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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS – UCP

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ


PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

Mateus de Melo Barbosa

DOS CRIMES CONTRA O PROCESSO NA SUMA TEOLÓGICA DE


SANTO TOMÁS DE AQUINO

Petrópolis
2019
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS – UCP
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

Mateus de Melo Barbosa

DOS CRIMES CONTRA O PROCESSO NA SUMA TEOLÓGICA DE SANTO


TOMÁS DE AQUINO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da


Universidade Católica de Petrópolis como requisito para a obtenção
do título de Mestre em Direito
Orientador: Prof. Dr. Sergio de Souza Salles

Petrópolis
2019
Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, a Deus, por me ter criado com a capacidade necessária


paratrilhar, com determinação e coragem, esta empreitada intelectual, a qual, num singular
momento de inspiração, surgiu a mim como uma oportunidade única de desenvolver
minhasaspirações rumo a uma vida pautada pela sabedoria.
Aproveito para agradecer a todos os meus familiares, que desde cedo me instigaram a
buscar o conhecimento, por meio de ensinamentos, diálogos e, principalmente, por todos os livros
que recebi, cujas páginas intensificaram minha disposição para a leitura. A meus pais, Marcos e
Fátima, especialmente, por não economizarem esforços em prol da minha educação, tendo me
fornecido todos os meios materiais e psicológicos para tanto.
À Universidade Católica de Petrópolis, onde encontrei um ambiente propício ao estudo e à
pesquisa, professores de alto nível e contato com disciplinas que ampliaram o meu horizonte de
consciência. Em especial, agradeço aos professores Sérgio Salles e Carlos Frederico, cujas aulas
motivaram sobremaneira o meu aprofundamento filosófico.
À Igreja Católica, que tem sido a luz do mundo desde a sua criação, cuja tradição nos
preserva os conhecimentos de cada geração. Se há, hoje, o que podemos chamar de Civilização do
Ocidente, isso se deve, primordialmente, à Igreja de Cristo e seus santos, monges e sacerdotes, que
trabalham incansavelmente para que o homem viva de maneira virtuosa e eleve-se acima de suas
paixões mais simplórias.
Finalmente, gostaria de agradecer aos grandes pensadores que me influenciaram, tais como
Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e, principalmente, Santo Tomás de Aquino, além de outros
filósofos mais recentes que, reverenciados ou não pela Academia, guiam-me por este percurso
intelectual a que venho dedicando a minha vida.
O tomismo é uma posição do espírito tão bem escolhida, tão distante de todos os
extremos onde se abrem os abismos, tão central em relação aos cumes, que se é
logicamente conduzido a ele a partir de todos os pontos do saber, e a partir dele se
irradia, sem fraturas no caminho, em todas as direções do pensamento e da
experiência.
A.D. Sertillanges
Resumo
O presente estudo tem por objetivo tratar dos crimes contra o processo na Suma Teológica de
Santo Tomás de Aquino. Para isto, vale-se, primeiramente, de uma análise a respeito da realidade
jurídica na Baixa Idade Média, mais especificamente no século XIII, época em que o Aquinate
viveu. O objetivo é proporcionar uma melhor compreensão contextual quando da análise dos
crimes propriamente ditos. Em seguida, será estudada a justiça natural na concepção tomasiana,
que encontra suas bases na filosofia helenista e patrística, juntamente com a moral cristã presente
em todo o trabalho de Tomás. O tratamento dispensado pelo Doutor Angélico à questão da justiça
e das leis decorre da ideia de que o direito é objeto da justiça, sendo aquele, portanto, decorrência
desta. Por fim, serão apresentados alguns dos crimes contra a justiça presentes na Suma Teológica,
referentes às partes do processo e suas diferentes atribuições, trazendo sua visão medieval a um
contexto atual, com o intuito de melhor esclarecer a visão do Santo a respeito destes atos ilícitos e,
eventualmente, promover o diálogo entre a teoria escolástica do crime e a moderna teoria
juspositivista do crime. Ficará demonstrado, com esse trabalho, que Tomás elaborou uma filosofia
jurídico-processual em conformidade com a doutrina da lei natural, provando que o processo,
longe de ser uma mera convenção particular de cada sociedade, tem suas raízes em preceitos que
antecedem os legisladores e são comuns a todos os homens.

Palavras-chave: Santo Tomás de Aquino.Suma Teológica.Justiça.Crimes. Processo.


Abstract
The purpose of this study is to deal with crimes against the judgement in the SummaTheologica of
St. Thomas Aquinas. For this, it is worth, firstly, an analysis regarding the legal reality in the Low
Middle Ages, more specifically in thirteenth century, time in which Aquinate lived. The objective
is to provide a better contextual understanding when analyzing the crimes themselves. Next,
justice will be studied in the thomasian conception, which finds its basis in Aristotelian
jusnaturalism, along with the Christian morality present in all the work of Thomas. The treatment
given by the Angelic Doctor to the question of justice and laws stems from the idea that law is the
subject of justice, and that is the result of it. Finally, some of the crimes against justice present in
the Summa, especially the parts of the process and their different attributions will be presented,
bringing their medieval vision to a current context, in order to better clarify the Saint's vision
regarding these illicit acts and possibly to promote the dialogue between the scholastic theory of
crime and the modern positivist one. It will be demonstrated from this work that Thomas Aquinas
elaborated a legal and procedural philosophy in accordance with the doctrine of natural law,
proving that the judgement, far from being a mere convention of each society, has its roots in
precepts the legislators and are common to all men.

Keywords:Saint Thomas Aquinas. SummaTheologica. Justice.Crimes.Judgement.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1. DO SISTEMA JURÍDICO GERAL NA ESCOLÁSTICA ............................................. 14

1.1. DO SISTEMA JURÍDICO GERAL NA ALTA IDADE MÉDIA .................................... 18

1.2. DO DIREITO CANÔNICO .............................................................................................. 22

1.3. DOS ORDÁLIOS .............................................................................................................. 26

1.4. DA INQUISIÇÃO ............................................................................................................. 29

2. DA JUSTIÇA ...................................................................................................................... 37

2.1. DA JUSTIÇA COMO VIRTUDE ..................................................................................... 42

2.2. DA JUSTIÇA GERAL ...................................................................................................... 46

2.3. DA JUSTIÇA PARTICULAR .......................................................................................... 49

2.4. DA VOLUNTARIEDADE DOS ATOS HUMANOS ...................................................... 52

2.5. DAS LEIS .......................................................................................................................... 57

2.5.1. Das leis em espécie ........................................................................................................ 60

3. DOS CRIMES CONTRA O PROCESSO ........................................................................ 68

3.1. DO JUIZ ............................................................................................................................ 68

3.2. DO ACUSADOR .............................................................................................................. 76

3.3. DO RÉU ............................................................................................................................ 80

3.4. DA TESTEMUNHA ......................................................................................................... 83

3.5. DO ADVOGADO ............................................................................................................. 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 92

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 96
Lista De Abreviaturas Das Obras de Santo Tomás de Aquino

Contra Gent. Summa Contra Gentiles


De VeritateQuaestionesDisputatae de Veritate
De Virt.QuæstionesDisputatae de Virtutibus
S. Th. Summa Theologiæ
9

INTRODUÇÃO

Na filosofia, grandes pensadores dedicaram-se a compreender o sentido da justiça.


Trata-se de um tema que levanta relevantes indagações, tamanha a sua importância para o
homem e seu impacto na sociedade. Santo Tomás de Aquino não é exceção e, seguindo
Aristóteles e o pensamento jurídico clássico, reafirma o direito como objeto da justiça, dando
seguimento às teses jusnaturalistas.
O frade dominicano, que viveu no século XIII, período de grande vigor intelectual da
cristandade, da produção de santos e das brilhantes sínteses de pensamento, procurou
conceber uma filosofia que estivesse em consonância com a teologia, utilizando a razão e a fé
como instrumentos de persecução da verdade. Nas palavras do eminente G. K. Chesterton,
“Tomás foi um grande homem que reconciliou a religião com a razão, que a expandiu na
direção da ciência, que insistiu que os sentidos eram as janelas da alma e que a razão tinha o
direito divino de se alimentar de fatos”1.
A Suma Teológica foi escrita para jovens que iniciavam seus estudos em teologia. A
obra, contudo, de tão grandiosa, tornou-se sua magnum opus, servindo não apenas para o
estudo dos iniciantes, mas para grandes teólogos até os dias de hoje. Torrell afirma que
“chegou-se a questionar os dons desses estudantes a quem era oferecido um manual de
qualidade tão excepcional”2.O método utilizado por Tomás em sua Suma Teológica ébaseado
numa dialética rigorosa em que se apresentam proposições contrárias ao seu pensamento para,
em seguida, serem expostas a uma solução geral e suas respectivasrespostas específicas. Essas
objeções geralmente são citações de outros grandes pensadores, em maior frequência de
Aristóteles e Santo Agostinho, demonstrando grande erudição por parte de Tomás.
Para melhor compreensão do pensamento tomasiano3, faz-se necessário um breve
estudo a respeito do período em que Aquino viveu, especialmente do sistema jurídico no qual
estava inserido e de seus principais procedimentos, como os ordálios, a Inquisição e o Direito
Canônico. Isso porque Tomás, além de trazer verdades atemporais em sua filosofia, também
se preocupou com as principais questões de sua época, buscando uma solução para seus
impasses. Daí a importância de se compreender a origem dessas influências, sem as quais a
sua filosofia jurídica torna-se perdida no tempo e no espaço, impossibilitando a sua total
assimilação.

