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MARÍLIA
2013
MARCOS OLIVEIRA DE MELO
Orientador:
Prof. Dr. OSWALDO GIACOIA JUNIOR
MARÍLIA
2013
MELO, Marcos Oliveira de.
Direito natural, direito positivo e humanismo fraternal: a ideia de
Justiça / Marcos Oliveira de Melo; Orientador: Oswaldo Giacoia Junior.
Marília, SP: [s.n.], 2013.
148 f.
CDD: 340.1
MARCOS OLIVEIRA DE MELO
Resultado: _____
ORIENTADOR: ____________________________________________
Prof. Dr. OSWALDO GIACOIA JUNIOR
1º EXAMINADOR: __________________________________________
2º EXAMINADOR: __________________________________________
Aos meus pais, Benedito e Eurides, por me ensinar, quando pequeno, nos caminhos de Deus;
Aos meus filhos, Anielly Cristina, Marcos Melo Filho e Caroline Cristina, pois herdaram
meus sonhos e renovaram em mim a esperança. Sejam amigos da sabedoria e tenha vossos
Ao meu amigo e Professor Lafayette Pozzoli, pelo carinho e atenção com que me acolheu, de
(PROVÉRBIOS, 9:10)
MELO, Marcos Oliveira de. Direito natural, direito positivo e humanismo fraternal: a
ideia de Justiça. 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário
Eurípides de Marília - UNIVEM, Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha”, Marília,
2013.
RESUMO
A presente dissertação tem como núcleo temático um estudo sistemático e histórico do Direito
Natural, em relação com o Direito Positivo, com foco na referência de ambos à ideia de
justiça. Ideais de justiça têm acompanhado as principais escolas jusfilosóficas da cultura
ocidental, cujas doutrinas gravitam em torno de problemas ligados à justiça e legitimidade,
valores que constituem referenciais axiológicos fundamentais tanto do pensamento como da
ação humana ao longo da história. Nessa perspectiva, Direito Natural tem sido o eixo sobre o
qual se apoiam importantes debates acerca da concepção de justiça, notadamente no sentido
de estabelecer a validade e a fundamentação dos sistemas jurídicos. Isso é percebido desde a
escola clássica do Direito Natural, passando pelo pensamento teológico de Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino, e culminando nos pensamento dos principais filósofos racionalistas do
jusnaturalismo, como Grócio, Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Com o declínio
do pensamento jusnaturalismo oitocentista, observa-se a ascensão do positivismo jurídico. No
entanto, já desde algum tempo eventos históricos relevantes foram também determinantes
para deflagar uma crise permanente do positivismo jurídico, culminado com a necessidade de
voltar a postular, contra as exigências do positivismo, a pertinência da reflexão sobre valores
no campo de estudos científicos a respeito dos ordenamentos jurídicos, o que significou uma
nova reaproximação entre os domínios do Direito e da Moral. Decorre dessa reaproximação
uma relação entre Direito Natural e Direito Positivo com roupagem atual ─ de feitio
humanista ─ lastreada na fraternidade laica, cujo preciso significado esta dissertação
investiga. Assim, o trabalho procura refletir sobre a exigência de conexão necessária entre
Direito Positivo e Direito Natural, vínculo fundado no humanismo fraternal, bem como no
entendimento do modo como esta teoria pode influir nos debates atuais sobre problemas
fundamentais da justiça.
ABSTRACT
This dissertation is a systematic and thematic nucleus historical study of natural law , in
relation to positive law , with a focus on reference both to the idea of justice. Ideals of justice
have accompanied jusfilosóficas major schools of Western culture , whose doctrines gravitate
to issues related to justice and legitimacy , values which are fundamental axiological
frameworks of thought as much of human action throughout history . From this perspective ,
Natural Law is the axis on which to support important debates about the concept of justice ,
especially to establish the validity and justification of legal systems . It is known from the
classical school of natural law , through the theological thought of St. Augustine and St.
Thomas Aquinas , and culminating in the thought of the major rationalist philosophers of
natural law , as Grotius , Pufendorf , Hobbes , Locke , Rousseau and Kant . With the decline
of nineteenth-century natural law thinking, there is the rise of legal positivism . However ,
already for some time relevant historical events have also been instrumental in deflagrate a
permanent crisis of legal positivism , culminating with the need to return to postulate , against
the demands of positivism , the relevance of reflection on values in the field of scientific
studies about legal systems , which meant a new rapprochement between the domains of Law
and Morals . This rapprochement follows a relationship between natural law and positive law
with current guise ─ ─ humanist cutout backed the secular fraternity, whose precise meaning
of this dissertation investigates . Thus , the work seeks to reflect on the requirement of
necessary connection between positive law and natural law , founded on brotherly bond
humanism , as well as the understanding of how this theory can influence the current debates
about fundamental issues of justice.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO
Natural, é inegável que existem, de fato, princípios imutáveis, perenes e eternamente válidos,
por mais que fossem esquecidos, mal empregados ou desprezados no pensamento prático.
Mas percebe-se, numa perspectiva histórica, que grande parte do pensamento fisolófico-
jurídico vem marcado pelo binômio Direito Natural e Direito Positivo, ora estabelecendo uma
distinção de conteúdo, ora identificando uma diferenciação de grau. A discussão se assenta na
existência e fundamento de validade do Direito Natural e sua relação intrínseca com o Direito
Positivo.
O grande pensador Del Vecchio (1960, p. 276) considera que o Direito Natural
acompanhou desde sempre a humanidade, mas que os positivistas fizeram a ele algumas
importantes e sérias objeções, assentando que “o Direito Natural é essencialmente distinto do
Direito Positivo, precisamente porque se afirma como princípio deontológico, indicando
aquilo que deve ser, mesmo que não seja”.
Não podemos incidir no grande erro de pensar que Direito Natural e Direito Positivo
são “dois Direitos" distintos e contrapostos. O Direito Natural seria o nome com o qual se
designa, por tradição muito antiga, o critério absoluto do justo, e esse se fundou e assentou na
própria constituição das coisas e nunca no mero capricho do legislador momentâneo.
Em outras palavras, Direito Natural é a tradução da essencialidade da justiça
percebida pela razão humana expressada pelo Direito Positivo, no tempo e no espaço. Assim,
é pela razão que o ser humano evidencia sua natureza humana (humanidade) e expressa essa
natureza através do Direito Positivo.
Imprescindível, portanto, deter-nos no pensamento da Grécia antiga, marco inicial
das primeiras especulações sobre o direito e a justiça que deram fundamento ao Direito
Natural, posto que selado por uma ordem de princípios eternos, absolutos e imutáveis, que
têm na natureza a justificação do direito.
Tanto que Sócrates faz uma apresentação, no pensamento de Platão, sobre o corpo e
a alma: a parte mais perfeita que existe no homem, no ser, é a alma e tal parte (alma) reside no
divino. Essa divindade se manifesta na natureza. Assim, no Direito Natural clássico, o
pensamento central é copiar esse engendramento da natureza para a justiça.
Nota-se que na época Clássica do Direito Natural (Grécia antiga) não havia relação
de graduação entre Direito Natural e Positivo, mas basicamente de conteúdo, em que o Direito
Natural refere-se ao direito comum e o Positivo ao direito particular.
Vamos estudar inúmeros pensadores que trataram do assunto, desde a Grécia antiga,
passando pelo Direito Romano Clássico onde a essa dicotomia foi tema de estudo entre os
romanos (séculos II a.C. a II d.C.), presente na tríplice distinção entre jus natrurale, gentium e
13
jus civile, correspondendo à categoria do jus gentium o conceito de Direito Natural, enquanto
jus civile se refere ao Direito Positivo.
Na Idade Média, por sua vez, o Direito Natural foi considerado superior ao Positivo,
pois se acreditava tratar de norma fundada na própria vontade de Deus. Algumas vezes o
Direito Natural foi a reação contra a justiça positiva; outras, a observação de uma
conformidade entre regras jurídicas de diferentes povos, que induziu a postular uma justiça
superior. E, quanto aos modos pelos quais se demonstrou a autoridade do Direito Natural,
procedeu-se ora com argumentos teológicos, ora com dados puramente racionais.
Enquanto na Idade Clássica, o Direito Natural foi fixado na divindade e na natureza,
na Idade Média há um fortalecimento da Igreja cristã fulcrado no teocentrismo, ou seja, em
um único Deus, Jeová. Veremos a grande influência dos gregos na construção do pensamento
jurídico-filosófico ocidental na Idade Média, notadamente quanto às teorias da justiça e do
Direito Natural, desenvolvidas por Santo Agostinho e por São Tomás de Aquino que foram
uma quase compilação das ideias de Platão e Aristóteles.
Nessa época, a relação entre as duas espécies de direito se achava nos planos de
graduação: o Direito Natural é considerado superior ao Positivo, haja vista ser considerado a
própria vontade de Deus para os homens, inscrita na razão humana ou, parafraseando São
Paulo, como “a lei escrita por Deus no coração dos homens”1.
Na Escola Naturalista da Idade Média, o Direito Natural universaliza a razão humana
como fundamento para os direitos fundamentais eternos, naturais e imutáveis, culminando
com a consagração de alguns direitos em declarações universais2.
A partir do final do século XVIII o direito foi resumido em duas espécies: Direito
Natural e Direito Positivo, já não tendo como diferencial sua qualidade e substância, mas a
graduação (grau de posicionamento) de um em relação ao outro.
O racionalismo rompe com o pensamento teocêntrico, culminando no pensamento
racional. Vários pensadores surgem nesse período: Grotius, Locke, Hegel, Pufendorf,
Rousseau, Kant, dentre outros.
Kant tem um marco teórico em Rousseau, todavia diferente do idealismo de Platão e
realista de Aristóteles. Para Kant, a filosofia não é só ideia e realidade, mas também sujeito e
objeto. Há necessidade de entender o sujeito sem o qual não há como entender o objeto, ou
1
Livro de São Paulo aos Romanos, capítulo 2, versículo 15 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
2
Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789, art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As destinações sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum (DECLARAÇÃO..., 1789).
14
seja, da interação do sujeito com o objeto é que vai ser construído o conhecimento. Kant
propõe uma visão sistêmica do conhecimento.
Ao relacionar esses direitos universais e racionais chega-se às declarações escritas
desses direitos. Ocorre que esses direitos carecem de um critério de decidibilidade e
organização sistêmica. Há necessidade de estudar o Direito como ciência.
O Direito Natural foi considerado metafísico e abstrato e posto à margem da história
com a criação do Estado e a necessidade de estabelecer um critério científico ao direito. Disso
emerge o positivismo jurídico.
O termo positivismo3 é relativamente recente (HERVADA, 2006, p. 59). Nasce
quando há uma mudança de concepção do direito onde os conceitos de "Direito Natural" e
"Direito Positivo" se distanciam sobremaneira, elevando do Direito Positivo à categoria de
direito em sentido próprio, relegando ao Direito Natural a uma mera ideologia ética aparte do
conceito e conteúdo do direito.
Destarte, o presente estudo está dividido em quatro partes: a primeira traçando uma
perspectiva histórica do Direito Natural desde a Grécia antiga até o Direito Romano Clássico,
passando pelas principais escolas de Direito Natural teológico. Vamos estabelecer as
principais teorias jusnaturalista do Iluminismo nos pensamentos de Grócio, Pufendorf,
Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, em especial quanto ao nascimento do Estado como
guardião do Direito Natural à liberdade.
O segundo capítulo trata da superação do jusnaturalismo e ascensão do positivismo
jurídico, suas características e principais pensadores, especulando sobre suas bases teóricas
pelo escólio de Noberto Bobbio. Tentaremos estabelecer uma relação recíproca entre Direito
Natural e Direito Positivo na feliz lição de Hans Kelsen, para, ao final, determinar os motivos
culminantes da crise do positivismo.
No terceiro capítulo, trataremos da necessária reaproximação do Direito e Moral,
com uma leitura axiológica do ordenamento jurídico através de princípios humanísticos.
Estudaremos alguns pensadores da Escola de Direito Natural Moderno, procurando divorciar-
nos do caráter metafísico que impregna o pensamento jusnaturalismo.
No derradeiro capítulo, faremos uma necessária relação entre Direito Natural
contemporâneo e o humanismo fraternal, vale dizer, não um humanismo da razão e dos
3
Segundo o autor, o adjetivo "positivo" não foi usado até a Idade Média, mas anteriormente formam utilizados,
em seu lugar, outros adjetivos, como “legal” (o próprio das leis humanas); tal é o caso de Aristóteles, que
distinguiu o justo natural do justo legal. Os juristas romanos usaram uma divisão bimembre (Direito Pessoal ou
Natural e Direito Civil) ou trimembre (Direito Natural, Direito Pessoal e Direito Civil). A partir do século XIX,
propagou-se o positivismo.
15
direitos, mas um humanismo tomado pela afetividade nas relações pessoais fulcrado na ideia
de ver a si através do outro, rompendo com uma tradição metafísica, baseada em
transcendências, porém a que se firma na imanência do mundo.
O presente trabalho, além de fazer uma abordagem especulativa da histórica das
teorias da justiça fundamentada no binômio Direito Natural e Direito Positivo, também
estabelece um estudo metodológico do Direito Natural e sua influência conservadora ou
incisiva na política ocidental e sua vertente atual através do humanismo fraternal, como
melhor idéia de atual justiça.
A satisfação será plena se pudermos despertar no leitor a simples necessidade de
reflexão sobre a doutrina do Direito Natural moderno, sem um viés metafísico ou de
expressão de fé eclesiástica, mas investigando sua importância para o conceito
contemporâneo de justiça.
16
O Direito Natural cosmológico tem origem na Grécia por volta do século VI a.C, no
período chamado de “cosmológico”, surgindo como a parte da filosofia que estuda a estrutura,
a evolução e composição do universo. Desenvolveu-se no período pré-socrático4, tendo como
principais características a substituição de mitos5 e divindades pela racionalidade na
explicação das origens.
Abandonar um mundo mítico e encontrar uma nova idéia de natureza fez com que os
gregos arcaicos travassem uma verdadeira guerra interior. Posteriormente a crença foi focada
na vontade de deuses e semideuses, portanto assumindo um caráter religioso.
Assim, acreditavam os gregos antigos que o direito era dominado pela vontade
legislativa dos deuses, passando a ser visto como um conjunto de leis sagradas. Se não fosse
usada a fórmula sagrada e consagrada, o ato não seria válido. Chama-se a isso de "Reino da
Magia", no qual quem conhecia o direito (as fórmulas sagradas) eram os sacerdotes, os
Pontífices, que tinham a incumbência de ligar o mundo dos deuses com o mundo terreno.
Nesse período, passou-se a defender a criação do mundo a partir de um princípio
natural, das coisas em sua essência e origem. Nessa época, não havia espaço para os
problemas éticos ou jurídicos.
Pitágoras (na segunda metade do século VII a.C.) fundou uma associação político–
religiosa centrada em valores e ideias éticas, que precederam Platão e influenciaram
Aristóteles. Foi o primeiro a estabelecer a relação entre a Matemática, a música e a harmonia
do cosmos, partindo do princípio de que o número era a essência das coisas. Assim elaborou
primeira teoria helênica solene e justa.
Para Pitágoras, a igualdade aparece como elemento essencial da justiça, e a justiça se
funda na ordem natural, simbólica, abstrata e ideal dos números, e não na vontade humana.
4
"Os pré-socráticos estão entre aqueles que primeiro pensaram. Se Aristóteles, Platão e Sócrates se
notabilizaram na história da filosofia ocidental não foi sem consideração direta ou indireta ao trabalho de
reflexão a que se entregaram estes primeiros vultos que se dedicaram a conhecer a causa de todas as coisas
(pánta)" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 61).
5
O mito, então, narrava, de forma irrefutável e inquestionável, a origem de alguma coisa, da terra, dos homens,
das doenças, dos astros celestes, do fogo, da água, da morte, do bem e do mal, das guerras, dos animais, assim
por diante. Ou seja, os mitos explicavam, a seu modo, a origem daquilo que gerava dúvida e curiosidade nos
homens. No final do século V a.C., os estudiosos passaram a buscar nos mitos um sentido profundo. Dentro
dessa tendência, alguns estudiosos dos mitos concluíram que os deuses eram considerados como homens que,
por seus méritos, receberam honras divinas. Procuravam nos relatos mitológicos uma significação racional,
embora muitas vezes trabalhassem com elementos puramente subjetivos (VERDI, 2005).
17
1.1.1 Sofistas
Através dos sofistas, rompeu-se a tradição pré-socrática e, com ela, a crença em que
os mitos, as lendas ou os deuses definiriam o justo e o injusto. Abandona-se a noção de que o
cosmos, a natureza e os deuses eram guias absolutos, passando o homem a ocupar o centro de
suas preocupações. Esse movimento iniciou na Grécia no século V, tendo como característica
principal o discurso público retórico e pedagógico em auditórios, normalmente remunerado
para suas conferências e exibições.
A palavra sofista deriva da mesma raiz sofia, sabedoria.
O grande serviço dos sofistas foi voltar a filosofia para o estudo do homem,
considerado, quer como ser individual, quer como ser social (donde o seu
interesse pelas questões de justiça), a fim de alcançar os alicerces da
educação sistemática dos jovens (PEREIRA apud BITTAR; ALMEIDA,
1993, p. 441).
6
Cita-se Homero, como expoente da necessidade humana; Heríodo, como pensador do valor supremo, da
comunidade e do trabalho humano; Sólon e sua igualdade; Eurípides e a identificação com a legalidade.
7
A democracia em Atenas fez com que os cidadãos desenvolvessem a arte do falar bem e convencer, a fim de
verem aprovadas suas ideias nos plebiscitos. Isso é o que se chamou retórica. As obras dos sofistas não
chegaram de forma contínua até a atualidade. Somente fragmentos de seus pensamentos persistiram nas citações
feitas pelos pensadores clássicos, principalmente em Platão e Aristóteles que, por considerarem importantes os
pensamentos dos sofistas, citavam-nos antes de contestá-los. O termo sofista, entretanto, com o passar dos
tempos, começou a ser utilizado no sentido pejorativo, designando aqueles que empregavam um raciocínio para
o qual já se tinha uma resposta. E é em virtude disso que alguns consideram o pensamento sofista de maneira
negativa. Foram os sofistas que iniciaram a socialização dos debates filosóficos que se seguiram durante séculos.
Com eles, muitas das tradições começaram a ser questionadas e o pensamento grego, a partir de então, mudou
radicalmente (VERDI, 2005).
18
Ser um bom orador na Grécia, principalmente em Atenas, era a chave do poder. Eis a
importância dos sofistas, pois surgiram das necessidades democráticas da polis na preparação
dos jovens cidadãos gregos para o embate em espaços públicos, tribunais através da oratória e
retórica.
Nessa época, tudo girava em torno da palavra: os debates políticos, as estratégias
para as guerras, as deliberações e proposituras legislativas, as defesas e julgamentos nos
tribunais, o centro do debate estava na liberdade de expressão do cidadão na polis. Os sofistas
contribuíram com seus esforços para colocar em dúvida conceitos fixos e eternos, até então
entendidos como tradições imutáveis e definições absolutas.
Os sofistas de maior importância foram Hípias, Pródico, Eutidemo, Protágoras e
Górgias8. Não deixaram escritos vários, todavia suas ideias são conhecidas através dos
críticos, notadamente pelos diálogos platônicos. Direcionavam seus estudos para o homem e
seus problemas morais e sociais.
Mesmo Platão, ao reconhecer a capacidade de ensinar dos sofistas, afirmou:
Em geral, os sofistas foram grandes opositores dos conceitos absolutos e eternos, das
tradições inalienáveis, inaugurando o relativo, o provável, sendo mais negadores do que
construtivos. Assim, foram eles que pela primeira vez fizeram as perguntas pelo fundamento
da lei, pela sua validade, pela definição do direito e da justiça.
