considerada socialmente
prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e
─ em caso de resistência ─ mediante o emprego da força física, é o critério
decisivo.

Outra característica do Positivismo é a problemática das fontes do direito, ou seja, a


lei como única fonte de qualificação do direito. Esse tema ganha importância porque diz
respeito à própria validade das normas jurídicas. Somente é válida se for produzida por uma
fonte chancelada pelo próprio ordenamento jurídico.
É que a doutrina juspositivista tem como primado a prevalência de uma determinada
fonte de direito sobre todas as outras, pressupondo a existência de ordenamentos jurídicos
complexos e hierarquizados.67
Nesses, a fonte que se encontra no plano hierárquico mais alto é a lei, visto que ela é
a manifestação do poder soberano do Estado. Outras fontes produtoras de normas são tão
somente fontes subordinadas.
Bobbio (2006, p. 164) esclarece que essa relação de subordinação se explica ou com
base em um processo de reconhecimento (ou recepção) ou com base em um processo de
delegação, onde se fala de fontes reconhecidas ou de fontes delegadas. E ministra:

a) fala-se de reconhecimento ou recepção quanto existe um fato social


precedente ao Estado ou, de qualquer maneira, independente deste, que
produz regras de conduta a que o Estado reconhece68 (isto é, atribui) a
posteriori o caráter de juridicidade ou, em outros termos, que o Estado

67
Chama-se de ordenamento jurídico simples aquele no qual existe uma única fonte de direito e complexo aquele
no qual existem várias fontes. Historicamente os ordenamentos jurídicos são complexos. Hierarquizados são os
ordenamentos jurídicos estruturados, em que as fontes não são colocadas no mesmo plano. Paritários são aqueles
colocados no mesmo plano.
68
Bobbio lembra que um exemplo quase não discutido de fonte reconhecida é representado pelo costume, apesar
de haver vozes dissonantes.
80

recepciona (isto é, acolhe em bloco) no próprio ordenamento sem ter


contribuído para a formação do seu conteúdo.

b) Fala-se, ao contrário, de delegação69 quando o Estado atribui a um órgão


diverso daquele portador da soberania, ou mesmo a uma instituição social
não pertinente à organização do Estado, o poder de estabelecer normas
jurídicas para certas matérias e dentro de certos limites estabelecidos pelo
próprio Estado. Este poder se diz delegado precisamente porque não
pertence originalmente à instituição que o exerce, mas ao Estado.

Percebe-se que, no processo de formação histórica do Estado moderno, a única fonte


de produção legislativa é a lei. A própria histórica se encarrega de justificar isso.
Considerando a relação hierárquica entre a lei e o costume, encontramos diferentes situações
ao longo da história. Em determinado momento, costume é superior à lei; em outro, o costume
e a lei são dispostos no mesmo grau paritário e em outro ainda, costume tem graduação
inferior à lei.
Sobre o costume prevalecer à lei, cabe lembrar o ordenamento jurídico inglês da
common law antes da consolidação da monarquia parlamentar. Na Idade Média, havia uma
divisão clara na doutrina canônica sobre a qualificação dos costumes.
A doutrina romano-canônica e a doutrina moderna negam seu caráter de fonte de
qualificação jurídica, posto que situam o fundamento de validade das normas
consuetudinárias em uma fonte diferente do próprio costume. Todavia, a doutrina da Escola
histórica, a seu turno, tem entendimento contrário.
Para essa Escola, o costume tem caráter jurídico independentemente do legislador,
posto que sua validade se funda na convicção jurídica popular do que é justo. Não obstante,
essa doutrina não recebeu acolhimento, prevalecendo nítida inclinação em negar ao costume
seu caráter como fonte autônoma do direito, tal como foi formado o Estado moderno,
notadamente na França e na Itália.
De igual forma quanto à equidade, pois pela formação do Estado moderno, tal como
acontece com os costumes, o juiz tem de submeter aos ditames da lei para produção judicial,
tal como proposto pela teoria da tripartição de poderes de Montesquieu. Sem prejuízo, isso
não exclui a possibilidade da aplicação do juízo de equidade, posto que não aplica normas
jurídicas positivas, mas há uma decisão segundo a consciência ou com base nos princípios de
justiça.

69
Exemplo de fonte delegada são os regulamentos, ou seja, normas jurídicas emanadas do poder executivo para
detalhar normas contidas em uma lei, com base na autorização do próprio Poder Legislativo.
81

Ao aplicar o juízo de equidade, o julgador não usurpa a função legislativa de


produção jurídica principal, mas tão somente como fonte subordinada, autorizada pelo
compêndio legal.
Outra forma de definir o Positivismo é olhar para a estrutura de um comando e
definir uma concepção da norma jurídica com comando. É o que se chama de teoria
imperativista da norma jurídica estritamente ligada à concepção legalista-estatal, o direito, ou
seja, considera-se o Estado como única fonte do direito e determina a lei como única
expressão do poder normativo do Estado.
A teoria imperativista do direito não surgiu com o Positivismo, já estava presente em
algumas culturas jurídicas precedentes. Na cultura medieval, notadamente em São Tomás de
Aquino, encontramos uma distinção entre comando (praeceptum) e conselho (consilium).
Para São Tomás, o comandar é próprio da lei, enquanto que o conselho deixa ao destinatário
uma liberdade de escolha.
Em Hobbes, já no pós-medieval, a distinção entre comando e conselho serve para
diferenciar a natureza das prescrições do Estado da das prescrições da Igreja, ou seja, o Estado
emite comando, deixando para a Igreja proferir conselho. Essa construção teórica foi precisa
para justificar a subordinação da Igreja ao Estado.
Em Thomasius, os conceitos são utilizados para distinguir o Direito Positivo do
Natural. Com efeito, o primeiro emite comandos imperativos, enquanto o segundo, regras de
justiça natural.
Kant formulou, na Fundamentação à Metafísica dos Costumes, uma distinção entre
imperativos morais (que são imperativos categóricos) de todos os outros imperativos (que são
imperativos hipotéticos). Imperativos são, para Kant, como fórmula de mandado, ou seja, é o
próprio mandamento expresso em linguagem ou como forma de uma função conativa.
No pensamento kantiano, há uma classificação de imperativos segundo o grau de
"coação" que cada um pode exercer na consciência do ser humano. Salgado (1986, p. 213)
bem ministrou:

[...] o imperativo técnico é o princípio da destreza, na medida em que define


a ação (ou o bem) como útil ou adequado a determinado ordenamento fim
(por isso se chama hipotético), que alguém pode querer (problemático). O
imperativo pragmático é o princípio da prudência que define a ação (ou bem
enquanto meu bem) como o que é útil à minha felicidade (hipotético) e que é
naturalmente desejado por todos (por isso, assestório). O imperativo da
moralidade define o bem moral considerado em si mesmo ou a ação humana
enquanto boa em si mesma (por isso é categórico) - e não apenas boa para
82

algum fim externo a ela - e que deve ser querida por todo ser racional
(apodítico).

Bem asseverou Bobbio (2006, p. 195) que, por essa teoria do imperativismo jurídico,
ocorreu uma evolução na qual se pode distinguir duas fases, qualificáveis respectivamente
como imperativismo ingênuo e imperativismo crítico. Ministrou o referido autor:

1) O imperativismo ingênuo (que vai de Hobbes a Austin e ao qual pertence


o próprio Thon) considera o direito como um conjunto de comando dirigidos
pelo soberano aos cidadãos, sem analisar ulteriormente a estrutura do
imperativo jurídico.

2) O imperativismo crítico (que tem como um dos seus maiores expoentes


em Kelsen), precisa os caracteres do imperativo jurídico sob dois aspectos
a) norma jurídica é um imperativo hipotético;
b) a norma jurídica é um imperativo que se dirige não aos cidadãos, mas aos
juízes.

Importante também dar especial importância à teoria do ordenamento jurídico como


contribuição do Positivismo jurídico à teoria geral do direito, haja vista que, antes do
Positivismo, não se falava em ordenamento jurídico tal como entendemos hodiernamente, mas
tão somente em um conjunto emaranhado de leis representadas nas expressões jus, justum e
lex.
A teoria do ordenamento jurídico surge no fim do século XVIII e início do século
XIX, justificado pela exigência de estabelecer uma visão unitária e coerente ao conjunto de
normas jurídicas fragmentárias.
A teoria do ordenamento jurídico contribuiu sobremaneira para a Ciência do Direito,
pois trouxe caracteres fundamentais para a construção metodológica do Direito, notadamente
atribuindo atributos necessários ao conjunto de normas jurídicas: a unidade, a coerência e a
completitude.
Sabe-se que a unidade não é atributo exclusivo do Positivismo. Mesmo entre os
jusnaturalistas havia um consenso da necessidade de um ordenamento unitário, tanto que as
codificações nascem das ideologias jusnaturalistas.
A contribuição juspositivista está assentada no modo de conceber a unidade do
direito. Enquanto para o jusnaturalista se trata de unidade substancia ou material (conteúdo
das normas), para os positivistas há uma abordagem eminentemente formal, relativo ao modo
pelo qual as normas são postas.
83

Kelsen irá estabelecer essa diferença no dualismo: ordenamento estático e


ordenamento dinâmico. Segue o ensinamento do mestre:

As normas reguladoras da conduta humana ou a conduta humana regulada


pelas normas, conforme o conhecimento é dirigido a normas jurídicas
produzidas, a aplicar ou a observar por atos de conduta humana ou aos atos
de produção, aplicação ou observância determinados por normas jurídicas,
podemos distinguir uma teoria estática e uma teoria dinâmica do Direito. A
primeira tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, o
Direito no seu momento estático; outra tem por objeto o processo jurídico
em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento
(KELSEN, 1998, p. 79).

Extrai-se da lição de Kelsen, que o ordenamento estático tem pertinência na moral e


no direito concebido pelos jusnaturalistas, enquanto o ordenamento dinâmico é o próprio
direito concebido pela teoria positivista.
Sobre o tema, Bobbio observa que, para os jusnaturalistas, o direito constitui um
sistema, posto que todas as normas podem ser deduzidas por um procedimento lógico uma da
outra até que se chegue a uma norma totalmente geral, que é a base de todo o sistema e que
constitui um postulado moral autoevidente. E exemplifica o autor:

[...] a norma que proíbe o furto, se eu pergunto a um jusnaturalista por que


não deve furtar, ele me responde demonstrando que tal norma está implícita
naquela mais geral neminem laedere; e se eu insisto em indagar porque devo
neminem laedera, ele me responderá demonstrando-me que tal preceito
deriva, diretamente ou através de uma outra norma, de um postulado moral
auto-evidente. Já segundo os juspositivistas, ao contrário, o direito constitui
uma unidade num outro sentido: não porque as suas normas possam ser
deduzidas logicamente uma da outra, mas porque elas todas são postas
(direta ou indiretamente, isto é, mediante delegação a autoridade
subordinadas pela mesma autoridade, podendo assim todas serem
reconduzidas à mesma fonte originária constituída pelo poder legitimado
para criar o direito. Assim, se pergunto a um juspositivista por que não devo
roubar, ele me responde que não devo porque assim estabeleceu o juiz ou
costume ou o legislador (segundo se trate de um ordenamento judiciário,
consuetudinário ou legislativo); e se insisto e pergunto por que devo
obedecer ao que estabelece o juiz ou o costume etc., ele me responde que
devo porque assim estabeleceu o poder supremo (BOBBIO, 2006, p. 199).

A norma que representa o fundamento de validade de outra norma é tida por norma
superior. Estabelecendo esse processo de regressão, não seria possível terminar, já que
estaríamos sempre diante de uma norma que seria fundamento de validade de outra. Assim,
em termos hipotéticos, deve-se terminar em uma norma que se pressupõe ser o último
84

fundamento de validade de todas as outras. Essa norma, portanto, não é posta pelo
ordenamento jurídico, e sim pressuposta, chamada por Kelsen de norma fundamental.
É que o conjunto de norma forma a ordem jurídica, assim entendido um conjunto
hierárquico de normas legais. E toda ordem jurídica requer, para sua validade, um regresso ad
infinitum por meio das normas, até a norma fundamental que é pressuposta (e não posta,
positivada).
Na lição de Bittar e Almeida (2011, p. 392), inexistente a norma fundamental,
devem-se aceitar pressupostos metafísicos para a fundamentação da ordem jurídica (Deus,
ordem universal, contrato social, Direito Natural). Trata-se de uma ficção de pensamento, na
busca de determinar um começo e um fim.
Assim ministra Kelsen (1998, p. 217):

A norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas


pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de
validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem
baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma
fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de
uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade
de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.

Em outras palavras, uma norma fundamental é norma que fundamenta a validade de


todas as normas de um sistema jurídico, salvo a sua própria. Esta norma não é posta por um
outro poder superior qualquer, mas sim suposta pelo jurista para poder compreender o
ordenamento, ou seja, refere-se a um pressuposto lógico da norma derivada (norma posta).
Dessa forma, chega-se ao ordenamento jurídico: o direito como paradigma de validade do
próprio direito.
Para Kelsen, uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo,
mas porque foi criada de determinada forma, por uma forma fixada por uma norma
fundamental pressuposta. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.
E segue ministrando Kelsen (1998, p. 221), acerca da validade da norma:

A validade desta (norma jurídica) não pode ser negada pelo fato de o seu
conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica
cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão.
A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que,
por o seu conteúdo ser havido como imediatamente vidente, seja pressuposta
como a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas - como o
particular do geral - normas de conduta humana através de uma operação
lógica.
85

O jusnaturalista, em especial Kant, não usa a expressão norma fundamental, não


obstante esta parece estar presente no seu pensamento. Isso será melhor explorado, neste
estudo, mais adiante, entretanto se pode afirmar de pronto que essa teoria foi submetida a
várias críticas. A pergunta é simples: no que se funda a norma fundamental?
No positivismo, a função interpretativa da jurisprudência ganha um novo contorno
em relação a correntes diversas, notadamente quanto à natureza cognoscitiva da
jurisprudência, ou seja, a importância da jurisprudência para o conhecimento do Direito.
Tradicionalmente o direito se exterioriza em dois momentos distintos: o momento
ativo ou criativo (dado pela atividade legislativa) e o momento teórico ou cognoscitivo
(proveniente da aplicação das leis com a formação da jurisprudência). É justamente nesse
segundo momento que há uma dissonância do juspositivismo com as escolas clássicas.
Para o Positivismo, a atividade jurisprudencial é puramente declarativa de um direito
preexistente, ou seja, de cunho estritamente passivo, posto que apenas reproduz um direito
prévio. Já para os críticos do Positivismo, a atividade jurisprudencial tem natureza cognitiva,
ou melhor, criativa ou produtiva de um novo direito, caracterizado no conhecimento ativo de
um objeto que o próprio sujeito cognoscente contribui para produzir.
Em outras palavras, o Positivismo considera a tarefa da jurisprudência de cunho
estritamente passivo, da não criação mas tão somente de interpretação do direito posto. O
grande problema está em estabelecer o que seja interpretar.
Sabe-se que a interpretação é uma atividade complexa e metodológica, podendo ser
concebida em diversos modos. É um conceito referencial por definição em que se interpreta
algo em referência a um paradigma. Assim, baseia-se em signos e o significado do próprio
signo segundo um método interpretativo.
No campo jurídico não é diferente. Pode-se, portanto, estabelecer uma interpretação
segundo a letra da lei (textual) ou mesmo segundo o espírito que animou a produção da lei.
Nisso reside a marca do Positivismo, pois essa teoria coloca um limite intransponível à
atividade interpretativa, somente admitindo a textual ou extratextual (somente para integrar a
lei), todavia não admite colocar a vontade do legislador no momento de produção da lei.
Opera-se, dentro do método hermenêutico, por quatro expedientes interpretativos
para extrair da norma seu real significado: interpretação gramatical (texto da lei);
interpretação teleológica (lógica com base nos motivos e finalidade da norma); interpretação
sistemática (olhar para o ordenamento como um sistema unitário e coerente) e interpretação
histórica (utilização de dados históricos na produção da norma).
86

Já os meios de interpretação extratextual estão limitados ao processo integrativo


através do recurso da analogia, falando-se, portanto, em interpretação integrativa do Direito,
suprindo as lacunas existentes (formulação incompleta da vontade do legislador).
Esse foi ponto inovador do Positivismo; o que diferencia a integração analógica no
Positivismo com outros pensamentos está no fato de a analogia ser vontade presumida do
legislador. Como diz Bobbio, ao estender, em via analógica, uma certa norma a um caso por
esta não previsto, o intérprete (segundo o Positivismo jurídico) aplica ainda a vontade do
legislador, visto que este não previu tal caso; mas se o tivesse previsto, tê-lo-ia regulado de tal
modo (BOBBIO, 2006, p. 219).
Dessa maneira, percebe-se que a vontade expressa do legislador refere-se à
interpretação em sentido estreito, enquanto a vontade presumida do legislador indica um caso
de integração. Em ambos haverá sempre a vontade do legislador.
Estabelecendo um balanço analítico do Positivismo, chegamos a uma indagação: o
Positivismo é uma teoria ou ideologia? Entendem-se, por teoria, as formulações, conceitos e
formas de conhecimento extraídas de juízo de fato, tendo por escopo tão somente informar
sobre uma realidade. A ideologia, por sua vez, tende a uma investigação valorativa, vale dizer,
é uma expressão de juízos de valores que têm a finalidade de influírem sobre a realidade
fática.
O pensamento central do Positivismo estava fulcrado em assumir um comportamento
estritamente teórico do direito, procurando conhecê-lo como é, um conceito de teoria, e não
como deveria ser (conceito de ideologia).
A crítica que se faz do Positivismo é que esse pensamento não consegue alcançar a
neutralidade a que se propôs. Não conseguiu limitar-se a uma teoria simplesmente, passando
em determinados momentos para uma autêntica ideologia.
Essa ideologia é marcante na concepção do Estado para os positivistas. O Estado,
diriam eles, não tem um puro valor técnico, não é um simples instrumento de realização dos
fins dos indivíduos, antes tem um valor ético manifestado no seu dever histórico (percepção
ideológica).
É justamente nessa distinção entre teoria e ideologia que residem as mais sérias
críticas ao Positivismo, quer vinda da corrente realista (ou jurisprudência sociológica), quer
da ressuscitada corrente jusnaturalista moderna.
Não foi por outro motivo que Bobbio (2006, p. 225) fez esta análise:
87

Os críticos do positivismo jurídico vêm de duas "praias" diferentes e se


dirigem a dois aspectos diversos: de um lado a corrente do realismo jurídico
critica os seus aspectos teóricos, afirmando que não representam
adequadamente a realidade efetiva do direito; de outro lado a renascida (ou
melhor, dizendo, revigorada) corrente do jusnaturalismo critica os aspectos
ideológico do positivismo, destacando as consequências práticas funestas
que deles derivam.