1
CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Campinas: Ecclesiae, 2015, p. 31.
2
TORRELL, J. P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e sua obra. São Paulo: Loyola, 2015.
3
Neste trabalho, a fim de evitar ambiguidades, utilizar-se-á o termo tomasiano quando a referência é ao próprio
Tomás e o termo tomista em referência aos pensadores que seguem a sua filosofia.
10

O primeiro capítulo deste trabalho analisa o contexto histórico-jurídico


escolástico.Para Santo Tomás e seus contemporâneos, o direito era fundamentalmente
baseado nos costumes, possuindo um lastro consuetudinário que lhe conferia legitimidade
suficiente para ser exigido e esperado por todos. O homem medieval enxergava o mundo em
conformidade com a noção de cosmos, isto é, de uma estrutura racional e hierarquicamente
organizada, que conferia sentido à existência, em oposição ao terrível caos da mera
aleatoriedade. Não havia, portanto, a ideia de um rei e de seus legisladores promulgando
normas contrárias ao que se era normalmente exigido no trato cotidiano. Essa realidade, como
se verá, começa a mudar já no século XIII, quando se dá início a um movimento de
codificação, sem, entretanto, se perder de vista a força dos costumes, que somente ocorreu
séculos mais tarde com o avanço de movimentos revolucionários.
Outra característica importante da épocaé a noção contraposta entre Cidade de Deus
e Cidade do Homem, concebida por Santo Agostinho4, que perdurou por toda a Alta Idade
Média. O bispo de Hipona, influenciado pela filosofia dualista de Platão5, reconhece que o
Estado humano é falho e pecaminoso, pois o homem encontra-se em estado Caído, resultado
do cometimento do pecado original, e por isso necessita de uma Cidade que seja um modelo,
da qual as virtudes podem ser apreendidas e imitadas pelos homens que vivem na Cidade
Terrena. Esse modelo é a Cidade Divina, que é formada por pessoas que abdicam de seus
apetites terrenos e concentram-se na realização da missão cristã, que é viver e pregar a vida de
Cristo.
Essa estrutura dualista, que representa uma tensão entre duas forças, cria um terreno
fértil para as concepções de poder temporal e poder eterno, isto é, o poder exercido pela
Igreja, através da autoridade do Papa, e o poder exercido pela sociedade civil, por meio do
Imperador e seus delegados. Esse esquema de poder equilibrou forças por séculos, impondo
limites tanto ao Estado quanto à Igreja, funcionando como um sistema de freios e contrapesos.
Sua superação, já na era moderna, após o medievo, levou vários reinos da Europa ao
absolutismo hobbesiano, no qual o Estado detinha o poder político absolutocom a justificativa
de controlar os anseios assassinos de seus súditos.

4
Cf. SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2017.
5
Platão alega que há dois mundos: o sensível, pertencente ao âmbito da doxa, e o das ideias, que pertence à
episteme. Resumidamente, o mundo sensível encontra-se em constante movimento e, por conseguinte, em
mudança permanente, o que torna sua apreensão impossível (ou, ao menos, limitada e relativa) para o homem.
Por outro lado, em contraponto ao mundo sensível, do devir, há o mundo do ser, das ideias, atingível pelo
intelecto, por abstração, onde as formas residem, e não sua mera aparência. Essa dualidade da estrutura da
realidade, manifestada por um mundo verdadeiro e um falso, um real e um aparente, é a base da epistemologia
de Platão.
11

Assim, é neste contexto político de natureza dúplice que Santo Tomás desenvolve
sua filosofia jurídica, almejando encontrar um ponto de equilíbrio entre as atribuições do
Imperador e do Papa. Como se verá, o Aquinate, apesar de pertencer a uma ordem religiosa,
trata o assunto com deveras imparcialidade, impondo limites ao poder dos clérigos,
principalmente em relação aos julgamentos da Inquisição, nos quais certos abusos ocorriam,
tanto em processo formal, em relação à legitimidade dos julgadores, quanto ao julgado, em
que se consideravam verdadeiras confissões extraídas por tortura.
No tocando à teoria da justiça, tratada no segundo capítulo, Tomás a define como “o
hábito, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito”6. Com
esse conceito, o Santo corrobora a teoria de Aristóteles, atribuindo à justiça a condição de
virtude moral, devendo, portanto, ser vista como um hábito, um modo de agir conforme
determinada finalidade boa. O agir com vontade constante e perpétuade dar a cada qual o que
lhe é devido embasa toda a teoria tomasiana de justiça, sendo um princípio do qual todo o
restante se deduz. Logo, de modo contrário, dar a alguém o que não lhe é devido, seja mais do
que o merecido, ou menos, é um ato injusto e deve ser caracterizado como um vício.
Lutz-Bachmann afirma que o conceito de justiça de Tomás vai além do conceito
aristotélico, estabelecendo uma justiça que não se baseia apenas na finalidade do agir humano,
isto é, em seu elemento teleológico, mas possui “a normativerationalfoundation”7. Esse
caráter deontológico conta com o acréscimo da vontade constante e perpétua vontade de dar a
cada um o que lhe é devido. Aristóteles, portanto, não concebe à virtude da justiça uma força
normativa fundada na razão que dirige os atos humanos na direção do bem comum, tendo o
Aquinate prosseguido com sua teoria, expandindo-a.
Ainda no segundo capítulo, é necessário fazer uma análise da questão da verdade
(veritas), que Santo Tomás desenvolve na questão 16 da Prima pars, pois toda a ideia de
julgamento justo baseia-se no pressuposto de que os fatos narrados, as provas apresentadas e a
convicção do julgador são verdadeiros.Nesse sentido, Aquino estabelece uma relação entre a
verdade real e a verdade processual, impondo aos juízes julgarem conforme o que é
empiricamente demonstrado em sede processual, não podendo utilizar de evidências estranhas
ao processo ou mera convicções, com exceção de fatos incontestavelmente públicos e
notórios. Logo em seguida faz uma análise da falsidade como contraponto à verdade. Em
seguida, trata da vontade humana e do livre arbítrio, que importam à questão do agir

6
S. Th., II-II, q. 58, a. 1, c.
7
LUTZ-BACHMANN, Matthias. The Discovery of a Normative Theory of Justice in Medieval Philosophy: On
Reception and Further Development of Aristotle’s Theory of Justice by St. Thomas Aquinas. Medieval
Philosophy and Theology, Cambridge, p. 1-14, 2000, p. 8.
12

virtuosamente, contidos nas questões 82 e 83 da primeira parte. Na Pars prima secundae,


tem-se o estudo dos atos voluntários, importante quando da análise da extensão da
culpabilidade do acusado, para que finalmente se possa alcançar, na Suma,o tratado da
virtude, da qual a justiça é espécie, nas questões 55 e seguintes, também da Pars prima
secundae.
No tratado sobre a justiça contido na Suma Teológica, na Secunda secundae, tratar-
se-á das questões 57 à 62, que são relativas à justiça em sua forma geral, entendendo-a como
uma virtude em gênero e, posteriormente, suas espécies distributiva e comutativa. Ademais, é
pertinente, ainda no estudo da justiça, entender o porquê de Tomás ter escrito um tratado da
lei fora do tratado da justiça, já que o Santo defende que a lei é estritamente ligada ao justo. O
tratado da lei também será estudado no segundo capítulo, em seus artigos 90 a 97, na Prima
parssecundae da Suma Teológica,contextualizando-se as diferenças entre lei eterna, lei divina,
lei natural e lei humana, conforme sua hierarquia e seu conceito de participação. Por fim,
deve-se compreendera mudança das leis e a conveniência de sua aplicabilidade pelo
magistrado.
O terceiro capítulo é destinado ao estudo específico das várias espécies de crimes
contra a justiça contidas no tratado da justiça da Suma Teológica,na secunda secundae,
especialmente dedicada aos atores envolvidos no processo judicial. As espécies analisadas de
injustiça são:da injustiça no julgar, da acusação injusta, das injustiças atinentes ao réu, da
injustiça da pessoa da testemunha, da injustiça por parte dos advogados. Deste modo, Tomás
de Aquino reconheceu obrigações específicas para os sujeitos processuais enquanto tais,
diferentemente das outras pessoas em sua generalidade. Isso porque, tratando-se da seriedade
de uma eventual condenação, o processo precisa ser tratado com o máximo de rigor, tendo em
vista que o juiz é o “direito animado”8, concordando com Aristóteles.
Como se verá, essas obrigações dos sujeitos do processo, decorrentes de sua
condição especial, são preceitos da própria lei natural, cuja violação importa em ofensa não
somente à lei positiva mas também à natural, inscrita na própria mente do homem para que ele
a alcance de modo racional9. Isso significa que, por variada que seja a estrutura processual de
cada sociedade, existe um núcleo formal comum que não é estabelecido puramente pela lei
humana, decorrendo da própria natureza das coisas, da qual os princípios de atuação dos
personagens do processo são identificáveis. Daí se faz necessária a distinção entre lei humana
e lei natural, já que esta incide sobre o universal, geral e imutável, prescrevendo princípios