Desse questionamento surge um certo relativismo, considerando que as leis e a
natureza podem entrar em rota de colisão, ou seja, um conflito entre a ordem moral e o
mundo físico natural.
Tanto assim que a proposição fundamental de Protágoras foi que “o homem é a
medida de todas as coisas, das que são pelo que são, e das que não são pelo que não são.”
A assertiva reflete um alto grau de relativismo, pois sendo o homem a "medida de
todas as coisas", então coisa alguma pode ser medida para os homens, ou seja, tudo deve ser
definido pelos homens, o que traz o entendimento de homem como indivíduo singular.
8
Os sofistas não chegaram a formar uma escola, pois não adotaram uma linha única de pensamento, sendo-lhes
comum a divergência ou contradição de ideias, embora dirigissem seu estudo para idêntico alvo: o homem e seus
problemas psicológicos, morais e sociais.
9
Todos prestigiados sofistas contemporâneos de Sócrates.
19
Não é exagero dizer que a Filosofia do Direito tem origem embrionária com os
sofistas. Inicia-se um debate que ainda hoje persiste, entre os que defendem na moral o
primado da natureza (naturalismo) e os que defendem o da convenção (convencionalismo),
em outras palavras, a grande questão que será trazida à Filosofia do Direito será a oposição
entre physis (referente à natureza) e nomos (imanente ao homem, convencionalismo).
Para Bittar e Almeida, "muitos dos cultores do movimento sofístico, embasados em
tal dicotomia, advogaram a ideia de que existiria uma oposição intrínseca entre a lei da
natureza (physis), e a lei convencionada pelo homem (nomos), lei esta que seria artificial e
que atentaria contra a ordem natural das coisas" (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 96).
Surge então a distinção entre o Direito Natural (lei da natureza) e Direito Positivo
(lei posta pelos homens), aquele tem origem na verdade, e este no axioma humano. Nessa
dicotomia, nasce a ideia de que apenas o Direito Natural é válido e eterno, onde o Direito
Positivo encontra seu critério validade.
Nesse sentido, os homens são iguais por natureza, quer sejam gregos ou bárbaros.
Essa igualdade por alguns sofistas seria uma ruptura da ideia política da época. Em
decorrência, os sofistas muito contribuíram para o conceito de justiça, estabelecendo o
relativismo das leis civis, próprias de cada cidade, apontando a contraposição entre lei da
natureza e lei convencional, representados pelo Direito Natural e Direito Positivo.
Até então, o Direito Natural na Antiguidade era estudado pelo viés de direito eterno e
imutável que rege o funcionamento do cosmos (universo), vale dizer, do universo físico. Não
obstante importantes avanços no pensamento filosófico, posteriormente a escola naturalista
teve incomparável contribuição por obra dos três grandes gênios: Sócrates, Platão e
Aristóteles.
Em resumo, a partir dos sofistas o homem passou a ser o centro das questões e das
preocupações filosóficas. Apesar da grande contribuição dos sofistas, foi Sócrates quem
valorizou a descoberta do homem, pois o orientou para os valores universais, em busca da
essência e da verdade única.
20
1.1.2 Sócrates
10
Sócrates conviveu com o povo ateniense do século V a.C. Seu método maiêutico, baseado na ironia e no
diálogo, possui como finalidade a parturição de ideias. Para o filósofo a maior luta humana deve ser pela
educação (paideia), e que a maior virtude (areté) é a de saber que nada se sabe.
21
1.1.3 Platão
Platão trabalhou com dois mundos distintos, ou seja, o mundo das essências, onde
existiria a matriz fiel e perfeita de todas as coisas (o mundo das ideias) e o mundo das
11
Para Platão a realidade se dividia em duas partes: a primeira é o mundo dos sentidos, do qual não podemos ter
senão um conhecimento aproximado ou imperfeito, já que para tanto fazemos uso de nossos cinco (aproximados
e imperfeitos) sentidos. Neste mundo dos sentidos, tudo "flui" e, consequentemente, nada é perene. Nada é no
mundo dos sentidos; nele, as coisas simplesmente surgem e desaparecem; a outra parte é o mundo das ideias, do
qual podemos chegar a ter um conhecimento seguro, se para tanto fizermos uso de nossa razão. Este mundo das
ideias não pode, portanto, ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as ideias (ou formas) são
eternas e imutáveis.
22
aparências (mundo material). Para esse filósofo grego, o mundo das ideias era o fundamento
de toda a verdade. Já o mundo sensível seria um reflexo do mundo inteligível.
Ensina Platão que os homens deveriam seguir os mandamentos da razão, deixando de
lado os desejos da paixão (mundo sensível), posto que repleto de aparências e incertezas. No
mundo sensível só teriam da justiça uma imagem, uma ilusão, sendo impossível o alcance da
justiça ideal.
A ideia de justiça já está presente nas primeiras obras de Platão caracterizada como
virtude do cidadão. Com base no mito da caverna, conclui Platão que "só conhece a justiça
aquele que é justo".
Para Salgado, agir com justiça em Platão consiste exatamente na superação de toda
atitude egoísta, no sentido do reconhecimento da igualdade de direito do outro contra a
reivindicação de tudo para si. “Por colocar o outro na mira do agir humano, a Justiça torna-se
a maior das virtudes, pois que as demais, a sabedoria, a coragem e a temperança são apenas
interiores a ela e precisamente a quem atém diretamente ao Estado como um todo”
(SALGADO, 1986, p. 22)
Platão entendia que o homem não é capaz de sempre se estabelecer pela razão, o bom
e justo da cidade, sendo que as leis são necessárias para o conceito de justiça e felicidade dos
cidadãos. Nas Leis, livro IX, 874, já se dizia: “Sem leis, os homens se conduzirão
necessariamente como as feras mais perigosas”12 (SALGADO, 1986, p. 24). A lei provém da
razão humana, sem a qual seria impossível ao cidadão ser educado.
Para esse filósofo, agirá bem quem possui o conhecimento do Bem, sendo que a
formação do cidadão deve estar alicerçada sobre os fundamentos da verdade. Nisso diverge
do relativismo ético dos sofistas na educação do ser humano13 grego, pois para estes o critério
da verdade está no próprio ser humano que examina a questão conforme o seu interesse.
No pensamento platônico, os seres humanos, quando não educados corretamente,
tendem a seguir seus próprios interesses, serão conduzidos por seus afetos e paixões. O
filósofo grego ditava a razão como orientadora do comportamento humano. Em outras
12
Em A República, essa ideia central, que define a Justiça como virtude, consiste na observância da lei e
permanece, mas num outro plano: não já como dedução empírica da necessidade de observar leis na medida em
que essas leis sejam a expressão do costume da vida ética do povo, mas como ideia da razão que informa o
próprio Estado de Platão, num plano filosófico elevado, visto que não mais ligado ao empírico da observação
socrática. O Estado ideal é também o Estado de Justiça e nela não há diferença ente as leis e a Justiça. Suas leis
são justas porque editadas por quem pratica a virtude da justiça e, por isso, contempla a ideia de justiça. E
conclui: “o bem e o mal, o justo e o injusto são verdades racionais, essências eternas”.
13
Platão e os sofistas debatiam sobre como formar cidadãos. Platão acreditava que o exercício da cidadania na
Polis está intimamente ligada ao conhecimento da virtude e dos vícios.
23
palavras, sendo os sentimentos voláteis e transitórios, estes não podem ser fonte inspiradora
da verdade, considerando-se esta perene e eterna.
Mais adiante na República, Platão passa a expor sobre o conceito de Justiça. No
diálogo entre Sócrates e Glauco14, o filósofo grego expõe o que não considera ser justiça, e o
faz através do mito do anel de Giges, onde faz alusão à ideia de que os seres humanos são
justos unicamente por medo do castigo15.
Para Platão, não faz sentido uma Justiça que esteja alicerçada sobre uma paixão, vale
dizer, sobre o medo, haja vista que a justiça tem origem na razão e não na paixão (medo da
punição). A lei é inflexível; a alma humana, ao contrário, está forçosamente sujeita às
paixões16.
Partindo desses fundamentos é que Platão defende o pensamento político que está
alicerçado na noção da “alma”, divididas em três partes: parte racional (cognitiva), parte
irascível (colérica) e parte apetitiva (concupiscente)17.
Nesse contexto, Platão faz uma analogia entre alma e Estado. A alma racional deve
governar a alma irascível e a alma apetitiva, sendo que o governo do Estado deve ser exercido
por aqueles suficientemente capazes de usar a razão para controlar todas as paixões. Extrai-se
desse ensinamento que a infelicidade é o resultado do direcionamento equivocado das
paixões.
A filosofia de Platão tem orientação ética, ensinando o homem a desprezar os
prazeres, as riquezas e as honras, e praticar a virtude. Se no pensamento socrático a ética
possui conotação utilitária, ou seja, identificando o Bem como o útil e o agradável para o
homem, em Platão a ética é uma valor em si mesmo.
Assim, como um homem necessita do outro, dessas necessidades será fundada a
Cidade-Estado, criação do homem para suprir as suas deficiências. A composição do Estado
seria então uma sociedade de desiguais, não de indivíduos semelhantes.
Para Platão, a pacificação social necessária somente será possível através do Estado
organizado racionalmente. A teoria platônica, segundo a qual a virtude se identifica com o
conhecimento, e o Bem, com a Verdade, exercerá grande influência na filosofia grega
14
Livro II da República de Platão.
15
O personagem dessa história, um pastor chamado Gyges, encontra por acaso uma caverna onde jaz um cadáver
que usava um anel. Quando Gyges enfia o anel no próprio dedo, descobre que esse o torna invisível. Sem
ninguém para monitorar seu comportamento, Gyges passa a praticar más ações - seduz a rainha, mata o rei e
assim por diante. Essa história levanta uma indagação moral: algum ser humano seria capaz de resistir à tentação
do mal se soubesse que seus atos não seriam testemunhados?
16
A Política, 1286a.
17
Para o filósofo grego, a alma racional busca o conhecimento e a verdade. A alma irascível busca o desejo pela
glória e prazer. Já a alma apetitiva anseia os bens materiais.
24
1.1.4 Aristóteles
18
A justiça natural é parte da justiça política que visa a permitir a realização plena do ser humano. Sendo
naturalmente um ser político, a plena realização do animal racional está condicionada à sua natureza. Reger-se
sob o signo de sua natureza, para o homem, significa estar sob o governo da razão, o que se traduz, no âmbito
social, estar sob o governo das leis, que são "razão sem paixão". É a justiça natural o princípio e causa de todo
25
Para Aristóteles, a natureza era a fonte essencial do direito, mas não a única. Direito
Natural e Direito Positivo deveriam se completar para a criação da solução boa, útil e justa.
Para o filósofo, o direito não seria deduzido apenas das leis positivas, mas deveria ser
procurado de forma dedutiva e indutiva, nas relações da vida cotidiana, nos fatos, na ordem
social, pois seria, afinal, parte do cosmos.
Aristóteles distinguiu dois tipos de justo: o justo natural e o justo político, mas não os
separou. O justo natural expressaria uma justiça objetiva imutável e que não sofreria a
interferência humana. Já o justo político era a lei positiva que teria sua origem na vontade do
legislador e que sofreria variação espaço-temporal. Ensina que há uma lei verdadeira,
conforme a natureza, difundida entre todos, constante, eterna e que comanda e incita ao dever,
única, imutável, governada por todos os povos em todos os tempos.
É que, para Aristóteles, o natural do ser humano é agir corretamente, pois a razão nos
faz agir de maneira correta. Nesse particular, divorcia-se da filosofia platônica de render
maior importância às leis.
Na obra A Política, Aristóteles faz uma necessária distinção entre a justiça natural e a
justiça legal. Resulta disso que o Direito Natural, proveniente da observação e da dialética,
não poderia ser formulado em leis e codificado. Justo é o justo por si e não poderia ser
resumido sob o aspecto da lei ou código. Entretanto, sua relação com o Direito Positivo seria
fundamental, pois constituiria a realidade jurídica em seu conjunto.
Justo seria o que estivesse de acordo com a lei e injusto o que lhe é contrário. A
justiça é considerada como uma virtude perfeita. “Justiça é a disposição em virtude da qual os
homens praticam o que é justo, agem justamente e querem o justo.”
E prossegue: “Chamamos justo ao que é de índole para produzir e preservar a
felicidade e seus elementos para a comunidade política” (ARISTÓTELES, 1985, 1129a).
movimento realizado pela justiça legal; o justo legal deve ser construído com base no justo natural. A justiça
natural realiza-se com a própria práxis da razão em sociedade.
26
a) O Direito Natural aristotélico não era formal e vazio, pois tirava o seu
conteúdo das relações sociais objetivas e da observação da natureza.
g) Não era a fonte única de todo o universo jurídico, portanto, não dispensou
a existência simultânea das leis escritas com o fim de permitir soluções
concretas.
h) Não era um direito ideal e utópico, como foi o de Platão. Caracterizou-se
pelo seu realismo.
27
A seu turno, bem asseverou Bobbio (2006, p. 17) ao identificar dois critérios pelos
quais Aristóteles distingue o Direito Natural e Positivo:
b) o Direito Natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tem o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem
boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja bondade é
objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos
medievais). O Direito Positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações
que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um
modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei, importa (isto é, correto e
necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei.
Pode-se dizer que a filosofia grega pós Sócrates preocupa-se com o problema ético-
moral estabelecendo um viés humanístico. As questões metafísicas foram superadas,
estabelecendo o ser humano como o eixo em torno do qual giram todas as preocupações de
organização social.
1.1.5 Epicurismo
19
Epicurismo é o sistema filosófico ensinado por Epicuro de Samos, filósofo ateniense do século IV a.C., e
seguido depois por outros filósofos, chamados epicuristas. A ideia que Epicuro tinha era que, para ser feliz, o ser
humano necessitava de três coisas: Liberdade, Amizade e Tempo para meditar. O estoicismo é uma doutrina
filosófica que propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em
relação a tudo que é externo ao ser. O ser humano sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se como uma peça
na grande ordem e propósito do universo.
20
Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e
numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde
Lucrécio foi seu maior divulgador.
28
homem age, faz isso no sentido de evitar a dor e de procurar o prazer; a insatisfação dos
sentidos é a dor, enquanto a satisfação dos sentidos é o prazer.
Em linhas gerais, o epicurismo consiste em um grande apelo ao homem para que se
utilize da maior de suas faculdades, a saber: a prudência (phrónesis). É ela que permite a
sabedoria do discernimento na escolha de comportamentos, na prática de atos e na realização
de atitudes.
Assim, saber escolher e discernir é ser prudente; ser prudente é conquistar a ataraxia,
ou seja, a estabilidade de ânimo diante das coisas, dos prazeres, das paixões e, inclusive, da
própria dor. Para o epicurismo, isso é ser livre.
Bobbio (2006, p. 19) identifica no Direito Romano dois critérios sobre os quais se
baseia a distinção entre Direito Natural e Direito Civil:
21
Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período médio
ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.
29
Marcus Tullius Cícero (106 a 43 a.C.) deixou um legado diversificado de obras sobre
política, moral, teologia e direito. Sofreu grande influência das filosofias sofistas, socráticas,
platônicas e aristotélicas, principalmente do estoicismo.
Para Cícero, a razão é o que há "de mais divino" no homem e em todo o universo,
uma identidade entre o homem e a divindade, sendo comum em ambos. Essa razão é a lei
natural imanente ao homem, que define o justo e dá um paradigma supremo da lei humana
positiva. A essência de toda lei22 que provém da razão é saber escolher entre o verdadeiro e o
justo.
Cícero (p. 42) apud Bittar e Almeida (2011, p. 18) dirá que os homens e deuses
formam um só universo, onde as leis naturais presidem à coordenação de todos:
22
Para Salgado (1986, p. 56): "Cícero distingue as leis em: a lei que procede da 'recta ratio' do supremo Júpiter e
a lei que procede da 'recta ratio' do sábio. Trata-se de uma distinção em razão da fonte e não propriamente em
razão da natureza, em ambos os casos a razão é a mesma, pois também no homem há um razão perfeita".
30
No período medieval, a partir do século IV, o Direito Natural passa a ter sua nova
visão fundamentada em uma dimensão divina, como será analisada na sequência.
23
"O homem que for sábio está livre de afectos e paixões, basta a si mesmo e é temente a Deus, aspira ao Bem e
ao justo e é capaz de actuar segundo a natureza" (PEREIRA, 1993, p. 531).
31
[...] doutrina cristã e, citando Del Vecchio, ensinaram foi capaz de produzir
suficiente abalo no espírito humano que, apesar da doutrina de Cristo não ter
nenhuma conotação jurídica ou política e sim baseada nos princípios da
caridade, do amor e da fraternidade, provocou profundas transformações nas
concepções de direito e do Estado.
Com isso, Jesus Cristo esclareceu que existem diferentes ordens de leis, uma ordem
superior, irrevogável e imperecível, ou seja, as leis de Deus, e uma ordem circunstancial,
perecível, específica em função de cada povo e cultura, que são as leis humanas.
Estar diante de uma justiça divina, sujeito às ordens de Deus, explicam Bittar e
Almeida (2011), é estar diante de uma justiça presidida e aplicada pelo próprio Deus, que
julga cada um pelos seus atos, ou seja, estar diante de Deus no momento de seu julgamento é
apresentar a Deus suas obras e não seus títulos, suas honrarias, suas riquezas materiais, é
apresentar-se desnudo, revestido apenas de sua consciência, sua conduta e suas obras.
E essa é a responsabilidade do cristão. Segue a lição de Bittar e Almeida (2011, p.
206):
[...] o cristão não se ilude com as tentações do que é transitório, não age de
modo a desgostar do outro, guia-se e pauta-se de acordo com o que pode
fazer para melhorar sua condição pessoal e a de seu semelhante, vive na
carne tendo em vista o que é do espírito [...]. Aí está a liberdade de agir do
cristão; para além de considerar que o cristianismo constrange, sufoca,
oprime, predetermina, deve-se dizer que liberta a alma para ser conforme a
regra cristã.
32
Assim, o Direito Natural teológico teve forte apego ao conceito religioso de justiça.
Para essa doutrina, a verdadeira justiça está nas leis de Deus, único ser Onipotente, Onisciente
e Onipresente.
Deus é eterno e imutável24, sendo desenvolvida na Idade Média, essa crença marcada
pelo conteúdo teocentrista25, apresentando Jesus como único caminho, única verdade e única
via para a salvação da humanidade.
A principal inovação trazida nos ensinamentos de Jesus é o desprendimento de si
mesmo, pois amar somente os que nos amam, dizia Jesus, é muito fácil. “Tendes ouvido o que
foi dito: “Amarás o teu próximo e poderás odiar o teu inimigo. Eu, porém vos digo: amai
vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem”26.
A Justiça de Deus é um contraste aos esforços humanos de ganhar a justificação pelas obras
da lei. O apóstolo Paulo27 passa a descrever a justiça de Deus como aquela em que o Senhor
está pronto a outorgar a quem manifesta fé em Jesus Cristo.
Em Romanos 3:19-26, Paulo ensina que todos são pecadores e que todos pecaram,
sendo que ninguém poderá ser justificado perante Deus pelas obras da lei.
Porquanto pelas obras da lei nenhum homem será justificado diante dele;
pois o que vem pela lei é o pleno conhecimento do pecado justificado pela
fé. Mas agora, sem lei, tem-se manifestado a justiça de Deus, que é atestada
pela lei e pelos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para
todos os que creem; pois não há distinção. Porque todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs
como propiciação, pela fé, no seu sangue, para demonstração da sua justiça
por ter ele na sua paciência, deixado de lado os delitos outrora cometidos;
para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja
justo e também justificador daquele que tem fé em Jesus (BÍBLIA
SAGRADA, 2002, p. 1023).