Tanto assim que o pensamento positivista foi considerado um dos fundamentos para
a proliferação de Estados totalitários do século XX, bem como justificativa para a prática dos
horrores do nazismo.
As críticas têm seu fundamento lógico, porque o pensamento positivista está fundado
no dever incondicional de obedecer à lei enquanto tal. Esse pensamento não se insere no
plano do conhecimento que define o direito como tal (teoria do direito), mas num plano ético
do direito, posto que representa como ele dever ser (ideologia do direito).
Não se negam as conquistas necessárias e úteis do Positivismo, notadamente em
estabelecer a formação do Estado moderno fundado na obediência às leis como fonte primária
do direito. Ocorre que, para a corrente positivista, a obediência incondicional à lei não é
apenas uma obrigação jurídica, mas também uma obrigação moral.
Em outros termos, o homem deve obedecer à lei não por motivos externos, mas por
motivos internos de convicção ideológica. É assim entendido como o dever de consciência de
obedecer às leis.
Essa forma de pensar o direito, justificando os motivos internos de obediência,
sempre foi alternada na história do direito a depender do momento histórico e político da
humanidade. Em última instância, a pergunta chave é: "o que é justiça?".
Entre os sofistas, a Justiça é a expressão da vontade do mais forte, que procura o seu
próprio proveito. No pensamento de Aristóteles, a lei não tem nenhuma força para ser
obedecida, a não ser pelo costume, e este não se forma com o transcurso de longo tempo, pelo
qual a facilidade para mudar as leis existentes por outras novas é debilitar-se o poder da lei.
Já no pensamento de Santo Agostinho, a lei humana deve regular o comportamento
entre os seres humanos, porém deve obediência à lei natural que corresponde à moralidade
registrada na alma humana, ou seja, a lei humana encontra seu critério de validade na lei
natural que provém do coração de Deus. Esta é a concepção sagrada da autoridade.
Para Hobbes não existe um critério objetivo para distinguir o justo do injusto, pois o
homem sai do estado de natureza através de um acordo, ou melhor, precisamente atribuir a um
indivíduo (soberano) o poder de estabelecer o que justo e o que é injusto. Justo é o que o
88

soberano comanda; injusto é o que ele proíbe. O limite da obediência está em quando se nega
a validade do contrato social, ou seja, quando as leis positivas se voltam contra o conteúdo do
contrato social.
Em Kant, o Direito Positivo tem fundamento de validade último não em si mesmo ou
no arbítrio do legislador, mas na razão ou, em última palavra, na liberdade, o único Direito
Natural.
Tem-se, portanto, que dentro de uma perspectiva histórica, há diferentes justificativas
para a obediência à lei. Essas justificativas são de ordem interna, vale dizer, referem-se ao
campo da moral. O homem deve obedecer às leis não só por motivos internos, porque é
constrangido a obedecer, mas porque está convencido de que tal obediência é uma coisa
intrinsecamente boa: obediência não por constrição, mas por convicção.
Em outras palavras, no pensamento tradicional, havia o dever de obedecer às leis
enquanto justas; já no Positivismo há um dever de obedecer às leis enquanto tais.
Nesse particular, ministrou Bobbio (2006, p. 227):

[...] na definição dada pelo positivismo jurídico não esta compreendido o


requisito da justiça, mas somente o de validade. Ou, se se prefere (e tendo
sempre presente que estamos falando das posições extremistas do
juspositivismo), poderíamos dizer que este considera a lei justa pelo único
fato de ser válida; o jusnaturalismo e o positivismo extremista (isto é, o
positivismo ético) identificam ambas as noções de validade e de justiça da
lei; mas, enquanto o primeiro deduz a validade de uma lei da sua justiça, o
segundo deduz a justiça de uma lei da sua validade.

Mas a História nos mostra que há duas versões do Positivismo ético: uma mais
moderada e outra mais extremada. A estudada acima pode-se dizer que pertence à ala mais
extremada da positividade, haja vista que o direito tem um valor enquanto tal,
independentemente de seu conteúdo: um valor final.
Para os moderados, o Positivismo ético abraça um valor instrumental, o direito é um
meio que serve para realizar um determinado bem: a ordem da sociedade. Se for desejado tal
bem, deve-se obedecer ao direito.
Em última análise, para Bobbio (2006, p. 233-235), há três aspectos fundamentais do
Positivismo jurídico distintos, ou, em outros termos, em três planos diversos a ser estudado
com acepções distintas uma da outra: a) como método para o estudo do direito; b) como teoria
do direito; e c) como ideologia do direito.
E observa com propriedade que os críticos da teoria positivista adotam um aspecto
ou outro para formular suas contrarrazões. E segue ministrando:
89

a) Se se toma para exame o método positivista, a crítica se funda num juízo


de conveniência. De fato, o método não é senão um meio para atingir um
determinado fim e, portanto, se trata de avaliar se tal meio é idôneo para
atingir o fim em questão, a saber, avaliar precisamente a conveniência do
próprio meio.

b) Se se toma para exame a teoria juspositivista, a crítica se baseia num juízo


de verdade ou de falsidade, visto que a teoria quer descrever a realidade e a
sua avaliação consiste em verificar se há correspondência entre teoria e
realidade.

c) Se se toma para exame a ideologia juspositivista, a crítica se funda num


juízo de valor, pois a ideologia não se pode dizer que é verdadeira ou falsa,
mas se deve dizer se é boa ou má (justa ou injusta, etc); e o modo mais
eficaz de criticar uma ideologia consiste em demonstrar que ela dá lugar a
uma realidade contrária aos valores comumente aceitos.

O Positivismo é marcado pelo excessivo emprego às leis postas, não havendo quase
espaço para especulações abstratas e metafísicas sobre Direito Natural. Nesses termos, a
ciência jurídica se converte definitivamente em ciência positivista resultando na principal,
senão única, via de manifestação do direito.
Não se desconhece a grande contribuição que a teoria positivismo deu para o estudo
do Direito enquanto ciência. E apesar da grandeza de seus pensadores e idealizadores, nota-se
que nunca foi possível calar, na melhor expressão de Mendonça (2012, p. 61), aqueles que,
em sentido contrário, proclamam a existência e a possibilidade do reconhecimento de um
Direito imposto pela natureza.

2.4 A crise do Positivismo jurídico

De tudo exposto, o debate jusnaturalista contemporâneo foi deixado à margem da


pauta acadêmica, convertendo-se em um direito acessório e irrelevante. Bem asseverou o
Professor Barroso quanto ao tema, observando a passagem do Direito Natural para o
juspositivismo, fulcrado nos ideais constitucionalistas presentes desde a Revolução Francesa.
Assim ministrou o professor Barroso (2012):

O jusnaturalismo moderno, que começou a formar-se a partir do século XVI,


dominou por largo período a filosofia do Direito. A crença no Direito
Natural – isto é, na existência de valores e de pretensões humanas legítimas
que não decorrem de uma norma emanada do Estado – foi um dos trunfos
ideológicos da burguesia e o combustível das revoluções liberais. Ao longo
do século XIX, com o advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais
90

constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação, o


jusnaturalismo chega ao seu apogeu e, paradoxalmente, tem início a sua
superação histórica. Considerado metafísico e anticientífico, o Direito
Natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista
do final século XIX.

A organização do sistema do direito começou a surgir no século XVIII e XIX, já que


não se pode ver as leis como um amontoado de leis, então foi necessário um critério de
decidibilidade. E estas perguntas tomaram força: qual o critério seria utilizado? Havia a
necessidade de propor um sistema, um critério científico? Isso somente vai surgir na
modernidade.
Conforme delineado, essa passagem ocorreu porque os princípios são tidos como
filosóficos fundamentadores dos ideais de justiça. Todavia, dentro dessa concepção, não
possuíam aplicabilidade concreta. Na época das grandes discussões jusnaturalistas, os
princípios deveriam ser entendidos como algo não aplicável no âmbito jurídico, sendo matéria
reservada precipuamente ao Direito Natural, decorrentes de um valor ético, em razão da busca
pelo senso de justiça.
A corrente jusnaturalista recebeu severas críticas em decorrência de sua
abstratividade, sob o argumento de que gerava insegurança e incerteza perante a coletividade.
O juspositivismo adveio da pretensão de se estabelecer bases científicas ao direito, elevando à
categoria de ciência jurídica, divorciando do caráter metafísico estampado no Direito Natural.
Essa emancipação progressiva da humanidade e seu encaminhamento, lento, mas
firme, para o bem-estar – o que se chamará de humanismo ─ estimulará todas as políticas
democráticas na Europa, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial.
Eis a importância de Kelsen, que fez um recorte epistemológico do Direito, partindo
o estudo do Direito pela norma. E a teoria de Kelsen foi testada na Segunda Guerra Mundial.
Ocorre que o pensamento juspositivista, com fundamento no apego às leis postas e
desprovidas da especulação filosófica, separou o direito da moral. Com o passar dos tempos, a
positivação crônica do direito entrou em declínio pela reação aos regimes totalitários.
Para Arendt (1979, p. 10)

O fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da


natureza humana e que a organização burocrática de massas, baseada no
terror e na ideologia, criou novas formas de governo e dominação, cuja
perversidade nem sequer tem grandeza![...]. Os padrões morais e as
categorias políticas que compunham a continuidade história da tradição
ocidental se tornaram inadequados.
91

As atrocidades praticadas na Segunda Guerra Mundial, sob a justificativa de se


“cumprir a lei”70, trouxeram uma grande lição aos pensadores positivistas que defendiam a
ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos. Começa-se a repensar o direito
com um conteúdo axiológico.
Leciona Gusmão (1985, p. 30-32) que “o retorno das filosofias jusnaturalistas no
século XX ocorreu sob o influxo das contribuições do historicismo e sociologismo jurídico,
antigos antagonistas do próprio jusnaturalismo”.71
Com efeito, pois a tese central positivista defende a separação entre direito e moral.
Conforme exposto no presente trabalho, essa discussão remonta a dois mil anos sem, contudo,
se estabelecer uma teoria fechada de conceito e validade do direito. A depender da
conceituação do direito e sua validade, estabelece-se uma ideia de justiça.
Por outro lado, as vozes contrárias ao Positivismo comungam da ideia da vinculação
entre direito e moral. É importante observar que, normalmente, o tema é estudado sob o
aspecto temporal em que a norma moral precede a norma jurídica72.
Quanto ao tema, Bittar e Almeida fazem a seguinte afirmação (2011, p. 522):

O que há de se questionar é qual a relação mantida entre Direito e moral. E,


nesse sentido, só se pode afirmar que o Direito se alimenta da moral, tem seu
surgimento a partir da moral, e convive com a moral continuamente,
enviando-lhe novos conceitos e normas, e recebendo novos conceitos e
normas. A moral é, e deve ser sempre ser, o fim do Direito. Com isso, pode-
se chegar à conclusão de que Direito sem moral, ou Direito contrário às
aspirações morais de uma comunidade, é puro arbítrio, e não Direito.

Não é demais falar que os propulsores do Positivismo jurídico do século XX levaram


essa doutrina às últimas consequências. Sob o rótulo de uma "teoria pura", justificaram as
bases ideológicas do totalitarismo por diversos matizes.

70
Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a
decadência do Positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na
Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente
e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei
e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um
ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um estrutura meramente formal, uma embalagem
para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO, 2012).
71
Ainda sobre o tema, Barroso afirma que “a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do
Positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua
função social e sua interpretação”. É nesse sentido, o estudo na sequência, o direito como função promocional
da pessoa humana.
72
Nesse particular, Bittar e Almeida entram em rota de colisão com o pensamento kelseniano de não vinculação
entre direito e moral, estabelecendo uma teoria pura do direito.
92

Embora vencidos, na sua maioria, os regimes totalitaristas, reinando em muito países


o Positivismo democrático, a sociedade sofre com seus próprios desvios e não propriamente
pelo fundamentalismo religioso ou por totalitarismos tardios.
A exigência no limiar de um novo século determina uma necessária aproximação
entre Direito e Moral como forma de promoção de uma ideia de Justiça. É o que se estuda na
sequência.
93

CAPÍTULO 3 - DIREITO NATURAL CONTEMPORÂNEO

3.1 Direito e Moral em Alexy: uma necessária reaproximação

3.1.1 Noções preliminares

Para o Positivismo, no conceito de direito resta tão somente a definição da legalidade


e o da eficácia, não tendo vinculação alguma com a moral. Essa premissa fundamentou
inúmeras variantes do Positivismo.
A ideia do Positivismo jurídico foi bem resumida no pensamento de Kelsen para
quem "todo e qualquer conteúdo pode ser direito". Isso põe a moral apartada do conceito
direito, em outras palavras, o que o direito é depende, exclusivamente, do que é estabelecido
(legalidade) e/ou eficaz (eficácia).
Kelsen, como representante do Positivismo jurídico orientado para a normatização,
afirma que o critério decisivo para distinguir o Direito de outras ordens sociais é a coação, isto
é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como consequência de uma situação de
fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da
pessoa atingida e - em caso de resistência - mediante o emprego da força física, é o critério
decisivo. (KELSEN, 1998, p. 37).
Nas diversas variantes do Positivismo, há uma evidente separação entre direito e
moral73 na formulação do resultado de suas argumentações. Todavia, para todos os
positivistas, não existe nenhuma conexão conceitualmente necessária entre direito e moral
(argumento analítico da não-vinculação).
Alguns positivistas usam do argumento normativo para demonstrar que a tese da
separação conceitual entre direito e moral é necessária para que se alcance determinado
objetivo ou para que se cumpra determinada norma.
Para Nalini (2012, p. 105), citando Hart, a tese segundo a qual entre Direito e moral
existe uma conexão necessária, tem variantes importantes, nem todas muito claras, a mais
nítida:

73
Quando se defende a tese da separação (positivismo jurídico), é possível sustentar, pelo menos, duas versões
diferentes da mesma tese: uma versão forte, a de que a Moral está necessariamente excluída do conceito de
Direito; e uma versão fraca, a de que a Moral, apesar de não estar necessariamente excluída, não está conectada
de forma conceitualmente necessária, sendo tal conexão uma questão contingente, a depender daquilo que vem
enunciado no Direito Positivo (SOUSA, 2011, p. 299).
94

[...] é aquela ligada à tradição tomista do Direito Natural. Ela compreende


uma tese dupla: em primeiro lugar, a de que existem certos princípios da
verdade moral ou justiça, que podem ser descobertos pela razão humana sem
o auxílio da revelação, ainda que sejam de origem divina; em segundo lugar,
a de que as leis humanas que contrastam com esses princípios não
constituem um Direito válido.

Nesse importante debate contemporâneo, a obra de Robert Alexy, Conceito e


Validade do Direito, possui um relevo especial por fazer uma crítica acentuada ao
Positivismo, trazendo ao debate a aproximação entre direito e moral.
Alexy identificou, com propriedade, que toda estrutura do pensamento positivista
está assentada na ideia do conceito de direito. Esse autor vai separar as diversas variantes
positivistas em dois grandes grupos: o dos conceitos de direito primariamente74 orientados
para a eficácia e o dos conceitos de direito primariamente orientados para a normatização.
Faz uma divisão acertada na perspectiva do observador e na perspectiva do
participante. Enquanto a perspectiva do observador predomina nos conceitos de direito
orientado para a eficácia, a perspectiva do partícipe é orientada para a normatização,
especialmente a do juiz, que está em primeiro plano (ALEXY, 2011, p. 20).
No primeiro grupo (conceitos de direito primariamente orientados para a eficácia),
estão as teorias sociológicas e realistas do direito, havendo uma distinção conforme se refiram
ao aspecto externo ou interno75 de uma norma ou de um sistema normativo, sem, contudo,
desprezar uma eventual combinação.
De acordo com Alexy, existem, basicamente, três possibilidades para uma conexão
entre Direito e Moral: a de que ela é conceitualmente impossível; a de que ela é apenas
conceitualmente possível, ou seja, de que não é conceitualmente necessária; e a de que é
conceitualmente necessária.
E justifica sua tese:

A afirmação de que uma conexão entre direito e moral não é


conceitualmente impossível, está correta. Existem situações em que uma
afirmação como "A norma N é estabelecida conforme o ordenamento e é
socialmente eficaz, mas não é direito porque infringe princípios

74
A adição "primariamente" tem por função tornar claro que, em regra, uma orientação representa apenas o
ponto principal, o que significa que a outra não é totalmente excluída (ALEXY, 2011, p. 15).
75
O aspecto externo de uma norma consiste na regularidade de sua observância e/ou sanção de sua não
observância, linha principal das definições sociológicas de direito. Um ordenamento se chamará Direito quando
for garantido pela possibilidade de coação, dirigida para a obtenção forçada de observância. O aspecto interno,
a seu turno, consiste na motivação - independentemente de como ela é formada - de sua observância e/ou
aplicação (ALEXY, 2011, p. 18-19). O Direito é tudo o que as pessoas reconhecem como norma e regra. Quanto
aos conceitos de direito orientados para a normatização, residem, sobretudo, no âmbito da teoria analítica do
direito que procura estabelecer uma análise lógica ou conceitual da prática jurídica.
95

fundamentais" não contém nenhuma contradição. Mas deveria conter se uma


conexão entre direito e moral fosse conceitualmente impossível. Por outro
lado, deve-se desconfiar da segunda parte dessa tese, ou seja, da afirmação
de que não existe conexão conceitualmente necessária entre direito e moral.
Na sequencia, dever-se-á demonstrar que essa conexão existe. Em resumo:
existem tanto conexões conceitualmente necessárias quanto conexões
normativamente necessárias entre direito e moral (ALEXY, 2011, p. 27).

O que quer dizer Alexy é que se se demonstrar que existe uma conexão
conceitualmente necessária (ou pelos menos ser impossível sustentar a inexistência de uma
conexão conceitualmente necessária), tem-se a possibilidade de sustentar versões não-
positivistas76, pois para tanto seria apenas necessário defender a tese de que essa conexão
entre direito e moral é possível.
A tese afirma, primeiramente, que existe uma conexão conceitualmente necessária
entre direito e moral e, em segundo lugar, que existem razões normativas para a inclusão de
elementos morais no conceito de direito (ALEXY, 2011, p. 27).
Para Alexy, a conexão conceitualmente necessária entre o Direito e a Moral de dá
através do argumento da correção77, e reforça essa tese dispondo de um argumento que marca
a necessidade normativa78 da conexão entre Direito e Moral, o argumento da injustiça.

3.1.2 Conceito e Validade do Direito em Alexy

Respondendo a pergunta sobre qual conceito de direito é correto, Alexy (2011, p. 15)
assim lecionou:

Quem pretende responder a essa pergunta deve relacionar três elementos: o


da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o da correção
76
Dentro do não-positivismo, quem sustenta a tese da conexão pode defender, pelo menos, duas versões
distintas: uma versão forte, a de que todo e qualquer texto legislativo injusto (imoral) é juridicamente inválido,
dada a conexão conceitualmente necessária entre Direito e Moral; e uma versão fraca, a de que um texto
legislativo injusto somente é juridicamente inválido quando ultrapassa um certo nível tolerável de injustiça
(SOUZA, 2012, p. 299).
77
Segundo Sousa (2011, p. 302), o argumento da necessidade conceitual para Alexy, refere-se “[...] a pretensão
de correção é um elemento (conceitualmente) necessário do conceito de Direito”. Uma versão desse argumento
pode ser formulada assim: o legislador, ao produzir um texto legislativo, pretende que esse texto seja correto (ou
seja, justo), ainda que tal pretensão não implique necessariamente que esse texto tenha de expressar
necessariamente um
certo conteúdo. Isso é assim porque a pretensão de correção é um elemento constitutivo do conceito de
“legislador”.
78
E segue Sousa sobre o argumento da necessidade normativa: por mais que o texto legislativo não tenha de
expressar necessariamente um certo conteúdo, a pretensão de correção criada pelo legislador implica que o texto
legislativo necessariamente não expresse um certo conteúdo, aquele conteúdo que ultrapassa um nível
“tolerável” de injustiça, ou seja, aquele conteúdo que configura uma injustiça extrema. Em resumo: para Alexy,
normas ou sistemas jurídicos extremamente injustos não são Direito.
96

material. Conforme os pesos entre esses três elementos são repartidos,


surgem conceitos de direito completamente diferentes. Quem não atribui
importância alguma à legalidade conforme o ordenamento e à eficácia social
e considera exclusivamente a correção material obtém um conceito de direito
puramente jusnatural ou jusracional. Quem segrega por completo a correção
material, focalizando unicamente a legalidade conforme o ordenamento e/ou
a eficácia social chega a um conceito de direito puramente positivista. No
espaço compreendido entre esses dois extremos é possível conceber muitas
formas intermediárias.

Para fundamentar sua tese, Alexy vale-se de um quadro conceitual composto de


cinco distinções: conceitos de direito isentos (ou não) de validade79; sistemas jurídicos como
sistemas normativos ou de procedimentos80; perspectiva do observador e do participante;
conexões classificadoras e conexões qualificadoras; combinações.
A inclusão do conceito de validade no conceito de direito significa uma inclusão do
contexto institucional da formulação, da aplicação e da imposição do direito nesse conceito.
Na concepção do fenômeno jurídico, inclui-se a compreensão da validade social (existência
de validade social), validade jurídica em sentido estrito (conformidade com a autoridade
jurídica e validade moral (existência e cumprimento da pretensão de correção).
Eis a questão principal, pois a grande polêmica entre os positivistas e a proposta não-
positivista de Alexy encontra-se na incorporação da validade moral no conceito amplo de
validade jurídica. Para o jusfilósofo alemão, parte-se do um conceito de direito que inclui o
conceito de validade.
Quanto à perspectiva do observador e do participante, faz-se necessária uma
explanação. A perspectiva do participante é adotada por Alexy por quem, num sistema
jurídico, participa de uma argumentação sobre o que nele é ordenado, proibido, permitido e
autorizado81. A perspectiva do observador é adotada por aquele que não pergunta o que é a
decisão correta em um determinado sistema jurídico, e sim como de fato se decide em um
determinado sistema jurídico (ALEXY, 2011, p. 30).
O ponto de vista do participante é o ponto de vista de quem se questiona sobre o que
é decidir corretamente dentro de um sistema jurídico (dimensão ideal do conceito de direito).