8
S. Th., II-II, q. 58, a. 1, ad. 5.
9
S. Th., I-II, q. 90. a. 1, ad. 1.
13

gerais às de razão prática, ao passo que aquela é particular e varia conforme o tempo e o
lugar, vindo a existir quando da positivação, por um ato legislativo, desses preceitos naturais
gerais, observando-se, contudo, as peculiaridades locais e os costumes da sociedade na qual
são editadas.
Assim, este trabalho conta com um primeiro capítulo que situa, em linhas gerais, o
leitor no ambiente jurídico no qual Santo Tomás estava inserido, a visão do Direito da sua
época e alguns dos diferentes procedimentos processuais adotados pelas autoridades.
Posteriormente, o tratamento que o Doutor Angélico confere à justiça e às leis, seguindo a
justiça como virtude e o jusnaturalismo como princípio. Por fim, os crimes que atentam contra
o processo na Suma Teológica, especificamente aqueles praticados pelos personagens
processuais identificados por Tomás.
Espera-se, no decorrer desse estudo teórico, demonstrar quais foram as
circunstâncias jurídicas em que Tomás desenvolveu sua filosofia do direito, e em qual medida
a evolução da teoria da justiça do começo do medievo até a Escolástica afetou sua obra. A
teoria da justiça, derivada em grande parte de Aristóteles e da filosofia Patrística, é pautada
pela ética das virtudes e pela ideia de uma lei eterna que ordena todas as demais leis, sendo a
lei natural, por participação da lei eterna, um preceito universal que estabelece os
pressupostos de um agir justo.
O estudo, portanto, apresentará a teoria tomasiana do direito, que reconhece na
virtude da justiça, como uma qualidade da alma, o agir conforme a lei, apartando-se da teoria
juspositivista moderna. No decorrer dos crimes contra a justiça, o trabalho busca trazer uma
análise sobre os crimes praticados pelos agentes do processo, suas obrigações judiciais e a
coerência que há entre a filosofia processual de Tomás e sua teoria jurídica, uma vez que
muitos dos preceitos processuais contidos na Suma Teológica procedem da própria lei natural,
não sendo, assim, meras convenções sociais, mas verdadeiras normas universais.
14

1. DO SISTEMA JURÍDICO GERALNA ESCOLÁSTICA

A partir do século IX10, surge na Europa um método de pensamento baseado em


umexercíciode intensa dialética, que se vale, principalmente, de instrumentos presentes na
filosofia grega para resolver seus principais impasses. Alinhados com a fé cristã e com a
herança da Patrística, monges e frades católicos intensificaram a produção teológica e
filosófica, dando início a uma época de grande vigor intelectual.
Neste tempo de estabilidade, posterior ao que comumente se chama de Idade das
Trevas, finalmente o homem medieval pôde encontrar condições favoráveis para voltar a
desenvolver a filosofia. Com o desenvolvimento intelectual, a Europa presenciou,
concomitantemente, um avanço no pensamento jurídico, resultando no resgate, preservação e
estudos de institutos jurídicos romanos que não haviam se perdido em meio às batalhas
medievais.
A partir desse ponto, o Estado medieval deixa de ser apenas uma hierarquia feudal
baseada no princípio da propriedade da terra e se torna uma verdadeira comunidade política,
na qual nobres, comerciantes, clérigos, guerreiros e simples aldeões cooperam para os fins
sociais comuns. A instituição de um governo constitucional de representação, que está
presente nas democracias modernas, tem suas raízes nesse desenvolvimento medieval11.
A cultura torna-se um bem mais difundido e a escola deixa a segurança dos muros
dos mosteiros para descer às cidades que cresciam com rapidez. Os centros da cidade, que
muitas vezes coincidiam com o mesmo lugar das catedrais góticas, representavam os
cruzamentos movimentados de onde chegavam e partiam os caminhos de uma remota
conjunção espacial. “Um mundo tendencialmente estático parece ser substituído por um
mundo muito mais dinâmico, caracterizado por uma circulação intensa, que afeta todos os
níveis de vida”12.
Ademais, durante esse período, também conhecido comoBaixa Idade Média,
glosadores e comentadores restauraram o estudo doCorpus Iuris romano, houve a
instauraçãodo Tribunal da Inquisição, avanços no Direito Canônico (especialmente com a

10
Não há consenso entre os historiadores a respeito da data exata do surgimento da Escolástica. Vale saber, para
este trabalho, que o período coincide com o surgimento das primeiras escolas nos mosteiros cristãos, recebendo,
por isto, o nome de escolástica. A crescente urbanização e relativa estabilidade social, cujo início se deu no
Império Carolíngio, permitiram que homens letrados pudessem se dedicar inteiramente à atividade intelectual, o
que culminaria na criação das primeiras universidades. Cf. HASKINS, Charles Homer. A ascensão das
universidades. Balneário Camboriú: Livraria Danúbio Editora, 2015.
11
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações,
2016, p. 216.
12
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 160.
15

obra de Graciano), e, por fim, as consequências jurídicas trazidas pelas Cruzadas para libertar
a Terra Santa, principalmente em matéria de guerra justa. “À medida que nos distanciamos do
século XI para penetrar no segundo período medieval, a civilização revela-se a nós –
conforme já mencionamos – numa dimensão tipicamente sapiencial, predominantemente
sapiencial”13.
Nesses anos, a teoria jurídica era produzida quase que exclusivamente por clérigos e
não por juristas14. Isso significa que o Direito, assim como as relações costumeiras ordinárias,
encontrava-se sob uma perspectiva cristã, tendo seus institutos correspondência com muito do
que se via nas Sagradas Escrituras e na Tradição. A jurisdição da Igreja se estendia a
inúmeros assuntos, especialmente em área de família, casamento e sucessões15. É, contudo,
natural que fosse assim, já que a fundadora das universidades foi a própria Igreja16, por meio
de seu corpo intelectual formado por estudantes, mestres e acadêmicos em geral, que
conseguiram preservar as obras intelectuais da Antiguidade durante o período mais turbulento
do medievo. O trabalho dos monges copistas assegurou que a civilização não tivesse de
recomeçar do zero, o que basicamente transformaria o rico período clássico em uma pré-
história longínqua.
Assim, a concepção de Direito medieval encontrava legitimidade em uma sociedade
essencialmente cristã, composta por descendentes de romanos e bárbaros pagãos convertidos
pela atividade missionária da Igreja. Paolo Grossi explica que é com o mundo moderno,
especificamente pela codificação do século XIX, que o direito é empobrecido, vinculado e
condicionado apenas ao poder humano17, tornando-se um instrumentum regni, afastado da
realidade social18. Na verdade, essa tendência já havia sido imposta pelos revolucionários
franceses no século XVIII, guiados pelos ideais racionalistas de seus intelectuais
progressistas.
A existência de dois ordenamentos jurídicos distintos espelha a situação vivida na
Idade Média, quando se reconhecia, de um lado, o Direito Civil ou poder temporal,
pertencente aos senhores feudais e posteriormente aos reis, e, por outro, o poder espiritual ou

13
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 179.
14
A secularização total do direito ocorreu séculos mais tarde com o Código de Napoleão, fruto da Revolução
Francesa, que pregava a laicidade do Estado, separando em absoluto o poder temporal do poder eterno.
15
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 160.
16
O corpo eclesiástico da Igreja reconheceu os estatutos das guildas medievais de mestres e de alunos,
oficializando a universidade pela primeira vez.
17
Deve-se entender a passagem de Grossi no sentido de que se valorizaram demasiadamente códigos e preceitos
oriundos da lei humana, cujos conteúdos encontravam-se dissociados dos costumes locais, impondo-se
verticalmente, de cima para baixo, uma legislação sem consonância com a prática cotidiana do homem comum.
18
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 39.
16

Direito Canônico, pertencente aos membros do clero e à Igreja Católica, reconhecidamente a