1.2.1 Patrística
28
Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos
inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele
faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes aos que vos amam,
que recompensa tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos,
que fazeis demais? Não fazem os gentios também o mesmo? Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso
Pai celestial. Mateus 5:43-48 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
34
Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas
que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a
obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua
consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os
(BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 1022)29.
Ora, quanto mais a lei humana se aproximar das leis inscritas no coração do homem
(lei divina que governa o todo universo), mais caminhará ao encontro da justiça na sua
plenitude. Nesse sentido, a lei humana deve regular o comportamento entre os seres humanos,
porém deve obediência à lei natural que corresponde à moralidade registrada na alma humana.
Essa moralidade é a perfeição de justiça, no sentido de dar a cada um o que é seu. A
perfeita justiça está em “amar o teu próximo como a ti mesmo”30. Assim, viver a justiça de
Deus é agir segundo a lei registrada nos corações dos homens que encontra sua perfeição na
máxima do amor ao próximo.
1.2.2 Escolástica
29
Romanos 2:14-16 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
30
Nesse sentido: Lucas 10:27-28 “Respondeu-lhe ele: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda
a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo” (BÍBLIA
SAGRADA, 2002).
31
A fonte da teoria tomista da justiça como virtude específica é a Ética a Nicômaco de Aristóteles, no seu livro
V, onde a justiça se define como "o hábito com o qual se fazem coisas justas".
35
conformidade com a lei natural (ou não contrária) que, por sua vez, é a lei própria do ser
racional dirigida ao bem comum e que participa da lei eterna, que se dá como vontade do
criador nas criaturas (SALGADO, 1986, p. 66).
O que se quer dizer é que estudar a teoria tomista é refletir sobre três concepções de
leis: uma no sentido humano, outra no sentido natural e, outra ainda no sentido divino. A lei
divina é a razão de que deriva todo o universo, inclusive o ser humano.
A lei natural é o reflexo da lei divina no ser humano, uma participação racional da lei
eterna. E, por último, a lei humana concretiza a lei natural, fruto de uma convenção e de uma
necessidade, para manter a ordem e a paz social.
Assim, para São Tomás de Aquino, o Direito Positivo é necessário para, ao Direito
Natural, primeiro, dar a forma do direito no sentido restrito e próprio da palavra, para conferir
a ele a vis coativa, que a ele, como falta, falta.
As leis positivas são fundamentais para o convívio social harmônico. Para os
tomistas são dois os elementos essenciais que compõem o conceito de lei humana: razão e
bem comum. Nesse particular, os tomistas deixam evidente uma concepção de vontade que se
assemelha à desenvolvida por Kant que será objeto de análise adiante.
Em resumo, a lei positiva, sendo contrária à lei natural, produzirá um direito injusto,
ilegítimo e iníquo, produto da irracionalidade do homem. A desobediência da lei humana se
justifica quando houve afronte à lei divina, ou seja, o Direito Positivo é derivado do justo
natural, paradigma necessário do legislador. Na visão teológica, o Direito Natural tem uma
abordagem teocêntrica, isto é, Deus como última justificativa das leis humanas.
Enfim, esta concepção de Direito Natural prevaleceu até a chegada dos racionalistas,
especialmente a partir do século XV, cuja compreensão mais abrangente será o próximo
objeto de estudo.
iluminista da reta razão como orientadora das ações humanas. O homem passa a formular
questionamentos sobre a origem do conhecimento e se inserindo no centro do universo.
Nesse cenário, começa a ser desenhado o Estado moderno, liberal e democrático
através de movimentos contrários ao Estado absoluto medieval. O problema fundamental era
impedir o abuso do poder pelo soberano, buscando soluções para, senão impedir, limitar o
poder.
Bobbio (1992, p. 15) identifica três grandes grupos desse movimento contra o abuso
do poder:
Dentro destas três concepções se desenvolve o pensamento político dos séculos XVII
e XVIII até Kant. Assim se estabelece o Direito Natural racional, livre das concepções mítico-
religiosas, buscando seu fundamento último na razão humana. Podemos então dividir o
Direito Natural em duas fases bem distintas.
A primeira fase, também chamada clássica, com início na Grécia (Cidade-Estado),
usando a natureza com fonte da lei que erradia a mesma força em todas as partes,
indistintamente.
37
A segunda fase, inaugurada por Hugo Grócio32, defendia que o princípio último de
todas as coisas seria a reta razão, afastando-se Deus e a natureza dessa concepção
centralizadora, contudo sem alterar as convicções sobre a própria existência de Deus.
32
Hugo Grócio ou Hugo Grotius foi um jurista a serviço da República dos Países Baixos. É considerado o
precursor do Direito internacional, baseando-se no Direito Natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta e um
grande nome da apologética cristã. Suas ideias exerceram notável influência sobre o pensamento racionalista e
iluminista do século XVII (MACEDO, 2006).
33
Jusnaturalismo: escola que estuda o Direito Natural. O Direito Natural é objeto de estudo do Jusnaturalismo.
38
conhecimentos por séculos, filósofos como Pufendorf, Hobbes, Leibniz, Locke, Kant e
Rousseau.
Na lição de Bittar e Almeida (2011, p. 09), se o iluminismo introduziu alguma
contribuição definitivamente importante para a história contemporânea, esta contribuição foi a
ideia de que não há indivíduos autônomos se não houver espaço para o desenvolvimento da
razão emancipatória, se não houver espaço para a razão e para a crítica. Razão e crítica
significam liberdade. Ora, se essas ideias encontram sua consagração em Kant, não é de
menos importância ressaltar que fora da razão, ou se está à pura mercê do determinismo
natural, ou se está à pura mercê da promessa teológica.
Noberto Bobbio (Bobbio, 1992, p. 38) ensina que as doutrinas do jusnaturalismos
podem ser divididas em duas grandes categorias:
34
Thomas Hobbes é considerado ao lado de Jean-Jacques Rousseau um expoente do pensamento jusnaturalista.
Nasceu em 1588, na Inglaterra, em Malmesburg, onde viveu o conturbado período da guerra civil inglesa.
Assim, é fortemente influenciado pelos acontecimentos políticos ingleses do século XVII, conflitos políticos e
religiosos e pelas recentes descobertas de novos continentes.
39
são isolados e são iguais e livres entre si. Há a transição entre o “estado de natureza” para o
“estado civil” através do contrato consensual entre seres humanos livres.
Este filósofo inglês procurou fundamentar a autoridade do governante fora da
natureza, como, aliás, fez Aristóteles, afastando o direito divino dos reis para fundamentar o
seu pensamento.
Assim, o Estado não é resultado da natureza humana e a autoridade do rei não é obra
de Deus, pensamento daqueles que acreditavam que todo poder emana de Deus e é exercido
pelos reis. Pelo contrário, para Hobbes o Estado é artificial e a autoridade do governante é
proveniente de um pacto entre os seres humanos. Percebe-se que seu pensamento tem suporte
na tese aristotélica de ser humano como ser apto para a vida social.35
Sua tese parte de que todo o ser humano busca a companhia dos outros por dois
motivos: por glória ou por lucro. Extrai-se que o ser humano não tem amor natural pelo outro
ser humano36, antes pelo contrário, os seres humanos são levados a agir motivados por
paixões que determinam suas ações.
Para este filósofo, os seres humanos no estado de natureza37 gozam de igualdade na
parte corporal e intelectiva (corpo e inteligência). Por haver igualdade natural, há uma
predisposição humana pelo desejo das mesmas coisas.
Assim quando dois seres humanos desejam a mesma coisa eles se tornam inimigos e
dessa inimizade nasce a desconfiança. O resultado final é a guerra de todos contra todos. O
Direito Natural hobbesiano é o direito que cada ser humano tem de usar dos meios que achar
convenientes para proteger a própria vida, garantindo a sua existência.
O medo da morte e a esperança de uma vida confortável fazem com que o ser
humano racionalmente procure a paz. O ser humano se associa por algum interesse e não pelo
amor, sendo o Estado um meio de atingir, de satisfazer esse interesse.
Na primeira parte do Leviatã38, Hobbes compara o corpo social à estrutura do corpo
humano. Resulta dessa comparação de que o Estado seria o ser artificial e o principal objetivo
deve ser o de garantir “proteção” e “defesa” ao corpo natural daqueles que juntos formam esse
35
Esses pensamentos estão estampados em duas obras de Hobbes: De cive (Do cidadão) de 1642 e Leviatã de
1652.
36
Nesse particular, contrapõe a tese de Cícero de que os seres humanos naturalmente amam os outros da mesma
espécie.
37
Para Hobbes, o estado de natureza é o estado pré-social dos seres humanos, ou seja, é a situação do ser
humano fora do estado civil, fora da sociedade.
38
O Leviatã é uma criatura mitológica, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos
navegantes europeus da Idade Moderna. Hobbes fez uma comparação ao governo central que seria uma espécie
de monstro - o Leviatã - que concentraria todo o poder em torno de si, e ordenando todas as decisões da
sociedade.
40
corpo artificial, ou seja, os súditos. Prossegue o autor na analogia de que a alma artificial é a
soberania do Estado.
Isso somente é possível através de um pacto social entre os seres humanos, chamado
de contrato, pois o direito a todas as coisas é contrário ao direito da paz, tornando-se
imprescindível o cumprimento do contrato social para garantir a transferência do Direito
Natural e, por consequente, do direito a todas as coisas, para um ser central (Estado). Essa
transferência mútua de direito dará origem ao Estado.
Para Samuel Pufendorf39, a regra fundamental do Direito Natural é que todos têm o
dever de preservar a comunidade e de servir ao todo social. Usando da reta razão, o homem
deve se conduzir perante Deus, perante si mesmo e perante os outros. Assim três são esses
deveres: 1. não prejudicar o outro; 2. considerar o outro como igual em direito; 3. ser útil aos
outros, tanto quanto possível (SALGADO, 1986, p. 73).
Sobre as diversas leis que regem o homem, Pufendorf (2007, p. 47) apud Bittar e
Almeida (2011, p. 283), assim, ministrou:
Ao encontro do pensamento de Hobbes, vem John Locke40, não obstante ter uma
visão diferente do estado de natureza do homem. Não há, nesse estado, uma guerra de todos
39
Samuel von Pufendorf foi um dos defensores da corrente jusnaturalista, tendo os seus escritos influenciado de
forma duradoura o ensino do Direito na maioria da Europa.
40
John Locke está entre os filósofos empiristas, assim chamados devido a abrirem espaço para a ciência junto à
filosofia, valorizando a experiência como fonte de conhecimento. John Locke destaca-se pela sua teoria das
ideias e pelo seu postulado da legitimidade da propriedade inserido na sua teoria social e política. Para ele, o
41
contra todos, mas um estado de paz perpétua. Essa paz seria aniquilada pelos constantes
conflitos sem a presença de um juiz imparcial.
No pensamento lockeano, há espaço simultâneo no Estado Civil com o Estado de
Natureza. Bittar e Almeida (2011, p. 96) bem observaram que:
Para Locke, o Estado Civil tem por finalidade garantir a proteção dos direitos
naturais que corriam perigo no estado de natureza. Crítico severo do inatismo41, John Locke
entende que as leis naturais não são inatas e impressas na mente humana, antes estão na
natureza e podem ser facilmente conhecidas pelo uso da razão. A razão natural do homem é a
sua própria preservação.
Assim, afirma esse filósofo que o primeiro e inalienável Direito Natural é a
propriedade, algo que o homem possui desde o estado de natureza. O segundo é a liberdade, a
qual define em dois aspectos: a liberdade natural, no sentido de submeter somente à lei da
natureza como regra, e a liberdade na sociedade, submetendo apenas ao que se estabelecer por
consentimento da comunidade.
Para Bobbio, este é o ponto característico da doutrina de Locke, que o coloca como
um representante típico do estado burguês, baseado no reconhecimento da propriedade como
um Direito Natural.
Assim, ministra Bobbio (1992, p. 38):
direito de propriedade é a base da liberdade humana "porque todo homem tem uma propriedade que é sua
própria pessoa". O governo existe para proteger esse direito.
41
Ideia segundo a qual o ser humano tem estampado em si todo o conhecimento, sendo que o escopo da
Filosofia é tão somente despertá-lo.
42
Para Locke, o estado civil nasce do desejo do homem em dar guarida aos direitos
naturais fundamentais da vida e propriedade. Em outras palavras, para Locke os direitos
naturais são ditados pela razão, não podendo ser contrapostos pelo "estado civil", criado
justamente para conservar esses mesmos direitos sem, contudo, renunciá-los, como pensava
Hobbes.
A criação do estado civil deve-se dar pelo consenso, acordo com outros homens. O
estado civil é essencialmente limitado, pois pressupõe os direitos naturais e não pode violá-
los, exercendo o poder dentro dos limites estabelecidos.
Para Locke, em última análise, no estado de natureza o homem tem direitos naturais,
mas eles não estão garantidos. No estado civil, o homem não perde os seus direitos naturais,
mas os conserva garantidos pelo poder supremo, uma vez que o fim fundamental do Estado é
conservar os próprios direitos naturais.
42
Jean-Jacques Rousseau (nasce em Genebra, 28 de Junho de 1712 — morre em Ermenonville, 2 de Julho de
1778) foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. É considerado um dos
principais filósofos do Iluminismo e um precursor do Romantismo.
43
43
Locke parte da definição do Direito Natural como direito à vida, à liberdade e aos bens (propriedade privada)
necessários para a conservação de ambas. No pensamento político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade
privada não é um Direito Natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no estado de natureza (em Hobbes)
e no estado de sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que
nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um
decreto do soberano.
44
Pode-se dizer que Rousseau é o último grande jusnaturalista de sua época, inspirando
seu pensamento nos ideais da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Nesse diapasão, afirma Bobbio (1997, p. 72):
Em última análise, a teoria de justiça de Rousseau deve ser lida com olhar crítico no
respeito à natureza humana, produto da vontade racional de todos para todos, "a fim de se
conservarem socialmente íntegros os direitos que o homem por natureza possui" (DEL
VECCHIO, 1979, p. 121).
Assim, para Rousseau a sociedade evoluiu para um estado de guerra; para defender-
se das opressões vindouras e proteger os que eram seus, os seres humanos firmaram um
contrato social, segundo o qual cada um, ao se dar a todos, não se dá a ninguém e, não existindo um
44
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O
fundamental é a determinação de quem possui o poder ou a soberania, desde que se respeite dois direitos naturais
intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e
a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como
vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre e corpo político de cidadãos. Assim sendo, o governante não é o
soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil: aceitam
perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela
se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa
chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.
45
associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si, ganha-se o equivalente
de tudo que se perde e mais força para conservar o que se tem.
Outro brilhante pensador racionalista foi Immanuel Kant45, filósofo iluminista que,
ao discutir sobre a moral humana, trouxe novos rumos para as teorias da moralidade até então
elaboradas.
Significativas mudanças ocorreram no século XVII, notadamente pela Revolução
Científica que impuseram significativas transformações estruturais no pensamento filosófico,
ante a prevalência do Racionalismo.
Doravante, as explicações teológicas e metafísicas deram lugar às ideias
iluministas46, servindo de fundamento a diversas revoluções liberais, dentre elas à Revolução
Francesa. Esse movimento trouxe novos contornos à teoria da moralidade, tendo como um de
seus principais pensadores o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).
Por sua vez, a teoria da moralidade de Kant trouxe uma concepção inovadora, a da
autonomia da vontade47. Referida formação teórica, fundamentada na lei moral, explicou a
moralidade como um elemento interno do homem que o direciona necessariamente a uma
conduta moral, salvo se estiver sujeito a uma vontade viciada, independentemente da
imposição de leis por um agente externo.
Ao comentar sobre Newton e Rousseau, Kant diz que Newton descobriu a lei oculta
que organizava o mundo físico; ao passo que o último explicou a desordem no mundo moral,
mostrando que a culpa não é de Deus e sim dos homens. Assim, se Newton mostrou a lei
oculta revelando uma ordem divina no mundo natural, Rousseau fez algo semelhante para o
mundo moral.
Entretanto, para Rousseau, a única forma de criar a ordem seria a formação de um
contrato social, mas Kant não concorda com esse posicionamento, pois ele contradiz a sua
45
Immanuel Kant (nasce e morre em Königsberg, 22 de abril de 1724 / 12 de fevereiro de 1804) foi um filósofo
prussiano, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna,
indiscutivelmente um dos pensadores mais influentes.
46
Movimento intelectual da Europa dos séculos XVII e XVIII. Uma atitude geral de pensamento e de ação
fundado no domínio da razão sobre a visão teocêntrica, a fim de combater a intolerância e os abusos da Igreja e
do Estado.
47
Para Kant, é impossível um discernimento empírico do aspecto da vontade que fundamenta a autonomia. Kant,
assim como Locke, distingue prazer de desejo. O prazer é um sentimento agradável causado por elementos
externos, o desejo é um impulso em direção a alguma coisa, mas que nada informa sobre o que nos move. Kant
construiu a vontade como sendo a exigência racional de consistência na ação. A vontade serve para testar nossa
moral frente a um desejo clamoroso, proporcionando um motivo para resistir a ele e satisfazer a moral.
46
ideia de que a moralidade pode ser conhecida por meio de um olhar interno,
independentemente do que se aprenda nos livros. Não seria necessário um legislador que
imponha leis aos homens como Deus o faria, necessidade que é defendida por Rousseau
(SCHNEEWIND, 2005, p. 534-535).
Na verdade, esta é a principal diferença entre a moralidade de Kant e a de Rousseau:
embora ambos acreditassem na capacidade moral de todas as pessoas, Rousseau somente
entendia possível tal capacidade dentro de um contrato social, enquanto Kant percebia a
moralidade em qualquer circunstância ou sociedade.
As concepções da moralidade como obediência tinham dois componentes essenciais:
um referente à posição humana em relação a Deus, pelo qual os homens deveriam demonstrar
reverência e gratidão antes de obedecerem às Suas ordens; outro quanto às habilidades morais
humanas, segundo o qual a maioria das pessoas são incapazes de pensar, necessitando de uma
orientação moral adequada, devendo se submeter a poucos excepcionais a quem Deus
permitiu entender, seguir e ensinar Suas ordens morais. Os filósofos que defendiam a
moralidade como autogoverno faziam repetidos esforços para quebrar essas duas ideias.
Kant foi criado na concepção filosófica da moralidade como autogoverno, que fazia
esforço para superar as concepções da moralidade como obediência.
Destaca Schneewind (2005, p. 560):
Kant rejeita o voluntarismo48, que afirma que Deus deve ser incompreensível em
certos aspectos, e lança mão do entendimento de que a natureza divina deve ter como móvel
um e somente um princípio que permita à criação ser o resultado da natureza interna divina
(bondade e perfeição). Tal princípio informa que Deus age de maneira autônoma.
Para os antivoluntaristas, o voluntarismo impedia o amor a Deus e prejudicava o
discernimento moral comum das relações humanas: “uma moralidade composta de tirania e
servilismo só pode ser evitada se Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos
membros sejam mutuamente abrangentes por aceitarem os mesmos princípios”
(SCHNEEWIND, 2005, p. 554-555).
Assim, segundo os fundamentos antivoluntaristas, a moralidade envolve princípios
que são válidos tanto para Deus como para nós; Deus e nós temos motivação similar para a
ação, de forma que ambos agimos livremente segundo uma mesma regra; não é válido o
pensamento de dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, nem que este
outro seja Deus; Deus é essencial à moralidade (afirmar o contrário seria ateísmo), mas não é
o seu criador.