79
Esse jusfilósofo defende que a validade do direito não é apenas composta da validade social e da validade
jurídica em sentido estrito, pois o aspecto moral (validade moral) também compõe esse critério.
80
Como sistema de procedimentos, o sistema jurídico é um sistema de ações baseadas em regras e direcionadas
por regras, por meio das quais as normas são promulgadas, fundamentadas, interpretadas, aplicadas e impostas.
Como sistema normativo, o sistema jurídico é um sistema de resultados ou de produtos de procedimentos que, de
alguma maneira, criam normas (ALEXY, 2011, p. 29).
81
O juiz está no centro da perspectiva do participante. Mesmo quando juristas, advogados ou cidadãos
interessados no sistema jurídico apresentam seus argumentos, eles se referem, em última instância, a como um
juiz deveria se pretendesse decidir corretamente (ALEXY, 2011, p. 30).
97

O ponto de vista do participante somente se limita a questionar sobre como as decisões são
realmente tomadas nesse sistema jurídico (dimensão formal do conceito de direito). O
contexto do participante é definido pela questão ‘é a resposta jurídica correta?' O do
observador pela questão ‘como as decisões jurídicas são realmente tomadas?’
Para Sousa (2011, p. 297), ao se compreenderem os argumentos a partir do ponto de
vista do observador, é possível admitir a tese da separação sem maiores problemas. Alexy
(2011, p. 36) afirma, por exemplo, que “[...] desde o ponto de vista do observador, a inclusão
de elementos morais no conceito de Direito não é, em nenhum sentido, conceitualmente
necessária [...]”, e que “[...] desde a perspectiva de um observador [...] a tese positivista da
separação é correta”. Quando se toma o sistema jurídico a partir do ponto de vista do
participante, a situação é bastante diferente. Alexy (2011, p. 37) enuncia que, desde a
perspectiva do participante, “[...] a tese da separação não é adequada, e a tese da conexão é
correta”.
E arremata Alexy (2011, p. 36):

Para um observador, integra o direito aquilo que os tribunais e as autoridades


fazem apoiando-se no enunciado de normas que, de acordo como os critérios
de validade do sistema jurídico vigente em questão, são estabelecidas
conforme o ordenamento. Desse modo, fica claro que existe um emprego de
expressão "direito" na perspectiva do observador, segundo a qual uma
inclusão classificadora de elementos morais no conceito de direito que se
refira a normas individuais não apenas é conceitualmente desnecessária,
como também conceitualmente impossível

Há que se perguntar também, a partir do ponto de vista do observador, se entre um


sistema jurídico como um todo e a moral existe uma relação conceitualmente necessária82. A
questão é saber se a infração de exigências morais de qualquer ordem priva de um sistema
normativo o caráter de um sistema jurídico.
Sob o ponto de vista do participante, Alexy trará três argumentos a favor de uma
versão não-positivista do conceito de Direito. O primeiro deles, o argumento da correção, é a
base para os outros dois argumentos: o argumento da injustiça e o argumento dos princípios.
Na tese de Alexy, esses três argumentos se complementam, no sentido de que o
argumento da correção traça uma moldura que é completada com um argumento normativo (o
argumento da injustiça), e com um argumento de método, o argumento dos princípios
(SOUSA, 2011, p. 305).

82
Distinção possível relativa à tese da conexão é a seguinte: uma versão forte, que sustenta a existência de uma
conexão necessária entre o Direito e uma Moral correta ou adequada; e uma versão fraca, que sustenta a
existência de uma conexão necessária entre o Direito e alguma Moral (SOUSA, 2011, p. 299).
98

Para Alexy, tanto as normas e decisões jurídicas individuais quanto os sistemas


jurídicos como um todo formulam necessariamente a pretensão à correção83. Sistemas que
formulam essa pretensão mas não a satisfazem são defeituosos.
O argumento da correção sugere que o legislador, na sua tarefa legiferante, pretende
produzir leis justas, ainda que tal pretensão não necessariamente implique que esse texto
legislativo tenha de expressar necessariamente um certo conteúdo (pretensão de correção).
Ou mesmo partindo da visão do juiz (ponto de vista do participante), ao tomar uma
decisão judicial, pretende que essa decisão seja justa, ainda que tal pretensão não
necessariamente implique que essa decisão judicial tenha de expressar necessariamente certo
conteúdo.
Levando-se em conta ambas as observações (legislador ou juiz), pode-se chegar a
uma forma geral do argumento da correção: “[...] normas jurídicas individuais e decisões
judiciais individuais, assim como sistemas jurídicos como um todo necessariamente criam
uma pretensão de correção” (ALEXY, 2011, p. 46).
Todavia, mesmo Alexy reconheceu que o argumento da correção não é suficiente
para demonstrar a tese da conexão, já que “[...] um positivista pode sustentar o argumento da
correção e mesmo assim defender a tese da separação” (ALEXY, 2011, p. 47). É que a
pretensão de correção não necessariamente implica numa conexão conceitualmente necessária
entre o Direito e a Moral.
Assim, continuando em sua tese, Alexy procurou aduzir razões para demonstrar que
essa pretensão de correção necessariamente tem implicações morais, o que levaria, por
dedução, a sustentar que o argumento da correção implica na vinculação entre direito e moral.
Essas razões são um possível enunciado para o argumento da injustiça. Ocorre que
por mais que o texto legislativo não tenha de expressar necessariamente um certo conteúdo
justo, a pretensão de correção criada pelo legislador implica que o texto legislativo não
ultrapassa um nível “tolerável” de injustiça, ou seja, não pode implicar num conteúdo que
configura uma injustiça extrema. Nesse modo de formular o argumento, a conexão entre a
pretensão de correção do Direito e a vedação normativa da injustiça extrema fica explícita
(SOUZA, 2011, p. 307).
O que se quer dizer é que, caso uma lei ou um precedente seja extremamente injusto,
nos termos da fórmula de Radbruch,84 essa norma perde o seu caráter jurídico, pois não é
possível tolerar a injustiça extrema85 em qualquer lei ou decisão.

83
Para Alexy, sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão não são
sistemas jurídicos.
99

Essa discussão sobre o argumento da injustiça que está relacionado a normas


individuais e exposto na fórmula de Radbruch mostrou que a segurança jurídica é um
argumento central contrário à contestação da qualidade jurídica de normas estabelecidas
conforme o ordenamento socialmente eficaz.
Somente em casos de extrema injustiça, devido a seu fácil reconhecimento, é que o
argumento da segurança podia ser refreado, perdendo a norma seu caráter jurídico. O mesmo
não se aplica aos sistemas jurídicos como um todo, ou seja, não pode fazer com que do caráter
injusto de um sistema global86 resultem consequências que vão além da aplicação do
argumento de injustiça a normas individuais (ALEXY, 2011, p. 79-80).
Explicando melhor, mesmo que se deva contestar o caráter jurídico de muitas normas
individuais por razões morais e que, entre elas, encontrem-se muitas normas importantes para
o caráter do sistema, este pode continuar existindo como um sistema jurídico, haja vista que o
argumento de injustiça não traz consequências que vão além daquelas de sua aplicação a
normas individuais.
Todavia, se todas as normas que compõem um sistema são extremamente injustas,
esse sistema não pode ser considerado, a partir do argumento da injustiça extrema, um sistema
jurídico. Em resumo, o argumento de injustiça visa a uma situação excepcional, a de lei
extremamente injusta. O argumento de injustiça visa a uma situação excepcional, a da lei
extremamente injusta, e trata do cotidiano jurídico (ALEXY, 2011, p. 83).
Por outro lado, todo o Direito Positivo tem uma estrutura aberta87, ou seja, linguagem
vaga, possibilidade de contradições entre normas, falta de normas nas quais uma decisão
possa ser apoiada.

84
A Fórmula Radbruch (em alemão: Radbruchsche Formel ) é uma teoria da lei que foi formulada pela primeira
vez em um ensaio de 1946, pelo professor de Direito e político alemão Gustav Radbruch . Segundo a teoria, um
juiz que se depara com um conflito entre uma lei e que ele percebe como justo, tem que decidir contra a
aplicação da lei, se - e somente se - o conceito legal por trás da lei em questão parece tanto "insuportavelmente
injusta" ou em "desrespeito deliberado" da igualdade humana perante a lei.
85
Em geral, dentro desse grupo se pode encontrar: (i) a crítica mais radical de que não é somente difícil
identificar os limites entre a injustiça simpliciter e a injustiça extrema, na medida em que nenhuma noção de
justiça pode ser racionalmente justificada ou objetivamente conhecida (ii) a crítica menos radical de que esse
argumento da injustiça (simpliciter) põe em xeque a certeza jurídica, uma vez que as normas singulares, em
geral, perderiam totalmente sua força prática, ainda que fosse possível, partindo de uma perspectiva ou de outra,
oferecer alguma justificação moral e racionalmente possível para a injustiça dessas normas; ou (iii) a crítica
menos radical de que um conceito não-positivista de Direito que tenha como elemento constitutivo o argumento
da injustiça corre o risco de legitimar acriticamente a não-aplicação do Direito legitimamente estatuído, o
argumento da efetividade (SOUSA, 2011, p. 308).
86
Apoiada na fórmula de Radbruch, sustenta que uma norma individual só perde seu caráter jurídico quando é
extremamente injusta , e que o sistema global entrará em colapso quando muitas normas individuais tiverem seu
caráter jurídico contestado. A isso chama de tese do colapso.
87
A expressão open texture foi bem delineada por Hart. No vernáculo, open texture significa ‘’textura aberta’’
ou "estrutura aberta". Essa expressão entrou para o campo da teoria do direito como uma forma de explicar a
possibilidade de imprecisão presente no conteúdo das leis, notadamente as normas-regras, pois descrevem
100

Pelo pensamento positivista, no campo da textura aberta, não se pode decidir com
base no Direito Positivo.88 O argumento dos princípios diz que o juiz também está legalmente
vinculado ao âmbito da abertura do Direito Positivo, ou seja, os positivistas em geral
defendem a tese de que o aplicador do direito pode agir de maneira discricionária com base
em argumentos fora do direito.
E a base do argumento dos princípios é constituída pela distinção entre regras e
princípios. E explica Alexy (2011, p. 85):

Regras são normas que, em caso de realização do ato, prescrevem uma


consequência jurídica definitiva, ou seja, em caso de satisfação de
determinados pressupostos, ordenam, proíbem ou permitem algo de forma
definitiva, ou ainda autorizam a fazer algo de forma definitiva. Por isso,
podem ser designadas de forma simplificada como "mandamentos
definitivos". Sua forma característica de aplicação é a subsunção.
Por outro lado, princípios são mandamentos de otimização. Como tais, são
normas que ordenam que algo seja realizado em máxima medida
relativamente a possibilidades reais e jurídicas. Isso significa que elas podem
ser realizadas em diversos graus e que a medida exigida de sua realização
depende não somente das possibilidades reais, mas também das
possibilidades jurídicas.

Explicando a aplicação dos princípios, Alexy (2011, p. 86) afirma que todo
ordenamento jurídico com um grau mínimo de desenvolvimento possui princípios jurídicos
(tese da incorporação), notadamente os sistemas jurídicos completamente desenvolvidos.
Os princípios jurídicos incorporam conteúdos morais corretos em virtude da
formulação da pretensão de correção e justiça do ordenamento (tese da correção), ou seja, os
conteúdos morais corretos são incluídos no ordenamento jurídico necessariamente por meio
dos princípios, que são substancialmente dotados de razões (conteúdos morais) e possuem
formalmente característica jurídica.
E arremata afirmando o jusfilósofo alemão que, como os princípios morais, por seu
conteúdo, estão incorporados ao direito, o juiz que neles se apoia decide com base em
critérios jurídicos. Querendo-se recorrer à dicotomia ambígua entre forma e conteúdo, pode-se
dizer que, quanto ao conteúdo, ele decide com base em razões morais, mas, quanto à forma,
decide com base em razões jurídicas (ALEXY, 2011, p. 92).

situações concretas sem a especificação de muitos detalhes. Posto que de conteúdo genérico, não raro há
aparentes contradições ou dúvidas sobre seu conteúdo.
88
Não se pode decidir com base no Direito Positivo, pois, se isso fosse possível, não estaria no campo de
abertura. Como somente Direito Positivo é direito, o juiz deve decidir no campo de abertura, ou seja, em todos os
casos duvidosos, com a ajuda de critérios não jurídicos ou extrajurídicos (ALEXY, 2011, p. 84).
101

Resumindo em poucas palavras, Alexy (2011, p. 153-155) procurou em sua obra


fazer uma definição jurídica do direito a partir da perspectiva do participante, conceituando o
direito como um sistema normativo que:

1) formula uma pretensão à correção, vale dizer, sistemas jurídicos que não
formulam explícita ou implicitamente uma pretensão à correção não são
sistemas jurídicos;

2) totaliza normas que integram uma constituição socialmente eficaz em


termos globais e que não são extremamente injustas. Determina-se a relação
entre os três elementos clássicos da definição: a legalidade conforme o
ordenamento jurídico, a eficácia social e a correção material. Esse conceito
contém a característica da coação e da dominação em relação a sistemas
normativos concorrentes.

3) amplia o alcance daquilo que integra o direito que acontece por meio da
incorporação do procedimento de aplicação do direito ao conceito de direito.
No âmbito de abertura do direito, tudo aquilo em que se apoia e/ou deve
apoiar-se quem aplica o direito, para satisfazer a pretensão à correção,
integra o direito.
Assim, os princípios ─ ainda que não possam ser identificados como
princípios jurídicos ─ e outros argumentos normativos que fundamentam a
decisão tornam-se componentes do direito.

Podemos falar então em pós-positivismo como uma designação provisória e genérica


de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e
regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos
fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana.
A valorização dos princípios e sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos
constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte
desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética (BARCELOS, 2012, 01).
O pós-positivismo designa uma crise do Positivismo, dos seus limites e
inconsequências. Implica mais em um momento histórico por que passa o positivismo jurídico
que foi refinado pela ideia da aproximação entre Direito e Moral. Enquanto etapa histórica, o
pós-positivismo revela uma crise dos paradigmas modernos sobre o conceito de validade do
Direito.

3.1.3 Casuística em análise

Para analisar melhor a relevância prática da aproximação entre Direito e Moral,


vamos analisar decisões do nosso Supremo Tribunal Federal, em que se abrandou a
102

neutralidade do discurso positivista e invocaram-se preceitos morais, portanto valorativos, da


dignidade da pessoa humana e da fraternidade (ou solidariedade).
Na decisão, discutiu-se, em sede de recurso extraordinário n. 363.889-MG, a
possibilidade, ou não, de superação da coisa julgada em ação de investigação de paternidade
cuja sentença tenha decretado a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por
insuficiência probatória, mesmo não estando entre as hipóteses legalmente contempladas.
Ocorre que o Direito Positivo contempla taxativamente as hipóteses de
rescindibilidade de uma decisão transitada em julgado89. É comum, na prática, que se depare
com provimentos jurisdicionais que têm perpetuado injustiça com o argumento de que a coisa
julgada não admite relativização além das hipóteses legais, prestigiando a garantia da
segurança e da certeza nas relações jurídicas.
Essa segurança jurídica está impregnada em parte da comunidade jurídica como
valor absoluto, sedimentando em nossa cultura jurídica o entendimento de que nem mesmo a
injustiça de uma decisão por afronta a princípios constitucionais é motivo suficiente para
justificar sua revisão.
Necessário se faz um melhor questionamento, dessa vez sob a ótima do princípio da
dignidade da pessoa humana, corolário lógico do Estado Democrático de Direito, mediante a
ponderação dos valores, bens e normas.
A questão principal reside na possibilidade de rescindir a coisa julgada para além
daquelas hipóteses contempladas no ordenamento jurídico, reconhecendo, inclusive, quando a
possibilidade da desconsideração quando há afronta a princípios constitucionais.
Na situação dos autos, a genitora do autor não possuía, à época, condições
financeiras para custear exame de DNA. Reconheceu-se o conflito entre o princípio da
segurança jurídica, consubstanciado na coisa julgada (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI),
de um lado; e a dignidade humana, concretizada no direito à assistência jurídica gratuita (CF,
art. 5º, LXXIV) e no dever de paternidade responsável (Constituição Federal, art. 226, § 7º),
de outro (BRASIL, 1988).
O Supremo Tribunal Federal assentou que o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana prevalece sobre o da coisa julgada, rescindiu o julgado mesmo não havendo
previsão legal no ordenamento jurídico.

89
Em determinadas hipóteses, taxativamente prevista em lei, é possível a revisão da decisão transitada em
julgado, desconsiderando a “coisa julgada” - ou como alguns preferem, há uma “relativização” da coisa julgada.
Essas hipóteses estão prevista na ação rescisória do artigo 485 do Código de Processo Civil; ação declaratória -
querela nullitatis – do artigo 486 do mesmo diploma legal; revisão criminal – artigo 621 do Código de Processo
Penal, e mais recentemente a impugnação ao cumprimento de sentença (artigo 475-L, II e § primeiro do Código
de Processo Civil) e nos embargos à execução ( art. 741, parágrafo único, do mesmo estatuto processual).
103

Assim foi publicado no informativo do Supremo Tribunal Federal:

Em conclusão, o Plenário, por maioria, proveu recurso extraordinário em que


discutida a possibilidade, ou não, de superação da coisa julgada em ação de
investigação de paternidade cuja sentença tenha decretado a extinção do
processo, sem julgamento do mérito, por insuficiência probatória — v.
Informativo 622. Decretou-se a extinção do processo original sem
julgamento do mérito e permitiu-se o trâmite da atual ação de investigação
de paternidade. Prevaleceu o voto proferido pelo Min. Dias Toffoli. Para ele,
dever-se-ia ressaltar a evolução dos meios de prova para aferição da
paternidade — culminada com o advento do exame de DNA — e a
prevalência da busca da verdade real sobre a coisa julgada, visto estar
em jogo o direito à personalidade. Ressaltou que este direito teria sido
obstaculizado, no caso, pelo fato de o Estado haver faltado com seu dever de
assistência jurídica, uma vez que não custeara o exame à época da ação
anterior. Os demais Ministros que deram provimento ao recurso ressaltaram
que a espécie envolveria o cotejo entre a coisa julgada e o princípio da
dignidade da pessoa humana, consubstanciado no direito à informação
genética. O Min.Luiz Fux destacou a existência de corrente doutrinária que
flexibilizaria o prazo para ajuizamento de ação rescisória nas hipóteses de
ação de investigação de paternidade julgada improcedente por ausência de
provas, o que corroboraria a superação da coisa julgada. Vencidos os
Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, Presidente, que desproviam o
recurso. O Min. Marco Aurélio apontou que o réu, na ação em comento, não
poderia ser obrigado a fazer o exame de DNA. Isso, entretanto, não
implicaria presunção absoluta de paternidade, mas apenas relativa, a ser
confrontada com as provas trazidas ao processo. Asseverou que o
ordenamento traria exceções à imutabilidade da coisa julgada, a exemplo da
ação rescisória, limitada ao prazo de 2 anos após o trânsito em julgado da
ação de origem. Como, na situação em tela, haveria lapso de mais de 10
anos, a aludida exceção não seria aplicável. Destacou, ainda, a probabilidade
de o interesse do autor ser patrimonial, e não relativo à sua identidade
genética. O Presidente, por sua vez, afirmou que o princípio da coisa
julgada seria o postulado da certeza, a própria ética do direito. A
respeito, assinalou que o direito não estaria na verdade, mas na segurança.
Reputou que a relativização desse princípio em face da dignidade da pessoa
humana poderia justificar, de igual modo, a prevalência do direito
fundamental à liberdade, por exemplo, de maneira que nenhuma sentença
penal condenatória seria definitiva. Salientou que, hoje em dia, o Estado
seria obrigado a custear o exame de DNA do autor carente, de forma que a
decisão da Corte teria pouca aplicabilidade prática. Por fim, frisou que a
questão envolveria também a dignidade humana do réu, não apenas do autor,
visto que uma nova ação de investigação de paternidade teria profunda
repercussão na vida familiar daquele (BRASÍLIA, 2011). [GRIFO NOSSO]

Tem-se, por certo, que o fundamento invocado no arresto, dignidade da pessoa


humana, teve um forte apego aos valores morais da pessoa humana em detrimento ao direito
posto, o que reforça a tese pós-positivista da aproximação do Direito e Moral.
Com efeito, na decisão, temos a superação da lei posta que numera as hipóteses de
rescindibilidade da coisa julgada para alcançar determinada hipótese não contemplada por lei,
104

mas que decorre da irradiação valorativa dos princípios constitucionais bem como estabelecer
um conceito de direito ético.
Essa decisão rejeitou o positivismo legal estrito, prestigiando uma formulação que
mantém relação com o direito ético. Embora lei e direito coincidam em termos, direito não se
esgota na lei posta, sendo necessária uma investigação sobre a existência de um corretivo
moral e ético em relação à lei escrita, tal como descrito por Alexy.
Uma nova fase se estabeleceu com o constitucionalismo que elevou os direitos e as
garantias básicas do homem ao nível superior, tendo como primado a igualdade, a liberdade e
a fraternidade.
Em resumo, no julgado apresentado foram colhidos argumentos não positivistas, em
que a disposição legal foi vencida porque infringiu um direito suprapositivo. Não se limitou
em atestar o descompasso entre os princípios constitucionalmente previstos, mas adentrou na
questão maior sobre um conceito ético do direito.
Amoldando à tese de Alexy, afastou-se uma injustiça do sistema jurídico
(impossibilidade de rescisão da coisa julgada) para efetuar correção no sistema jurídico
através do princípio da dignidade da pessoa humana.