única cristã no período19.
Os monges ensinaram os bárbaros, agora já devidamente cristianizados, a respeitar o
direito acima da força, canalizando seus espíritos de guerreiros inatos para que a virtude da
fortaleza estivesse em consonância com a virtude da justiça. É da ideia de colocar os fortes
guerreiros a serviço dos fracos, buscando a proteção de órfãos, viúvas e inválidos, que surge a
instituição da Cavalaria, nobres combatentes dispostos a dar a vida em combate em função
daqueles que nãoconseguiam se proteger20.
Deste modo, o direito medieval deve ser encarado como uma grande experiência
jurídica que abriga uma ampla gama de ordenamentos, cujo direito é ordem antes de ser
comando, um movimento espontâneo que nasce das bases da sociedade, protegendo a
civilização de incandescências cotidianas, de rebeldias que ameaçam a paz, funcionando
como um verdadeiro refúgio para os grupos e indivíduos21.
Para os medievais, a lei não era antes de tudo algo feito ou criado, mas uma realidade
existente na vida nacional ou local. A lei era o costume: normas legislativas não eram
expressões de vontade, mas a promulgação daquilo que já se considerava obrigatório e natural
nas relações entre os homens22. Esses costumes nada mais eram do que a repetição sistemática
de hábitos socialmente aceitos, que quando repetidos por um período de tempo considerável,
convertem-se em verdadeiras jus cogens, adquirindo status geral e coercitivo.
Assim se dá o funcionamento do sistema de leis medievais. Imprescindível para a
compreensão do direito de todo esse grande período é o caráter histórico, que se justifica por
ser tradicional, costumeiro, herdado dos antepassados germânicos desses povos ao entrarem
em contato com a civilização e a cultura de Roma. Não se trata mais de pura tradição romana
da Era Clássica, mas de verdadeira tradição romanística23.
Ao contrário dos imperadores romanos tardios, que postulavamserem os únicoslegis
fator, os reis germânicos medievais nunca eram vistos com poder absoluto ou arbitrário para
fazer novas leis. As leis, para esses povos, sempre foram um costume imemorial da nação,
que, antes que qualquer rei as fizesse, era o próprio cenário diante do qual o rei estava

19
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 135.
20
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 99.
21
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 39.
22
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 181.
23
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 133.
17

colocado24. Nas palavras de Grossi, “lex significa ius, significa Volksrecht, constitui a redação
escrita de um patrimônio consuetudinário complexo”25.
Neste contexto, o príncipe aparece como um respeitoso leitor da grande realidade
natural onde o direito está escrito, e onde espera ser apreendido pelos olhos mais atentos. O
príncipe não cria o direito, mas o diz: ius dicit. É um intérprete de uma dimensão preexistente
e sobreordenada, impondo ao poder temporal uma função no plano jurídico majoritariamente
interpretativa26.
Santo Tomás afirmava categoricamente a superioridade da lei consuetudinária sobre
a lei elaborada, escrita e promulgada por um órgão legislativo. Isso porque essa lei elaborada
pode acarretar numa mudança drástica, inesperada ou indesejável, que é fruto da falibilidade
do legislador, ferindo a lei costumeira que é de observância habitual. Essa mudança, portanto,
pode acarretar em prejuízo da coercibilidade e só deve ocorrer diante de máxima e evidente
utilidade ou necessidade pública27. Já há, para o Aquinate, uma preocupação com a segurança
jurídica, fonte fecunda de injustiças que põe em dúvida caráter de confiabilidade da legislação
e da jurisdição.
Essa tranquila e profunda plataforma de índole consuetudinária tem o mérito de ser
pouco afetada pelos acontecimentos de uma superfície irrequieta, baseando as relações entre
os homens na própria natureza das coisas, que o costume tende a imitar fielmente28.O
costume, em toda a Idade Média, é o epicentro do direito, um paradigma para ser observado
por todos aqueles que buscam na função legislativa o seu ofício.
Portanto, tem-se que a fonte do patrimônio jurídico medieval conta com o privilégio
de nascer de baixo, de refletir o real, conservando em si um elemento ordenador, que tem
origem tanto nos costumes quanto em uma autoridade imediata humana e uma medita divina.
Nesse sentido, o Direito é mais ordenamento e menos autoridade; não busca violentar a ordem
das coisas, mas captar a sua ordenação no sentido de estruturar com mais precisão a conduta
humana29. Essa atitude em relação ao direito guarda correspondência com a tradição filosófica
grega, cujo ponto de partida é o cosmos, a estrutura ordenada e harmoniosa da realidade que
se releva ao homem, impondo-lhe a perplexidade diante do grande mistério do mundo que se
desdobra em vontade de conhecer.

24
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 130.
25
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 109-110.
26
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 117.
27
S. Th., I-II, q. 97, a. 2, c.
28
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 115.
29
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 117.
18

1.1.DO SISTEMA JURÍDICO GERAL NA ALTA IDADE MÉDIA

Para uma melhor compreensão do direito escolástico e de seus institutos processuais,


que é o foco deste capítulo, exige-se uma breve introdução sobre a evolução do direito
medieval até meados do século IX. Em que pese a mais conhecida divisão da história, que
considera o período de mil anos entre os séculos V e XV como apenas um grande período de
mil anos, isto é, a Idade Média, há realmente uma divisão entre dois momentos distintos
dentro desse milênio, sendo a primeira uma época estritamente agrária e belicosa, de
adaptação e assimilação da cristandade, e uma segunda época,já de urbanização e
florescimento cultural. Trata-se da unidade civilizacional atingida pela fusão do ethos
guerreiro bárbaro e da moral cristã baseada no amor (caritas)30. Essa conjugação inusitada foi
responsável pelo avanço das ordens militares da Igreja, da Cavalaria e da posterior vitória nas
Cruzadas.
Na Antiguidade tardia, Roma estabeleceu um sistema jurídico centralizado que
decorria da figura do imperador. John Kelly leciona que "o século II contara com uma longa
série de imperadores fortes e iluminados, dos quais o imperador-filósofo Marco Aurélio se
tornou o mais famoso nas épocas seguintes”31.Apesar de pagão, já ao fim do século III, o
número de cristãos no Império, ainda que estes fossem minoria da população, era
consideravelmente grande. Os cristãos conseguiram crescer em um ambiente pagão e hostil
porque a mensagem de Cristo apareceu como um chamado a um nível diferente, a uma vida
que transcende o Estado e as leis, mas sem incitar a rebelião ou desavenças32. Esse
comportamento socialmente inofensivo fez com que, aos poucos, a tolerância para com os
cristãos aumentasse e chegasse ao ponto de uma convivência pacífica.
Durante a Patrística33, muitos filósofos e teólogos buscaram elaborar um sistema
jurídico que fosse compatível com o cristianismo, em especial com os Dez Mandamentos. A
ética pagã rapidamente se convertia numa ética voltada para o amor ao próximo, conforme

30
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações,
2016, p. 191.
31
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 104.
32
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 117.
33
A Patrística foi o primeiro movimento filosófico cristão.Buscava uma síntese entre a filosofia grega e a
doutrina cristã. Os Padres da Igreja, como eram chamados esses filósofos, utilizavam-se da filosofia dos gregos
para defender a nova religião que surgia, em um intenso esforço apologético, cujo objetivo era refutar tanto os
pagãos quanto os próprios cristãos que incorriam em heresia.
19

manda o segundo mandamento34. O maior dos padres da Igreja do Ocidente, Santo Agostinho
de Hipona, visualizou a civitas Dei, de origem celeste, à qual se contrapõe à civitas terrena,
cuja origem é infernal. A cidade dos homens precisa ser subordinada à cidade de Deus, caso
contrário não seria mais do que um Estado destituído de justiça na forma de um sistema de
banditismo organizado35.
Posteriormente, com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., a
Europa se viu diantede um enorme vácuo de autoridade. O Império atuava no mundo como
um farol da civilização, porémnão resistiu às invasões bárbaras externas e aos seusproblemas
estruturais internos. Assim, Roma, que até então havia absorvido a cultura grega, cujo
desenvolvimento culminou na descoberta da filosofia, trazia consigo um sistema político e
jurídico extremamente avançado, ao contrário das inúmeras tribos que a derrotaram. A
história se repetia.
A ordem jurídica medieval inicia-se, por conseguinte, com um mundo de autonomias
diversas, fundada numa pluralidade de ordenamentos, cada qual com seu âmbito específico e
suas peculiaridades. Despida da pretensão de expansionismos abrangentes, pressupõe a
convivência mais ou menos respeitosa entre ordenamentos diversos36. O homem do medievo,
ao contrário do romano, enxerga um mundo fragmentado, onde cada porção de território é
uma pequena comunidade vivendo conforme suas próprias regras e hábitos, unidos somente
por seus laços de sangue e por suas vitórias em batalha.
O fim da autoridade centralizada romana levou, inevitavelmente, num primeiro
momento, à anarquia jurídica. Tribos bárbaras, como os godos e hunos, não contavam com
um direito organizado, resolvendo seus impasses através da força e da violência. A
preocupação com a justiça era um luxo de sociedades civilizadas, desconhecida por povos
cujo objetivo maior era sobreviver até que pudessem expandir seus domínios.
Após essaderrocada do Império Romano causada pelos povos germânicos, o mundo
intelectual se viu unicamente dominado pela Igreja, que logo começou a construir um arsenal
filosófico baseado nos ensinamentos de Cristo. As doutrinas estoicas, de elevado conteúdo
moral, possuíam grande compatibilidade com religião cristã, portanto a adaptação daquela por
esta foi inevitável37.A ordenação das emoções, a ascese e a meditação fizeram com que os
filósofos do estoicismo não estranhassem por completo a nova religião, tornando a conversão