Dentro do pensamento antivoluntarista se encontra uma afirmação de que Deus não é
o responsável pelo agir moral dos homens, porque os homens possuem a mesma capacidade
moral que Ele, não ocorrendo uma imposição externa das regras da moralidade. De acordo
com o exposto, qualquer concepção de moralidade como obediência seria absurda.
Kant compartilha com os antivoluntaristas a rejeição ao servilismo e a admissão de
Deus como essencial à moralidade. Kant e os antivoluntaristas em geral:
48
O voluntarismo, doutrina de que Deus cria a moralidade por um decreto da vontade, foi fundamental para o
desenvolvimento da filosofia moral moderna, pois foi a partir desse aspecto teológico que se iniciaram os
questionamentos dos defensores da moralidade como autogoverno, que são antivoluntaristas (Hume, Bentham,
alguns pensadores franceses radicais) (SCHNEEWIND, 2005, p. 554).
49
De certo modo, aqui se encontra uma das bases para a construção da teoria moral
kantiana, que coloca Deus e o homem como seres autônomos, guiados por uma lei moral
comum existente em cada ser, divino ou não, de maneira individualizada e adaptável às
situações concretas.
Kant afirma que as leis mecânicas do universo e a construção das possibilidades por
Deus promovem a perfeição do mundo (do mundo natural). Em tal contexto, o homem
apresenta uma natureza diferente das coisas mecânicas.
O homem e os demais seres racionais, os habitantes de outros planetas, os anjos e
até mesmo Deus, apresentariam uma alma imortal. No que se refere ao ser humano, após a
morte ele seria libertado do jugo da carne, sofrendo uma transformação em seu ser de forma a
comungar com o Criador a verdadeira felicidade (SCHNEEWIND, 2005, p. 541-542).
Enquanto não sofre tal transformação, o homem, pelo exercício da inteligência, é
capaz de resistir aos desejos da carne. Os seres racionais seriam mais ou menos morais de
acordo com a força com que a matéria atuasse sobre a alma.
Kant encontrara a explicação do mundo físico por meio das leis de Newton. Se o
mundo físico é composto por átomos, elaborados individualmente por Deus e dotados de
movimentos internamente determinados, criando as grandes belezas, utilidades e harmonias
do mundo natural, a teodiceia de Kant se pergunta se há no mundo moral o mesmo princípio
do físico, pelo qual o moral se sujeita à ação independente de suas unidades constituintes,
gerando a perfeição.
Mas a inteligência do ser racional leva à conclusão de que ele é feito de uma alma,
que se coloca em uma ordem de valor acima das coisas físicas. Dessa forma, no mundo moral,
suas unidades não agem de maneira independente, pois nele estão envolvidos agentes que
possuem alma, que deverão agir de maneira correta para gerar a perfeição.
Comparando-se o átomo, no mundo das coisas, ao ser racional, no mundo moral,
tem-se que Deus criou as possibilidades para os seres racionais, incutindo em cada um sua
essência divina, que o capacita a realizar as possibilidades no mundo moral: o livre arbítrio do
homem, a sua liberdade, revela-se na obediência à lei que ele prescreve para si mesmo, mas
essa lei é uma lei moral, independente da concepção do que seja bom ou ruim.
Tal escolha deriva da essência divina comum entre Deus e o homem e, como o que
vem das decisões de Deus é sempre perfeito, o que resulta das escolhas autônomas dos
homens é, de maneira necessária, moralmente bom.
Disso resulta que não há fatores externos a tolher a vontade de Deus e, por via de
consequência, as escolhas humanas autônomas independem de qualquer coisa externa.
50
49
Imperativos são, portanto, a forma de um princípio ou expressão da lei para o ser humano. A lei moral só se
transmuda em dever ser, para o ser que se constitui razão e sensibilidade, de liberdade e de necessidade. O dever
ser (e por isso imperativo, sua expressão) não tem sentido para um ser puramente racional ou cuja vontade fosse
exclusivamente pura; somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinações sensíveis
pode ser destinatário de um comando que se expresse de forma imperativa: "tu deves" (SALGADO, 1986, p.
211).
51
Basicamente, ao aplicar o método ético de Kant é possível, por uma única regra,
delimitar a adequação moral de qualquer espécie de agir, justificando por que uma ação é
mais ou menos correta do que a outra sob o aspecto ético.
Sobre a moralidade como autonomia, esclarece Schneewind (2005, p. 527):
50
A razão para Kant se desdobra em: razão teórica e razão prática. A razão teórica é o que, na tradição filosófica,
se convencionou chamar intelecto, tendo por finalidade conhecer o objeto e a lei da natureza expressa em
relações necessárias de causa e efeito. A razão prática, a que se denominou vontade, ou seja, razão que age e que
doa finalidade a si e às coisas, dirigindo conhecimento às coisas, enquanto princípio da ação, determina o que
deve acontecer e se expressa por uma relação de obrigatoriedade, não de necessidade. É da vontade que surge a
noção de dever ser, visto que só ela cria esse dever ser. Assim, o intelecto se ocupa do ser, a vontade cria o dever
ser ou como diz Hegel, "enquanto a inteligência se ocupa tão somente de captar o mundo como ele é, a vontade,
ao contrário, tão somente procura fazer do mundo, antecipadamente, como ele deve ser" (SALGADO, 1986, p.
174).
51
Em outras palavras, o imperativo categórico é a lei prática válida e buscada por si só e não por um fim. Por
isso, os desejos não se justificam se contrariarem o fim da lei moral, que é puro e isento de fatores empíricos;
não há obrigação contrária à lei moral.
52
Em sua obra, Schneewind afirma a originalidade em Kant porque seu método ético
trazia uma lei para a ação, vista em um princípio da moral, que além de determinar o agir de
tal forma, justifica por que esse agir deve ocorrer.
No mais, a moralidade é identificada como a necessidade objetiva que não se pode
apoiar na vontade de Deus, enfim, não é a busca de bons resultados ou a obediência à vontade
divina (SCHNEEWIND, 2005, p. 530). Enfim, a moralidade se baseia no puro entendimento
racional em si, não pretendendo recompensas de qualquer natureza52.
Nessa linha, Kant diz que subordinar a moralidade à religião é provocar hipocrisia e
idolatria, mas controlar a religião por meio da moralidade torna as pessoas generosas, bem-
intencionadas e justas. Mais uma vez se evidencia a preocupação do filósofo, que se repetiu
em sua fase madura, de que o homem não precisasse de nada, nem mesmo da religião ou de
Deus, para ser capaz de agir conforme a lei moral.
Kant diz ainda que as leis da liberdade são fundamentais para a obediência, mas não
responde como a liberdade no entendimento moral pode ser o princípio mais elevado da
virtude e também de toda a felicidade.
Kant aceita a problemática da lei natural, como se pode ver no fato de ele tomar
como básico o conceito de lei moral, de onde definiu seus demais conceitos, e em algumas
afirmações sobre os aspectos empíricos da natureza humana: somos naturalmente propensos a
discordar; somente a razão permite que nos movimentemos na direção da paz um com o
outro; nossos interesses em honra, poder e posse podem nos levar a um conflito sem fim.
Kant retrata os seres humanos como necessitados de companhia e apoio, ao mesmo
tempo em que resistem ao controle social e tendem para um autoengrandecimento ilimitado.
De acordo com esse pensamento, o homem é um ser destinado à sociedade (embora seja
também um ser antissocial).
Então, Kant reconheceu o caráter pacificador da lei moral à semelhança do que os
pensadores anteriores fizeram quanto à lei natural. Contudo, a lei moral, apesar de também
52
Para os defensores da lei natural, os bens e os males estão ligados aos comandos de Deus através de leis que
derivam sanções. Para Kant, se obedecermos a essas leis apenas para evitar o castigo divino, não seremos
moralmente admiráveis, e a moral terá um caráter mercenário.
53
desempenhar uma função de controle dos conflitos sociais, é dotada de elementos peculiares
mais aprofundados que os do conceito de lei natural.
Nota-se que os defensores iniciais da lei natural formaram seu pensamento dentro da
corrente voluntarista, a qual defende a imposição das regras morais de uma fonte divina
externa, ao passo que Kant defendeu, desde o início, uma posição antivoluntarista, a única que
se coadunava logicamente com sua concepção de autonomia.
53
Kant abandona a lei natural segundo a qual as virtudes são hábitos de obediência às leis. Assim, a virtude
requer que sejamos movidos por nossa consciência do principio moral básico e não pelo simples sentimento.
54
Os defensores da lei natural também fizeram a distinção entre lei moral e legal: a lei
moral é aquela que obriga todos os seres humanos, e a segunda constitui as leis que variam de
país para país.
Assim, as fortes discussões racionalistas acabaram resultando em uma visão
clarividente do direito objetivo ou posto, relevando sobremaneira o Direito Natural. E sobre o
binômio Direito Natural e Direito Positivo, ensina-nos Bobbio (1992, p. 122) que:
Kant segue Locke no que diz respeito à solução do problema da relação entre
o Direito Natural e Direito Positivo. Mas Locke distingue o fato de que, para
este último, a passagem do estado de natureza para o estado civil acontece
por motivo de utilidade, e, portanto segundo um cálculo interessado (o
estado de natureza sendo considerado de fato como um estado incômodo e
prejudicial), enquanto que, para Kant, esta mesma passagem deve ser
realizada para obedecer a uma lei moral.
De qualquer forma, para Kant o estado civil não nasce para anular o Direito Natural,
mas para possibilitar o seu pleno exercício. Assim, ambos os direitos (civis e naturais) não
estão em rota de colisão, mas interagem e se integram, senão na forma, mas na substância. O
conteúdo é o mesmo, porém a forma de fazer valer é que se torna o diferencial.
Pode-se dizer que o direito civil está a dar guarida ao Direito Natural. Bobbio (1992,
p. 121), em sua obra, registra um trecho de uma importante carta de Kant dirigida a Heirinch
Jung-Stilling (1789), que começa assim:
Enquanto, para Locke, a passagem do estado natural para o civil se dá por motivos de
utilidade, para Kant essa passagem se dá para obedecer a uma lei moral, sendo um dever, uma
exigência moral, uma vez que se trata de ação que visa não a satisfazer interesses ou evitar
prejuízos, mas a alcançar um estado de justiça que suprime o estado de natureza, injusto e
imoral.
Para Kant, o agente virtuoso é forte e resoluto, capaz de resistir ao impulso do desejo que o tenta a agir contra a
moralidade.
55
Passando do estado natural para o civil, o indivíduo depõe de sua liberdade natural
para receber uma nova liberdade no estado civil, independente da natural, todavia dependente
da própria vontade de legislar, ou seja, a faculdade de criar leis. Logo, na medida em que cria
suas próprias regras, o homem é livre.
Nesses termos, opera-se um duplo conceito de liberdade: a liberdade como faculdade
de fazer sem ser impedido (teoria liberal) e a liberdade como obediência à própria lei (teoria
democrática) que nós mesmos nos demos (conceito de liberdade como autonomia). Em
resumo, criando lei para si mesmo o homem é autônomo.
A primeira (liberdade como não impedimento) representa o momento da liberdade
natural do homem enquanto não dominado por leis externas e coercitivas. Já a liberdade como
autonomia representa o momento em que o homem tornou-se ligado às leis do Estado,
conservando-se livre enquanto seja ele o criador dessas leis às quais se submete.
Bem asseverou Bobbio (1992, p. 131) ao afirmar que:
As duas liberdades são tão pouco inconciliáveis, que a luta pelo Estado
moderno foi empreendida em favor de uma e de outra, as constituições
modernas dos Estados democráticos reconheceram as duas, a primeira sob a
forma de atribuição dos assim chamados direitos de liberdade (liberdade de
imprensa, de pensamento, de associação, de reunião), a segunda sob a forma
de atribuição dos assim chamados direitos políticos (ou seja, os direitos
relativos à participação direta ou indireta do cidadão na formação das leis).
Sendo o homem livre (ser racional), deve ser considerado um fim em si mesmo na
pessoa do outro racional, nunca como meio. A liberdade que caracteriza uma pessoa e a torna
fim em si mesma - porque não se submete a outras leis senão àquelas que ela dá a si mesma -
é o bem maior e único direito inato no ser racional e que, por isso, deve ser distribuído
igualmente (SALGADO, 1986, p. 252).
O exercício da liberdade de cada um deve ser compatibilizado com o da liberdade de
todos dentro da sociedade, de modo a estabelecer um princípio da igualdade que se apresenta
sob duas vertentes: como direito de liberdade inato e igual para todo ser racional e como
limitação igual para todos no sentido de possibilitar a sociedade civil, ou a vida em comum
dos seres que são fins em si mesmo.
Na filosofia kantiana, a liberdade e igualdade aparecem como princípios basilares da
sociedade civil, todavia somente a liberdade pode ser considerada um Direito Natural inato do
homem. Liberdade é, portanto, a faculdade de obedecer somente às leis externas a que eu
56
tenha dado a minha aprovação. Tanto mais justa é uma lei quanto mais ela expressa a
realização da liberdade.
Bem asseverou Salgado (1986, p. 295) que o
Concluiu dessa assertiva que o direito não existe por si e para si, mas para a
liberdade.
Nesses termos, há um direito inato e originário nos homens, fundamento de todos os
demais, inclusive o de propriedade54, que é a liberdade.
Haverá, portanto, uma liberdade interna e outra externa. A primeira se refere à
faculdade de agir pela razão internamente, enquanto a segunda é a faculdade de agir (uso
externo do arbítrio) na sociedade no momento do contado com o "outro".
Nisso se extrai um conceito de humanidade, ligado ao postulado do imperativo
categórico que ordena que a humanidade seja considerada, tanto em nós como nos outros, um
fim em si mesma (pessoa).
Kant se afasta da Escola do Direito Natural, pois não há um Direito Natural como
regras tiradas da natureza (Direito Natural cosmológico), nem um Direito Natural assentado
em uma razão universal estoica, visto que a participação do homem nessa harmonia total é,
em última instância, a identificação da natureza; nem um Direito Natural transcendente,
ditado pela autoridade divina, que acabaria por se constituir em um código moral externo;
nem um Direito Natural deduzido pela razão, como no jusnaturalismo clássico, pois a própria
liberdade é uma ideia.
Segundo Salgado (1986, p. 275), Kant pode ser chamado de jusnaturalista somente
no sentido de que o Direito Positivo, para ele, não encontra o seu fundamento de validade
última em si mesmo ou no arbítrio do legislador, mas na razão ou, em última palavra, na
liberdade, o único Direito Natural.
Na Metafísica dos Costumes, Kant (2010, p. 59) reconhece a liberdade como único
direito originário do homem:
54
Colocando a liberdade como único direito inato e originário do homem, Kant se afasta da concepção de Locke
de que a propriedade é um Direito Natural.
57
As ideias de lei moral, boa vontade, dever e respeito se propagaram através das
teorias filosóficas contemporâneas. Aliás, produziram também reflexos nas obras filosófico-
jurídicas e, consequentemente, na visão do Direito na sociedade contemporânea. Com efeito,
a contribuição de Kant se faz presente no pensamento de justiça social, notadamente no
conceito de dignidade humana e da exigência do Bem supremo como ideal de vida racional de
toda a humanidade que decorre de uma sociedade de consenso, considerando o homem como
um fim em si mesmo e nunca como meio. A assertiva é corolário lógico da liberdade inata do
homem.
As críticas que se podem fazer a Kant por ter ficado, no momento, abstrato da
liberdade da igualdade, embora próprias, não anulam o dado positivo inerente à ideia (projeto)
de uma república pura fundada no conceito de liberdade e de uma paz perpétua55.
55
A paz perpétua configura o supremo bem político do homem, não só no sentido de mais alto (moralidade),
como também no sentido de mais completo (moralidade e felicidade), e é considerado por Kant como o
coroamento da história do homem vista do lado da liberdade (não da natureza) como constante.
59
apenas no discurso, pois o ser contemporâneo não hesita em eleger seus exclusivos interesses,
em detrimento do bem comum.
Em outros termos, o homem autônomo é dotado de livre discernimento, de
racionalidade pura, a qual o impulsiona a manter sua condição de dignidade, exigindo pelos
instrumentos jurídicos que se mostrem disponíveis à preservação de tal condição.
Então, o homem verdadeiramente autônomo possui não apenas um livre-arbítrio de
se impor na sociedade tal qual um animal, seguindo seus instintos e buscando fazer valer os
seus interesses pessoais conforme suas necessidades empíricas, mas possui racionalidade a
ponto de buscar a sua felicidade de maneira digna.
Entretanto, cabe ao Estado propiciar condições de desenvolvimento para que o
homem aperfeiçoe sua condição de autônomo e alcance o status pleno de dignidade. Esse é o
compromisso por ele assumido nos tratados internacionais e em toda Constituição Federal que
possa se chamar de democrática.
Grande parte do pensamento filosófico dos séculos XIX e XX será uma releitura ou
interpretação da filosofia de Kant. Estes neokantismos abdicarão de uma posição francamente
antimetafísica e pretenderão reduzir o kantinismo à crítica do conhecimento. Desse
pensamento resulta o Positivismo, objeto do próximo estudo.
61
Com a formação do Estado moderno nos séculos XVIII e XIX, o Estado toma para si
a monopolização da produção jurídica, isto é, a exclusividade de criar o direito, ou mais
precisamente as leis que regerão a sociedade.
A alteração no modo de produção do direito culminou com uma mudança nas
categorias do direito. Estado e Direito se equivalem, posto que o direito deriva do Estado.
Enquanto no Estado primitivo em geral as normas jurídicas eram produto da sociedade
pluralista56, adotando uma concepção dualista de direito (Direito Natural e Positivo), no
Estado moderno há uma concepção monista, ou seja, apenas vigora o Direito Positivo.
Positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando "Direito Positivo"
e "Direito Natural" não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o Direito
Positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio e o Direito Natural é
excluído da categoria do direito.
A partir desse momento o acréscimo do adjetivo "positivo" ao termo "direito" torna-
se um pleonasmo. Positivismo é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão
o positivo (BOBBIO, 2006, p. 26).
Antes da formação do Estado moderno, não havia vinculação exclusiva na lei para as
soluções das controvérsias, antes pelo contrário, existia uma certa liberdade de escolha na
determinação da norma a aplicar, deduzindo regras dos costumes, da equidade e da razão
(Direito Natural).
Na formação do Estado moderno há um imposição para aplicar as normas e penas
impostas pelo Estado, único criador do direito. Esse processo de monopolização da produção
jurídica por parte dos Estados modernos tem precedentes na compilação de Justiniano.
Todo o complexo de normas que regiam o direito romano foi condensado por
determinação de Justiniano, no Corpus juris civilis, transmudando de direito de origem social
para direito de Estado que encontra fundamento na vontade do príncipe.
56
Sociedade pluralista, pois cada grupo social tinha seu próprio direito: havia o direito feudal, o direito das
corporações, o direito das comunas ou civitates (dito "direito estatutário", porque os atos que o constituíam
chamavam-se "estatutos"), o direito dos "reinos". Todos esses direitos eram, em geral, subordinados ao romano,
assim como todas as organizações sociais eram subordinadas ao Império (BOBBIO, 2006, p. 31).
62
Na Idade Média, o direito romano difundiu-se com o nome de "direito comum" (jus
commune), contrapondo-se ao direito próprio das diversas instituições, característica da
sociedade pluralista.
No conflito entre o jus commune e o jus proprium, aos poucos vai se firmando e
prevalecendo o primeiro (jus commune), pois emana da vontade do Imperador. Com a
constante prática, o direito se reduz ao jus commune, produto do Estado. Percebe-se que a
monopolização jurídica tem estreita relação com o Estado absoluto.
O termo final do contraste entre direito comum e direito estatal é representado pelas
codificações (final do século XVIII e início do século XIX ), através das quais o direito
comum foi absorvido totalmente pelo direito estatal. Da codificação começa a história do
positivismo jurídico verdadeira e propriamente dito (BOBBIO, 2006, p. 32).