3.2 Realismo Jurídico de Javier Hervada

O pensamento de Hervada90 se assenta na existência de um Direito Natural que é


justo por si mesmo, representando coisas ─ bens, poderes, faculdades ─ atribuídas ao homem,
mas em razão daquilo que é natural do homem, isto é, de fatores ou dimensões próprias do seu
ser.
O direito é uma realidade nuclear, em torno do qual se movem os demais conceitos.
Eis a ideologia chame do Realismo em Javier Hervada. O direito é aquela coisa que está
atribuída a um sujeito; é o seu justo, ou seu de cada um. Já a lei é outra coisa distinta: uma
regra de conduta obrigatória.

90
Javier Hervada nasceu em Barcelona em 1934, doutorou-se em Direito pela Universidade de Madri (1958) e
em Direito canônico pela Universidade de Navarra (1962); em 2002, foi investido Doutor Honorium Causa pela
Università della Santa Croce; até 1999 exerceu as funções de Catedrático de Direito Canônico da Universidade
de Saragoça e de Professor Ordinário de Direito Natural e Filosofia do Direito da Universidade de Navarra. E
proferiu numerosas conferências por diversas universidades da Europa e da América Latina. É um defensor de
um sistema de Filosofia do direito com a perspectiva do Realismo jurídico clássico, afastando-se em definitivo
do Positivismo normativista (que classifica como sendo uma "etapa mórbida da ciência jurídica em fase de
superação").
105

Tanto assim que em sua obra O que é o direito?A moderna resposta do realismo
jurídico. Uma introdução ao direito, o autor se afasta do positivismo jurídico e disseca as
premissas básicas da doutrina do realismo jurídico clássico91, fulcradas em Aristóteles e São
Tomás de Aquino, pragmatizadas pelos juristas romanos.
A partir da definição de justiça empregada pelos juristas romanos como dar a cada
um o que é seu ou também dar a cada um seu direito, Hervada vai fazer uma severa crítica ao
Positivismo, afirmando que, por ser tão simples essa definição, para alguns dos nossos
contemporâneos parece pouco prática, pouco realista ou vazia de conteúdo.
E acrescenta o autor que, para entender essa definição, é necessário estar em posse de
um segredo:

Esse segredo estava na posse de Aristóteles, dos juristas romanos e dos


juristas em geral até que, no século XIX, apareceram os positivistas, ou seja,
aqueles que negam que o homem tenha direitos inerentes a sua condição de
pessoa. Porque esse é o segredo, uma verdade patente, que foi transformada
em oculta por aqueles que puseram sobre a ciência jurídica o véu da
escuridão positivista (o positivismo é uma das mais sutis formas de estar
voluntariamente cego à luz). Sim, o segredo é o Direito Natural
(HERVADA, 2006, p. 23).

Essa crítica contundente ao Positivismo vai ser uma marca fundamental ao longo do
seu pensamento. Não que negue validade ao Direito Positivo, mas que "se o Direito Natural
for esquecido ou rejeitado, o que a justiça representa em relação a ele torna-se vazio ou
transforma-se em ideais pouco concretos e relativos; a fórmula da justiça terá perdido sua
praticidade e seu realismo (HERVADA, 2006, p. 25).
Uma vez estabelecido em que consiste a justiça, a virtude de dar a cada um o que é
seu, Hervada afirma que a justiça precede ao direito, não o antecede, é posterior a ele, no
sentido de que age em relação ao direito existente.
E assinala que, se a justiça é a virtude de dar a cada um o que é seu, o seu direito,
para que se possa agir é preciso que exista o seu de alguém, seu direito; do contrário, como
dar o seu, seu direito? Conclui que, onde não há um direito existente, a justiça não é
invocável.

91
Para o Realismo jurídico clássico, o direito acompanha a evolução da sociedade, razão pela qual traz
em si a marca das mudanças histórias da humanidade, considerando as diversas formas que o homem tem de
conceber o mundo em determinada época, organização social, costumes e tradições. Logo, o modo de pensar o
direito está estritamente relacionado com a doutrina filosófica seguida por uma sociedade. Decorre dessa
assertiva que, com a substituição da Filosofia clássica pela Filosofia moderna, o direito passa a ser visto de modo
diferente.
106

Hervada exemplifica afirmando que, se um patrão e empregados de uma empresa


acordaram um salário mensal de 1.200 euros, a quem recorrerão os empregados se o patrão
lhes der apenas 720 euros? Recorrerão ao juiz, e este obrigará o patrão a dar aos empregados
o que é seu, o seu direito, que são 1.200 euros. E, para isso, se for necessário, confiscará os
bens do patrão. O patrão, ao pagar somente 720 euros, comete uma injustiça.
Vejamos uma situação contrária: o contrato fixa o salário em 720 euros ao mês, e os
empregados, alegando aumento do custo de vida, comparecem perante o juiz e solicitam que o
patrão seja obrigado a elevar o salário. O juiz se absterá; não compete a ele a questão, porque
o direito dos empregados é de 720 euros, enquanto os 1.200 euros são uma aspiração
(HERVADA, 2006, p. 26).
E o autor prossegue no questionamento: não há aspirações dos homens que sejam
justas em sentido próprio? Se houve, trata-se de verdadeiros direitos. Determiná-los é função
do jurista e, na hipótese de serem respeitados, o juiz pode e deve intervir.
Nisso conclui Hervada (2006, p. 27) que, quando as aspirações são verdadeiros
direitos, em consequência, a justiça intervém, é óbvio que se trata de direitos preexistentes e
anteriores ao Direito Positivo, isto é, de Direito Natural.
Nessa conclusão adentra a seara das leis injustas; há leis injustas, posto que há coisas
atribuídas injustamente. Em outras palavras, prossegue explicando Hervada (2006, p. 27), que
existem leis injustas porque lesam o Direito Natural, ou seja, porque atribuem coisas a
pessoas diferentes daquelas às quais foram atribuídas anteriormente por Direito Natural, ou
negam a titularidade de algo a quem o tem por Direito Natural, ou atribuem coisas a quem por
Direito Natural é negado.
Para entender todo o pensamento de Hervada, é forçoso adentrar na dicotomia
Direito Natural e Direito Positivo. Para esse autor, Direito Positivo seria todo o direito cujo
título e cuja media deve sua origem à vontade humana, seja pela lei, seja pelo costume, seja
pelo contrato. Positivo significa posto, não dado ao homem, e sim instituído ─ posto ─ pelo
homem (HERVADA, 2006, p. 62).
Sobre o limite do Direito Positivo e invocando a lição de Aristóteles, Hervada vai
afirmar que em direito há coisas que são indiferentes e há coisas que não são. Assim, o
homem pode criar direitos e regulamentá-los na esfera do indiferente.92

92
Para Hervada indiferente quer dizer que, em síntese, no que se refere à justiça e à moral, dá na mesma adotar
uma solução ou outra, porque nenhuma delas lese a justiça ou qualquer outra esfera do moralidade. E
exemplifica: que os escoceses usem saia poderá ser mais ou menos chocante, mas é indiferente. Roubar dinheiro
não é indiferente.
107

O campo do Direito Positivo é delimitado de um modo claro: sua matéria possível é


o indiferente. Por isso mesmo, para distinguir se uma norma é de Direito Positivo ou de
Direito Natural, é preciso observar seu grau de indiferença em relação à natureza humana. O
quanto tiver de indiferença terá de Direito Positivo (HERVADA, 2006, p. 64).
A seu turno, Direito Natural é o que é justo por si mesmo, o não indiferente que tem
por título a natureza humana, e como todos os homens são pessoas igualmente e a natureza é a
mesma em todos, o Direito Natural ─ Aristóteles já observava ─ é o mesmo em todos os
homens e em todos os lugares (HERVADA, 2006, p. 70).
Para Hervada, há relações entre Direito Natural e Direito Positivo que acaba por
provar a existência do Direito Natural, porque sem o Direito Natural o Direito Positivo não
tem o pressuposto necessário de existência.
A conclusão parece questionável, mas o mestre espanhol passa a explicação:

[...] tudo que o homem faz ou inventa requer uma capacidade natural, o que
os filósofos chama de potência. Para ver, o homem precisa ter olhos. Com
base nesse fato natural, o homem pode edificar uma série de fatos culturais:
escrita, pintura, escultura, televisão, cinema, etc. Porém, se o homem não
tivesse visão, todos esses fatos culturais não existiriam. O homem é incapaz
de voar por si mesmo; por mais que tente, nunca terá asas (não existe em seu
corpo capacidade para tê-las). Pode, isso sim, com base em uma série de
dados naturais (peso e resistência dos materiais, leis da aerodinâmica),
construir aparelhos com os quais pode voar. É axiomático que todo fato
cultural depende dos dados naturais (HERVADA, 2006, p. 75).

Disso extrai que, pretender que só exista o Direito Positivo, ou seja, que todo direito
seja estabelecido pelo homem, contradiz o mais elementar bom senso, pois se há algo jurídico
cultural (Direito Positivo), tem que partir necessariamente de algo jurídico natural. O que se
quer dizer é que, se existe uma fato jurídico positivo (cultural), deve apoiar-se em uma
juridicidade natural. Se nada houvesse de jurídico natural, nada haveria de jurídico cultural.
E arremata: a melhor demonstração de que existe o Direito Natural é que existe o
Direito Positivo. Mais especificamente: se não existe o Direito Natural, é impossível que
exista o Direito Positivo; e se existe o Direito Positivo, existe necessariamente o Direito
Natural.
Posto que existem, como o demonstrado, os direitos naturais, portanto existe
necessariamente a lei jurídica natural, em tripla faceta, afirma Hervada (2006, p. 145). A lei
natural é a regra natural de direito; a existência de direitos naturais gera regras do agir; e a
108

natureza das relações e instituições sociais acarreta algumas regras de justiça comutativa93,
distributiva ou legal, conforme o caso, que são naturais.
Podemos, então, conhecer a lei natural através de inclinações naturais do homem,
que é a própria atividade natural do agir humano. O pensador espanhol passa elencando:

a) A inclinação à conservação do ser, também chamada instinto de


conservação;
b) A inclinação ao casamento, direcionado para a procriação e educação dos
filhos, deduzindo seus preceitos fundamentais;
c) A inclinação à relação com Deus ou com a religiosidade, buscando a
verdade sobre Deus e o culto que lhe é devido;
d) A tendência ao trabalho, e por consequente ao seu salário e as relações no
trabalho;
e) A inclinação à sociedade política e às várias formas de associação;
f) A tendência à comunicação;
g) A inclinação ao conhecimento e às diversas formas de cultura e arte, de
onde se depreende o direito de se educar, a liberdade de ensinar e outros
direitos e deveres (HERVADA, 2006, p. 151-152).

Conhecendo essas inclinações próprias da lei natural, é fácil entender que sua função
consiste em ser base ou alicerce da ordenação jurídica e da ordem política. Usando de uma
analogia, o que a constituição representa no sistema de leis positivas - base do sistema legal,
critério inspirador e critério de validade - é o que representa a lei natural em relação a todo o
sistema de leis (HERVADA, 2006, p. 155).
E por ser base ou alicerce, as leis positivas, segundo Hervada, se apoiam na lei
natural, derivam dela. Se as leis positivas derivam de um núcleo de lei natural, devem ordenar
─ essa é a missão ─ a realidade social de acordo com esse núcleo.
Diferentemente de Kant, Hervada repudia a assertiva de que a lei natural está
gravada no coração do homem. Para esse pensador, a lei natural é preceito da razão, e no
conhecimento da razão é possível distinguir dois momentos sucessivos e conexos. Há um
exercício ou uso da razão comum ou geral que é próprio de todo homem que tenha alcançado
o desenvolvimento normal dessa potência e, em segundo momento, a investigação
aprofundada do conhecimento: é o saber científico.

93
Justiça comutativa, que quer dizer trocar, permutar, assim chamada porque regula o intercâmbio entre pessoas
iguais, que se encontram no mesmo plano. Sua finalidade consiste em estabelecer uma igualdade fundamental
nas relações entre os seres humanos e exigir que essa igualdade seja restabelecida quando violada. Justo é o igual
e injusto é o desigual, dizia Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século XII. Já justiça distributiva tem por
objetivo permitir que pessoas participem do bem comum mediante uma distribuição equitativa, de acordo com
seus méritos ou suas habilidades. Em outras palavras, consiste em dar a alguém o que lhe é devido segundo uma
igualdade.
109

Assim, portanto, quanto à lei natural há um conhecimento comum (elementar e


próprio de todos os homens), mas há também um conhecimento específico, de difícil acesso
(acessível pelo conhecimento específico).
O homem nasce com a correta disposição da razão, pela qual se compreende o dever
de fazer o Bem e evitar o Mal. Da mesma maneira, nasce com algumas inclinações naturais,
que capta como direcionamento para seus fins naturais. Pode ser difícil que o homem conheça
todos os preceitos ou erre ao raciocinar para conhecê-los, pois a razão humana não é infalível
(HERVADA, 2006, p. 164).
Em suma, todos os humanos têm a mesma natureza, os mesmos fins e as mesmas
exigências de conduta e tratamento. A lei natural é igual e a mesma para todos os homens e
para todos os povos (HERVADA, 2006, p. 169).

3.3 Direito Natural em John Finnis

A aproximação entre Direito e Moral - cindidos pelo positivismo jurídico, foi muito
explorada em John Finnis94, que procurou delinear seu pensamento na obra A lei Natural e os
Direitos Naturais, sem se apegar a qualquer pessoa ou grupo, todavia dando um relevo ao
pensamento de São Tomás de Aquino95, a quem eleva a um lugar estratégico singular na
história da teorização sobre a lei natural.
Não se procurou na obra elaborar, primariamente, com o propósito de fornecer uma
estrutura conceitual justificada para uma ciência social descritiva, antes, procura-se lançar
uma contribuição às reflexões práticas daqueles que se preocupam em agir, quer como
juízes96, quer como estadistas, quer como cidadãos. Assim se possa socorrer da assistência da
ciência social descritiva e analítica para avaliar as possibilidades e oportunidades humanas.
O estudo ganha relevância prática na discussão jurídica acerca das vertentes clássicas
dualista do Direito Natural e Direito Positivo, já exposta metodicamente no presente trabalho,
94
John Mitchell Finnis é professor da Universidade de Oxford e na Universidade de Notre Dame. Um dos
destaques do seu projeto filosófico foi a publicação, em 1980, de Natural Law and Natural Rights, que
representa um marco contemporâneo na Teoria Geral do Direito.
95
Tanto para Tomás de Aquino, quanto para Aristóteles, fazer Filosofia moral é pensar de forma mais geral
possível sobre o que alguém deveria escolher fazer (e não fazer), considerando a totalidade da sua vida como um
campo de oportunidade (ou mau emprego de oportunidade). Pensar de forma tão geral diz respeito não
meramente às suas próprias oportunidades, mas qualquer os tipos de coisas boas que qualquer ser humano pode
fazer e alcançar, ou ser privado. Pensar sobre o que fazer é convenientemente rotulado de “prático” e diz respeito
ao que e como escolher e fazer aquilo que alguém inteligentemente e razoavelmente pode (i) para conseguir bens
inteligíveis na sua própria vida, na vida dos outros seres humanos e em seu ambiente, e (ii) ser de bom caráter e
viver uma vida que, como um todo, terá sido uma resposta razoável a tais oportunidades (FINNIS, 2007, p.21).
96
As reflexões jurisprudenciais serão oportunamente objeto de estudo em dois casos práticos do Supremo
Tribunal Federal, questão que envolve o conceito e validade do Direito Positivo.
110

todavia inserindo novos elementos ao presente debate notadamente quanto à defesa de que o
positivismo e o jusnaturalismo não são incompatíveis97, mas na verdade se complementam,
em que caberá ao Direito Natural o papel de avaliar a aptidão moral do ordenamento jurídico
por um crivo de razoabilidade.
Em sua obra, Finnis critica a definição do direito de Kelsen98, como técnica social
específica livre de valores, demonstrando que uma doutrina que defenda uma concepção
eminentemente positivista certamente encontrará seu insucesso, pois o ordenamento jurídico
─ ou parte dele ─ poderia estar distante dos bens básicos das necessidades humanas de
justiça, convertendo-se, desse modo, nas chamadas leis injustas.
Finnis afirma que Kelsen difundiu uma imagem desorientadora, e nada incomum, da
teoria jurídica do Direito Natural no pensamento que vai desde os Padres da Igreja até Kant,
que o Direito Positivo deriva toda a sua validade do Direito Natural, sendo uma mera
emanação do Direito Natural.
Tudo isso é uma caricatura, afirma Finnis. Tomando por exemplo o pensamento
tomista, o Direito Positivo realmente deriva sua validade do Direito Natural, mas ao
mesmíssimo tempo mostra como ele não é uma mera emanação, ou cópia, do Direito Natural,
e como o legislador goza de toda a liberdade criativa de um arquiteto.
E prossegue Finnis (2007, p. 40) afirmando que Tomás crê que o Direito Positivo é
necessário por duas razões, das quais uma é a de que o próprio Direito Natural "de alguma
forma já existe" não fornece todas ou mesmo a maioria das soluções para os problemas de
coordenação da vida em comunidade.
Para Finnis (2007, p. 30-31), influenciado por Tomás de Aquino, uma teoria do
Direito Natural deve ser capaz de cumprir os seguintes objetivos:

[...] distinguir o que não é razoável na prática do que é razoável na prática e,


assim, diferenciar o que realmente é importante daquilo que não é
importante ou importante apenas por sua oposição ao que é realmente
importante, ou por sua manipulação desarrazoada do que é realmente
importante. Uma teoria do Direito Natural alega ser capaz de identificar as
condições e os princípios de discernimento prático, da boa e apropriada
ordem entre os homens e da conduta individual.

97
A crítica mais acentuada contra jusnaturalismo reside na sua falta de homogeneidade temporal, posto que
ausente de completa falta de coesão quanto aos argumentos de validade utilizados por seus diversos defensores.
Por esse motivo, o Direito Natural é taxado por alguns de obscuro, supersticioso e perigosamente variável. Finnis
tenta refutar essas atribuições, mostrando os valores principiológicos do Direito Natural.
98
Conforme estudado, Kelsen define o direito como uma técnica social específica: "a técnica social que consiste
em fazer acontecer a desejada conduta social dos homens por meio de uma ameaça com um certo grau de
coerção, que deve ser cumprida em caso de conduta contrária” (KELSEN, 1998, p. 17).
111

A palavra “natural”, para Finnis, é aquela que se refere à razão, ou seja, uma teoria
da racionalidade é defendida na medida em que assume uma razão dirigida à própria conduta
individual como guia a um comportamento humano razoável.
Em outros termos, a preocupação do autor é construir uma metodologia que possa
legitimar o Direito Natural, por critérios razoáveis de justificação.
Um sistema jurídico é um sistema no qual regras "secundárias"99 emergiram a fim de
remediar os defeitos de um regime pré-jurídico composto apenas de "regras primárias". O
direito deve ter um conteúdo mínimo de regras e sanções primárias a fim de assegurar a
sobrevivência da sociedade ou de seus membros e de dar a eles uma razão prática para
aquiescência a ele (FINNIS, 2007, p. 21).
Desenvolve um conceito de razoabilidade prática, uma vez que, para o autor, o
Direito se revela além da lei, haja vista que os indivíduos são orientados por diversos valores,
também presentes na dogmática jusnaturalista e que não podem ser refutados pela lei dos
homens100.
Em conformidade novamente com a obra de São Tomás, Finnis (2007, p. 47)
sustenta que o critério de conformidade ou oposição à natureza humana é a razoabilidade:

Então, o que é contrário à ordem da razão é contrário à natureza dos seres


humanos como tal; e o que é razoável está de acordo com a natureza como
tal. O bem, para os seres humanos, é estar de acordo com a razão, e o mal é
estar fora da ordem da razoabilidade... Então, a virtude humana, que torna
boa tanto a pessoa humana quanto suas obras, está de acordo com a natureza
humana exatamente na medida que (tantum...inquantum) está de acordo com
a razão; e o vício é contrário à natureza humana exatamente na medida em
que é contrário à ordem da razoabildiade.