34
Lv, 19, 18.
35
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 118.
36
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 277.
37
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 132.
20

um processo menos radical, já que compartilhavam de uma práxis similar, além de doutrinas
que lembravam a cristã, como a fraternidade universal, ensinamento fundamental do
cristianismo que decorre especialmente da parábola do bom samaritano38.
Posteriormente, com a crescente conversão dos bárbaros, decorrente da incansável
atividade missionária da Igreja, a sociedade do Ocidente adquiriu estabilidade suficiente para
começar a se reorganizar. Essa organização social se deu com base nos ensinamentos dos
filósofos da Patrística, sobretudo a de Santo Agostinho e sua concepção política dualista
exposta em De Civitate Dei, conforme já exposta.Assim,pode-se concluir que na Alta Idade
Média foram consagradas duas noções básicas: primeiramente, a da soberania humana, o que
conferia legitimidade ao governo e à legislação positiva; em segundo lugar, que essa
soberania decorria de Deus, governante absoluto do universo39.
A aceitação do cristianismo trouxe para os bárbaros inúmeros benefícios: os
beneditinos instruíam as crianças na história sacra, ensinavam os homens a construir casas de
pedras para que não mais vivessem em choças e os convenciam a abandonar as cruéis práticas
dos ordálios, nas quais se decidiam questões jurídicas por meio de combate entre autor e réu
ou outro tipo de violência40. A Igreja, assim, amenizou e necessidade de violência desses
povos, enaltecendo virtudes intelectuais e morais até então estranhas a essas tribos.
Deve-se ressaltar que essa unidade religiosa, consolidada pela Igreja, nunca
funcionou como uma verdadeira teocracia absolutista, como ocorria no Oriente. Ao contrário,
o dualismo entre o poder espiritual e temporal criou uma tensão interna nas sociedades,
tornando-se campo fértil para os movimentos de autocrítica e mudança41.Essa tensão
encaminhou a sociedade medieval na direção de um dinamismo capaz de grandes adaptações
frente aos mais diversos desafios.
Dawson explica que há uma enorme diferença entre a doutrina paulina de corpo
místico divino, na qual cada parte busca sua perfeição e contribuir para as demais, e a ideia
aristotélica da sociedade como um organismo natural, suficiente a si mesmo, na qual as partes
existem em função do bem do todo, conferindo ao governante e ao legislador a função de

38
Lc, 10, 25-37.
39
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 123.
40
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 99.
41
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações,
2016, p. 46.
21

imprimir forma à matéria inerte do corpo social, possuindo as classes mais baixas um caráter
meramente instrumental42.
Como é posteriormente demonstrado por Santo Tomás, é possível incorporar o
imanentismo orgânico da política de Aristóteles à transcendência revelada do cristianismo,
com a condição de que o Estado seja reconhecido como um organismo da comunidade
espiritual, e não como fim último da vida humana. Na metafísica tomasiana, razão e fé não se
excluem, sendo doiscaminhos diferentes para se atingir a verdade. Não há, portanto, duas
verdades, mas apenas uma, que pode ser alcançada, em certos casos, pela fé, em outros pela
razão, e, nos demais, por ambos. Como explica Chesterton, “para Santo Tomás é impossível
que coisas contraditórias existam ao mesmo tempo e, mais uma vez, realidade e
inteligibilidade correspondem, mas uma coisa deve primeiro existir, para ser inteligível”43.
Ora, se é assim em sua metafísica, também o é do mesmo modo em sua filosofia política, que
reconhece o caráter transcendente do Estado, em contraponto à teoria de Aristóteles,que mais
se aproxima de um governo puramente naturalista, cujo fim mediato não é a salvação do
homem, mas tão somente o adequado funcionamento da sociedade, numa relação adequada
das partes para com o todo.
Nas palavras de Cicco, “a superioridade da Igreja Católica nessa época deve-se à tese
agostiniana, por todos aceita então, de que a “Cidade do Homem” deve se subordinar sempre
à “Cidade de Deus”, como o corpo se subordina à alma”44.Logo, não havia tão somente uma
ideia imanentista de direito, originada dos costumes e dos legisladores, mas também uma
verdadeira fonte jurídica de origem transcendente, decorrendo a lei humana da lei divina, mais
especificamente dos Dez Mandamentos.A grande conquista do período foi conciliar essas
fontes do direito que poderiam parecer antagônicas num primeiro momento e elevá-las a um
patamar superior, harmonizando a necessidade da criação da lei humana com a realidade
ontológica da lei natural e da lei divina.
A doutrina de que o direito e atos humanos devem se conformar com uma lei eterna,
superior e imutável provém da Antiguidade clássica, sendo amplamente aceita no mundo
medieval cristão e reforçada pelas Sagradas Escrituras. Nos séculos XII e XIII, e

42
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações,
2016, p. 218.
43
CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Campinas: Ecclesiae, 2015, p. 129.
44
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 97.
22

especialmente com Santo Tomás, essa doutrina experimentou um notável desenvolvimento,


como se pode extrair do tratado da lei contido na Suma Teológica do Aquinate45.
Destarte, isso significa que, na linha filosófica dos clássicos Platão e Aristóteles,
assim como dos medievais que seguiram essa doutrina jusnaturalista, a lei tem um
fundamento ontológico que lhe é próprio. A lex não é uma vontade, não depende do sujeito
detentor do poder político; ao contrário, encontra sua razão de ser na realidade objetiva. Trata-
se de uma regra preceptiva cuja legitimação emana da natureza46. Deve, portanto, ser extraída
da realidade e reduzida a preceito formal47.

1.2. DO DIREITO CANÔNICO

A lei canônica surgiu na Antiguidade tardia com a finalidade de regular as relações


entre os cristãos, além de estabelecer normas gerais para a administração das igrejas. Somente
com a conversão de Constantino que o direito canônico se viu integrado nas questões de
governo, crescendo e se adaptando conforme as exigências de seus novos tempos. O fim da
dominância política de Roma não significou, contudo, o fim do direito canônico, que
continuou se aprimorando com uma série de concílios e sínodos. Várias tentativas de
sistematizar esse corpo jurídico foram tentadas nos séculos seguintes à queda do Império, mas
resultaram em confusas e infrutíferas compilações48.
O quadro só mudou com o surgimento da Escolástica, que conseguiu gerar uma
sociedade extremamente intelectualizada, repleta de professores, alunos e livros, de um modo
como nunca se vira antes. Essa era de estudos foi inaugurada em Bolonha e é
convencionalmente dividida em duas fases: de 1100 a 1250, denomina-se era dos glosadores,
enquanto a segunda, que ocorreu de 1250 a 1400, aproximadamente, chamou-se de era dos
comentaristas, ou pós-glosadores. A diferença entre ambos é o método utilizado para o estudo
do Digesto49, pois, enquanto os glosadores anexavam ao texto simples notas marginais, as

45
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 185.
46
S. Th., I-II, q. 90, a. 4, ad. 1.
47
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 176.
48
HARTMANN, Wilfried; PENNINGTON, Kenneth. The History of Medieval Canon Law in the Classical
Period: From Gratian to the Decretals of Pope Gregory IX. Washington D.C.: The Catholic University of
America Press, 2008, p. 6-7.
49
O Digesto é a compilação de textos legais clássicos, escritos por importantes jurisconsultos romanos, que
ocorreu durante o reinado do Imperador Justiniano. O documento almejava preservar as importantes lições
jurídicas do período clássico para a posteridade.
23