A filosofia jusnaturalista passou por severas críticas notadamente quanto a seus mitos
estado de natureza, lei natural, contrato social, todos ligados ao pensamento racionalista do
século XVIII. Mas foi o movimento chamado historicismo que conduziu o Direito Natural à
margem da concepção jurídica.
O historicismo teve sua origem com a escola histórica do direito, surgindo na
Alemanha no final do século XVIII e começo do século XIX, representando em Savigny seu
maior expoente.
Por esse movimento, o Direito Natural não é mais entendido como um sistema
normativo de regras e sim, tão somente, um conjunto de considerações filosóficas sobre o
próprio Direito Positivo, vale dizer, uma filosofia do Direito Positivo.
Bobbio (2006, p. 49) muito bem observou algumas características fundamentais do
historicismo:
A ideologia jurídica dos historicistas resulta do princípio de que o direito não é uma
ideia da razão, mas sim produto da história, pois nasce e se desenvolve na História (fato
histórico cultural) com variações no tempo. Nasce do sentimento de justiça, não obstante
cultue um pessimismo antropológico, desconfiando de novas instituições jurídicas.
Por esses aspectos, o historicismo é considerado precursor do positivismo jurídico
tão somente no sentido de que teceu duras críticas à escola jusnaturalista de um direito
universal e imutável.
Mas foram as grandes codificações ocorridas entre o fim do século XVIII e o início
do século XIX que fixaram marco histórico na ascensão do Positivismo. Paradoxalmente,
essas codificações foram resultado do movimento iluminista no final do século XVIII, que
buscava a "positivação do Direito Natural", produto da razão humana.
Os iluministas consideram necessário substituir as várias normas consuetudinárias
(herança da Idade das trevas) por um direito constituído por um conjunto sistemático de
normas jurídicas derivadas da razão humana reduzidas em leis. Assim, nota-se que o
movimento da codificação que ascendeu o Positivismo teve origem no jusnaturalismo.
Das codificações, duas tiveram grande influência na nossa cultura: a justiniana e a
napoleônica. Por Justiniano foi fundada a elaboração do direito comum romano na Idade
Média e na Moderna; já o Código de Napoleão influenciou sobremaneira nas codificações
posteriores. É que na legislação napoleônica temos um código sistematizado e não somente
um amontoado de leis.
O movimento pela codificação, na França, tem como principal referência doutrinária
a Escola de Exegese, assim como bem asseverou Bittar e Almeida (2011, p. 383)
64
A escola de exegese deve ser nome à técnica adotada pelos seus primeiros
expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão, técnica que
consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de
distribuição de matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal
tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código.
57
Hans Kelsen nasceu em Praga e com três anos se mudou para Viena. Estudou direito na Universidade de
Viena. Judeu, Hans Kelsen foi perseguido pelo nazismo e emigrou para os Estados Unidos, onde fez magistério
na Universidade de Berkeley, vindo a falecer nesta mesma cidade. Publicou cerca de quatrocentos livros e
artigos, com destaque para a Teoria Pura do Direito (''REINE RECHTSLEHRE'') pela difusão e influência
alcançada.
65
Percebe-se que, até o final do século XVIII, o Direito poderia ser definido sob dois
aspectos: o Direito Natural e o Direito Civil (ou Positivo). A diferenciação estava no grau do
sentido para cada instituto, ou melhor, os planos de graduação relacional entendendo o Direito
Natural como paradigma do Direito Positivo.
O que se quer dizer é que para os oitocentistas racionais, Direito Natural e Direito
Positivo são postos em planos diferentes de graduação no sentido de que uma espécie (Direito
Natural) é considerada superior a outra (Direito Positivo).
Essa relação de graduação não existiu na época clássica, notadamente em Aristóteles.
De fato, o Direito Natural era tido como "direito comum" (koinós) e o Positivo como direito
de cada cidade. No conflito de ambos os direitos, prevalecia o Direito Positivo.
É importante assinalar que, conforme bem observou Noberto Bobbio, essa distinção
já era encontrada em Aristóteles e registrada no capítulo VII, do livro V, de sua Ética a
Nicômaco:
Da justiça civil uma parte é origem natural, outra se funda em a lei. Natural é
aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e não depende de o
fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao
contrário, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim
como é, uma vez sancionada (Bobbio, 2006, 16).
Para Aristóteles, o Direito Natural não resultava de uma ciência particular e positiva,
derivava da prudência, uma disposição sui generis, entre a ciência e a arte, buscando a justiça,
virtude moral própria do mundo jurídico. Não pretendeu situar-se acima e paralelamente ao
Direito Positivo, conforme anteriormente observado.
Bobbio (2006, p. 17) identificou dois critérios pelos quais Aristóteles distingue o
Direito Natural do Positivo:
b) o Direito Natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de
parecerem boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja
bondade é objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos
medievais). O Direito Positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações
que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um
modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto
e necessário) que sejam desempenhadas do modo prescrito em lei.
58
Bíblia Sagrada, Romanos, 2:14-16 (BÍBLIA SAGRADA, 2002).
68
Extrai-se dessa concepção que o Direito Natural, para os pensadores da Idade Média,
era superior ao Direito Positivo. Todavia essa distinção de graduação não importava distinção
de qualificação. Direito Natural e Direito Positivo são "direito" na mesma acepção do termo.
Esse pensamento domina toda a geração jusnaturalista oitocentista.
Percebe-se que a importância decisiva para a doutrina do Direito Natural é
estabelecer qual sua relação com o Direito Positivo. Parte-se do pressuposto de ser Direito
Natural um sistema de normas que, diferentemente do Direito Positivo, não são postas por ato
humano, antes são disposições naturais quer seja resultante da natureza, de Deus, da razão ou
mesmo de um princípio objetivo semelhante. São normas tidas como boas, corretas e justas.
Nesse particular, Kelsen59 estabelece uma diferença entre Direito Natural e Direito
Positivo pelo fundamento de validez ou - o que é o mesmo- pelo princípio de validez que, no
caso do Direito Natural, é um material, no caso do Direito Positivo, um formal.
59
Extraído do artigo "Direito Natural e Direito Positivo. Uma investigação de sua relação recíproca", que
encontra-se publicado na Internationale Zeitscherift fur Theorie des Rechts. Jahrg. II, Brunn: Rudolf M. Rohrer,
1927-1928, S. 71 ff. Título no original: Naturrecht und positives Recht. Eine Untersuchung ihres gegenseitigen
Verhaltnisses.
69
São Direito Natural e Direito Positivo dois sistemas de normas distintos? Para o
mestre austríaco, isso poderia parecer contraditório e duvidoso considerando o fato de que
ambas as ordens (Direito Natural e Direito Positivo) dizem respeito ao mesmo objeto, vale
dizer, a conduta recíproca das pessoas.
Todavia, para Kelsen em Heck (2010, p. 26), o modo no qual Direito Natural e
Direito Positivo regulam esse seu objeto é essencialmente diferente. E explica:
Na mesma medida que a teoria do Direito Natural deixa sua ordem 'natural'
desenvolver-se não segundo um princípio estático, mas segundo um
dinâmico, que ela deixa penetrar e tem de deixar penetrar no Direito Natural
o princípio da delegação, contanto que ela seja atenta à realização, à
aplicação do Direito Natural às relações humanas fáticas, transforma-se o
Direito Natural, de repente, de certo modo sob suas mãos, em um Direito
Positivo (HECK, 2010, p. 27).
Disso decorre que são, de fato, dois sistemas de normas distintos, em sua validez
independentes um do outro porque se baseiam em duas normas fundamentais diferenciadas,
que dizem respeito ao mesmo objeto (regulação das condutas recíprocas entre pessoas). Como
têm o mesmo âmbito de validez, então não está excluída a possibilidade de uma contradição
lógica insolúvel entre ambos.
Existindo, pois, dois sistemas de normas distintos, então não podem ser aceitos
ambos os sistemas, devendo um ser preterido em favor de outro, posto que somente um
sistema poderá ser aceito como válido (HECK, 2010, p. 28).
Essa assertiva decorre da contradição do sistema. Imaginemos uma casuística em que
a norma de um sistema exige de uma determinada pessoa, sob determinadas condições, que se
comporte de modo "a". A norma do outro sistema estatui, sob as mesmas condições, para a
mesma pessoa, a conduta "não-a".
Essa contradição evidencia-se ao afirmar que a norma "a" (como norma moral) e a
norma "não-a" (como norma jurídica) valem simultaneamente. Ao se considerar ambas as
normas do mesmo sistema de conhecimento, haverá uma contradição lógica como aquela de
lei da física que constata a influência de duas forças dirigidas em sentido contrário sobre um
determinado corpo.
Observa-se que, para Kelsen, não há contradição alguma afirmar a validade da norma
"a" (como norma jurídica), embora exista o fato de ser em que pessoas acreditam, ideiam-se,
querem que "não-a" deve ser (como norma moral), sem, contudo, emprestar-lhe validade.
Reconheceu-se, assim, Direito Natural e Positivo como dois sistemas de normas distintos um
do outro segundo seu fundamento de validez supremo, podendo somente ou o Direito Natural
ou o Direito Positivo ser afirmado como sistemas de normas válidas (HECK, 2010, p. 30).
Kelsen foi categórico ao afirmar que
Essa forma exclusiva de validade última de normas leva à dedução lógica, à validez
de uma ordem positiva, então não pode, simultaneamente, ser aceita uma ordem "natural"
dentro do mesmo âmbito de validez. Por outros termos, ao lado do Direito Positivo, um
Direito Natural é impossível logicamente.
Mesmo as ciências sociais acabaram por adotar essa metodologia, tanto que o
Positivismo assume uma atitude científica frente ao Direito, estando o direito a partir do que
ele é, e não como deveria ser60.
60
Ser e dever-ser diferem entre si assim como as ciências sociais (humanas) diferem das ciências naturais
(físico-matemáticas). Essa diferenciação repousa na distinção provocada pelos termos causalidade e imputação e
suas consequências lógico-teóricas. Condição e consequência estão ligadas não segundo o princípio da
causalidade, mas segundo o princípio da imputação. De fato, condição e consequência ligam-se pela imputação
de uma sanção a um comportamento, na esfera do Direito; nesse sentido, a sanção pode ser, como pode não ser
73
aplicada. Causa e efeito, estudadas pelas ciências naturais, comportam-se com regularidade, e, então, o que é
causa provoca necessariamente o efeito respectivo (BITTAR; ALMEIDA, 2011, p. 390).
61
A distinção entre ser e dever-ser é um dado imediato da nossa consciência, afirma Kelsen. E prossegue
dizendo que ninguém pode negar que o enunciado: tal como é ─ ou seja, o enunciado através do qual
descrevemos um ser fático ─ se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser ─ como o qual
descrevemos uma norma ─ e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da
circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja (KELSEN, 1998, p. 6).
62
Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que, quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser,
mesmo quando B, porventura, efetivamente não seja. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na
lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma
estabelecida pela autoridade jurídica ─ através de um ato de vontade, portanto, enquanto que a ligação de causa e
efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie (KELSEN, 1998, p.
87).
74
Assim, para Kelsen, o pensar no Direito não significar pensar ético, ou seja, as
normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito, deixando para o estudo da Ética a
justiça das normas. Discutir sobre Justiça não é discutir sobre Direito, e vice-versa63.
Nesses termos, validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valores
diversos, estando em lugares distintos sem comunicação. Conclui-se que uma norma pode ser
válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; e inválida e injusta.
Um dos primeiros pensadores dessa definição neutra do Direito é Marsílio de Pádua,
pensador medieval citado por Bobbio (2011, p. 140), que destinge os vários significados do
termo "lei":
A lei pode [...] ser considerada de dois modos. No primeiro, pode ser
considerada em si, enquanto mostra somente o que é justo ou o que é injusto,
vantajoso ou nocivo... Pode-se, em seguida, considerar a lei ainda de um
outro modo, segundo o qual pela sua observância é dado um preceito coativo
ligado a uma punição ou a uma recompensa serem atribuídas neste mundo,
ou segundo seja derivada de um tal preceito; é somente quando é
considerada deste último modo é chamada de "lei" e o é propriamente.
63
Justiça e injustiça nada têm a ver com a validade de determinado Direito Positivo; é essa a nota distintiva entre
Direito e Ética. A validade de uma ordem jurídica não vem contrariada pelo simples fato de que o Direito se
tenha construído contra a mora. O que é válido prepondera sobre o que é justo, pois o que é válido está de acordo
com os modos de existência normativa de dado ordenamento jurídico; o que é justo, por sua vez, está no plano
das especulações, dos valores. E aceitar que o justo prepondera com relação ao válido é trocar o certum pelo
dubium. O que pode determinar o princípio de validade de todo um ordenamento é a sua norma fundamental,
pressuposto lógico-técnico do sistema, e não qualquer norma de justiça.
76
A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar
desse efeito e se combina com esse.
Tudo aquilo que é injusto é um impedimento à liberdade, enquanto esta é
submetida a leis universais, e a própria resistência é um obstáculo que se faz
à liberdade.
Por conseguinte, quando um certo uso da própria liberdade é impedimento à
liberdade, segundo leis universais (quer dizer, é injusto), então a resistência
oposta a tal uso, na medida em que serve para impedir um obstáculo feito à
liberdade, coincide com a própria liberdade segundo as leis universais, o que
é justo. Daí que ao direito se une, de acordo com o princípio da contradição,
a faculdade de obrigar quem o ofende.
Em outras palavras, para Kant, um direito estrito pode também ser representado
como a possibilidade de um uso inteiramente recíproco de coerção que é compatível com a
liberdade de todos de acordo com leis universais.
64
Para Thomasius, a função do honestum é evitar os vícios e favorecer a perfeição pessoal. Funda-se na
máxima: faz para si mesmo o que queres que os outros façam para si mesmo. O decorum visa assegurar aquilo
que hoje chamamos de solidariedade humana e social, sendo uma categoria intermediária entre o justum e o
honestum. Traduz-se isso na expressão: Não faz aos outros o que não queres que os outros façam a ti.
78
E acrescenta:
[...] se meu ato ilícito representa um abuso da minha liberdade, com o qual
eu invado a esfera da liberdade do outro; com o propósito de reconstruir em
favor do outro a sua esfera de liberdade por mim injustamente invadida, o
único remédio é usar a coerção, de modo a fazer-me desistir do meu abuso.
Diria Bobbio (2006, p. 152) que o significado dessa preposição kantiana é que a
coação é uma não-liberdade (devida ao Estado), que repele minha não-liberdade. Esta é,
portanto, uma negação da negação e, em consequência, uma afirmação (e precisamente é a
reafirmação da liberdade do terceiro lesado pelo meu ilícito).
A doutrina da natureza coercitiva do direito ganha outras vozes no século XIX,
notadamente por Rudolf Von Jhering. Para Jhering, a coação define o mundo do Direito e
adquire existência pelo Estado. Direito, coação e Estado são, portanto, três elementos
indissoluvelmente ligados.
Percebe-se que, para esse autor, o Estado é tido como uma organização definitiva de
uso do poder para as finalidades humanas65, o Estado como organização social detentora do
poder coativo.
Essa teoria clássica ou tradicional66 da coação, em que coação é o meio para se fazer
valer as normas jurídicas, ganhou novos contornos. Modernamente se estabeleceu uma teoria
em que a coação é o objeto das normas jurídicas, isto é, o direito é um conjunto de normas
que regulam o uso da força coativa.
Bem observou Bobbio (2006, p. 158) que, segundo a moderna formulação da teoria
da coação, o Direito é, por conseguinte, um conjunto de regras que têm por objeto a
regulamentação do exercício da força em uma sociedade. Para tanto, o autor aprofundou sua
lição fazendo uma análise na passagem do estado de natureza ao estado civil:
Para Kelsen (1998, p. 37), dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as
suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica. E acrescenta que:
67
Chama-se de ordenamento jurídico simples aquele no qual existe uma única fonte de direito e complexo aquele
no qual existem várias fontes. Historicamente os ordenamentos jurídicos são complexos. Hierarquizados são os
ordenamentos jurídicos estruturados, em que as fontes não são colocadas no mesmo plano. Paritários são aqueles
colocados no mesmo plano.
68
Bobbio lembra que um exemplo quase não discutido de fonte reconhecida é representado pelo costume, apesar
de haver vozes dissonantes.
80
69
Exemplo de fonte delegada são os regulamentos, ou seja, normas jurídicas emanadas do poder executivo para
detalhar normas contidas em uma lei, com base na autorização do próprio Poder Legislativo.
81
algum fim externo a ela - e que deve ser querida por todo ser racional
(apodítico).
Bem asseverou Bobbio (2006, p. 195) que, por essa teoria do imperativismo jurídico,
ocorreu uma evolução na qual se pode distinguir duas fases, qualificáveis respectivamente
como imperativismo ingênuo e imperativismo crítico. Ministrou o referido autor:
A norma que representa o fundamento de validade de outra norma é tida por norma
superior. Estabelecendo esse processo de regressão, não seria possível terminar, já que
estaríamos sempre diante de uma norma que seria fundamento de validade de outra. Assim,
em termos hipotéticos, deve-se terminar em uma norma que se pressupõe ser o último
84
fundamento de validade de todas as outras. Essa norma, portanto, não é posta pelo
ordenamento jurídico, e sim pressuposta, chamada por Kelsen de norma fundamental.
É que o conjunto de norma forma a ordem jurídica, assim entendido um conjunto
hierárquico de normas legais. E toda ordem jurídica requer, para sua validade, um regresso ad
infinitum por meio das normas, até a norma fundamental que é pressuposta (e não posta,
positivada).
Na lição de Bittar e Almeida (2011, p. 392), inexistente a norma fundamental,
devem-se aceitar pressupostos metafísicos para a fundamentação da ordem jurídica (Deus,
ordem universal, contrato social, Direito Natural). Trata-se de uma ficção de pensamento, na
busca de determinar um começo e um fim.
Assim ministra Kelsen (1998, p. 217):
A validade desta (norma jurídica) não pode ser negada pelo fato de o seu
conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica
cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão.
A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que,
por o seu conteúdo ser havido como imediatamente vidente, seja pressuposta
como a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas - como o
particular do geral - normas de conduta humana através de uma operação
lógica.
85
Tanto assim que o pensamento positivista foi considerado um dos fundamentos para
a proliferação de Estados totalitários do século XX, bem como justificativa para a prática dos
horrores do nazismo.
As críticas têm seu fundamento lógico, porque o pensamento positivista está fundado
no dever incondicional de obedecer à lei enquanto tal. Esse pensamento não se insere no
plano do conhecimento que define o direito como tal (teoria do direito), mas num plano ético
do direito, posto que representa como ele dever ser (ideologia do direito).
Não se negam as conquistas necessárias e úteis do Positivismo, notadamente em
estabelecer a formação do Estado moderno fundado na obediência às leis como fonte primária
do direito. Ocorre que, para a corrente positivista, a obediência incondicional à lei não é
apenas uma obrigação jurídica, mas também uma obrigação moral.
Em outros termos, o homem deve obedecer à lei não por motivos externos, mas por
motivos internos de convicção ideológica. É assim entendido como o dever de consciência de
obedecer às leis.
Essa forma de pensar o direito, justificando os motivos internos de obediência,
sempre foi alternada na história do direito a depender do momento histórico e político da
humanidade. Em última instância, a pergunta chave é: "o que é justiça?".
Entre os sofistas, a Justiça é a expressão da vontade do mais forte, que procura o seu
próprio proveito. No pensamento de Aristóteles, a lei não tem nenhuma força para ser
obedecida, a não ser pelo costume, e este não se forma com o transcurso de longo tempo, pelo
qual a facilidade para mudar as leis existentes por outras novas é debilitar-se o poder da lei.