No pensamento finnisiano, o Direito não pode prescindir de elementos previamente


estabelecidos. Essa preocupação é constante nas obras de Finnis (2007, p. 85):
Em síntese: uma teoria da lei natural (natureza) da lei procura, ao mesmo
tempo, dar conta de sua faticidade e responder às questões que são centrais
para o seu entendimento. Como listados por Green (2003), tendo observado
que “Nenhum filósofo do Direito poder ser apenas um positivista jurídico”,
essas questões adicionais (que o juspositivista não aspira a responder), são:
que tipo de coisas poderia possivelmente contar como qualidades do Direito?
Que papel deveria ter a lei no julgamento? Que obediência a lei pode nos
exigir? Que lei nos devemos ter? E deveríamos ter uma lei? Todas essa

99
Nalini (2012, p. 105) observa muito bem que, para os juristas das novas gerações, Hart é mais conhecido por
sua contribuição para distinguir entre normas primárias - aquelas que impõem obrigações - e normas
secundárias - as de reconhecimento, mudança e julgamento.
100
Percebe-se que o divisor de águas invocado pelo Direito Natural é justamente essa divisão entre um Direito
posto pela vontade dos homens, o “dever ser”, e um Direito Natural derivado do “ser”.
112

perguntas, embora organizadas e articuladas de maneira um pouco diferente,


estão sob consideração nesse ensaio.

É que para Finnis, o Direito Natural, ou mais precisamente, os princípios do Direito


Natural estão para se prestar ao auxílio do Direito Positivo, sem, contudo, vinculá-los às
mistificações próprias das Escolas clássicas, divorciando-se de qualquer justificativa
metafísica, pensando em um Direito Natural de acordo com os bens humanos, aos quais
imputou uma autoevidência, realizável por meio de instituições do Direito humano e
requisitos de razoabilidade prática.
Para Finnis, esses valores autoevidentes são estabelecidos por critérios objetivos e
não subjetivos, apresentando valores básicos da conduta humana como sendo inquestionáveis,
portanto, autoevidentes, passíveis de uma justificação racional, constituindo como predicados
necessários e indispensáveis para que se possa avaliar e ponderar acerca de juízos morais.
Necessário, portanto, é um fundamento avaliador de todos os juízos morais,
estabelecendo-se os valores básicos para a existência humana através do raciocínio prático.
Por outras palavras, esses “valores básicos para a existência humana” constituem o substrato
valorativo do homem em todos os seus juízos morais, políticos ou jurídicos, possuindo caráter
pré–moral, pré– político e pré–jurídico. Para Finnis, esses valores básicos para a existência
humana são “autoevidentes” e "universais", mesmo que nem todos os homens os entendam e
os realizem com igual intensidade, tempo e espaço.
Na lição de Finnis (2007, p. 89), a universalidade dos bens básicos é entendida da
seguinte maneira:

Todas as sociedades humanas demonstram uma preocupação com o valor da


vida humana; em todas, a autopreservação é aceita, em geral, como um
motivo apropriado para a ação, e em nenhuma delas o homicídio é permitido
sem alguma justificativa bem definida. Todas as sociedades humanas
encaram a procriação de uma nova vida, como em si mesma, uma boa coisa,
a menos que existam circunstâncias especiais. Nenhuma sociedade humana
deixa de restringir a atividade sexual, em todas as sociedades existe alguma
forma de proibição de incesto, algum tipo de oposição à promiscuidade
ilimitada e ao estupro, alguma preferência por estabilidade e permanência
nas relações sexuais. Todas as sociedades humanas demonstram
preocupação com a verdade por meio da educação dos jovens em questões
não apenas práticas (e.g. evitação do perigo), como também, especulativas
ou teóricas (e.g.religião). Os seres humanos, que só sobrevivem à infância
porque são bem cuidados, vivem em sociedade, ou às margens de alguma
sociedade que invariavelmente se estende para além da família nuclear, e
todas as sociedades demonstram favorecer os valores de cooperação do bem
comum acima do bem individual, da obrigação entre os indivíduos e da
justiça dentro dos grupos. Todos conhecem a amizade. Direito a propriedade
ou patrimônio, e de reciprocidade. Todos valorizam o jogo, sério e
113

formalizado, ou informal e recreativo. Todos tratam o corpo dos membros


mortos do grupo de algum modo tradicional e ritual que é diferente do modo
como descartam o lixo. Todos demonstram interesse por poderes ou
princípios que devem ser respeitados por seres sobre- humanos, de uma
forma ou de outra, a religião é universal.

Importante consignar que a lista não é exaustiva e sim exemplificativa. E mais,


todos os bens são igualmente fundamentais, não havendo hierarquia entre eles, um eventual
conflito deve ser resolvido pela ponderação de valores, ou seja, o valor de um determinado
bem é variável em um determinado momento da vida de uma pessoa.
O fato de não existir hierarquia entre esses valores não indica que as pessoas não
possam encará-los, de modo razoável, como mais importantes, pois poderão, a depender das
vicissitudes da vida, mudar as importâncias dos valores. As pessoas podem ir mudando de
foco e ir percorrendo, de um em um, o círculo de valores básicos que constituem o horizonte
de oportunidades, sem perder a igualdade fundamental de todos os valores.
O autor identifica sete bens básicos autoevidentes: a vida, o conhecimento, o jogo, a
experiência estética, a amizade ou sociabilidade, a razoabilidade prática e a religião; todos
ligados ao potencial humano de crescimento, o que o autor nomeou de “florescimento
humano” (FINNIS, 2007, p. 58).
Serão expostos, de forma sucinta e coesa, esses setes bens básicos autoevidentes:

1. A Vida, assim entendida como a saúde corporal, capacidade psíquica de


autodeterminação e procriação. É inegável o seu peso em relação aos demais bens, pois esta é
evidente e sentida por si mesma, todavia o que não a torna um valor superior e invariável.
Corresponde ao impulso de autopreservação. Finnis (2007, p. 91) sugere que a vida
envolveria a sua transmissão, ou seja, a procriação, todavia concluiu que esse tema seria outro
bem fundamental, correspondente à inclinação para acasalar/procriar/criar.

2. Conhecimento (saber a verdade de modo não apenas instrumental), um


conhecimento compreendido como aquele bem inerente à própria atividade humana e que se
refere justamente à constante busca da verdade. O princípio de que a verdade (e o
conhecimento) é digna de ser buscada não é de alguma forma inato, não está inscrito na mente
quando do nascimento101. Pelo contrário, o valor da verdade fica óbvio apenas para aquele

101
Nisso Finnis se distanciou da moralidade como autonomia do pensamento kantiano, pois Kant a define como
a propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma (independentemente da natureza dos objetos do
114

que experimentou o ímpeto de perguntar, que apreendeu a conexão entre pergunta e resposta,
que compreendeu que o conhecimento é constituído de respostas corretas para perguntas
particulares e que está ciente da possibilidade de mais perguntas e de outras pessoas que
fazem perguntas que, como ele mesmo, poderiam se deleitar com a vantagem de chegar a
respostas corretas (FINNIS, 2007, p. 72).

3. Jogo: assim entendido como experiência lúdica, sem outro fim a não ser o
desempenho da própria atividade. O jogo é uma função da vida e que apresenta ao ser humano
um espaço de regras, desejos, competições e ambições; tal bem possui relevância ao Direito,
no sentido de que, em regra, o jogo se desenvolve em um ambiente tenso, instável. Destaca
Finnis (2007, p. 92) que cada um de nós pode ver o que se trata engajar-se em atividades que
não têm qualquer propósito, além de seu próprio desempenho e que são desfrutadas por si
mesmas. O desempenho dessa atividade pode ser solitário ou social, intelectual ou físico,
tenso ou relaxado, altamente estruturado ou relativamente informal, convencional ou de
padrão ad hoc.

4. Experiência estética, ou seja, a contemplação do belo como fim da atividade em


si mesma. A experiência estética não somente decorre de uma atividade humana, mas
também, como sendo evidente da própria natureza, ou seja, prescinde uma ação humana; o
homem passa a ser visto como espectador e não como ator. De tal referência denota-se que
experiência estética é um bem básico evidente, no sentido de que o ser humano, ao realizar
juízos morais, efetua tais avaliações por meio de uma contemplação sensitiva. Prossegue
Finnis dizendo que a experiência estética, diferentemente do jogo, não precisa envolver ação
de nossa parte; o que é buscado e valorizado por si mesmo pode ser simplesmente a forma
bela “exterior” à pessoa, e a experiência “interior” de apreciação de sua beleza. Mas, muitas
vezes, “a experiência valorizada é encontrada na criação e/ou apreciação ativa de alguma obra
de forma significativa e satisfatória” (FINNIS, 2007, p. 93).

5. Sociabilidade (Amizade): o relacionar-se pacificamente com outros seres


humanos. Tal bem é visto por Finnis (2007, p. 93) como verdadeiro instrumento para que o
bem comum seja tingido, pois, quando alguém despende sua energia em benefício de outrem,
não há somente uma colaboração ou coordenações recíprocas, mas, sim, um bem comum

querer). Com efeito, para Kant o princípio da autonomia é, pois, agir de modo tal que as máximas de nossa
escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis universais, no ato de querer.
115

revelado por “autoconstituição e autorrealizações” mútuas. A devida compreensão de tal bem


básico deve, necessariamente, passar pelo conceito de “comunidade completa”102, trazido por
Finnis, como um expoente máximo da interação humana.

6. Religião é explicada como comunhão com uma fonte transcendente de realidade.


É assumida em um contexto abstrato, ou seja, refere-se à relação que existe entre uma pessoa
e uma divindade qualquer. Para Finnis (2007, p. 94), a dedicação de um religioso (padre,
rabino, pastor, presbítero, ancião, bispo) a Deus se explica por esse bem.

7. Razoabilidade prática: no sentido de impor ordem inteligente na própria vida


com a escolha de fins razoáveis e modos razoáveis de participação nesses fins, ou seja, saber
empregar a inteligência para escolher como agir nas situações concretas é um bem
fundamental para os seres humanos.

É necessário consignar a importância desse valor fundamental para a teoria finnisiana


do Direito Natural, pois este apresenta faces distintas: como bem autoevidente por si só
quando se refere à razão humana; e orientação necessária para se buscar uma avaliação do que
seja moralmente bom, daquilo que seja imoral frente a todos os outros bens básicos.
Assim, a razoabilidade tanto é um aspecto do bem-estar humano quanto diz respeito
à participação da pessoa em todos os outros aspectos básicos do bem-estar humano.
Nesse particular, Finnis foi fortemente influenciado tanto por Santo Tomás de
Aquino quanto por Aristóteles, haja vista que o sentido da descrição do bem básico da
“razoabilidade prática” desenvolvida por Finnis se aproxima tanto do “phronimos” de
Aristóteles103, quanto da “prudentia” de Tomás de Aquino104, vale dizer, respectivamente: a
razoabilidade e a sabedoria prática.

102
Finnis não diferencia a palavra “sociedade” da palavra “comunidade”.
103
Em Ética e Nicômaco, há a seguinte passagem: ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado
de sabedoria prática o poder de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para ele, não sobre um aspecto
particular, como, por exemplo, sobre as espécies de coisas que contribuem para a saúde e o vigor, mas sobre
aquelas que contribuem para a vida boa em geral. Bem o mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a um
homem, sob um aspecto particular, quando ele calculou bem com vistas em alguma finalidade boa que não se
inclui naquelas que são objetos de alguma arte (ARISTÓTELES, 1995, p.144).
104
O Conceito de “prudentia” em Tomás de Aquino é expresso pela seguinte definição: a virtude da prudentia é
o que permite à pessoa raciocinar bem quanto à escolha de compromissos, projetos e ações, aplicar os princípios
práticos mais gerais concretamente, escolher corretamente, encontra o meio-termo correto, ser virtuoso e ser um
bom homem: S.T. II, q. 47, aa. 1-7; notas a II.3, supra (FINNIS, 2007, p.131).
116

Finnis exprime nove requisitos necessários para que um determinado juízo de valor,
a princípio abstrato, possa ser conduzido a uma correta avaliação moral. Para tanto passa a
apresentar essas condições à razoabilidade prática da seguinte maneira:

1. Um plano de vida coerente: no entendimento de John Finnis, devemos


buscar ordenar a nossa vida e vivermos de acordo com o que é razoável. Não
seria razoável viver sem um compromisso com algo que a razão aponte
como valores ou mesmo desprezar as possibilidades e circunstâncias na
própria vida para a adoção de projetos;

2. Sem preferência arbitrária por valores: não havendo hierarquia ou grau


maior de importância dos valores, seria irracional a imposição absoluta de
uma ordem ou supressão de algum bem na adoção de um projeto. Isso é
irracional e arbitrário, motivo pelo qual é proibido pela lei natural.

3. Sem preferência arbitrária por pessoas: devemos reconhecer que todos


os outros iguais a nós mesmos (os demais seres humanos) também possuem
tal possibilidade, respeitado o campo do razoável, no qual a autopreferência
se mostra racional.

4. Desprendimento: evita-se o fanatismo e suas consequências nefastas nas


perseguições dos bens humanos básicos quando, por algum motivo, um
projeto ou ação se mostrar de impossível realização, devendo readequá-lo ou
adotar-se um novo projeto.

5. Compromisso: não bastaria apenas termos um projeto de vida ou algum


compromisso, pois a razoabilidade nos exige também que sejamos
persistentes na perseguição de nossos compromissos, evitando tornarmo-nos
apáticos, o que no caso extremo implica o abandono do compromisso ou
desinteresse.

6. A relevância limitada das consequências: a capacidade de abordar


problemas relacionados à moralidade, referida aqui como precedente
necessário para que o homem realize o “bem do mundo". John Finnis busca
enfrentar as éticas dispostas tão somente em termos utilitaristas,
consequencialistas ou proporcionalistas. O “bom senso” exaltado pelo nosso
autor se refere à capacidade humana de “calcular”, “decidir”, “avaliar” e
“pesar” as consequências de uma determinada decisão, ou seja, a
razoabilidade prática é o instrumento para se avaliar essa ação, como, por
exemplo, o autor se refere ao que é razoável: preferir o bem humano ao bem
dos animais. Onde uma escolha deve ser feita, é razoável preferir bens
humanos básicos (como a vida) a bens meramente instrumentais (tal como o
Direito à propriedade). Onde o dano é inevitável, é razoável preferir atordoar
a ferir, ferir a aleijar, aleijar a matar, isto é, o menor grau em preferência do
maior grau de dano a um mesmo bem básico, em um mesmo caso.

7. Respeito por cada valor básico em cada ato: como todos os bens
humanos básicos são bens hierarquicamente iguais e sem preferência, bem
como, todos os seres humanos estão intitulados a participarem das
oportunidades oferecidas por tais bens, mostra-se arbitrário excluir qualquer
ser humano ou qualquer bem, sob qualquer pretexto. Orienta Finnis que
somente uma visão não consequencialista dos atos humanos pode originar a
117

“estrita inviolabilidade dos Direito humanos básicos”, pois, caso se valore


um determinado ato de maneira isolada, ignorando sua repercussão quanto à
proteção e ao fomento dos bens básicos evidentes, inegavelmente esse ato é
inapto para a destinação que se considera relevante em “Lei natural e
Direitos naturais”.105

8. Exigências do bem comum: corolário da Justiça social apresenta a


sociabilidade e a amizade como bens evidentes ao ser humano. Como visto,
considera-se que a sociabilidade deve ser vista como uma interação
harmoniosa entre os indivíduos de uma comunidade, já a amizade, em uma
intensidade maior de tal condição pacífica entre os homens, refere-se a uma
preocupação pelo próximo, um agir em nome de um terceiro.

9. Seguir a consciência: autodeterminar, através de escolhas corretas


(provenientes do pensar/conhecer) e autênticas de nosso intelecto prático,
formando o nosso caráter, buscando sempre o "eu correto" (FINNIS, 2007,
p. 109-128).

De tudo exposto pelo jusnaturalismo finnisiano, o “ser” se destaca como algo a ser
buscado e protegido e jamais vilipendiado através dos sete bens básicos por ele enumerados,
etapa necessária para entender o conceito de leis injustas.
Finnis tratou do tema da obrigatoriedade ou não das leis, sua aptidão em garantir a
justiça, bem como se as leis injustas geram ou não um dever. O problema ganha relevo
quando se confronta uma lei validamente formal com princípios defendidos pelo Direito
Natural.
Lembramos que, para Kelsen106, o direito do Direito Natural não é o fundamento de
validade do Direito Positivo, ou seja, as leis não são injustas pelo simples fato de contrariar
um preceito do Direito Natural. Mas o que fazer com as leis que, porventura, venham a violar
essas balizas impostas pelo Direito Natural?
Faz-se necessário um esclarecimento preliminar acerca da "versão forte do
jusnaturalismo" e "versão fraca do jusnaturalismo". A primeira traduz uma completa
subordinação das leis positivas às lei naturais, sendo um verdadeiro critério de validade do
Direito Positivo, assim, o conceito de justiça se identificaria nas leis naturais. Já para a
segunda, mesmo que uma lei fosse contrária às regras do Direito Natural, ainda assim seria

105
Para ilustrar o que foi dito, Finnis cita Kant, no seguinte contexto: “Aja de forma tal que trate a humanidade –
quer em sua própria pessoa, quer na pessoa de outrem – sempre com um fim, e nunca apenas como um meio”.
106
Para Kelsen, uma doutrina consequente do Direito Natural distingue-se de uma teoria positivista pelo fato de
aquela procurar o fundamento de validade do Direito Positivo, isto é, de uma ordem coercitiva globalmente
eficaz, em um Direito Natural diferente do Direito Positivo e, portanto, numa norma ou ordem normativa a que o
Direito Positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder, mas também pode não corresponder; por tal forma
que, quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser considerado como não válido
(KELSEN, 1998, p. 243).
118

considerada como Direito, todavia poderia não ser descumprida por afrontar aspectos da
justiça moral.
Percebe-se claramente que Finnis se filia à corrente do jusnaturalismo franco, porque
entende que uma teoria da lei natural não precisa ter como principal preocupação a afirmação
de que "leis injustas não são lei". No pensamento finnisiano, a principal preocupação de uma
teoria de lei natural é explorar os requisitos da razoabilidade prática em relação ao bem dos
seres humanos que, por viverem em comunidade uns com os outros, são confrontados com
problemas de justiça e de direitos, de autoridade, lei e obrigação.
Ao tratar da lei em seu sentido formal, Finnis não se atém às implicações inerentes à
autoridade ou não de materiais normativos que porventura sejam fontes de injustiça. Aqui,
assume a importância da lei em garantir a justiça, em todas as suas vertentes em uma
comunidade, ou seja, ressalta que a obediência à lei é imperativa no sentido de restringir as
opções de escolhas do comportamento humano, tudo para que o bem comum seja
efetivamente tangível.
Para Finnis, a derivação da lei positiva da lei natural é evidente e voltada para o
processo despendido ao se criar o Direito, quer seja pelo legislador, quer seja pelo juiz,
todavia os quais devem ser sempre conduzidos por critérios morais, no contexto da
razoabilidade prática.
Em sentido mais claro, no pensamento finnisiano, o Direito Natural deverá sempre
ser utilizado como fonte de legitimidade para o Direito Positivo, posto que uma lei que se
divorcie de seus bens básicos (condições expostas de justiça) será tida como insuficiente ao
padecer de real efetividade.
Todavia, quanto aos efeitos da injustiça das leis sobre a obrigação, Finnis constrói
nessa reflexão quatro sentidos para o ato de obedecer à lei. E pergunta: como a injustiça, de
qualquer um dos tipos de injustiça107, afeta a obrigação de obedecer à lei?
E responde Finnis (2007, p. 340):
Qualquer jurisprudência sólida irá reconhecer que é possível que alguém que
enuncie esta pergunta possa com "obrigação de obedecer à lei" estar se
referindo à (i) possibilidade empírica de estar sujeito à sanção no caso de
não-cumprimento; (ii) ou possibilidade legal no sentido intrassistêmico, no

107
Para Finnis, há quatro tipos de injustiça: (i) o uso de autoridade por parte do governante para sua própria
vantagem ou vantagem de um grupo ou facção, preterindo o bem comum; (ii) injustiça distributiva em que a
autoridade avoca para si inapropriadamente um excesso de autoridade ou autoridade inexistente; (iii) o exercício
de autoridade legal de outra forma que não de acordo com os justos requisitos de maneira e forma; e (iv) negar a
uma, a algumas ou a todas as pessoas um direito humano absoluto, ou um direito humano cujo exercício é nas
circunstâncias possível, consistente com requisitos razoáveis da ordem pública, da saúde pública, e compatível
com o devido exercício tanto de outros direitos humanos quanto dos mesmos direitos humanos por parte de
outras pessoas (FINNIS, 2007, p. 338-339).
119

qual a premissa prática de que a submissão à lei é socialmente necessária é


um princípio estrutural isolado do resto do raciocínio prático; ou (iii)
obrigação legal no sentido moral (isto é, a obrigação moral que
presumivelmente é acarretada pela obrigação legal no sentido intrassistêmico
ou legal); ou (iv) obrigação moral derivada não da legalidade da estipulação
da obrigação, mas de alguma "fonte secundária".