“glosas”, explicando-o, os comentaristas iam além, escrevendo inúmeros comentários sobre


os vários assuntos tratados pelos romanos50.
Esse amadurecimento intelectual e jurídico esteve ligado à escola de Bolonha51,
aliado ao renovado interesse pelo Digesto. Central para essa noção de redescobrimento dos
estudos jurídicos é o surgimento de duas ideias: do direito como disciplina apartada da
teologia e do reconhecimento dos juristas como um grupo profissional distinto52. Foi nesse
contexto que um monge chamado Graciano, em 1140, coletou e organizou uma grande
quantidade de regras eclesiásticas, os cânones53 numa obra intitulada
Concordantiadiscordantiumcanonum, mais conhecida simplesmente como o Decretum de
Graciano54. O Decretum é uma das fontes jurídicas medievais mais importantes, sobretudo
pela sua doutrina sobre o direito natural, representando um marco na história do direito
ocidental. Foi apenas no século XII que a lei romana começou a ganhar forma e desenvolveu-
se a noção de profissional do direito. Isso se deve, evidentemente, ao reaparecimento do
Digesto, uma vez que antes dele só se conheciam pequenos fragmentos esparsos da lei
romana55.
A estrutura do Decretum de Graciano e sua metodologia são o que fizeram dele um
documento único. O monge não simplesmente listou as normas de forma genérica, mas
compilou textos legais aparentemente contraditórios e, aplicando uma dialética racional,
resolveu suas contradições. Essas resoluções e silogismos de Graciano foram os responsáveis
por sua utilidade tanto em sala de aula quanto na resolução de problemas práticos. Apesar de
o Decretum nunca ter sido oficialmente promulgado pelas autoridades eclesiásticas, seu êxito
é comprovado pelo seu alcance absoluto no período. Os canonistas, assim, encontraram neste
documento seu corpo de conhecimento esotérico, que lhes conferiu o status diferenciado de
juristas.Nas lições de Hartmann: “one crucial aspect of the twelfth-century renaissance in both
50
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 159.
51
Bolonha e Paris foram, no período, os maiores centros intelectuais da cristandade. A Universidade de Paris era
conhecida por seu trabalho filosófico e teológico, sendo essencialmente uma instituição religiosa, onde Santo
Tomás aprendeu e ensinou. A Universidade de Bolonha, por sua vez, possuía um caráter mais laico, e seu
principal foco era o estudo do Direito, a formação de advogados e burocratas. Em Bolonha se presenciou o maior
avanço jurídico da época, baseando-se numa dialética entre o direito romano, o direito consuetudinário e o
direito canônico.
52
HARTMANN, Wilfried; PENNINGTON, Kenneth. The History of Medieval Canon Law in the Classical
Period: From Gratian to the Decretals of Pope Gregory IX. Washington D.C.: The Catholic University of
America Press, 2008, p. 1.
53
Do grego kanón, significa regra, norma.
54
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 160.
55
HARTMANN, Wilfried; PENNINGTON, Kenneth. The History of Medieval Canon Law in the Classical
Period: From Gratian to the Decretals of Pope Gregory IX. Washington D.C.: The Catholic University of
America Press, 2008, p. 4.
24

theology and law is that it was text based. The theologians had the Bible; the lawyers had the
Digest and the Decretum”56.
Em termos gerais, a principal característica do Decretum, publicado pouco depois de
1139, é a distinção entre a lei divina e a lei humana. Divina porque se trata da lei revelada que
se liga ao Decálogo e ao mandamento de Cristo de amar o próximo, sendo uma lei que emana
diretamente do próprio Deus. Por esse motivo é que o Decretum tornou-se a base do Codex
Iuris Canonici57. Ao contrário de positivistas modernos, o homem medieval reconhecia o
direito na própria ordem da realidade, isto é, na estrutura da natureza, da qual se deveria
extrair seus comandos mais gerais. Assim, a lei divina provém da graça, não abolindo a lei
humana baseada na razão natural. Trata-se de uma concepção libertadora, que tirou do homem
as limitações e servidões da ordem temporal e abriu um horizonte espiritual mais amplo para a
cristandade58.
É o que ocorre quando a própria estrutura da realidade, a cosmovisão, é pensada
conforme uma premissa transcendente: todo aspecto da vida terrena, material e finita é
voltado para a vida celeste, imaterial e eterna. Essa compreensão esvazia grande parte da
importância dos governos e de seu corpo jurídico, que jamais podem ir de encontro ao que foi
previamente estabelecido no plano divino. O homem medieval vive com os pés no chão, mas
sua mente repousa em uma realidade mais ampla, impedindo-o de adotar uma postura
puramente imanente, materialista e imediatista.
Tal efeito se deve à instrumentalidade que o Direito assume na ótica da Igreja. A
Igreja, por meio de seus juristas, com a convicção de que é no tempo, na sociedade e no
mundo que se combate e se vence a batalha de cada homem pela vida eterna, toma, por
conseguinte, o Direito como arma, produzindo-o. Entretanto, ao mesmo tempo se percebe que
a Igreja não possui cultos formalísticos pelo direito, não o colocando como seu fim, ao
contrário da sociedade civil. Sendo assim, o direito serve como um instrumento que, apesar de
necessário, é tido como um meio para se alcançar o único e verdadeiro fim do cristianismo: a
conquista da eternidade, a salus aeterna animarum59.
Durante o primeiro milênio, a edificação do Direito Canônico foi um reflexo das
dificuldades enfrentadas pela Igreja, dificuldades ameaçadoras e de ordem tanto interna, em
56
HARTMANN, Wilfried; PENNINGTON, Kenneth. The History of Medieval Canon Law in the Classical
Period: From Gratian to the Decretals of Pope Gregory IX. Washington D.C.: The Catholic University of
America Press, 2008, p. 8.
57
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 185.
58
DAWSON, Christopher. Criação do Ocidente: a Religião e a Civilização Medieval. São Paulo: É Realizações,
2016, p. 218.
59
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 147-148.
25

relação às heresias, que corrompiam o tecido eclesiástico por dentro, promovendo anarquia
teológica; e ameaças de invasões, por fora, na forma de poderes laicos que se disfarçavam sob
a aparência de dóceis fiéis com a finalidade de usurparem o poder espiritual que à Igreja é
devido60.
Esse primeiro corpo de leis sistemático da Europa medieval, o direito canônico,
tornou-se o modelo de diversos sistemas jurídicos civis posteriores. Nos séculos XII e XIII,
antes da compilação e de seu estudo, não havia em lugar algum da Europa qualquer sistema
de leis parecido com os atuais. Desde a fragmentação do Império Romano do Ocidente, o
direito tinha estado intimamente ligado aos costumes e laços de sangue, não podendo ser
estudado ou compreendido fora dessas realidades, o que, por conseguinte, inviabilizava sua
sistematização racional61.
Foi com Graciano e outros canonistas que foram desenvolvidos critérios baseados na
razão e na consciência, com o intuito de validar os costumes estabelecidos e introduzir a ideia
de uma lei natural anterior à política, que a condiciona62. Um exemplo desses critérios foi que
a lei canônica sobre matrimônio considerou que, para a validade do casamento, era necessário
o livre consentimento do homem e da mulher, sendo o ato nulo caso algum deles estivesse sob
coação ou erro de identidade. Os canonistas preocuparam-se com a intencionalidade do ato e
suas diversas implicações morais. Deste modo, se uma pessoa, quando da prática criminosa,
estivesse fora de si, confusa ou até mesmo intoxicada, não podia ser responsabilizada em
juízo pelo seu ato. Toda a visão cristã de mundo encontra nesse elemento subjetivo um
importante aspecto do homem, porque Deus, sendo onisciente e julgador perfeito, atenta-se
aos detalhes mais ínfimos presentes na alma humana para lhe conceder a salvação ou a
condenação.
Pois assim o direito penal desenvolveu-se na civilização ocidental, profundamente
influenciado pela explicação de Santo Anselmo (1033-1109 d.C.) sobre a doutrina da
expiação. Essa doutrina baseava-se fundamentalmente na ideia de que a violação da lei era
uma ofensa não só contra a justiça temporal, mas contra toda a ordem moral do universo. Isso
significa que a violação exigia uma punição que reparasse a ordem moral, sendo obrigatória a
adequação da punição à natureza e à extensão da violação do ato63. Essa característica é muito

60
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 142.
61
WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. 9. ed. São Paulo:
Quadrante, 2014, p. 180.
62
WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. 9. ed. São Paulo:
Quadrante, 2014, p. 181.
63
WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. 9. ed. São Paulo:
Quadrante, 2014, p. 185.
26

visível no homem medieval, que, assim como os gregos, compreende a realidade como um
todo ordenado racionalmente, cuja estrutura e hierarquia formam o cosmos, ao qual todo
homem deve se submeter.
Era ensinado aos acadêmicos que, em matéria criminal, a Igreja possuía jurisdição
exclusiva sobre todos os crimes cometidos por clérigos, num sentido geral. Isso significava
que qualquer pessoa pertencente a ordens religiosas, inclusive aqueles que de algum modo se
beneficiavam delas, como estudantes, monges e freiras, encontravam-se submetidos às regras
de direito canônico. A tensão com o poder secular se intensificava porque essa jurisdição
abrangia desde crimes puramente eclesiásticos até homicídios, estupros e roubos64.
A autoridade do Papa, crescendo em influência junto com o direito canônico, chegou
a absorver inúmerasatribuições jurisdicionais, tanto seculares quanto clericais, sendo um
desdobramento natural desse crescimento o surgimento da Inquisição, com a finalidade de
centralizar a autoridade da cúria romana em matéria criminal65. Essa decorrência era natural e
esperada, porque conforme o tempo passava e a urbanização aumentava, a criminalidade
crescia sem precedentes. O movimento de reação foi não apenas necessário como trouxe mais
eficiência aos processos criminais.
Contudo, como consequência da realidade social da época, a tortura foi incluída
como procedimento aceitável no direito canônico, com autoridades argumentando que
somente pela dor e medo, como circunstâncias excepcionais em nome da publica utilitas, os
acusados confessariam seus crimes. Por outro lado, havia inocentes que eram forçados a
confessar crimes que não cometeram em razão de fortes evidências apontarem sua culpa66. Há
que se ressaltar, entretanto, que antes do direito canônico, procedimentos de tortura eram
abundantemente empregados em processos judiciais, e só foram amenizados e por fim
extintos graças à caridade cristã e a sua preocupação com a salvação das almas.