Já no pensamento de Santo Agostinho, a lei humana deve regular o comportamento
entre os seres humanos, porém deve obediência à lei natural que corresponde à moralidade
registrada na alma humana, ou seja, a lei humana encontra seu critério de validade na lei
natural que provém do coração de Deus. Esta é a concepção sagrada da autoridade.
Para Hobbes não existe um critério objetivo para distinguir o justo do injusto, pois o
homem sai do estado de natureza através de um acordo, ou melhor, precisamente atribuir a um
indivíduo (soberano) o poder de estabelecer o que justo e o que é injusto. Justo é o que o
88
soberano comanda; injusto é o que ele proíbe. O limite da obediência está em quando se nega
a validade do contrato social, ou seja, quando as leis positivas se voltam contra o conteúdo do
contrato social.
Em Kant, o Direito Positivo tem fundamento de validade último não em si mesmo ou
no arbítrio do legislador, mas na razão ou, em última palavra, na liberdade, o único Direito
Natural.
Tem-se, portanto, que dentro de uma perspectiva histórica, há diferentes justificativas
para a obediência à lei. Essas justificativas são de ordem interna, vale dizer, referem-se ao
campo da moral. O homem deve obedecer às leis não só por motivos internos, porque é
constrangido a obedecer, mas porque está convencido de que tal obediência é uma coisa
intrinsecamente boa: obediência não por constrição, mas por convicção.
Em outras palavras, no pensamento tradicional, havia o dever de obedecer às leis
enquanto justas; já no Positivismo há um dever de obedecer às leis enquanto tais.
Nesse particular, ministrou Bobbio (2006, p. 227):
Mas a História nos mostra que há duas versões do Positivismo ético: uma mais
moderada e outra mais extremada. A estudada acima pode-se dizer que pertence à ala mais
extremada da positividade, haja vista que o direito tem um valor enquanto tal,
independentemente de seu conteúdo: um valor final.
Para os moderados, o Positivismo ético abraça um valor instrumental, o direito é um
meio que serve para realizar um determinado bem: a ordem da sociedade. Se for desejado tal
bem, deve-se obedecer ao direito.
Em última análise, para Bobbio (2006, p. 233-235), há três aspectos fundamentais do
Positivismo jurídico distintos, ou, em outros termos, em três planos diversos a ser estudado
com acepções distintas uma da outra: a) como método para o estudo do direito; b) como teoria
do direito; e c) como ideologia do direito.
E observa com propriedade que os críticos da teoria positivista adotam um aspecto
ou outro para formular suas contrarrazões. E segue ministrando:
89
O Positivismo é marcado pelo excessivo emprego às leis postas, não havendo quase
espaço para especulações abstratas e metafísicas sobre Direito Natural. Nesses termos, a
ciência jurídica se converte definitivamente em ciência positivista resultando na principal,
senão única, via de manifestação do direito.
Não se desconhece a grande contribuição que a teoria positivismo deu para o estudo
do Direito enquanto ciência. E apesar da grandeza de seus pensadores e idealizadores, nota-se
que nunca foi possível calar, na melhor expressão de Mendonça (2012, p. 61), aqueles que,
em sentido contrário, proclamam a existência e a possibilidade do reconhecimento de um
Direito imposto pela natureza.
70
Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a
decadência do Positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na
Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente
e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei
e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um
ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um estrutura meramente formal, uma embalagem
para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO, 2012).
71
Ainda sobre o tema, Barroso afirma que “a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do
Positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua
função social e sua interpretação”. É nesse sentido, o estudo na sequência, o direito como função promocional
da pessoa humana.
72
Nesse particular, Bittar e Almeida entram em rota de colisão com o pensamento kelseniano de não vinculação
entre direito e moral, estabelecendo uma teoria pura do direito.
92
73
Quando se defende a tese da separação (positivismo jurídico), é possível sustentar, pelo menos, duas versões
diferentes da mesma tese: uma versão forte, a de que a Moral está necessariamente excluída do conceito de
Direito; e uma versão fraca, a de que a Moral, apesar de não estar necessariamente excluída, não está conectada
de forma conceitualmente necessária, sendo tal conexão uma questão contingente, a depender daquilo que vem
enunciado no Direito Positivo (SOUSA, 2011, p. 299).
94
74
A adição "primariamente" tem por função tornar claro que, em regra, uma orientação representa apenas o
ponto principal, o que significa que a outra não é totalmente excluída (ALEXY, 2011, p. 15).
75
O aspecto externo de uma norma consiste na regularidade de sua observância e/ou sanção de sua não
observância, linha principal das definições sociológicas de direito. Um ordenamento se chamará Direito quando
for garantido pela possibilidade de coação, dirigida para a obtenção forçada de observância. O aspecto interno,
a seu turno, consiste na motivação - independentemente de como ela é formada - de sua observância e/ou
aplicação (ALEXY, 2011, p. 18-19). O Direito é tudo o que as pessoas reconhecem como norma e regra. Quanto
aos conceitos de direito orientados para a normatização, residem, sobretudo, no âmbito da teoria analítica do
direito que procura estabelecer uma análise lógica ou conceitual da prática jurídica.
95
O que quer dizer Alexy é que se se demonstrar que existe uma conexão
conceitualmente necessária (ou pelos menos ser impossível sustentar a inexistência de uma
conexão conceitualmente necessária), tem-se a possibilidade de sustentar versões não-
positivistas76, pois para tanto seria apenas necessário defender a tese de que essa conexão
entre direito e moral é possível.
A tese afirma, primeiramente, que existe uma conexão conceitualmente necessária
entre direito e moral e, em segundo lugar, que existem razões normativas para a inclusão de
elementos morais no conceito de direito (ALEXY, 2011, p. 27).
Para Alexy, a conexão conceitualmente necessária entre o Direito e a Moral de dá
através do argumento da correção77, e reforça essa tese dispondo de um argumento que marca
a necessidade normativa78 da conexão entre Direito e Moral, o argumento da injustiça.
Respondendo a pergunta sobre qual conceito de direito é correto, Alexy (2011, p. 15)
assim lecionou:
79
Esse jusfilósofo defende que a validade do direito não é apenas composta da validade social e da validade
jurídica em sentido estrito, pois o aspecto moral (validade moral) também compõe esse critério.
80
Como sistema de procedimentos, o sistema jurídico é um sistema de ações baseadas em regras e direcionadas
por regras, por meio das quais as normas são promulgadas, fundamentadas, interpretadas, aplicadas e impostas.
Como sistema normativo, o sistema jurídico é um sistema de resultados ou de produtos de procedimentos que, de
alguma maneira, criam normas (ALEXY, 2011, p. 29).
81
O juiz está no centro da perspectiva do participante. Mesmo quando juristas, advogados ou cidadãos
interessados no sistema jurídico apresentam seus argumentos, eles se referem, em última instância, a como um
juiz deveria se pretendesse decidir corretamente (ALEXY, 2011, p. 30).
97
O ponto de vista do participante somente se limita a questionar sobre como as decisões são
realmente tomadas nesse sistema jurídico (dimensão formal do conceito de direito). O
contexto do participante é definido pela questão ‘é a resposta jurídica correta?' O do
observador pela questão ‘como as decisões jurídicas são realmente tomadas?’
Para Sousa (2011, p. 297), ao se compreenderem os argumentos a partir do ponto de
vista do observador, é possível admitir a tese da separação sem maiores problemas. Alexy
(2011, p. 36) afirma, por exemplo, que “[...] desde o ponto de vista do observador, a inclusão
de elementos morais no conceito de Direito não é, em nenhum sentido, conceitualmente
necessária [...]”, e que “[...] desde a perspectiva de um observador [...] a tese positivista da
separação é correta”. Quando se toma o sistema jurídico a partir do ponto de vista do
participante, a situação é bastante diferente. Alexy (2011, p. 37) enuncia que, desde a
perspectiva do participante, “[...] a tese da separação não é adequada, e a tese da conexão é
correta”.
E arremata Alexy (2011, p. 36):
82
Distinção possível relativa à tese da conexão é a seguinte: uma versão forte, que sustenta a existência de uma
conexão necessária entre o Direito e uma Moral correta ou adequada; e uma versão fraca, que sustenta a
existência de uma conexão necessária entre o Direito e alguma Moral (SOUSA, 2011, p. 299).
98
83
Para Alexy, sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão não são
sistemas jurídicos.
99
84
A Fórmula Radbruch (em alemão: Radbruchsche Formel ) é uma teoria da lei que foi formulada pela primeira
vez em um ensaio de 1946, pelo professor de Direito e político alemão Gustav Radbruch . Segundo a teoria, um
juiz que se depara com um conflito entre uma lei e que ele percebe como justo, tem que decidir contra a
aplicação da lei, se - e somente se - o conceito legal por trás da lei em questão parece tanto "insuportavelmente
injusta" ou em "desrespeito deliberado" da igualdade humana perante a lei.
85
Em geral, dentro desse grupo se pode encontrar: (i) a crítica mais radical de que não é somente difícil
identificar os limites entre a injustiça simpliciter e a injustiça extrema, na medida em que nenhuma noção de
justiça pode ser racionalmente justificada ou objetivamente conhecida (ii) a crítica menos radical de que esse
argumento da injustiça (simpliciter) põe em xeque a certeza jurídica, uma vez que as normas singulares, em
geral, perderiam totalmente sua força prática, ainda que fosse possível, partindo de uma perspectiva ou de outra,
oferecer alguma justificação moral e racionalmente possível para a injustiça dessas normas; ou (iii) a crítica
menos radical de que um conceito não-positivista de Direito que tenha como elemento constitutivo o argumento
da injustiça corre o risco de legitimar acriticamente a não-aplicação do Direito legitimamente estatuído, o
argumento da efetividade (SOUSA, 2011, p. 308).
86
Apoiada na fórmula de Radbruch, sustenta que uma norma individual só perde seu caráter jurídico quando é
extremamente injusta , e que o sistema global entrará em colapso quando muitas normas individuais tiverem seu
caráter jurídico contestado. A isso chama de tese do colapso.
87
A expressão open texture foi bem delineada por Hart. No vernáculo, open texture significa ‘’textura aberta’’
ou "estrutura aberta". Essa expressão entrou para o campo da teoria do direito como uma forma de explicar a
possibilidade de imprecisão presente no conteúdo das leis, notadamente as normas-regras, pois descrevem
100
Pelo pensamento positivista, no campo da textura aberta, não se pode decidir com
base no Direito Positivo.88 O argumento dos princípios diz que o juiz também está legalmente
vinculado ao âmbito da abertura do Direito Positivo, ou seja, os positivistas em geral
defendem a tese de que o aplicador do direito pode agir de maneira discricionária com base
em argumentos fora do direito.
E a base do argumento dos princípios é constituída pela distinção entre regras e
princípios. E explica Alexy (2011, p. 85):
Explicando a aplicação dos princípios, Alexy (2011, p. 86) afirma que todo
ordenamento jurídico com um grau mínimo de desenvolvimento possui princípios jurídicos
(tese da incorporação), notadamente os sistemas jurídicos completamente desenvolvidos.
Os princípios jurídicos incorporam conteúdos morais corretos em virtude da
formulação da pretensão de correção e justiça do ordenamento (tese da correção), ou seja, os
conteúdos morais corretos são incluídos no ordenamento jurídico necessariamente por meio
dos princípios, que são substancialmente dotados de razões (conteúdos morais) e possuem
formalmente característica jurídica.
E arremata afirmando o jusfilósofo alemão que, como os princípios morais, por seu
conteúdo, estão incorporados ao direito, o juiz que neles se apoia decide com base em
critérios jurídicos. Querendo-se recorrer à dicotomia ambígua entre forma e conteúdo, pode-se
dizer que, quanto ao conteúdo, ele decide com base em razões morais, mas, quanto à forma,
decide com base em razões jurídicas (ALEXY, 2011, p. 92).
situações concretas sem a especificação de muitos detalhes. Posto que de conteúdo genérico, não raro há
aparentes contradições ou dúvidas sobre seu conteúdo.
88
Não se pode decidir com base no Direito Positivo, pois, se isso fosse possível, não estaria no campo de
abertura. Como somente Direito Positivo é direito, o juiz deve decidir no campo de abertura, ou seja, em todos os
casos duvidosos, com a ajuda de critérios não jurídicos ou extrajurídicos (ALEXY, 2011, p. 84).
101
1) formula uma pretensão à correção, vale dizer, sistemas jurídicos que não
formulam explícita ou implicitamente uma pretensão à correção não são
sistemas jurídicos;
3) amplia o alcance daquilo que integra o direito que acontece por meio da
incorporação do procedimento de aplicação do direito ao conceito de direito.
No âmbito de abertura do direito, tudo aquilo em que se apoia e/ou deve
apoiar-se quem aplica o direito, para satisfazer a pretensão à correção,
integra o direito.
Assim, os princípios ─ ainda que não possam ser identificados como
princípios jurídicos ─ e outros argumentos normativos que fundamentam a
decisão tornam-se componentes do direito.
89
Em determinadas hipóteses, taxativamente prevista em lei, é possível a revisão da decisão transitada em
julgado, desconsiderando a “coisa julgada” - ou como alguns preferem, há uma “relativização” da coisa julgada.
Essas hipóteses estão prevista na ação rescisória do artigo 485 do Código de Processo Civil; ação declaratória -
querela nullitatis – do artigo 486 do mesmo diploma legal; revisão criminal – artigo 621 do Código de Processo
Penal, e mais recentemente a impugnação ao cumprimento de sentença (artigo 475-L, II e § primeiro do Código
de Processo Civil) e nos embargos à execução ( art. 741, parágrafo único, do mesmo estatuto processual).
103
mas que decorre da irradiação valorativa dos princípios constitucionais bem como estabelecer
um conceito de direito ético.
Essa decisão rejeitou o positivismo legal estrito, prestigiando uma formulação que
mantém relação com o direito ético. Embora lei e direito coincidam em termos, direito não se
esgota na lei posta, sendo necessária uma investigação sobre a existência de um corretivo
moral e ético em relação à lei escrita, tal como descrito por Alexy.
Uma nova fase se estabeleceu com o constitucionalismo que elevou os direitos e as
garantias básicas do homem ao nível superior, tendo como primado a igualdade, a liberdade e
a fraternidade.
Em resumo, no julgado apresentado foram colhidos argumentos não positivistas, em
que a disposição legal foi vencida porque infringiu um direito suprapositivo. Não se limitou
em atestar o descompasso entre os princípios constitucionalmente previstos, mas adentrou na
questão maior sobre um conceito ético do direito.
Amoldando à tese de Alexy, afastou-se uma injustiça do sistema jurídico
(impossibilidade de rescisão da coisa julgada) para efetuar correção no sistema jurídico
através do princípio da dignidade da pessoa humana.
90
Javier Hervada nasceu em Barcelona em 1934, doutorou-se em Direito pela Universidade de Madri (1958) e
em Direito canônico pela Universidade de Navarra (1962); em 2002, foi investido Doutor Honorium Causa pela
Università della Santa Croce; até 1999 exerceu as funções de Catedrático de Direito Canônico da Universidade
de Saragoça e de Professor Ordinário de Direito Natural e Filosofia do Direito da Universidade de Navarra. E
proferiu numerosas conferências por diversas universidades da Europa e da América Latina. É um defensor de
um sistema de Filosofia do direito com a perspectiva do Realismo jurídico clássico, afastando-se em definitivo
do Positivismo normativista (que classifica como sendo uma "etapa mórbida da ciência jurídica em fase de
superação").
105
Tanto assim que em sua obra O que é o direito?A moderna resposta do realismo
jurídico. Uma introdução ao direito, o autor se afasta do positivismo jurídico e disseca as
premissas básicas da doutrina do realismo jurídico clássico91, fulcradas em Aristóteles e São
Tomás de Aquino, pragmatizadas pelos juristas romanos.
A partir da definição de justiça empregada pelos juristas romanos como dar a cada
um o que é seu ou também dar a cada um seu direito, Hervada vai fazer uma severa crítica ao
Positivismo, afirmando que, por ser tão simples essa definição, para alguns dos nossos
contemporâneos parece pouco prática, pouco realista ou vazia de conteúdo.
E acrescenta o autor que, para entender essa definição, é necessário estar em posse de
um segredo:
Essa crítica contundente ao Positivismo vai ser uma marca fundamental ao longo do
seu pensamento. Não que negue validade ao Direito Positivo, mas que "se o Direito Natural
for esquecido ou rejeitado, o que a justiça representa em relação a ele torna-se vazio ou
transforma-se em ideais pouco concretos e relativos; a fórmula da justiça terá perdido sua
praticidade e seu realismo (HERVADA, 2006, p. 25).
Uma vez estabelecido em que consiste a justiça, a virtude de dar a cada um o que é
seu, Hervada afirma que a justiça precede ao direito, não o antecede, é posterior a ele, no
sentido de que age em relação ao direito existente.
E assinala que, se a justiça é a virtude de dar a cada um o que é seu, o seu direito,
para que se possa agir é preciso que exista o seu de alguém, seu direito; do contrário, como
dar o seu, seu direito? Conclui que, onde não há um direito existente, a justiça não é
invocável.
91
Para o Realismo jurídico clássico, o direito acompanha a evolução da sociedade, razão pela qual traz
em si a marca das mudanças histórias da humanidade, considerando as diversas formas que o homem tem de
conceber o mundo em determinada época, organização social, costumes e tradições. Logo, o modo de pensar o
direito está estritamente relacionado com a doutrina filosófica seguida por uma sociedade. Decorre dessa
assertiva que, com a substituição da Filosofia clássica pela Filosofia moderna, o direito passa a ser visto de modo
diferente.
106
92
Para Hervada indiferente quer dizer que, em síntese, no que se refere à justiça e à moral, dá na mesma adotar
uma solução ou outra, porque nenhuma delas lese a justiça ou qualquer outra esfera do moralidade. E
exemplifica: que os escoceses usem saia poderá ser mais ou menos chocante, mas é indiferente. Roubar dinheiro
não é indiferente.
107
[...] tudo que o homem faz ou inventa requer uma capacidade natural, o que
os filósofos chama de potência. Para ver, o homem precisa ter olhos. Com
base nesse fato natural, o homem pode edificar uma série de fatos culturais:
escrita, pintura, escultura, televisão, cinema, etc. Porém, se o homem não
tivesse visão, todos esses fatos culturais não existiriam. O homem é incapaz
de voar por si mesmo; por mais que tente, nunca terá asas (não existe em seu
corpo capacidade para tê-las). Pode, isso sim, com base em uma série de
dados naturais (peso e resistência dos materiais, leis da aerodinâmica),
construir aparelhos com os quais pode voar. É axiomático que todo fato
cultural depende dos dados naturais (HERVADA, 2006, p. 75).
Disso extrai que, pretender que só exista o Direito Positivo, ou seja, que todo direito
seja estabelecido pelo homem, contradiz o mais elementar bom senso, pois se há algo jurídico
cultural (Direito Positivo), tem que partir necessariamente de algo jurídico natural. O que se
quer dizer é que, se existe uma fato jurídico positivo (cultural), deve apoiar-se em uma
juridicidade natural. Se nada houvesse de jurídico natural, nada haveria de jurídico cultural.
E arremata: a melhor demonstração de que existe o Direito Natural é que existe o
Direito Positivo. Mais especificamente: se não existe o Direito Natural, é impossível que
exista o Direito Positivo; e se existe o Direito Positivo, existe necessariamente o Direito
Natural.
Posto que existem, como o demonstrado, os direitos naturais, portanto existe
necessariamente a lei jurídica natural, em tripla faceta, afirma Hervada (2006, p. 145). A lei
natural é a regra natural de direito; a existência de direitos naturais gera regras do agir; e a
108
natureza das relações e instituições sociais acarreta algumas regras de justiça comutativa93,
distributiva ou legal, conforme o caso, que são naturais.