Assim, Finnis elenca quatro sentidos para o ato de cumprimento da lei. O primeiro
alude à utilização das sanções espalhadas pelos textos normativos e tem por fim evitar que as
pessoas deixem de cumprir as obrigações impostas. O segundo parte da obrigação legal no
sentido jurídico (obrigação legal no sentido intrassistêmico) ancorado na premissa prática de
que a submissão à lei é socialmente necessária; é um princípio estrutural isolado do resto do
raciocínio prático.
Quanto ao terceiro sentido, Finnis considera que o sentimento de obrigação para com
uma lei se respalda justamente nessa força presumível de obrigar a todos os membros de uma
comunidade a pautarem suas condutas de acordo com o previsto pela norma, tudo em nome
do bem comum.
O problema ganha outros contornos quando se refere à eventual distorção entre uma
obrigação imposta por um governante e que se refira em seu bojo a estipulações que vão
justamente contra o bem comum ou ainda desprovidas de princípios básicos de razoabilidade
prática. Para essas situações, ministra Finnis (2007, p. 345) que estipulações feitas em
benefício de partidários ou (sem emergência como justificativa) que ultrapassam a autoridade
definida legalmente, ou impõem encargos injustos, ou ordens que se façam coisas que nunca
deveriam ser feitas, simplesmente não conseguem, por si só, criar qualquer obrigação moral.
Vencidos os três primeiros sentidos sem se convencer da obrigatoriedade do
cumprimento da lei injusta, Finnis apresenta o quarto e último sentido que ultrapassa qualquer
indagação que se possa fazer à questão da obrigação de leis injustas descritas nos três
primeiros sentidos precedentes. Considera que o completo desrespeito do indivíduo à
autoridade do governante refletiria negativamente na estabilidade das relações intersubjetivas
da comunidade e que traria consequências ruins ao bem comum.
Quanto a esse aspecto, assim considera Finnis (2007, p. 346):

Então, se uma estipulação injusta é, realmente, homogênea com outras leis


em sua fonte formal, em seu acolhimento pelos tribunais e funcionários, e
em sua aceitação em geral, pode (nem sempre) ser requerido do bom cidadão
que ele obedeça a essa estipulação no grau necessário para evitar enfraquecer
“a lei”, o sistema legal (de regras, instituições e prescrições) como um todo.
O governante tem ainda a responsabilidade de revogar em vez de
120

implementar a lei injusta, e neste sentido não tem o Direito de que ela seja
obedecida. Mas os cidadãos ou funcionários podem, ao mesmo tempo, ter a
obrigação reduzida, colateral e, em um importante sentido extralegal, de
obedecer a ela.

Em resumo e não custa repetir, na teoria do Direito Natural de John Finnis, a


principal preocupação é explorar os requisitos da razoabilidade prática em relação ao bem dos
seres humanos que, por viverem em comunidade uns com os outros, são confrontados com
problemas de justiça e de direitos, de autoridade, lei e obrigação.
E acrescenta Finnis (2007, p. 337):

A principal preocupação jurisprudencial de uma teoria de lei natural é,


portanto, identificar os princípios e os limites do Estado de Direito, e
descobrir como leis boas, em toda a sua positividade e mutabilidade, devem
ser derivadas (e não, em geral, deduzidas) de princípios imutáveis -
princípios que tiram sua força de razoabilidade, e não de quaisquer atos ou
circunstâncias que lhes tenham dado origem.

Ainda que os céticos proclamem faltar homogeneidade, coesão e validade ao Direito


Natural, quer por falta de conhecimento ou mesmo por não ter havido educação nesse
pensamento, irá desejar que a lei injusta não irradie seus efeitos sobre si enquanto pessoas
razoáveis.
121

CAPÍTULO 4 - DIREITO NATURAL E HUMANISMO FRATERNAL

4.1 Mais uma casuística em análise

Outra decisão do Supremo Tribunal Federal a ser analisada à luz do tema central traz
à tona a crise do pensamento político moderno fulcrado no individualismo, característica do
liberalismo econômico. Refere-se à possibilidade de importar pneu usado à luz da tutela
constitucional do meio ambiente. Essa matéria foi questionada pelo presidente da República
por meio da Advocacia-Geral da União.
O principal fundamento está contido no artigo 225 da Constituição Federal do Brasil,
que assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que estaria
ameaçado pela incineração e pelo depósito de pneus velhos.
Para Carmen Lúcia, Ministra relatora do processo, o desenvolvimento econômico e a
livre iniciativa não podem ser os únicos fatores a serem considerados para decidir os impasses
da sociedade moderna, mesmo que em tempos de crise econômica.
E acrescentou: “não se resolve uma crise econômica com a criação de outra crise,
esta gravosa à saúde das pessoas e ao meio ambiente. A fatura econômica não pode ser
resgatada com a saúde humana nem com a deterioração ambiental para esta e para futuras
gerações" (BRASÍLIA, 2009). [GRIFO NOSSO]
Assim restou consignada a ementa do acórdão:

Constitucionalidade de atos normativos proibitivos da importação de pneus


usados. Reciclagem de pneus usados: ausência de eliminação total dos seus
efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente equilibrado. Afrontas aos
princípios constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente
equilibrado. [...] Arguição de descumprimento dos preceitos fundamentais
constitucionalmente estabelecidos: decisões judiciais nacionais permitindo a
importação de pneus usados de países que não compõem o Mercosul: objeto
de contencioso na Organização Mundial do Comércio, a partir de 20-6-2005,
pela Solicitação de Consulta da União Europeia ao Brasil. Crescente
aumento da frota de veículos no mundo a acarretar também aumento de
pneus novos e, consequentemente, necessidade de sua substituição em
decorrência do seu desgaste. Necessidade de destinação ecologicamente
correta dos pneus usados para submissão dos procedimentos às normas
constitucionais e legais vigentes. Ausência de eliminação total dos efeitos
nocivos da destinação dos pneus usados, com malefícios ao meio ambiente:
demonstração pelos dados. [...] Princípios constitucionais (art. 225) do
desenvolvimento sustentável e da equidade e responsabilidade
intergeracional. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação
para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento
sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente
122

respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em


face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas
para garantia e respeito às gerações futuras. Atendimento ao princípio da
precaução, acolhido constitucionalmente, harmonizado com os demais
princípios da ordem social e econômica. [...] Demonstração de que: os
elementos que compõem os pneus, dando-lhe durabilidade, é responsável
pela demora na sua decomposição quando descartado em aterros; a
dificuldade de seu armazenamento impele a sua queima, o que libera
substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; quando compactados inteiros, os
pneus tendem a voltar à sua forma original e retornam à superfície, ocupando
espaços que são escassos e de grande valia, em especial nas grandes cidades;
pneus inservíveis e descartados a céu aberto são criadouros de insetos e
outros transmissores de doenças; o alto índice calorífico dos pneus,
interessante para as indústrias cimenteiras, quando queimados a céu aberto
se tornam focos de incêndio difíceis de extinguir, podendo durar dias, meses
e até anos; o Brasil produz pneus usados em quantitativo suficiente para
abastecer as fábricas de remoldagem de pneus, do que decorre não faltar
matéria-prima a impedir a atividade econômica. Ponderação dos princípios
constitucionais: demonstração de que a importação de pneus usados ou
remoldados afronta os preceitos constitucionais de saúde e do meio
ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 170,I e VI e seu parágrafo
único, 196 e 225 da CB). Decisões judiciais com trânsito em julgado, cujo
conteúdo já tenha sido executado e exaurido o seu objeto não são desfeitas:
efeitos acabados. Efeitos cessados de decisões judiciais pretéritas, com
indeterminação temporal quanto à autorização concedida para importação de
pneus: proibição a partir deste julgamento por submissão ao que decidido
nesta arguição (BRASÍLIA, 2009). [GRIFO NOSSO]

As questões em debate assentam, por um lado, na ordem econômica, fundada na livre


iniciativa e no livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, tal como estampada no artigo 170 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Por outro lado, temos a preocupação com a
deterioração ambiental para esta e para futuras gerações.
A questão discutida é teoricamente controversa, como são controversos os
fundamentos ideológicos dessa decisão. Nessa decisão, a irradiação de valor principiológico e
conceito de direito ético serviram de fundamento na decisão apresentada, dessa vez com olhar
fraternal108 nas futuras gerações através do princípio da equidade intergeracional.109

108
A fraternidade é expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando ela
afirma que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e de
consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
109
Entende-se por Equidade intergeracional o conteúdo relacional de igualdade entre as gerações passadas, as
presentes e as que nos sucederão sob dois aspectos básicos: o que diz respeito à justa utilização dos recursos
naturais pelas gerações passadas, presentes e futuras; e o que tange à responsabilidade da preservação de tais
recursos, disponíveis a todos as gerações, de forma a uma geração não causar prejuízo a outra, estando todas no
mesmo pé de igualdade.
123

Nessa decisão, a fraternidade constituiu um critério de decisão política, ao lado da


liberdade e da igualdade, influenciando o modo de interpretar essas duas outras categorias
políticas.
Essa decisão supera paradigmas históricos de olhar iluminista caracterizado pela
individualidade própria do liberalismo, e adentra em uma seara do altero, centrada na
dimensão da consideração do outro enquanto ser humano, posto que confronta o ego e alter
no novo ideal de racionalidade que emerge de uma sociedade pós-moderna, consubstanciada
na fraternidade.
Para entender a decisão do Supremo Tribunal Federal é necessário deter-se um pouco
mais nessa questão da fraternidade e sua relação com o Direito Natural e Direito Positivo,
identificando um critério humanista na ética do direito, abandonando uma concepção
individualista e voltando os olhos para um novo direito com viés fraternal.

4.2 Direito Natural Moderno e o Humanismo fraternal

Hoje, no século XXI, vivemos um momento posterior à modernidade. A pós-


modernidade exige uma necessária reflexão de adaptação do direito frente aos tempos atuais.
Na mesma velocidade em que houve um declínio dos valores, afrouxamento da moral, houve
um excesso de teorias políticas, éticas, de opiniões e estudos categóricos de certificadas
autoridades tentando explicar os atuais contornos da vivência humana neste início turbulento
de um novo século e de um novo milênio.
O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão,
o desprestígio do Estado. A era da velocidade, a imagem acima do conteúdo. Muitos autores
nomeiam nosso tempo como pós-modernismo, em oposição ao termo modernidade, que era
marcada pela excessiva confiança na razão e na visão mecanicista do mundo.
Esse novo tempo não foi identificado como um movimento isolado, mas início de
uma nova época, uma nova estrutura social, efeito da globalização, quando os diversos
segmentos da sociedade passaram a estabelecer uma inter-relação, marcada pela tecnologia da
informação e pela descolonização.
O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial, vive-se a angústia
do que não pode ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época
aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana (ADEODATO, 2009, p.
353).
124

Ainda no século passado, Arendt bem observou que o nazismo reduziu as vítimas
dos campos de concentração ao mínimo denominador biológico comum, destruindo a noção
de que cada homem encarna algo que é incompatível ou insubstituível, acima de qualquer
preço ─ o que Kant chamava de "dignidade" (BAGGIO, 2009, p. 82).
Uma cena específica de A Lista de Schindler, filme norte-americano de 1993,
desperta interesse da Filosofia: a mulher de Oscar Schindler, estando ao largo do monte,
montada em um cavalo, fica indignada ao ver as atrocidades praticadas contra os judeus. Vira-
se para seu marido e diz: "vamos embora, não quero mais ver isso".
Por que essa mulher, mesmo sendo alemã, não suportou ver as atrocidades contra
outros seres humanos? Quais foram inclinações naturais ou tendências racionais que
afloraram nela? É preciso o comentário de Giuseppe Tosi (BAGGIO, 2009, p. 62) que nos
vem ao encontro:

O homem é um dos poucos seres vivos - ou talvez o único - que desenvolveu


altíssima agressividade intraespecífica, praticamente desconhecida no mundo
natural, embora este seja dominado pela luta pela sobrevivência. O homem,
à diferença dos outros animais, cuja agressividade é geralmente
extraespecífica e determinada por necessidades vitais, possui uma alta dose
de agressividade contra o próprio semelhante. Nesse sentido, não
poderíamos afirmar propriamente que o homem é o lobo do outro homem,
segundo uma máxima latina que Thomas Hobbes tornou famosa: homo
homini lupus. Na verdade, os lobos não agridem os outros lobos de forma tão
generalizada, cruel e violenta como os homens fazem com seus semelhantes.

Feliz foi a tradução de Nalini (2012, p. 110) para quem:

Vive-se em uma era em que os fundamentalismos não se circunscrevem à


face oriental do Globo. Há muitas versões fundamentalistas também no
Ocidente, e a conurbação acelerada, sob influência da cultura do automóvel,
estressa, angustia e exacerba os ânimos. Até mesmo concentrações que
deveriam servir ao convívio saudável - esportes e megashows - costumam
desaguar em deprimentes espetáculos de violência.

Com razão Nalini, pois alguns teóricos tendem a reproduzir desqualificação a alguns
povos e civilizações, especialmente as não-ocidentais, e esquecem de "teorizar" as questões
existentes no "quintal" de suas casas. Guerras são travadas nas favelas fluminenses, escolas do
crime organizado em presídios, completa instabilidade social pela ausência de segurança que
ultrapassam os grandes centros. Mata-se para roubar celular, ou porque, no assalto, não se tem
dinheiro.
125

Podemos dizer que o mundo moderno, diante dos perigos que ameaçam a
sobrevivência da sociedade, tem dois caminhos: (i) continuando nossa marcha retroagiremos
no estado de natureza, na luta de todos contra todos; (ii) ou usamos da razão para procurar
alternativas para a sobrevivência da raça humana.
Mas chegou-se a uma nova época que exige um novo direito, uma nova ética, um
novo formato no pensar: um mundo pós-moderno, com problemas da modernidade que se
acumulam com novos, levando ao mundo de incertezas e descrença, em um ceticismo
crônico.
Há necessidade de estabelecer uma ruptura entre o ideal e o real na relação humana,
ou seja, estabelecer a possibilidade de amar as pessoas ao redor, de ser generoso, de dar
sentido à existência.
Para Giacóia Júnior (2013),

[...] o homem moderno vive uma dilaceração, uma espécie de fragmentação,


de contradição entre duas aspirações: de um lado a luta pela necessidade da
sobrevivência (luta pela produção e reprodução da vida material) e de outro
lado a necessidade igualmente premente de elevação espiritual110.

E acrescenta sugestionando que

[...] num momento em que inicia o projeto político da modernidade, é


necessário travestir a necessidade de reprodução da vida com uma certa
tintura de nobreza. E justamente nesse contexto nascem as duas palavras:
dignidade do homem e dignidade do trabalho (GIACÓIA JÚNIOR, 2013).

O historiador e filósofo Tzvetan Todorov111, ao comentar o sentido que Dostoievski


colocou nesta frase a beleza salvará o mundo, que está no romance O Idiota foi preciso,
porém não utópico, ao sugerir que "a beleza é aquela do gesto humano, da relação humana, é
a possibilidade de amar as pessoas ao redor, de ser generoso, de dar sentido à existência”.
E justifica que a beleza que salvará o mundo está nisto: “é conseguir carregar de
verdade e sentido os gestos mais cotidianos, as nossas relações com as pessoas com as quais
convivemos por conta da nossa profissão, com nossos filhos e com nosso trabalho. A beleza
salvará o mundo” (TODOROV, 2012)112. [GRIFO NOSSO]

110
A preguiça e a melancolia, com Oswaldo Giacoia. Gravado em 15 de março de 2013.
111
Tzvetan Todorov (Sófia, 1939) é um filósofo e linguista búlgaro radicado na França desde 1963 em Paris.
112
A democracia e a beleza, com Tzvetan Todorov. Gravado em 06 de setembro de 2012.
126

Como superar essa dialética negativa da alteridade e do ceticismo crônico? Uma


resposta seria a promoção de uma dialética de intersubjetividade, na qual o outro não seja
conhecido como inimigo, ou seja, simplesmente como um não-eu, mas como um outro-eu:
"eu mesmo como um outro".
E a solução foi dada pelo próprio Giuseppe Tosi apud Baggio (2008, p. 58):

Nesse sentido, seria preciso abandonar uma postura antimoderna e abrir um


diálogo crítico com a Modernidade: não se trata de colocar a fraternidade
contra a liberdade ou a igualdade, mas com elas, articulando dialeticamente
os três conceitos e retomando a antiga tradição do humanismo cristão. A
fraternidade poderá desempenhar um papel político se for capaz de
interpretar e transformar o mundo real em que vivemos, mostrando assim um
valor heurístico e uma eficácia prática.

Mas por que se falar em Humanismo fraternal? E qual sua relação com o Direito
Natural? Observa-se que o termo "fraternidade" está longe da pauta política, muito embora
esteve presente no ideal da tríade revolucionária francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
E o distanciamento da pauta política é explicável pelo apego teológico ao termo
fraternidade113, o que culminou na falta de referência aos outros dois princípios
revolucionários da liberdade e da igualdade.
Segundo Aquini (2008, p. 73), da Pontifícia Universidade S. Tommas:

A fraternidade é considerada um princípio que está na origem de um


comportamento, de uma relação que deve ser instaurada com outros seres
humanos, agindo uns em relação aos outros, o que implica também a
dimensão da reciprocidade. Nesse sentido, a fraternidade, mais do que como
um princípio ao lado da liberdade e da igualdade, aparece como aquele que é
capaz de tornar esses princípios efetivos (BAGGIO, 2009, p. 73).

O professor Baggio (2008, p. 66), renomado pesquisador em Filosofia política da


Universidade Sophia, em Florença, referindo-se à complexidade do conceito fraternidade,
assinala que:

É verdade que os estudos nesse campo devem abordar não só a situação de


esquecimento da fraternidade, mas também remover os "escombros" que

113
A fraternidade vem sempre proclamada como um dos três princípios axiológicos fundamentais em matéria
dos direitos do homem, juntamente com a liberdade e igualdade. Ora, a formação história desse tríptico remonta
à Revolução Francesa cuja consagração oficial em textos jurídico se fez a partir da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789. De toda foram, tanto ela como o Bill of Rights da Virgínia de 1776 só sagraram a
liberdade e a igualdade como princípios A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez, - e não como
princípio, mas antes como virtude cívica - na Constituição Francesa de 1791, tendo o texto constitucional da
Segunda República Francesa, em 1848, vindo a declarar oficialmente a tríade (ALMEIDA, 2010, p. 27).
127

atrapalham os campos de estudo, produzidos pelas interpretações redutivas


que a fraternidade teve nos últimos dois séculos e que contribuíram para
gerar uma espécie de desconfiança em relação a ela.

Como bem observou Hervada (2006, p. 146), o homem, por natureza, não é apenas
sociável (capaz de sociedade), mas sócio dos demais. Embora as possíveis formas de
sociedade sejam múltiplas, todas elas são desenvolvidas de um núcleo natural de sociedade,
em cuja virtude o homem está - por natureza - unido aos demais por vínculos de solidariedade
e comunidade.
Foram precisas as lições de Pozzoli (2013, p. 110), acerca da fraternidade como novo
paradigma a ser solidificado:

A fraternidade poderá proporcionar à sociedade uma igualdade afetiva entre


as pessoas, considerando a diversidade intrínseca presente no meio social,
eliminando o direito à igualdade baseado em um poder soberano, ao qual
todos estão subordinados. Pois assim o direito à igualdade deixa de ser
efetivo em decorrência das desigualdades que ele mesmo impõe, a começar
pela subordinação dos povos a um poder soberano, um poder desigual. A
defesa e a aplicação da fraternidade como princípio jurídico reafirma os
princípios que o norteiam, com vistas às mudanças no paradigma dominante,
impondo-se tais mudanças e conceitos como um novo paradigma emergente
a ser solidificado.