1.3. DOS ORDÁLIOS

Os ordálios67, ou juízos de Deus (judicium dei), eram provas judiciárias comuns no


medievo. Operavam-se mediante a submissão de acusados a práticas probatórias violentas, as
quais envolviam grandes sacrifícios físicos. Sair vivo da prova importava inocência, ao passo

64
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law.New York: Routledge, 2013, p. 71.
65
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law.New York: Routledge, 2013, p. 92.
66
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law.New York: Routledge, 2013, p. 96.
67
Ou ordálias, admitindo-se ambos os gêneros para se referir ao procedimento.
27

que sucumbir comprovava a culpa. Acreditava-se que Deus protegeria os inocentes e


permitiria o martírio dos culpados68. Essa prática, apesar de a sua maior divulgação ocorrer no
período medieval, é antiquíssima e remete-se a sociedades politeístas anteriores ao período da
Antiguidade Clássica. Há pesquisas apontando que os ordálios foram procedimentos
basicamente universais, e não restritos a apenas sociedades em contextos específicos69.
Os ordálios eram geralmente realizados mediante o emprego de fogo ou de água.
Para os nobres, reservava-se, normalmente, o fogo, ao passo que para os plebeus, a água.
Além desses métodos, também se recorria a envenenamentos, combate com animais ferozes e
até duelos70. A multiplicidade de procedimentos e a ausência de uma previsão legal tornam os
ordálios racionalmente duvidosos. Assim, na experiência jurídica germânica, os ordálios
podem ser classificados em: juízos de fogo, juízos de água, juízo pela sorte e duelo. A prova
possuía um caráter místico: Deus, onipresente, onipotente e onisciente, atuaria diretamente no
processo e julgaria o acusado de maneira infalível71.
Os ordálios eram costumes importados dos bárbaros, que, ao contrário do povo
romano, não contavam com um sistema jurídico organizado para solução de seus impasses.
Tiveram origem na crueldade recorrente da sociedade bárbara. A Igreja, que não apenas
conservou as leis romanas, mas também as aprimorou, pôs-se contra a selvageria desses
julgamentos. Pedrosa explicita que “já em fins do Século XII, a própria Igreja proibiu as
práticas ordálias. Destacam-se, nesse aspecto, os manifestos dos Papas Estevão IV, Alexandre
II e Inocêncio III. Por fim, no IV Concílio de Latrão (1215), os ordálios são definitivamente
proibidos”72. Vale lembrar que Santo Tomás nasceu cerca de dez anos após essa proibição73,
já em tempos mais civilizados.
O processo era um espelho fiel do sistema jurídico bárbaro, principalmente dos
povos germânicos: havia muitos limites para ingerência do poder público, deixando ampla
liberdade de ação para as partes envolvidas. Além disso, não havia divisão entre o processo

68
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 9.
69
RICHTER, Bianca Mendes Pereira. A prova através dos juízos de Deus na Idade Média. Revista da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015. Disponível em
<https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/259>. Acesso em: 25 mar. 2019, p. 10.
70
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 9-10.
71
RICHTER, Bianca Mendes Pereira. A prova através dos juízos de Deus na Idade Média. Revista da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015. Disponível em
<https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/259>. Acesso em: 25 mar. 2019, p. 8-9.
72
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 10.
73
Para mais informações sobre a biografia de Tomás, cf. TORRELL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de
Aquino: sua pessoa e sua obra. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
28

civil e o processo penal, como se dá hoje. O procedimento era oral, público, repleto de formas
e símbolos religiosos74. Os ordálios funcionavam como verdadeiros eventos públicos,
alimentando a necessidade de violência de um público cuja vida era muito dura. Esses
julgamentos promoviam uma verdadeira pacificação social, acalmando os ânimos mais
exaltados e garantindo estabilidade coletiva75.
É evidente que o desenvolvimento das cidades, junto com a ascensão da classe
intelectual e dos mercadores, a partir da maior estabilidade social presente na Escolástica, faz
com que os processos ordálios logo se tornem inadmissíveis. O período representou
progressos na administração da justiça criminal, que tendiam a torná-la mais racional e
igualitária. Desenvolveu-se, por conseguinte, grande resistência contra essas antigas formas
processuais, incluindo os ordálios76. O misticismo pagão presente na cultura bárbara
enfraquece e dá espaço a uma teologia calcada numa Escritura Sagrada coerente e em uma
tradição filosófica sólida. A época exigia soluções mais racionais para problemas mais
civilizados. Não sem motivo, coincide com a era das grandes Sumas Teológicas, da qual o
Doutor Angélico é seu maior representante.
A Igreja, que já possuí uma grande influência no direito penal, conseguiu mitigar a
crueldade dos ordálios, compatibilizando o sistema jurídico com a ética cristã. Primeiro,
porque a culpa do criminoso deveria ser proporcional a todas as circunstâncias do crime,
inclusive as subjetivas; segundo, porque o criminoso, como pecador, necessitava de
arrependimento, confissão e recuperação, e, sendo exposto a um processo irracional, sem a
possibilidade de defesa e de reflexão, cujo resultado frequentemente era a morte, tornava-se
quase impossível um arrependimento eficaz77. “A pena criminal só é aceitável se estiver
relacionada com uma falta moral; caso contrário é injusta; e o estado mental do culpado deve
influir na medida de sua pena”78.
Ivo de Chartres (1040-1115) é um dos principais nomes desse movimento que
buscava o fim dos ordálios. O bispo de Chartres reintroduz o sistema romano, em substituição

74
RICHTER, Bianca Mendes Pereira. A prova através dos juízos de Deus na Idade Média. Revista da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015. Disponível em
<https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/259>. Acesso em: 25 mar. 2019, p. 7.
75
Pode ser feita uma analogia com a política do panis et circenses romana, em que homens condenados ou
escravos eram submetidos a provações diversas como espetáculo para o público, que temporariamente esquecia-
se de suas mazelas sociais.
76
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 192-193.
77
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 146.
78
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, p. 203.
29

ao sistema probatório germânico, relegando aos ordálios o status de meio subsidiário de


convencimento do juiz. O confronto entre provas místicas e racionais passa a pesar em favor
desta última. Nos procedimentos adotados por Ivo, é reconhecido o princípio do juiz natural,
que deve atuar de maneira imparcial, diligente e prudente, além da valorização em favor de
um processo escrito. O bispo também concebeu critérios de territorialidade, a adoção da
hierarquia na competência recursal, admitindo-se recurso à Santa Sé, dinâmica temporal para
que cada ato processual ocorresse em seu devido tempo e, por fim, a necessidade de a
sentença ser prolatada após minuciosa análise das provas e racional convencimento do
julgador79. Todas essas medidas contribuíram para uma maior organização e confiabilidade do
processo, que, além de ser humanizado, tornou-se mais eficaz na busca da verdadeira justiça.
Assim, é de se supor que os ordálios nasceram e prosperaram graças à ausência de
sistemas judiciários eficazes, que resolvessem verdadeiramente os conflitos de interesses e
não os jogasse à sorte80. Os julgamentos pautados exclusivamente na fé tornaram-se alvo de
desconfiança e, posteriormente, de repúdio, pois deixaram de convencer o homem medieval
quanto a sua confiabilidade.
Mesmo que os ordálios já fossem proibidos quando de seu nascimento, Tomás de
Aquino contribuiu significativamente para sua superação definitiva, construindo uma filosofia
jurídica baseada em elementos racionais de prova e procedimentos processuais
ordeiros81.Deste modo, como se evidenciará na presente pesquisa, o Santo contribuiu para o
avanço do direito processual, especialmente em matéria de processo penal, chegando a
instituir verdadeiras garantias fundamentais, mecanismos presentes até hoje nas Constituições
do mundo civilizado.