Podemos, então, conhecer a lei natural através de inclinações naturais do homem,
que é a própria atividade natural do agir humano. O pensador espanhol passa elencando:
Conhecendo essas inclinações próprias da lei natural, é fácil entender que sua função
consiste em ser base ou alicerce da ordenação jurídica e da ordem política. Usando de uma
analogia, o que a constituição representa no sistema de leis positivas - base do sistema legal,
critério inspirador e critério de validade - é o que representa a lei natural em relação a todo o
sistema de leis (HERVADA, 2006, p. 155).
E por ser base ou alicerce, as leis positivas, segundo Hervada, se apoiam na lei
natural, derivam dela. Se as leis positivas derivam de um núcleo de lei natural, devem ordenar
─ essa é a missão ─ a realidade social de acordo com esse núcleo.
Diferentemente de Kant, Hervada repudia a assertiva de que a lei natural está
gravada no coração do homem. Para esse pensador, a lei natural é preceito da razão, e no
conhecimento da razão é possível distinguir dois momentos sucessivos e conexos. Há um
exercício ou uso da razão comum ou geral que é próprio de todo homem que tenha alcançado
o desenvolvimento normal dessa potência e, em segundo momento, a investigação
aprofundada do conhecimento: é o saber científico.
93
Justiça comutativa, que quer dizer trocar, permutar, assim chamada porque regula o intercâmbio entre pessoas
iguais, que se encontram no mesmo plano. Sua finalidade consiste em estabelecer uma igualdade fundamental
nas relações entre os seres humanos e exigir que essa igualdade seja restabelecida quando violada. Justo é o igual
e injusto é o desigual, dizia Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século XII. Já justiça distributiva tem por
objetivo permitir que pessoas participem do bem comum mediante uma distribuição equitativa, de acordo com
seus méritos ou suas habilidades. Em outras palavras, consiste em dar a alguém o que lhe é devido segundo uma
igualdade.
109
A aproximação entre Direito e Moral - cindidos pelo positivismo jurídico, foi muito
explorada em John Finnis94, que procurou delinear seu pensamento na obra A lei Natural e os
Direitos Naturais, sem se apegar a qualquer pessoa ou grupo, todavia dando um relevo ao
pensamento de São Tomás de Aquino95, a quem eleva a um lugar estratégico singular na
história da teorização sobre a lei natural.
Não se procurou na obra elaborar, primariamente, com o propósito de fornecer uma
estrutura conceitual justificada para uma ciência social descritiva, antes, procura-se lançar
uma contribuição às reflexões práticas daqueles que se preocupam em agir, quer como
juízes96, quer como estadistas, quer como cidadãos. Assim se possa socorrer da assistência da
ciência social descritiva e analítica para avaliar as possibilidades e oportunidades humanas.
O estudo ganha relevância prática na discussão jurídica acerca das vertentes clássicas
dualista do Direito Natural e Direito Positivo, já exposta metodicamente no presente trabalho,
94
John Mitchell Finnis é professor da Universidade de Oxford e na Universidade de Notre Dame. Um dos
destaques do seu projeto filosófico foi a publicação, em 1980, de Natural Law and Natural Rights, que
representa um marco contemporâneo na Teoria Geral do Direito.
95
Tanto para Tomás de Aquino, quanto para Aristóteles, fazer Filosofia moral é pensar de forma mais geral
possível sobre o que alguém deveria escolher fazer (e não fazer), considerando a totalidade da sua vida como um
campo de oportunidade (ou mau emprego de oportunidade). Pensar de forma tão geral diz respeito não
meramente às suas próprias oportunidades, mas qualquer os tipos de coisas boas que qualquer ser humano pode
fazer e alcançar, ou ser privado. Pensar sobre o que fazer é convenientemente rotulado de “prático” e diz respeito
ao que e como escolher e fazer aquilo que alguém inteligentemente e razoavelmente pode (i) para conseguir bens
inteligíveis na sua própria vida, na vida dos outros seres humanos e em seu ambiente, e (ii) ser de bom caráter e
viver uma vida que, como um todo, terá sido uma resposta razoável a tais oportunidades (FINNIS, 2007, p.21).
96
As reflexões jurisprudenciais serão oportunamente objeto de estudo em dois casos práticos do Supremo
Tribunal Federal, questão que envolve o conceito e validade do Direito Positivo.
110
todavia inserindo novos elementos ao presente debate notadamente quanto à defesa de que o
positivismo e o jusnaturalismo não são incompatíveis97, mas na verdade se complementam,
em que caberá ao Direito Natural o papel de avaliar a aptidão moral do ordenamento jurídico
por um crivo de razoabilidade.
Em sua obra, Finnis critica a definição do direito de Kelsen98, como técnica social
específica livre de valores, demonstrando que uma doutrina que defenda uma concepção
eminentemente positivista certamente encontrará seu insucesso, pois o ordenamento jurídico
─ ou parte dele ─ poderia estar distante dos bens básicos das necessidades humanas de
justiça, convertendo-se, desse modo, nas chamadas leis injustas.
Finnis afirma que Kelsen difundiu uma imagem desorientadora, e nada incomum, da
teoria jurídica do Direito Natural no pensamento que vai desde os Padres da Igreja até Kant,
que o Direito Positivo deriva toda a sua validade do Direito Natural, sendo uma mera
emanação do Direito Natural.
Tudo isso é uma caricatura, afirma Finnis. Tomando por exemplo o pensamento
tomista, o Direito Positivo realmente deriva sua validade do Direito Natural, mas ao
mesmíssimo tempo mostra como ele não é uma mera emanação, ou cópia, do Direito Natural,
e como o legislador goza de toda a liberdade criativa de um arquiteto.
E prossegue Finnis (2007, p. 40) afirmando que Tomás crê que o Direito Positivo é
necessário por duas razões, das quais uma é a de que o próprio Direito Natural "de alguma
forma já existe" não fornece todas ou mesmo a maioria das soluções para os problemas de
coordenação da vida em comunidade.
Para Finnis (2007, p. 30-31), influenciado por Tomás de Aquino, uma teoria do
Direito Natural deve ser capaz de cumprir os seguintes objetivos:
97
A crítica mais acentuada contra jusnaturalismo reside na sua falta de homogeneidade temporal, posto que
ausente de completa falta de coesão quanto aos argumentos de validade utilizados por seus diversos defensores.
Por esse motivo, o Direito Natural é taxado por alguns de obscuro, supersticioso e perigosamente variável. Finnis
tenta refutar essas atribuições, mostrando os valores principiológicos do Direito Natural.
98
Conforme estudado, Kelsen define o direito como uma técnica social específica: "a técnica social que consiste
em fazer acontecer a desejada conduta social dos homens por meio de uma ameaça com um certo grau de
coerção, que deve ser cumprida em caso de conduta contrária” (KELSEN, 1998, p. 17).
111
A palavra “natural”, para Finnis, é aquela que se refere à razão, ou seja, uma teoria
da racionalidade é defendida na medida em que assume uma razão dirigida à própria conduta
individual como guia a um comportamento humano razoável.
Em outros termos, a preocupação do autor é construir uma metodologia que possa
legitimar o Direito Natural, por critérios razoáveis de justificação.
Um sistema jurídico é um sistema no qual regras "secundárias"99 emergiram a fim de
remediar os defeitos de um regime pré-jurídico composto apenas de "regras primárias". O
direito deve ter um conteúdo mínimo de regras e sanções primárias a fim de assegurar a
sobrevivência da sociedade ou de seus membros e de dar a eles uma razão prática para
aquiescência a ele (FINNIS, 2007, p. 21).
Desenvolve um conceito de razoabilidade prática, uma vez que, para o autor, o
Direito se revela além da lei, haja vista que os indivíduos são orientados por diversos valores,
também presentes na dogmática jusnaturalista e que não podem ser refutados pela lei dos
homens100.
Em conformidade novamente com a obra de São Tomás, Finnis (2007, p. 47)
sustenta que o critério de conformidade ou oposição à natureza humana é a razoabilidade:
99
Nalini (2012, p. 105) observa muito bem que, para os juristas das novas gerações, Hart é mais conhecido por
sua contribuição para distinguir entre normas primárias - aquelas que impõem obrigações - e normas
secundárias - as de reconhecimento, mudança e julgamento.
100
Percebe-se que o divisor de águas invocado pelo Direito Natural é justamente essa divisão entre um Direito
posto pela vontade dos homens, o “dever ser”, e um Direito Natural derivado do “ser”.
112
101
Nisso Finnis se distanciou da moralidade como autonomia do pensamento kantiano, pois Kant a define como
a propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma (independentemente da natureza dos objetos do
114
que experimentou o ímpeto de perguntar, que apreendeu a conexão entre pergunta e resposta,
que compreendeu que o conhecimento é constituído de respostas corretas para perguntas
particulares e que está ciente da possibilidade de mais perguntas e de outras pessoas que
fazem perguntas que, como ele mesmo, poderiam se deleitar com a vantagem de chegar a
respostas corretas (FINNIS, 2007, p. 72).
3. Jogo: assim entendido como experiência lúdica, sem outro fim a não ser o
desempenho da própria atividade. O jogo é uma função da vida e que apresenta ao ser humano
um espaço de regras, desejos, competições e ambições; tal bem possui relevância ao Direito,
no sentido de que, em regra, o jogo se desenvolve em um ambiente tenso, instável. Destaca
Finnis (2007, p. 92) que cada um de nós pode ver o que se trata engajar-se em atividades que
não têm qualquer propósito, além de seu próprio desempenho e que são desfrutadas por si
mesmas. O desempenho dessa atividade pode ser solitário ou social, intelectual ou físico,
tenso ou relaxado, altamente estruturado ou relativamente informal, convencional ou de
padrão ad hoc.
querer). Com efeito, para Kant o princípio da autonomia é, pois, agir de modo tal que as máximas de nossa
escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis universais, no ato de querer.
115
102
Finnis não diferencia a palavra “sociedade” da palavra “comunidade”.
103
Em Ética e Nicômaco, há a seguinte passagem: ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado
de sabedoria prática o poder de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para ele, não sobre um aspecto
particular, como, por exemplo, sobre as espécies de coisas que contribuem para a saúde e o vigor, mas sobre
aquelas que contribuem para a vida boa em geral. Bem o mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a um
homem, sob um aspecto particular, quando ele calculou bem com vistas em alguma finalidade boa que não se
inclui naquelas que são objetos de alguma arte (ARISTÓTELES, 1995, p.144).
104
O Conceito de “prudentia” em Tomás de Aquino é expresso pela seguinte definição: a virtude da prudentia é
o que permite à pessoa raciocinar bem quanto à escolha de compromissos, projetos e ações, aplicar os princípios
práticos mais gerais concretamente, escolher corretamente, encontra o meio-termo correto, ser virtuoso e ser um
bom homem: S.T. II, q. 47, aa. 1-7; notas a II.3, supra (FINNIS, 2007, p.131).
116
Finnis exprime nove requisitos necessários para que um determinado juízo de valor,
a princípio abstrato, possa ser conduzido a uma correta avaliação moral. Para tanto passa a
apresentar essas condições à razoabilidade prática da seguinte maneira:
7. Respeito por cada valor básico em cada ato: como todos os bens
humanos básicos são bens hierarquicamente iguais e sem preferência, bem
como, todos os seres humanos estão intitulados a participarem das
oportunidades oferecidas por tais bens, mostra-se arbitrário excluir qualquer
ser humano ou qualquer bem, sob qualquer pretexto. Orienta Finnis que
somente uma visão não consequencialista dos atos humanos pode originar a
117
De tudo exposto pelo jusnaturalismo finnisiano, o “ser” se destaca como algo a ser
buscado e protegido e jamais vilipendiado através dos sete bens básicos por ele enumerados,
etapa necessária para entender o conceito de leis injustas.
Finnis tratou do tema da obrigatoriedade ou não das leis, sua aptidão em garantir a
justiça, bem como se as leis injustas geram ou não um dever. O problema ganha relevo
quando se confronta uma lei validamente formal com princípios defendidos pelo Direito
Natural.
Lembramos que, para Kelsen106, o direito do Direito Natural não é o fundamento de
validade do Direito Positivo, ou seja, as leis não são injustas pelo simples fato de contrariar
um preceito do Direito Natural. Mas o que fazer com as leis que, porventura, venham a violar
essas balizas impostas pelo Direito Natural?
Faz-se necessário um esclarecimento preliminar acerca da "versão forte do
jusnaturalismo" e "versão fraca do jusnaturalismo". A primeira traduz uma completa
subordinação das leis positivas às lei naturais, sendo um verdadeiro critério de validade do
Direito Positivo, assim, o conceito de justiça se identificaria nas leis naturais. Já para a
segunda, mesmo que uma lei fosse contrária às regras do Direito Natural, ainda assim seria
105
Para ilustrar o que foi dito, Finnis cita Kant, no seguinte contexto: “Aja de forma tal que trate a humanidade –
quer em sua própria pessoa, quer na pessoa de outrem – sempre com um fim, e nunca apenas como um meio”.
106
Para Kelsen, uma doutrina consequente do Direito Natural distingue-se de uma teoria positivista pelo fato de
aquela procurar o fundamento de validade do Direito Positivo, isto é, de uma ordem coercitiva globalmente
eficaz, em um Direito Natural diferente do Direito Positivo e, portanto, numa norma ou ordem normativa a que o
Direito Positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder, mas também pode não corresponder; por tal forma
que, quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser considerado como não válido
(KELSEN, 1998, p. 243).
118
considerada como Direito, todavia poderia não ser descumprida por afrontar aspectos da
justiça moral.
Percebe-se claramente que Finnis se filia à corrente do jusnaturalismo franco, porque
entende que uma teoria da lei natural não precisa ter como principal preocupação a afirmação
de que "leis injustas não são lei". No pensamento finnisiano, a principal preocupação de uma
teoria de lei natural é explorar os requisitos da razoabilidade prática em relação ao bem dos
seres humanos que, por viverem em comunidade uns com os outros, são confrontados com
problemas de justiça e de direitos, de autoridade, lei e obrigação.
Ao tratar da lei em seu sentido formal, Finnis não se atém às implicações inerentes à
autoridade ou não de materiais normativos que porventura sejam fontes de injustiça. Aqui,
assume a importância da lei em garantir a justiça, em todas as suas vertentes em uma
comunidade, ou seja, ressalta que a obediência à lei é imperativa no sentido de restringir as
opções de escolhas do comportamento humano, tudo para que o bem comum seja
efetivamente tangível.
Para Finnis, a derivação da lei positiva da lei natural é evidente e voltada para o
processo despendido ao se criar o Direito, quer seja pelo legislador, quer seja pelo juiz,
todavia os quais devem ser sempre conduzidos por critérios morais, no contexto da
razoabilidade prática.
Em sentido mais claro, no pensamento finnisiano, o Direito Natural deverá sempre
ser utilizado como fonte de legitimidade para o Direito Positivo, posto que uma lei que se
divorcie de seus bens básicos (condições expostas de justiça) será tida como insuficiente ao
padecer de real efetividade.
Todavia, quanto aos efeitos da injustiça das leis sobre a obrigação, Finnis constrói
nessa reflexão quatro sentidos para o ato de obedecer à lei. E pergunta: como a injustiça, de
qualquer um dos tipos de injustiça107, afeta a obrigação de obedecer à lei?
E responde Finnis (2007, p. 340):
Qualquer jurisprudência sólida irá reconhecer que é possível que alguém que
enuncie esta pergunta possa com "obrigação de obedecer à lei" estar se
referindo à (i) possibilidade empírica de estar sujeito à sanção no caso de
não-cumprimento; (ii) ou possibilidade legal no sentido intrassistêmico, no
107
Para Finnis, há quatro tipos de injustiça: (i) o uso de autoridade por parte do governante para sua própria
vantagem ou vantagem de um grupo ou facção, preterindo o bem comum; (ii) injustiça distributiva em que a
autoridade avoca para si inapropriadamente um excesso de autoridade ou autoridade inexistente; (iii) o exercício
de autoridade legal de outra forma que não de acordo com os justos requisitos de maneira e forma; e (iv) negar a
uma, a algumas ou a todas as pessoas um direito humano absoluto, ou um direito humano cujo exercício é nas
circunstâncias possível, consistente com requisitos razoáveis da ordem pública, da saúde pública, e compatível
com o devido exercício tanto de outros direitos humanos quanto dos mesmos direitos humanos por parte de
outras pessoas (FINNIS, 2007, p. 338-339).
119
Assim, Finnis elenca quatro sentidos para o ato de cumprimento da lei. O primeiro
alude à utilização das sanções espalhadas pelos textos normativos e tem por fim evitar que as
pessoas deixem de cumprir as obrigações impostas. O segundo parte da obrigação legal no
sentido jurídico (obrigação legal no sentido intrassistêmico) ancorado na premissa prática de
que a submissão à lei é socialmente necessária; é um princípio estrutural isolado do resto do
raciocínio prático.
Quanto ao terceiro sentido, Finnis considera que o sentimento de obrigação para com
uma lei se respalda justamente nessa força presumível de obrigar a todos os membros de uma
comunidade a pautarem suas condutas de acordo com o previsto pela norma, tudo em nome
do bem comum.
O problema ganha outros contornos quando se refere à eventual distorção entre uma
obrigação imposta por um governante e que se refira em seu bojo a estipulações que vão
justamente contra o bem comum ou ainda desprovidas de princípios básicos de razoabilidade
prática. Para essas situações, ministra Finnis (2007, p. 345) que estipulações feitas em
benefício de partidários ou (sem emergência como justificativa) que ultrapassam a autoridade
definida legalmente, ou impõem encargos injustos, ou ordens que se façam coisas que nunca
deveriam ser feitas, simplesmente não conseguem, por si só, criar qualquer obrigação moral.
Vencidos os três primeiros sentidos sem se convencer da obrigatoriedade do
cumprimento da lei injusta, Finnis apresenta o quarto e último sentido que ultrapassa qualquer
indagação que se possa fazer à questão da obrigação de leis injustas descritas nos três
primeiros sentidos precedentes. Considera que o completo desrespeito do indivíduo à
autoridade do governante refletiria negativamente na estabilidade das relações intersubjetivas
da comunidade e que traria consequências ruins ao bem comum.
Quanto a esse aspecto, assim considera Finnis (2007, p. 346):
implementar a lei injusta, e neste sentido não tem o Direito de que ela seja
obedecida. Mas os cidadãos ou funcionários podem, ao mesmo tempo, ter a
obrigação reduzida, colateral e, em um importante sentido extralegal, de
obedecer a ela.
Outra decisão do Supremo Tribunal Federal a ser analisada à luz do tema central traz
à tona a crise do pensamento político moderno fulcrado no individualismo, característica do
liberalismo econômico. Refere-se à possibilidade de importar pneu usado à luz da tutela
constitucional do meio ambiente. Essa matéria foi questionada pelo presidente da República
por meio da Advocacia-Geral da União.
O principal fundamento está contido no artigo 225 da Constituição Federal do Brasil,
que assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que estaria
ameaçado pela incineração e pelo depósito de pneus velhos.
Para Carmen Lúcia, Ministra relatora do processo, o desenvolvimento econômico e a
livre iniciativa não podem ser os únicos fatores a serem considerados para decidir os impasses
da sociedade moderna, mesmo que em tempos de crise econômica.