A realização da fraternidade interessa tanto ao Direito como ao Estado, como a eles


interessa a realização da liberdade e da igualdade. Sobre a Fraternidade, Mendes (2013, p. 02)
se manifesta lembrando que:

No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas


segundo o valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a
fraternidade pode constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias
portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela humanidade
em tema de liberdade e igualdade.

Na lente de observação de Brito (2013), a Fraternidade significa apenas que


precisamos de uma sociedade que evite as discriminações e promova as chamadas ações
afirmativas ou políticas públicas afirmativas de integração civil e moral de segmentos
historicamente discriminados, como o segmento das mulheres, dos deficientes físicos, dos
idosos, dos negros, e assim avante.
Prefaciando o livro Fraternidade como Categoria Jurídica, Munir Cury bem lembrou
o magistério de Chiara Lubich, a qual afirma que "os obstáculos para a harmonia da
convivência humana não são apenas de ordem jurídica, ou seja, devidos à falta de leis que
128

regulem esse convívio; dependem de atitudes, mais profundas, morais, espirituais, do valor
que damos à pessoa humana, de como consideramos o outro" (PIERRE, 2013, p.5).
Carlos Augusto Alcântara Machado (Pierre, 2013, p. 75) foi categórico ao afirmar
que "se a evolução tecnológica não for completada pela harmonização ética, fundada nos
Direitos Humanos, a humanidade tenderá à desagregação social, em razão da fatal prevalência
dos mais fortes sobre os mais fracos".
Se é verdade que o conceito de fraternidade encontra raízes na teologia cristã,
também é verdade que esse conceito se emancipou definitivamente dessa tradição, como se
verá, adquirindo legitimidade própria e ocupando um lugar novo na função da hermenêutica,
adotando uma feição humanista, como forma de implementar os princípios consagrados do
Direito Natural.
Nesse particular foi muito bem a ministração de Pozzoli (2001, p. 177), afirmando
que os princípios humanistas podem “apontar para a solução de problemas que incomodam ou
perturbam a consciência contemporânea dos chamados operadores do direito".
O Direito precisa de novos paradigmas. Pode haver muitas teorias e pensamentos
para esse novo estágio da ciência jurídica, mas ela terá sempre que ter um tom humanista, do
ser humano, solidário, altruísta, fraterno, que implementa a justiça a partir do "outro". A
forma de implementação do Direito Natural pela fraternidade será objeto de estudo.

4.3 Humanismo moderno em Luc Ferry

Conforme exposto nos capítulos anteriores, no período da revolução científica que


começa no século XVI, marca o XVII e XVIII, também chamado período das “Luzes”, já que
que os pensadores tinham como objetivo difundir a luz da razão na consequência do povo. Os
filósofos acreditavam profundamente no poder da razão e, mais ainda, no poder do homem
modificar verdadeiramente as condições de sua existência.
Afinal, a luta dos filósofos chamados de iluministas está na origem de uma das
transformações sociais mais radicais de todos os tempos, que se deu, para o bem e para o mal,
com a Revolução Francesa. O elo que os ligava era, mais do que uma crença, uma certeza: a
de que alguns valores humanos são eternos, ainda que não existam por si mesmos. “Eternos”
porque, sem eles, o próprio sonho de ser homem perde o seu sentido.
Kant, uma das personalidades mais ilustres do iluminismo alemão, deixou-nos uma
das melhores definições desse movimento. Para ele, o Iluminismo representava a
129

emancipação do homem da tutela que ele próprio impôs a si, ao se deixar dominar pelos
outros e não por sua própria razão. “Faça uso da tua razão!”: eis o lema do Iluminismo para
Kant.
Para Luc Ferry114, há uma revolução na vida privada que balançou nossas
existências, dando um novo princípio de sentido, que exige uma nova Filosofia. É o que
chama de "Segundo Humanismo". Para esse pensador francês, o primeiro foi o Humanismo
da lei e da razão, era do Iluminismo e dos direitos humanos, dos republicanos franceses e de
Kant.
Já esse Segundo Humanismo é um humanismo da fraternidade e da simpatia. O ideal
que ele visa a realizar não é o dos nacionalismos, nem o das ideias revolucionárias. Não se
trata mais de organizar os grandes massacres em nome de princípios mortíferos que se
acreditava serem exteriores e superiores à humanidade, mas de preparar o futuro para os que
nós amamos mais, o das gerações futuras.
E acrescenta esse pensador francês:

O que nós vivemos não é de forma alguma a liquidação do sagrado, o eclipse


dos valores (da espiritualidade), mas sua encarnação em nova face, a da
humanidade. Vivemos o nascimento de uma nova face do Humanismo, que
não é mais aquele de Voltaire e Kant, dos direitos do homem e da razão,
desses iluminismos que portaram, é verdade, um vasto projeto de
emancipação, mas que conduziram também ao imperialismo e à colonização.
Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, da
transcendência do outro e do amor.
Falo de uma espécie de revolução coperniciana que, em lugares dos
princípios fundadores antigos- o cosmos dos gregos, o Deus das grandes
religiões, o cogito, a Razão e os direitos do humanismo republicano -, faz do
amor, da amizade, da fraternidade o novo pedestal de nossos valores e o
colocar de nossas preocupações (FERRY, 2012, p. 17).

Bem observou Ferry que antigamente as pessoas se sacrificavam pela revolução, pela
pátria ou até por Deus115. Todavia, hodiernamente os motivos não são abstrações ideológicas,
mas os seres reais, as pessoas. O autor denomina essa mudança como "a sacralização do
amor".

114
Luc Ferry (nasceu a 1º de janeiro de 1951 em Colombes no departamento de Hauts-de-Seine, França), é um
filósofo francês e antigo professor de Filosofia e político engajado em favor da União para um movimento
popular (UMP). Ele foi Ministro da Educação Nacional, na França, sob o governo de Jean-Pierre Raffarin de
2002 a 2004.
115
Bem expôs Ferry que, para a imensa maioria dos europeus de hoje, os únicos seres pelos quais estaríamos
dispostos a arriscar nossas vidas são os humanos, a começar por nossos próximos, nossos filhos, evidentemente,
mas com certeza não por entidades abstratas. Especialmente nas novas gerações, mais ninguém ou quase (sempre
há exceções que justificam a regra) está disposto a morrer pelas três entidades maiores que constituíram, no
sentido que a entendo, história do sagrado na Europa: Deus, pátria, revolução (FERRY, 2013, p. 110).
130

E pergunta: Vivemos mesmo, como alguns acreditaram, o desencanto do mundo e a


era do vazio, o fim de todos os princípios de sentido de todas as figuras do sagrado, de todos
os apegos éticos fortes?
Sem intervalo, responde que não vivemos o fim do sagrado, mas a sacralização do
outro; não o desaparecimento de toda a espiritualidade, mas, como se diz na história das
ciências, uma mudança radical de paradigma que provoca o surgimento de novas aspirações a
uma sabedoria do amor sem a qual não existe uma vida boa (FERRY, 2012, p.24).
Ora, o Segundo Humanismo tem fundamento nesse novo sagrado, ou seja, no amor
ao outro. O primeiro Humanismo116, também chamado pelo pensador francês como o das
Luzes, esteve centrado no cidadão, no homem jurídico de direito, que exerce uma relação, no
caso da democracia, de súdito e soberano ao mesmo tempo, ao passo que esse segundo
Humanismo considera as paixões dos indivíduos.
Não está mais em jogo o Humanismo da razão e dos direitos, mas um Humanismo
tomado pelas emoções e, sobretudo, pela afetividade nas relações de parentesco e de amizade
que rompe com uma tradição metafísica, baseada em transcendências, e se firma na imanência
do mundo.
E continua sua lição:

É, ao contrário, um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, um


humanismo da transcendência do outro e do amor, e são necessárias
novas categorias filosóficas para pensá-lo, categorias que não pertence
mais à metafísica clássica, categorias que supõem que se pense depois
do que Nietzsche chamava de “crepúsculo dos ídolos”, para além de
qualquer ideia de volta ás antigas visões de mundo (FERRY, 2013, p.
25).

Da análise, percebe-se que esse filósofo francês se esforça para romper o pensamento
abstrato e transcendental, embora reafirmando valores cristãos, como bondade, benevolência e
o respeito pelo próximo. Procura se afastar da pauta religiosa, portanto, transcendental,
aproximando-se da Filosofia prática.
Ao final, faz uma referência à necessidade do outro para - ao “sair de mim”, a me
superar, a me afastar de meu ego - estabelecer um perfeito humanismo, através de um
fraternalismo laico. Esse será o próximo desafio deste trabalho.

116
Ainda na mesma lição, para Ferry o primeiro Humanismo, o Humanismo de Kant e de Voltaire, do direito e
da razão, é também um Humanismo da nação. Os direitos do homem, que ele situa no topo da hierarquia dos
valores morais, não são inteiramente direitos do homem de modo geral e absoluto, mas apenas direitos do
homem e do cidadão.
131

4.4 Humanismo Fraternal como ideia de Justiça

Sobre o tema, é importante invocar a obra de Maria Inês Chaves de Andrade


intitulada "A fraternidade como Direito Fundamental entre o Ser e o Dever Ser na Dialética
dos Opostos de Hegel"117, que trata a ideia de fraternidade em Hegel, buscando aferir, a partir
da Fenomenologia do Espírito, os parâmetros teóricos para a concepção da ideia de justiça
social alicerçada para além de liberdade e igualdade, sobre a ideia de fraternidade advindas
todas da Revolução Francesa.
Assim, tomando a fraternidade como direito fundamental (Direito Natural) ou o
homem como ser humano, busca-se a necessária coincidência entre o ser e o dever ser na
dialética dos opostos de Hegel para a realização da ideia de humanidade, quando o homem
que é deixa que o outro seja, por meio do dever ser que permite o vir a ser desse homem que,
sendo ser humano, reconhece no outro o vir a ser daquilo que é, encontrando na fraternidade o
sentido da própria humanidade (ANDRADE, 2010, p. 24).
Mas o que é ser humano? A resposta tem relevância, pois a ideia de humanidade não
tem sua origem na religião, antes tem significado próprio extraído da expressão "ser humano".
Maria Andrade não adentra na questão do que é o homem, mas desenvolve a ideia a partir de
quem é o homem na consciência de quem é, é e sendo não pode ser outra coisa senão o que
conhece de si.
Para a autora, a humanidade se revela no plano social, haja vista que dirigida aos
outros, como se põe a própria justiça na acepção de Aristóteles. Tem-se, então, que a
humanidade é uma disposição do espírito do homem que se resplandece na presença de outro
homem. Humano é o ser humano diante do outro que, sendo também humano, se revela
àquele e ao que se põe adiante desse modo, e assim sucessivamente até o limite da
humanidade que se esgota em si mesma, fraternalmente118 (ANDRADE, 2010, p. 41).
Em outras palavras, o homem só é humano na presença de outro homem. Assim, para
conceituar o ser humano há de se desdobrar o todo, homem e humano, uma vez que não há
como identificá-los imediatamente. Para a autora, o homem é um conceito que aparece como

117
Para Hegel, uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada,
transformada em outra que não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição se encontrará finalmente
transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação"
(síntese). Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não
ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-
a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se
reencontram fundidos, reconciliados.
118
Frater designa qualquer membro da espécie humana, da familia humana.
132

totalidade imediata e em si, mas como ser humano é necessário que a essência se revele por
meio de outro homem e o ser humano explique o homem para si. Uma sociedade de homem
não é necessariamente uma sociedade humana (ANDRADE, 2010, p. 53).
E prossegue dizendo que:

Põe-se que o homem nem sempre é humano se sua essência não se revela. Se
não há outro para que a humanidade se conforme entres seres fraternos, não
temos uma humanidade, mas uma comunidade de homens iguais e a si
mesmo, individualmente indeterminados porque a nenhum há o outro para
que a essência lhes diga quem são e o que contêm em si. Ser simplesmente
homem sem que haja a fraternização com o outro não há como dizê-lo ser
humano, mas puramente homem. Ser homem não é ser nada, mas saber-se
em si.

É oportuno tomar o exemplo da história de Tarzan para melhorar o exercício mental


da assimilação. Criado na selva, apartado do contato de outro humano, Tarzan não sabe o que
é em si. A partir de sua oposição aos macacos, ele percebe que não é um deles, mas ainda não
sabe de si, ou seja, na literalidade do espelhamento nas águas que revelam sua dissonância
com a espécie de símios. Somente com a presença do outro no qual ele se reflete é que Tarzan
se identifica como homem. Em outras palavras, somente tem sua identidade imediatizada pela
presença do outro homem, evidenciando a potencialidade de vir-a-ser humano.
Todavia, o simples fato de se identificar como homem não traz à revelação enquanto
essência, ou seja, o homem e o ser humano são o em si e o para si no movimento da essência,
posto que essência humana designa o ser que como homem encontra nela a consciência do
que é (ANDRADE, 2010, p. 54).
No escólio de Salgado (1996, p. 136), “o homem na aparência dos seus atos não
mostra o que é em si senão no momento em que a exterioridade do seu ato tem a mediação do
seu interior, que se denomina intenção e liberdade”.
O que se quer dizer é que o homem é distinto do ser humano porque, como ser que
não é sendo nada, sabe-se nada já que pensa a si mesmo imediatamente e não por meio do
outro. Sendo homem e não sendo nada, por lhe faltar essência, o ser humano é o vir-a-ser do
homem. Em outros termos, o homem em si não é ser humano, mas um vir-a-ser humano.
Uma existência real demanda que se realize e se determine. Para que o homem exista
é necessário que sua essência se manifeste, haja vista que enquanto ser e nada, enquanto
homem em si, é pura indeterminação, porque não pode encontrar apoio ou descanso no seu
infinito mover-se entre ser e não ser (SALGADO, 1996, p. 58).
133

Pode-se dizer que o homem vai descobrir sua suma essência no outro, oportunidade
em que recupera sua unidade no reconhecimento de ser humano. Em outras palavras,
indeterminado em si sendo homem e nada é nada. O tornar-se humano, o vir-a-ser humano é
o resultado, o fazer-se à medida que se faz presente, que existe, o devir que reúne ser e nada e
se apresenta (ser presente) ao outro. Então, apenas a partir do outro o ser humano é ser como
tal (ANDRADE, 2010, p. 59).
Nesses termos, o homem em si só revela sua própria essência para si, a essência
humana, à medida que sua vontade racional, própria do homem em si, se pensa porque livre e
enquanto pensamento livre pensa sobre os que pensam, outros homens, e por isso mesmo
livres como ele.
E conclui Maria Inês (ANDRADE, 2010, p. 60) que, nessa ação de pensar-se no
outro, própria do homem, ele só vai poder concluir pela ideia de ser humano à medida que
conhece a liberdade dos outros homens não como coisa possuída, mas como condição do ser
homem na sua efetividade.
A autora utiliza-se da lição de Hegel119 que, opondo a contradição no núcleo do
pensamento e das coisas simultâneas, denuncia que o pensamento procede por meio de
contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à síntese, como em um diálogo em que a
verve surge a partir da discussão e das contradições.
Maria Inês (ANDRADE, 2010, p. 65) lança a conclusão:

Portanto, ser homem, sem qualquer qualidade ou determinação, é, em última


análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples,
equivale ao não-ser (antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no
vir-a-ser, o ser humano (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os
dois contrários, homem e ser humano que engendram o devir (síntese), aí se
reencontram fundidos.

119
Um exemplo célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx.
Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens
lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um
homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o
prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. O Senhor é
senhor porque assim realiza seus desejos de ser reconhecido como tal pelo escravo. Mas é a consciência do
escravo que reconhece o outro como senhor, logo é necessário que a consciência dos dois antagônicos se juntem
para que exista tanto a consciência de um como de outro.
134

O que se quer dizer é que para ser humano e realizar a humanidade é necessita-se do
outro, pois é pela exigência do outro que se manifesta a humanidade do homem. Ambos são
carentes mutuamente. Ser humano na linguagem hegeliana é o ser-para-si120.
A tese apresentada assenta-se no conceito de homem como imediatidade, existência.
A realidade efetiva se manifesta quando a essência se exterioriza na existência, quando ocorre
a manifestação de si mesmo, do ser humano por intermédio do homem. A ideia de
humanidade enquanto fraternidade de homens livres e iguais está no momento imediato
quando se dá a superação da dualidade homem e ser humano.
Feliz a lição de Salgado (1996, p. 214):

A humanidade enquanto ideia é a culminância da realização plena de ser


humano. Assim posto, o ser fraterno que é e uma fraternidade que deve ser
releva a subjetividade, ou melhor, o sujeito de uma ação de ser. O homem
sabe em si como é, mas sabe, também que sua "vontade visa precisamente
fazer do mundo o que deve ser" a partir da razão.

Na afirmação de Aristóteles em ser o homem um animal político, pode-se extrair


que, além de fazer distinção de racionalidade entre o animal homem e os outros animais,
estava a assentar que o homem se constitui homem na experiência concreta de sua atuação na
polis.
Quando o homem se realiza como ser humano, realiza a liberdade. A mediação com
o outro proporciona a consciência de igualdade. O homem é fraterno na mesma proporção em
que é livre e igual. O homem não é apenas livre em si, mas para si tem a consciência da
liberdade por meio da liberdade do outro, na realização da fraternidade, na ação de ser
humano a partir do outro que, sendo, deve ser humano também (ANDRADE, 2010, p. 94).
É por meio da fraternidade que o homem termina por conquistar e compreender sua
liberdade e igualdade em relação aos outros homens. Exatamente por ter a consciência de que
é livre e igual é que o homem tem o Direito Natural de ingressar em uma ordem jurídica que
os fraterniza. Nisso reside o Direito Natural à fraternidade.

120
Tomando de Hegel a intitulada dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a
positividade se realiza por meio da negatividade, do ritmo de tese, antítese e síntese, é possível verificar que ela
resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Assim, o homem enquanto elemento da
realidade, estabelecendo-se a si mesmo como ser humano (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um
momento, demanda seu oposto, a desumanidade (antítese), que nega e qual integra, em uma realidade mais rica,
a humanidade propriamente dita (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético (ANDRADE, 2010,
p. 86).
135

Em outras palavras, a ideia de fraternidade é a vontade de liberdade do homem na


expressão de sua essência a partir da ação de ser humano, a liberdade de todos no plano
universal conforme a ideia de uma humanidade livre.
E arremata Maria Inês (ANDRADE, 2010, p. 103):

Mas a ideia de fraternidade conforma a do ser humano que deve ser antes de
poder ser. Se sabe ser livre o homem que é, o ser humano em si só efetiva
essa liberdade quando se põe para si por intermédio do outro no exercício de
sua humanidade. É preciso ser humano para, então, ser livre. A liberdade
decorre da humanidade. E é a ação de ser humano que realiza a humanidade.

Na feliz lição de Salgado (1996, p. 310), fora da fraternidade, a igualdade e a


liberdade são produzidas por uma vontade geral que não se generaliza e seu entendimento
permanece abstrato. A organização racional da vida na história do homem por meio do direito
para a realização da liberdade só se dará na fraternidade. E conclui que:

Há, então, um duplo sentido da fraternidade, qual seja, o direito de ser


humano (fraternidade do sujeito da ação de ser) e o dever ser humano, que
impõe a observância à lei, seja esta a lei da racionalidade que perscruta a
realização da humanidade no seu maximum ético, a fraternidade real, sejam
os direitos humanos, com o Estado preservando e executando as leis, nunca
alteradas pelo arbítrio de qualquer indivíduo, mas, antes, submetendo a todos
sem distinção, porque iguais e livres.

O ser humano deve ser humano na expressão da racionalidade descoberta, sendo a lei
jurídica produto dessa vontade racional, consciente e ideal, criação do homem enquanto ser
humano. À medida que ser humano deve ser humano na expressão da racionalidade
descoberta por intermédio do outro, a fraternidade torna-se racional.
Não foi por outro motivo que a fraternidade reconhecida pelo homem que se
reconhece ser humano, também, perfaz uma declaração universal e se torna direito. Tanto é
assim que a declaração universal dos direitos do homem reconhece que todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos; que são dotados de razão e consciência e
devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade121.

121
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, adotada e proclamada pela resolução 217, A
(III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
Preâmbulo.
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram
a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra,
136

Considerando ser o Estado uma organização de poder em que as formas objetivas da


liberdade (normas e instituições) se encontram e se realizam com a liberdade subjetiva, é
nesse mesmo Estado que o ser humano se põe para si por intermédio do outro enquanto
cidadão, pessoa humana, ou seja, é no Estado que a essência humana se revela e onde o vir-a-
ser do homem que é se vai conformando ser humano122.
O Estado pós-revolucionário expôs a certeza de que todos são livres, e, de pronto, o
homem diz de si que é ser humano. Por essa assertiva, conclui Salgado (1996, p. 402) que:

[...] o Estado é o caminhar de Deus no mundo, seu fundamento é a força da


razão que se realiza como vontade; é por intermédio do Estado que tanto a
liberdade como a humanidade vão se realizar como vontade do homem. Ora,
o Estado é impensável sem o homem como ser livre e humano, bem como o
homem é impensável sem o Estado, haja vista que é por meio dele que a
liberdade e a humanidade se realizam. Fora do Estado, o homem está fora de
sua essência.

Em resumo, a dialética especulativa de Hegel explorada por Andrade, nos permite


opor ser humano e homem. Essa oposição homem-ser humano se resolve no Estado. Ora, o
Estado racional cuja característica é realizar a liberdade como subjetiva no seu aspecto
universal, refere-se, nessa universalidade, ao ser humano, o sujeito da ação de ser humano que

de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não
seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres,
e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações
Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e
liberdades Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância
para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembléia Geral proclama
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e
todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta
Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a
sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos
dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem
agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. [GRIFO NOSSO]
122
O Estado Liberal, de finalidade privada, onde o indivíduo é fim para sim mesmo tomando os outros apenas
como meio para a satisfação individual no sistema de necessidades, não se sustenta como não se sustenta o
Estado de Platão, que toma a universalidade na desconsideração da pessoa, o indivíduo livre, o sujeito
(ANDRADE, 2011, p. 163).
137

se quer racionalmente livre; e não ao homem propriamente dito, imediato, que realiza a
liberdade no sentido do arbítrio (ANDRADE, 2010, p. 183).
É preciso ser humano para ser livre bem como é preciso ser livre para ser humano,
assim a liberdade de todos no plano universal conforma a ideia de uma humanidade livre. A
ideia de humanidade conforma a do ser humano que deve ser antes de poder ser. Sabendo ser
livre o homem que é, o ser humano em si só efetiva essa liberdade quando se põe para si por
intermédio do outro no exercício de sua humanidade. Nesse passo, o direito posto tanto mais
realiza a liberdade quanto realizada a humanidade (ANDRADE, 2010, p. 241).
Importante é um esclarecimento: o estudo da fraternidade como categoria jurídica
não repele as construções teóricas do Direito Positivo, antes compreende a importância e a
necessidade do Direito posto, como valioso instrumento de segurança jurídica. Considera-se a
fraternidade, o olhar o "eu" a partir do "outro", e tem fundamento no próprio Direito Natural.
A fraternidade remete à ideia de "outro" que não sou eu nem meu grupo social, mas o
"diferente" diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e não somente direito a opor.
Essa fraternidade não broca do fideísmo metafísico, não tem lugar na concepção teocrática,
mas provém da própria razão humana, do homem enquanto ser humano.
138

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Das várias questões filosóficas analisadas ao longo do presente trabalho, depreende-


se que a relação entre Direito Natural e Direito Positivo permanece um problema em aberto,
desafiando a reflexão de pensadores de diversas gerações, na busca incessante por estabelecer
um conceito e natureza do próprio Direito, capaz de exibir seus títulos de validade e
fundamentação.
Questão que acompanha a reflexão sobre o Direito desde a Filosofia clássica,
passando pelos pensamentos racionalistas na Idade Média, chegando aos dias atuais, o Direito
Natural está presente no debate filosófico como um ideário de justiça, todavia com um
conteúdo metodológico incerto e impreciso. A oposição entre Direito Natural e Direito
Positivo acabou por fixar-se na disputa entre positivistas e não-positivistas, no campo da
ciência jurídica. Se todos os positivistas radicais sustentam a tese da separação entre Direito
Positivo e Direito Natural, quando não negam a existência deste último, seus adversários
invocam a perspectiva do Direito Natural como para fornecer a base fundacional do Direito
legítimo.
Portanto, os não-positivistas invocam a necessidade de estabelecer um paradigma de
validade para direito positivado nos ordenamentos, sem o qual haveria faltaria de padrão ético
consistente para a justiça dos ordenamentos positivos. Sobre essa questão, preciso é o
ensinamento de Hervada (2006, p. 75) que, para fundamentar a existência do Direito Natural,
socorre-se do axioma segundo o qual "todo o fato cultural depende de dados naturais", ou
seja, "a busca pelo dever-ser já pressupõe a exigência metafísica do ser".
Assim como é bastante elucidativo o escólio de Chahrur (2012, p. 14):

Considerar que o Direito Positivo prescinde de uma base natural de validade, à


moda do convencionalismo positivista, significaria compreendê-lo como uma
criação humana no sentido literal do termo, implicando algo que exsurge do nada
(ex nihilo), quando o homem, em verdade, apenas inventa objetos segundo a
etimologia desta expressão, ou seja, a de encontrar ou construir algo sempre a
partir daquilo que existe.

Extrai-se, em conclusão, que o que rege a sociedade é sempre um Direito real e


concreto, um direito positivo. Este, porém, por um lado, planta suas raízes, em termos de
legimtimação e validade, no âmbito da referências axiológicas que são consideradas naturais e
ínsitas à natureza humana; por outro lado, porém, tem também uma contra-parte convencional
139

ou positiva. Nossa tese é que esses dois âmbitos interagem e se completam, ao invés de se
oporem e excluírem-se mutuamente.
O problema está justamente em admitir a existência de dois Direitos, que atuam em
paralelo - um Natural e outro Positivo. Se os positivistas, ao fazer uma comparação entre
esses dois domínios, negam a existência do Direito Natural, em razão de sua natureza
metafísica, incapaz de prover qualquer sanção, bem como de satisfazer exigências lógicas e
epistemológicas para que possa ser cientificamente levado em consideração, os opositores do
positivismo contra-argumentam com a necessidade de justificação e legitimação teórica para
os conteúdos substanciais dos ordenamentos jurídicos historicamente existentes.
A doutrina do Direito Natural foi dominante nos séculos XVII e XVIII; após rápido
declínio no século XIX, voltou à pauta da filosofia social e do direito nos séculos XX e XXI,
em consequência de duas guerras mundiais e da reação contra o comunismo e o liberalismo,
sob a forma histórica dos Direitos Humanos ou Humanismo, tentando divorciar-se da origem
metafísico-religiosa.
Como afirmou Sen (2011, p. 401),

[...] os Direitos Humanos são pretensões éticas constitutivamente associadas à


importância da liberdade humana, e a solidez de um argumento apresentando
determinada pretensão como direito humano deve ser avaliada pelo exame da
discussão racional pública, envolvendo uma imparcialidade aberta.

Em uma sociedade leiga e pluralista, em termos de cosmovisões, não é fácil


estabelecer um consenso acerca de valores e de referências fundamentais para o
estabelecimento de códigos normativos, como os jurídicos. Razão pela qual a reflexão sobre o
direito e a ética desempenha em nossos dias um papel fundamental. Para Pozzoli e Melo
(2012, p. 157),

O direito, hoje, deve ser visto, também, como um direito que tem uma função
promocional, que interessa por comportamentos tidos como desejáveis e, por isso,
não se circunscreve a proibir, obrigar ou permitir, mal almeja estimular
comportamentos, através de medidas diretas e ou indiretas.

Vivemos, pois, uma nova época, que exige um novo direito, uma nova ética, um
novo formato para o pensar normativo. Um mundo pós-moderno, no qual problemas da
modernidade se agravam e adquirem novas dimensões, levando à incerteza, impelindo até
mesmo para um ceticismo crônico. Há, portanto, necessidade de estabelecer uma aproximação
entre o ideal e o real nas relações humanas, ou seja, argumentar em prol da possibilidade de
140

amar as pessoas ao redor, de ser generoso, de dar sentido à existência, sem que isso implique
nenhum déficit de fundamentação teórica.
Em última instância, podemos dizer que no mundo moderno, diante dos perigos que
ameaçam a sobrevivência da sociedade, temos dois caminhos: (i) continuando nossa marcha
retroagiremos no estado de natureza, na luta de todos contra todos; (ii) ou usamos da razão
para procurar alternativas para a sobrevivência da raça humana.
A relação entre o perigo do retrocesso e a necessidade de haver uma humanidade não
passou incólume no magistério de Giacoia Junior (2013, p. 132), posto que invocou a
responsabilidade ética com vistas a preservar um ser portador de valor intrínseco, em que está
exposta a destruição pelo poder tecnológico e desenvolvido pelo homem. Nesse particular,
cita Hans Jonas:

O potencial apocalíptico da técnica - sua capacidade de pôr em perigo a


sobrevivência do gênero humano ou corromper sua integridade genética, ou alterá-
la discricionariamente, ou até mesmo destruir as condições de uma vida elevada
sobre a Terra - coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora antes
confrontada, qual seja: se é por que deve haver uma humanidade; por que, portanto,
o homem deve ser mantido tal como a evolução o produziu; por que deve ser
respeitada sua herança genética; sim, por que, em geral, deve haver vida.

Esse humanismo pós-kantiano, pós-nietzschiano, pós-republicano, não será mais


apenas um humanismo dos direitos e da razão, mas também da emoção e da afetividade, o que
levará, especialmente por preocupação com a alteridade, a romper com o imperialismo
colonial que caracterizava o primeiro Humanismo, apesar de suas pretensões ao
universalismo.
Depois do principio cósmico, do princípio teológico e do princípio humanista
entendido no sentido racionalista das luzes, depois da desconstrução e da ética da
autenticidade ou do culto de si mesmo que a acompanha, é o ideal do amor, da fraternidade e
da simpatia que entra em cena.
Impõe-se a ideia de que a vontade humana, desde que se torne comum a todos,
presente o Direito Natural ao respeito mútuo, possa fazer reinar o bem e trazer a salvação a
todos, e esse feliz acontecimento não se produzirá no céu, após a morte, mas aqui e agora.
Assim é que vivemos hoje um acontecimento histórico da maior importância, o
surgimento de uma nova visão moral do mundo comparável em amplitude às antigas. Esse
novo Humanismo tem como principal predicado a fraternidade, não tendo como fundamento
141

um Deus, uma pátria ou uma grande causa, mas o ser humano. Por ele e para ele é que terá
sentido nossa existência.
De tudo se extrai uma conclusão: se não é possível menosprezar as bases teóricas do
Direito Positivo, impossível, de igual forma, desprezar as bases ideológicas do Direito
Natural, tendo do Humanismo fraternal como elemento conciliador dessa relação.
Nesse cenário, são precisas as palavras do prêmio Nobel da Paz de 1994, Shimon
Peres, para quem "há duas questões em que devemos fechar os olhos e nos entregar: O amor e
a paz" (BERCITO, 2013).123
Em última análise, experimentamos uma reconfiguração social que exige indagações
éticas sobretudo acerca de nossa própria existência com seres naturais, humanos que somos, e,
por consequente, exigindo do Direito - ordenação normativa de condutas - um viés humanista.
Esse novo pensar não se limita a simples reflexões abstratas sobre a ideia de justiça,
desprovidas de conteúdo material, antes abre um novo horizonte para indagações urgentes e
necessárias para a sobrevivência da espécie humana.
.

123
Entrevista ao jornal Folha de São Paulo, n. 30.875, p. A18.
142

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética & Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira


Mendes. 1. ed. São Paulo: 2011.

AQUINI, Marco. Fraternidade e direitos humanos. In. BAGGIO, Antônio Maria (Org.). O
princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Tradução de
Durval Cordas, Iolanda Gaspar e José Maria de Almeida. Vargem Grande Paulista: Editora
Cidade Nova, 2008.

AQUINO, Santo Tomás de. Suma teológica. In: OLIVEIRA, Carlos-Josaphat Pinto de.
Tradução de Aldo Vannucchi e Outros. Direção Gabriel C. Galache e Fidel García Rodríguez.
Edição Joaquim Pereira. São Paulo: Loyola, 2005. v. IV, parte II, seção I, questões 49 a 114.

ANDRADE, Maria Inês Chave de. A fraternidade como direito fundamental entre o ser e
o dever ser na dialética dos opostos de Hegel. Coimbra: Editora Almedina, 2010.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. Brasília: UNB. 1985.

ASSIS, Olney Queiroz. O estoicismo e o direito: justiça, liberdade e poder. São Paulo:
Lúmen, 2002.

BAGGIO, Antonio Maria. O princípio esquecido. São Paulo: Editora Cidade Nova, 2008. v.
1.

BARCELOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em:
<http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf>.
Acesso em: 14 jul. 2012.

BERCITO, Diogo. Não houve mudança no Irã; fatos contradizem discurso, diz Shimon Peres.
Folha de São Paulo. Publicado em: 14 out. 2013. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/10/1356212-nao-houve-mudanca-no-ira-fatos-
contradizem-discurso-diz-shimon-peres.shtml>. Acesso em: 21 out. 2013.
143

BÍBLIA SAGRADA. Referência de Thompson. Tradução de João Ferreira de Almeida. São


Paulo: Editora Vida, 2002.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
direito. 9. ed. São Paulo: Atlas 2011.

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de


Alfredo Fait. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992.

_____. A era dos direitos. Tradução de Celso Lafer. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

_____. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada


em 5 de outubro de 1988. Planalto. Brasília. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em:
06 jun. 2012.

BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 363.889/DF. Relator:


Dias Tóffoli. Diário de Jutiça: publicado em 02 de junho de 2011. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889.pdf>. Acesso em: 10
mai. 2013.

_____. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional


nº. 101/DF. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Diário de Justiça Eletrônico: publicado em 24
de agosto de 2009. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5349256/emb-
decl-na-arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf-101-df-stf>. Acesso em:
19 mai. 2013.

BRITO, Carlos Ayres. VOTO. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/noticias/imprensa/VotoBrittoInativos.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2013.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed.


Coimbra: Almedina, 1998.

CHAHRUR, Alan Ibn. As perspectivas do conhecimento jurídico a partir de Kelsen e


Hervada. Dissertação (Mestrado em Direito) UNIVEM - Centro Universitário Eurípides de
Marília, 2012.
144

DECLARAÇÃO universal dos direitos do homem e do cidadão - 1789. Biblioteca USP.


Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-dasNa%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-
1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em: 10 ago. 2013.

DEL VECCHIO, Giorgio. A justiça. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo:
Saraiva, 1960.

_____. Lições de filosofia do direito. Tradução de Antonio José Brandão. 5. ed. Coimbra:
Arménio Amado, 1979.

FERRY, LUC. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. 1. ed. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012.

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 1994.

FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. 1. ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2007.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: uma introdução a um novo pensar. São
Paulo: Três Estrelas, 2013.

_____. A preguiça e a melancolia. Gravado em 15 de março de 2013. CPFL Tv Cultura.


Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/2013/03/15/a-preguica-e-a-melancolia-com-
oswaldo-giacoia/>. Acesso em: 02 mai. 2013.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza: Ed.


Universidade Federal do Ceará, 1989.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1985.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro:
Forense 1990.

HANS, Jonas. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização


tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto
- Ed. PUC-Rio, 2006.

HECK, Luís Afonso. Direito Natural, Direito Positivo, Direito Discursivo. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora: 2010.
145

HERVADA, Javier. A moderna resposta do realismo jurídico: uma introdução ao direito.


Tradução Sandra Marta Dolinsky. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2006.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Paulo Barrera. São Paulo: Ícone,
2005.

______. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Folha de São
Paulo, 2010.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de


Hannah Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

LIMA, Alceu Amoroso. Os direitos do homem e o homem sem direitos. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1974.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção Primeiros
Passos.

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. v. 18. Coleção “Os Pensadores”.

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grócio e o Direito: o jurista da guerra e
da paz. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006.

MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem e a lei natural. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1967.

MENDES, Gilmar. A jurisdição constitucional no Brasil e seu significado para a


liberdade e a igualdade. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaArtigoDiscurso/anexo/munster_port.pdf>. Acesso:
em: 26 abr. 2013.

MENDONÇA, Jacy de Souza. In: SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. (Org.). Direito Natural -
uma visão humanista. 1. ed. São Paulo: Cidade Nova, 2012.
146

MONTORO, André Franco. Estudos de filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

_____. A cultura dos direitos humanos: importância da Declaração dos Direitos do Homem
no século XX. In: SOUZA, Carlos Aurélio Mota de; BUENO, Roberto (Orgs.). 50 anos de
direitos humanos. São Paulo: Themis Livraria e Editora, 2003.

MOURA, Osvaldo Junior. A Pena Alternativa de Prestação de Serviços à Comunidade ou


a entidades públicas como paradigma emergente na reconstrução e eficácia do sistema
punitivo penal. Dissertação (Mestrado em Direito) UNIVEM - Centro Universitário
Eurípides de Marília, 2008.

NADER, Paulo. Filosofia do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

NALINI, José Renato. Uma nova ética para o juiz. São Paulo: RT, 1994.

NALINI, José Renato. Perspectivas Próximas para o Direito Natural. In: SOUZA, Carlos
Aurélio Mota de. (Org.). Direito Natural - uma visão humanista. 1. ed. São Paulo: Cidade
Nova, 2012.

PIRES, Natacha Ferreira Nagao; SIMÕES, Alexandre Gazetta. Ensaios sobre a história e a
teoria do direito social. São Paulo: Letras Jurídicas, 2012.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

PEREIRA, Aloysio Ferraz. História da filosofia do direito: das origens a Aristóteles. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

PIERRE, Luiz Antonio de Araujo. Fraternidade como categoria jurídica. 1. ed. Vargem
Grande Paulista: Ed. Cidade Nova, 2013.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9. ed. São


Paulo: Saraiva, 2008.

POZZOLI, Lafayette; MELO, Marcos Oliveira de. Ensaios a partir do Brasil: Direito
subjetivo na perspectiva do Direito peninsular. In: Natacha Ferreira Nagao; SIMÕES,
Alexandre Gazetta. (Org.). Ensaios sobre a história e a teoria do Direito Social. 1. ed. São
Paulo: Letras Jurídicas, 2012, v. 1.
147

POZZOLI, Lafayette. Direito como função promocional da pessoa humana: inclusão da


pessoa com deficiência – fraternidade. In: NAHAS, Thereza Christina; PADILHA, Norma
Sueli; MACHADO, Edinilson Donisete. Gramática dos direitos fundamentais: a
Constituição Federal de 1988 - 20 anos depois. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2009.

_____. Maritain e o direito. São Paulo: Loyola, 2001.

REALE. Miguel. Direito natural/direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984.

_____. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.

_____. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.

_____. Lições preliminares de direito. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade


entre os homens. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

_____. Do contrato social. 1. ed. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010.

SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na


igualdade. 1. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1986.

_____. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.

SANTOS, Fátima Ferreira Pinto dos. O princípio constitucional da dignidade da pessoa


humana como fundamento para a ressocialização do apenado. Dissertação (Mestrado em
Direito) UNIVEM - Centro Universitário Eurípides de Marília, 2008.

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa


humana. Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Celso
Bastos Editor, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.


148

SANTOS, Paulo de Tarso. Globalização e direitos humanos. In: SOUZA, Carlos Aurélio
Mota de; BUENO, Roberto (Orgs.). 50 anos de direitos humanos. São Paulo: Themis
Livraria e Editora, 2003.

SCHNEEWIND, Jerome B. A Invenção da Autonomia. Tradução de Magda F. Lopes. São


Leopoldo: Unisinos, 2005.

SEN, Amartya. A idéia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SOUSA, Felipe Oliveira. Entre o não-positivismo e o positivismo jurídico: notas sobre o


conceito de direito em Robert Alexy. Direitos fundamentais e justiça, nº14, jan./mar., 2011,
p. 297-324.

SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (Org). Direito natural: uma visão humanista. Vargem
Grande Paulista: Ed. Cidade Nova. 2012.

TODOROV, Tzvetan. A democracia e a beleza. Gravado em 06 de setembro de 2012. CPFL


Tv Cultura. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/2013/04/25/cafe-filosofico-cpfl-
a-democracia-e-a-beleza-com-tzvetan-todorov/>. Acesso em: 02 mai. 2013.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e razão moderna. In: MARCÍLIO, Maria Luiza;
RAMOS, Ernesto Lopes (Coord.). Ética na virada do milênio: busca do sentido da vida. São
Paulo: LTr, 1999. Coleção Instituto Jacques Maritain.

VERDI, Maria Cecília Patrícia Braga Braile. A importância histórica do direito natural
para a justiça. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2005.

Você também pode gostar