E acrescentou: “não se resolve uma crise econômica com a criação de outra crise,
esta gravosa à saúde das pessoas e ao meio ambiente. A fatura econômica não pode ser
resgatada com a saúde humana nem com a deterioração ambiental para esta e para futuras
gerações" (BRASÍLIA, 2009). [GRIFO NOSSO]
Assim restou consignada a ementa do acórdão:
108
A fraternidade é expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando ela
afirma que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e de
consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
109
Entende-se por Equidade intergeracional o conteúdo relacional de igualdade entre as gerações passadas, as
presentes e as que nos sucederão sob dois aspectos básicos: o que diz respeito à justa utilização dos recursos
naturais pelas gerações passadas, presentes e futuras; e o que tange à responsabilidade da preservação de tais
recursos, disponíveis a todos as gerações, de forma a uma geração não causar prejuízo a outra, estando todas no
mesmo pé de igualdade.
123
Ainda no século passado, Arendt bem observou que o nazismo reduziu as vítimas
dos campos de concentração ao mínimo denominador biológico comum, destruindo a noção
de que cada homem encarna algo que é incompatível ou insubstituível, acima de qualquer
preço ─ o que Kant chamava de "dignidade" (BAGGIO, 2009, p. 82).
Uma cena específica de A Lista de Schindler, filme norte-americano de 1993,
desperta interesse da Filosofia: a mulher de Oscar Schindler, estando ao largo do monte,
montada em um cavalo, fica indignada ao ver as atrocidades praticadas contra os judeus. Vira-
se para seu marido e diz: "vamos embora, não quero mais ver isso".
Por que essa mulher, mesmo sendo alemã, não suportou ver as atrocidades contra
outros seres humanos? Quais foram inclinações naturais ou tendências racionais que
afloraram nela? É preciso o comentário de Giuseppe Tosi (BAGGIO, 2009, p. 62) que nos
vem ao encontro:
Com razão Nalini, pois alguns teóricos tendem a reproduzir desqualificação a alguns
povos e civilizações, especialmente as não-ocidentais, e esquecem de "teorizar" as questões
existentes no "quintal" de suas casas. Guerras são travadas nas favelas fluminenses, escolas do
crime organizado em presídios, completa instabilidade social pela ausência de segurança que
ultrapassam os grandes centros. Mata-se para roubar celular, ou porque, no assalto, não se tem
dinheiro.
125
Podemos dizer que o mundo moderno, diante dos perigos que ameaçam a
sobrevivência da sociedade, tem dois caminhos: (i) continuando nossa marcha retroagiremos
no estado de natureza, na luta de todos contra todos; (ii) ou usamos da razão para procurar
alternativas para a sobrevivência da raça humana.
Mas chegou-se a uma nova época que exige um novo direito, uma nova ética, um
novo formato no pensar: um mundo pós-moderno, com problemas da modernidade que se
acumulam com novos, levando ao mundo de incertezas e descrença, em um ceticismo
crônico.
Há necessidade de estabelecer uma ruptura entre o ideal e o real na relação humana,
ou seja, estabelecer a possibilidade de amar as pessoas ao redor, de ser generoso, de dar
sentido à existência.
Para Giacóia Júnior (2013),
110
A preguiça e a melancolia, com Oswaldo Giacoia. Gravado em 15 de março de 2013.
111
Tzvetan Todorov (Sófia, 1939) é um filósofo e linguista búlgaro radicado na França desde 1963 em Paris.
112
A democracia e a beleza, com Tzvetan Todorov. Gravado em 06 de setembro de 2012.
126
Mas por que se falar em Humanismo fraternal? E qual sua relação com o Direito
Natural? Observa-se que o termo "fraternidade" está longe da pauta política, muito embora
esteve presente no ideal da tríade revolucionária francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
E o distanciamento da pauta política é explicável pelo apego teológico ao termo
fraternidade113, o que culminou na falta de referência aos outros dois princípios
revolucionários da liberdade e da igualdade.
Segundo Aquini (2008, p. 73), da Pontifícia Universidade S. Tommas:
113
A fraternidade vem sempre proclamada como um dos três princípios axiológicos fundamentais em matéria
dos direitos do homem, juntamente com a liberdade e igualdade. Ora, a formação história desse tríptico remonta
à Revolução Francesa cuja consagração oficial em textos jurídico se fez a partir da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789. De toda foram, tanto ela como o Bill of Rights da Virgínia de 1776 só sagraram a
liberdade e a igualdade como princípios A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez, - e não como
princípio, mas antes como virtude cívica - na Constituição Francesa de 1791, tendo o texto constitucional da
Segunda República Francesa, em 1848, vindo a declarar oficialmente a tríade (ALMEIDA, 2010, p. 27).
127
Como bem observou Hervada (2006, p. 146), o homem, por natureza, não é apenas
sociável (capaz de sociedade), mas sócio dos demais. Embora as possíveis formas de
sociedade sejam múltiplas, todas elas são desenvolvidas de um núcleo natural de sociedade,
em cuja virtude o homem está - por natureza - unido aos demais por vínculos de solidariedade
e comunidade.
Foram precisas as lições de Pozzoli (2013, p. 110), acerca da fraternidade como novo
paradigma a ser solidificado:
regulem esse convívio; dependem de atitudes, mais profundas, morais, espirituais, do valor
que damos à pessoa humana, de como consideramos o outro" (PIERRE, 2013, p.5).
Carlos Augusto Alcântara Machado (Pierre, 2013, p. 75) foi categórico ao afirmar
que "se a evolução tecnológica não for completada pela harmonização ética, fundada nos
Direitos Humanos, a humanidade tenderá à desagregação social, em razão da fatal prevalência
dos mais fortes sobre os mais fracos".
Se é verdade que o conceito de fraternidade encontra raízes na teologia cristã,
também é verdade que esse conceito se emancipou definitivamente dessa tradição, como se
verá, adquirindo legitimidade própria e ocupando um lugar novo na função da hermenêutica,
adotando uma feição humanista, como forma de implementar os princípios consagrados do
Direito Natural.
Nesse particular foi muito bem a ministração de Pozzoli (2001, p. 177), afirmando
que os princípios humanistas podem “apontar para a solução de problemas que incomodam ou
perturbam a consciência contemporânea dos chamados operadores do direito".
O Direito precisa de novos paradigmas. Pode haver muitas teorias e pensamentos
para esse novo estágio da ciência jurídica, mas ela terá sempre que ter um tom humanista, do
ser humano, solidário, altruísta, fraterno, que implementa a justiça a partir do "outro". A
forma de implementação do Direito Natural pela fraternidade será objeto de estudo.
emancipação do homem da tutela que ele próprio impôs a si, ao se deixar dominar pelos
outros e não por sua própria razão. “Faça uso da tua razão!”: eis o lema do Iluminismo para
Kant.
Para Luc Ferry114, há uma revolução na vida privada que balançou nossas
existências, dando um novo princípio de sentido, que exige uma nova Filosofia. É o que
chama de "Segundo Humanismo". Para esse pensador francês, o primeiro foi o Humanismo
da lei e da razão, era do Iluminismo e dos direitos humanos, dos republicanos franceses e de
Kant.
Já esse Segundo Humanismo é um humanismo da fraternidade e da simpatia. O ideal
que ele visa a realizar não é o dos nacionalismos, nem o das ideias revolucionárias. Não se
trata mais de organizar os grandes massacres em nome de princípios mortíferos que se
acreditava serem exteriores e superiores à humanidade, mas de preparar o futuro para os que
nós amamos mais, o das gerações futuras.
E acrescenta esse pensador francês:
Bem observou Ferry que antigamente as pessoas se sacrificavam pela revolução, pela
pátria ou até por Deus115. Todavia, hodiernamente os motivos não são abstrações ideológicas,
mas os seres reais, as pessoas. O autor denomina essa mudança como "a sacralização do
amor".
114
Luc Ferry (nasceu a 1º de janeiro de 1951 em Colombes no departamento de Hauts-de-Seine, França), é um
filósofo francês e antigo professor de Filosofia e político engajado em favor da União para um movimento
popular (UMP). Ele foi Ministro da Educação Nacional, na França, sob o governo de Jean-Pierre Raffarin de
2002 a 2004.
115
Bem expôs Ferry que, para a imensa maioria dos europeus de hoje, os únicos seres pelos quais estaríamos
dispostos a arriscar nossas vidas são os humanos, a começar por nossos próximos, nossos filhos, evidentemente,
mas com certeza não por entidades abstratas. Especialmente nas novas gerações, mais ninguém ou quase (sempre
há exceções que justificam a regra) está disposto a morrer pelas três entidades maiores que constituíram, no
sentido que a entendo, história do sagrado na Europa: Deus, pátria, revolução (FERRY, 2013, p. 110).
130
Da análise, percebe-se que esse filósofo francês se esforça para romper o pensamento
abstrato e transcendental, embora reafirmando valores cristãos, como bondade, benevolência e
o respeito pelo próximo. Procura se afastar da pauta religiosa, portanto, transcendental,
aproximando-se da Filosofia prática.
Ao final, faz uma referência à necessidade do outro para - ao “sair de mim”, a me
superar, a me afastar de meu ego - estabelecer um perfeito humanismo, através de um
fraternalismo laico. Esse será o próximo desafio deste trabalho.
116
Ainda na mesma lição, para Ferry o primeiro Humanismo, o Humanismo de Kant e de Voltaire, do direito e
da razão, é também um Humanismo da nação. Os direitos do homem, que ele situa no topo da hierarquia dos
valores morais, não são inteiramente direitos do homem de modo geral e absoluto, mas apenas direitos do
homem e do cidadão.
131
117
Para Hegel, uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada,
transformada em outra que não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição se encontrará finalmente
transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação"
(síntese). Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não
ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-
a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se
reencontram fundidos, reconciliados.
118
Frater designa qualquer membro da espécie humana, da familia humana.
132
totalidade imediata e em si, mas como ser humano é necessário que a essência se revele por
meio de outro homem e o ser humano explique o homem para si. Uma sociedade de homem
não é necessariamente uma sociedade humana (ANDRADE, 2010, p. 53).
E prossegue dizendo que:
Põe-se que o homem nem sempre é humano se sua essência não se revela. Se
não há outro para que a humanidade se conforme entres seres fraternos, não
temos uma humanidade, mas uma comunidade de homens iguais e a si
mesmo, individualmente indeterminados porque a nenhum há o outro para
que a essência lhes diga quem são e o que contêm em si. Ser simplesmente
homem sem que haja a fraternização com o outro não há como dizê-lo ser
humano, mas puramente homem. Ser homem não é ser nada, mas saber-se
em si.
Pode-se dizer que o homem vai descobrir sua suma essência no outro, oportunidade
em que recupera sua unidade no reconhecimento de ser humano. Em outras palavras,
indeterminado em si sendo homem e nada é nada. O tornar-se humano, o vir-a-ser humano é
o resultado, o fazer-se à medida que se faz presente, que existe, o devir que reúne ser e nada e
se apresenta (ser presente) ao outro. Então, apenas a partir do outro o ser humano é ser como
tal (ANDRADE, 2010, p. 59).
Nesses termos, o homem em si só revela sua própria essência para si, a essência
humana, à medida que sua vontade racional, própria do homem em si, se pensa porque livre e
enquanto pensamento livre pensa sobre os que pensam, outros homens, e por isso mesmo
livres como ele.
E conclui Maria Inês (ANDRADE, 2010, p. 60) que, nessa ação de pensar-se no
outro, própria do homem, ele só vai poder concluir pela ideia de ser humano à medida que
conhece a liberdade dos outros homens não como coisa possuída, mas como condição do ser
homem na sua efetividade.
A autora utiliza-se da lição de Hegel119 que, opondo a contradição no núcleo do
pensamento e das coisas simultâneas, denuncia que o pensamento procede por meio de
contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à síntese, como em um diálogo em que a
verve surge a partir da discussão e das contradições.
Maria Inês (ANDRADE, 2010, p. 65) lança a conclusão:
119
Um exemplo célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx.
Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens
lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um
homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o
prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. O Senhor é
senhor porque assim realiza seus desejos de ser reconhecido como tal pelo escravo. Mas é a consciência do
escravo que reconhece o outro como senhor, logo é necessário que a consciência dos dois antagônicos se juntem
para que exista tanto a consciência de um como de outro.
134
O que se quer dizer é que para ser humano e realizar a humanidade é necessita-se do
outro, pois é pela exigência do outro que se manifesta a humanidade do homem. Ambos são
carentes mutuamente. Ser humano na linguagem hegeliana é o ser-para-si120.
A tese apresentada assenta-se no conceito de homem como imediatidade, existência.
A realidade efetiva se manifesta quando a essência se exterioriza na existência, quando ocorre
a manifestação de si mesmo, do ser humano por intermédio do homem. A ideia de
humanidade enquanto fraternidade de homens livres e iguais está no momento imediato
quando se dá a superação da dualidade homem e ser humano.
Feliz a lição de Salgado (1996, p. 214):
120
Tomando de Hegel a intitulada dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a
positividade se realiza por meio da negatividade, do ritmo de tese, antítese e síntese, é possível verificar que ela
resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Assim, o homem enquanto elemento da
realidade, estabelecendo-se a si mesmo como ser humano (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um
momento, demanda seu oposto, a desumanidade (antítese), que nega e qual integra, em uma realidade mais rica,
a humanidade propriamente dita (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético (ANDRADE, 2010,
p. 86).
135
Mas a ideia de fraternidade conforma a do ser humano que deve ser antes de
poder ser. Se sabe ser livre o homem que é, o ser humano em si só efetiva
essa liberdade quando se põe para si por intermédio do outro no exercício de
sua humanidade. É preciso ser humano para, então, ser livre. A liberdade
decorre da humanidade. E é a ação de ser humano que realiza a humanidade.
O ser humano deve ser humano na expressão da racionalidade descoberta, sendo a lei
jurídica produto dessa vontade racional, consciente e ideal, criação do homem enquanto ser
humano. À medida que ser humano deve ser humano na expressão da racionalidade
descoberta por intermédio do outro, a fraternidade torna-se racional.
Não foi por outro motivo que a fraternidade reconhecida pelo homem que se
reconhece ser humano, também, perfaz uma declaração universal e se torna direito. Tanto é
assim que a declaração universal dos direitos do homem reconhece que todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos; que são dotados de razão e consciência e
devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade121.
121
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, adotada e proclamada pela resolução 217, A
(III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
Preâmbulo.
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram
a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra,
136
de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não
seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres,
e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações
Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e
liberdades Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância
para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembléia Geral proclama
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e
todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta
Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a
sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos
dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem
agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. [GRIFO NOSSO]
122
O Estado Liberal, de finalidade privada, onde o indivíduo é fim para sim mesmo tomando os outros apenas
como meio para a satisfação individual no sistema de necessidades, não se sustenta como não se sustenta o
Estado de Platão, que toma a universalidade na desconsideração da pessoa, o indivíduo livre, o sujeito
(ANDRADE, 2011, p. 163).
137
se quer racionalmente livre; e não ao homem propriamente dito, imediato, que realiza a
liberdade no sentido do arbítrio (ANDRADE, 2010, p. 183).
É preciso ser humano para ser livre bem como é preciso ser livre para ser humano,
assim a liberdade de todos no plano universal conforma a ideia de uma humanidade livre. A
ideia de humanidade conforma a do ser humano que deve ser antes de poder ser. Sabendo ser
livre o homem que é, o ser humano em si só efetiva essa liberdade quando se põe para si por
intermédio do outro no exercício de sua humanidade. Nesse passo, o direito posto tanto mais
realiza a liberdade quanto realizada a humanidade (ANDRADE, 2010, p. 241).
Importante é um esclarecimento: o estudo da fraternidade como categoria jurídica
não repele as construções teóricas do Direito Positivo, antes compreende a importância e a
necessidade do Direito posto, como valioso instrumento de segurança jurídica. Considera-se a
fraternidade, o olhar o "eu" a partir do "outro", e tem fundamento no próprio Direito Natural.
A fraternidade remete à ideia de "outro" que não sou eu nem meu grupo social, mas o
"diferente" diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e não somente direito a opor.
Essa fraternidade não broca do fideísmo metafísico, não tem lugar na concepção teocrática,
mas provém da própria razão humana, do homem enquanto ser humano.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ou positiva. Nossa tese é que esses dois âmbitos interagem e se completam, ao invés de se
oporem e excluírem-se mutuamente.
O problema está justamente em admitir a existência de dois Direitos, que atuam em
paralelo - um Natural e outro Positivo. Se os positivistas, ao fazer uma comparação entre
esses dois domínios, negam a existência do Direito Natural, em razão de sua natureza
metafísica, incapaz de prover qualquer sanção, bem como de satisfazer exigências lógicas e
epistemológicas para que possa ser cientificamente levado em consideração, os opositores do
positivismo contra-argumentam com a necessidade de justificação e legitimação teórica para
os conteúdos substanciais dos ordenamentos jurídicos historicamente existentes.
A doutrina do Direito Natural foi dominante nos séculos XVII e XVIII; após rápido
declínio no século XIX, voltou à pauta da filosofia social e do direito nos séculos XX e XXI,
em consequência de duas guerras mundiais e da reação contra o comunismo e o liberalismo,
sob a forma histórica dos Direitos Humanos ou Humanismo, tentando divorciar-se da origem
metafísico-religiosa.
Como afirmou Sen (2011, p. 401),
O direito, hoje, deve ser visto, também, como um direito que tem uma função
promocional, que interessa por comportamentos tidos como desejáveis e, por isso,
não se circunscreve a proibir, obrigar ou permitir, mal almeja estimular
comportamentos, através de medidas diretas e ou indiretas.
Vivemos, pois, uma nova época, que exige um novo direito, uma nova ética, um
novo formato para o pensar normativo. Um mundo pós-moderno, no qual problemas da
modernidade se agravam e adquirem novas dimensões, levando à incerteza, impelindo até
mesmo para um ceticismo crônico. Há, portanto, necessidade de estabelecer uma aproximação
entre o ideal e o real nas relações humanas, ou seja, argumentar em prol da possibilidade de
140
amar as pessoas ao redor, de ser generoso, de dar sentido à existência, sem que isso implique
nenhum déficit de fundamentação teórica.
Em última instância, podemos dizer que no mundo moderno, diante dos perigos que
ameaçam a sobrevivência da sociedade, temos dois caminhos: (i) continuando nossa marcha
retroagiremos no estado de natureza, na luta de todos contra todos; (ii) ou usamos da razão
para procurar alternativas para a sobrevivência da raça humana.
A relação entre o perigo do retrocesso e a necessidade de haver uma humanidade não
passou incólume no magistério de Giacoia Junior (2013, p. 132), posto que invocou a
responsabilidade ética com vistas a preservar um ser portador de valor intrínseco, em que está
exposta a destruição pelo poder tecnológico e desenvolvido pelo homem. Nesse particular,
cita Hans Jonas:
um Deus, uma pátria ou uma grande causa, mas o ser humano. Por ele e para ele é que terá
sentido nossa existência.
De tudo se extrai uma conclusão: se não é possível menosprezar as bases teóricas do
Direito Positivo, impossível, de igual forma, desprezar as bases ideológicas do Direito
Natural, tendo do Humanismo fraternal como elemento conciliador dessa relação.
Nesse cenário, são precisas as palavras do prêmio Nobel da Paz de 1994, Shimon
Peres, para quem "há duas questões em que devemos fechar os olhos e nos entregar: O amor e
a paz" (BERCITO, 2013).123
Em última análise, experimentamos uma reconfiguração social que exige indagações
éticas sobretudo acerca de nossa própria existência com seres naturais, humanos que somos, e,
por consequente, exigindo do Direito - ordenação normativa de condutas - um viés humanista.
Esse novo pensar não se limita a simples reflexões abstratas sobre a ideia de justiça,
desprovidas de conteúdo material, antes abre um novo horizonte para indagações urgentes e
necessárias para a sobrevivência da espécie humana.
.
123
Entrevista ao jornal Folha de São Paulo, n. 30.875, p. A18.
142
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