1.4. DA INQUISIÇÃO

A Inquisição82 foi uma reação da Igreja e do Estado medieval às heresias que


punham em causa a fé unificadora do comportamento da sociedade. A cultura e a fé eram
intrinsecamente ligadas na Idade Média, o que explica esse movimento de reação às diversas

79
RICHTER, Bianca Mendes Pereira. A prova através dos juízos de Deus na Idade Média. Revista da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015. Disponível em
<https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/259>. Acesso em: 25 mar. 2019, p. 12.
80
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 201, p. 10.
81
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 12.
82
Será analisada a Inquisição num contexto mais francês e germânico, ligado a Santo Tomás, pois se sabe que a
Inquisição ibérica teve peculiaridades próprias.
30

doutrinas que poderiam causar uma crise na comunidade83. Como se sabe, a fé cristã foi o que
conferiu unidade à sociedade europeia, que até então vivia em constante guerra entre suas
diversas tribos. Pela primeira vez, homens não foram unidos por laços sanguíneos ou relações
de conveniência material, mas por um elemento transcendente e universal. Daí se compreende
a ligação estreita entre fé e cultura no período, já que aquela construiu esta.
Conforme Nunes explica, “a heresia era a acusação conferida aos que se opunham à
ordem e unidade cristãs”84. Os cátaros e albigenses se destacaram como os principais grupos
de hereges. Não só a Igreja era atacada, mas o Estado também se via atingido pelas
investiduras heréticas. Combater as heresias, portanto, era uma tarefa tanto do poder temporal
quanto do poder eterno, sem a qual a sociedade se via suscetível a toda sorte de elementos
desestabilizadores.
Sua gênese remonta à conversão de Constantino, em 313, e à conversão do Império
Romano em 380. Daí por diante, sucessivos imperadores se ocupam do assunto, punindo com
rigor o paganismo e as heresias. O direito romano cria a figura do crime de lesa-majestade
divina, análogo ao de lesa-majestade imperial. Contra as heresias são usadas penas de morte,
exílio e confisco de bens, tendo sido incluídas no Código Teodosiano e no Código Justiniano,
influenciando o direito dos séculos posteriores85.
Por todos os cantos, e cada vez mais, desvios religiosos se multiplicavam e geravam
perplexidade e caos na cristandade. A mais nefasta heresia foi a dos cátaros86, que não é mais
do que um desdobramento do maniqueísmo, porém apresentando um poder de destruição
ainda mais devastador. Sua doutrina germinou no Oriente, após a perseguição ocidental aos
maniqueus, e voltou com força à Europa no século X, conseguindo a adesão de milhares nos
Países Baixos, na Alemanha e no sul da França, onde foram chamados de albigenses.
Defendiam uma doutrina dualística, como os maniqueus, com dois princípios ou dois deuses:
um deus bom, criador do espírito, e um deus mau, criador da matéria e dos corpos87. Sendo o
corpo e a matéria intrinsecamentemaus, os cátaros pregavam a extinção do mundo material,
condenando nascimentos, as posses e, em última instância, a conservação da própria
sociedade. É certo que a Igreja prega o domínio do espírito sobre o corpo, isto é, da razão
sobre a emoção, sem, entretanto, negar a importância do corpo e das paixões, que devem
83
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 12.
84
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 13.
85
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 93.
86
Do grego katharós, significa puro, em clara alusão à ascese extrema que pregavam e à demonização do corpo
humano.
87
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 94.
31

permanecer sob o domínio racional. Os cátaros, ao contrário, enxergavam o corpo como o


grande empecilho para a plena vida espiritual, não podendo ser controlado ou posto a serviço
do espírito, devendo, portanto, ser eliminado. Caso essa seita prevalecesse, a própria
sociedade entraria em decomposição e se extinguiria.
Diante das insuficiências do clero secular para o combate a essa poderosa heresia, o
poder civil recorreu aos frades. São Domingos de Gusmão foi incumbido de algumas missões
e, por volta de 1216, foi-lhe entregue a presidência de um tribunal. Como instituição oficial e
permanente da Igreja, entretanto, a Inquisição somente se consolidou em 1231, por bula do
Papa Gregório XI88.A bula Excommunicamus foi o documento que deu origem aos processos
inquisitoriais, nomeando inquisidores permanentes, os quais deveriam trabalhar juntamente
com o poder temporal e os clérigos locais89. A Ordem de Domingos, da qual Tomás fez parte,
“estava destinada a pregar a filosofia católica aos hereges albigenses; cuja única filosofia era
uma das muitas formas de maniqueísmo com que esta história se preocupa”90.
A Inquisição, por isso, constitui uma ação dos Imperadores e dos Papas contra o
avanço dessas doutrinas heréticas. No Concílio de Latrão, em 1215, já se obrigam os cristãos
a denunciar os suspeitos de heresias. Em 1231, Gregório IX inicia a codificação do processo
da Inquisição, regulando as acusações e julgamentos dos denunciados. Finalmente, em 1252,
Inocêncio IV instaura a tortura como procedimento de obtenção de prova nos processos
inquisitoriais91. Trata-se de um dos maiores erros do Tribunal, que considerava válida uma
confissão obtida mediante tortura.
É por meio da Inquisição que se unem mais fortemente os dois poderes e reafirma-se
a ideia das “duas espadas”: da Igreja e do rei, delegadas por Deus para o exercício de
autoridade espiritual e temporal, com a supremacia da primeira.Não há, verdadeiramente,
qualquer mudança substancial na estrutura do poder, apenas um reforço de uma realidade já
preexistente. Há séculos o tribunal da Igreja já vinha aplicando seu Direito Penal Canônico a
variados crimes, em estreita união com a justiça civil, cujo direito penal também punia
equivalentes infrações. A Inquisição, assim, equiparou-se a uma justiça civil, adotando
modelos que já vigoravam nos tribunais laicos. Eram métodos que contavam com o total
beneplácito dos maiores juristas contemporâneos, não podendo os clérigos da época
88
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 97.
89
SOUZA, Ney de. et alii. Aspectos da inquisição medieval. Revista de Cultura Teológica, v. 19, n. 73, p. 59-88,
jan./mar. 2011. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/308045864_Aspectos_da_inquisicao_medieval>. Acesso em: 26 mar.
2019, p. 63.
90
CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Campinas: Ecclesiae, 2015, p. 39.
91
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 13.
32

escaparem às suas influências92. A majestade de Cristo deveria ser mais respeitada do que a
majestade real, sendo a unidade da fé uma necessidade de ordem pública. Atentar contra a
religião significava ultrajar a verdade evangélica e a honra da própria sociedade93.
Em todo o desenvolvimento das sociedades, até muito recentemente, as práticas
repressivas sempre foram muito severas. Cristo morreu entre dois ladrões, e esse fato não
passa despercebido à Igreja. Um dos homens demonstrou ter boa índole de última hora e,
assim mesmo, ali estavam sofrendo a crucificação94. Gonzaga explica que “o procedimento
dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual, inaceitável; mas, apesar disso,
representou um abrandamento perante o que se passava nos seus congêneres do Estado”95.
As censuras modernas apresentadas contra a Inquisição giram em torno das ideias de
intolerância, prepotência e crueldade; entretanto, ao descrevê-la assim, os críticos abstraem o
ambiente em que ela se desenvolveu, tratando-a quase como que um evento isolado na
história da humanidade. Sucede, porém, que o fenômeno foi produto da sua época, submetido
à força dos costumes e de toda uma formação cultural, fatores que moldaram em definitivo a
sua forma96. Impossível, assim, compreender o instituto sem colocar-se no contexto em que
ele floresceu, sob pena de julgá-lo com preconceitos que prejudicam a sua análise verdadeira,
uma vez que para se conhecer algo é preciso conhecer suas causas, e o estudo histórico de um
fenômeno jurídico tão complexo demanda o conhecimento de tudo aquilo que o cerca e
influencia, como a organização social do período, aspectos religiosos, econômicos e culturais
como um todo.
Quanto ao processo propriamente dito da Inquisição,ela assim se chamava por adotar
o sistema processual inquisitivo. A ação penal podia ter origem numa denúncia de qualquer
pessoa ou ser aberto ex officio pela autoridade eclesiástica. Era possível, porém, optar-se pelo
sistema acusatório, em que alguém do povo se dispunha a provar o alegado, assumindo o
papel de acusador. Caso não conseguisse provar, sofreria ele a pena cabível ao crime que
imputara ao acusado97. Essa consistia em uma das formas de se evitar acusações
desnecessárias, caindo, porém, em contradição, já que o povo era instado a denunciar as
heresias sempre que as encontrasse, a fim de evitar seu crescimento.

92
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 119.
93
SOUZA, Ney de. et alii. Aspectos da inquisição medieval. Revista de Cultura Teológica, v. 19, n. 73, p. 59-88,
jan./mar. 2011. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/308045864_Aspectos_da_inquisicao_medieval>. Acesso em: 26 mar.
2019, p. 66.
94
Lc, 23, 39-43.
95
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 119-120.
96
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 21.
97
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 120.
33

Os principais delitos contra a fé combatidos pela Inquisição eram: delitos contra a


própria religião, como heresia, magia e apostasia; delitos carnais, como adultério e estupro;
delitos comuns, como homicídio e furto; delitos contra a hierarquia religiosa, como ofensa às
autoridades eclesiásticas; delitos de violações de seus deveres funcionais por parte dos
clérigos98.
Após a prova da culpa por esses crimes, passava-se ao chamado “tempo de graça”,
com cerca de trinta dias de duração, em que os culpados deveriam se purificar. Deveriam
procurar seus confessores a fim de conseguir a absolvição pelos seus pecados. Nesse período,
o pecador era visitado em sua cela pelo inquisidor e por católicos de prestígio da região, que o
persuadiam a se arrepender e confessar seus delitos. Ademais, o inquisidor nunca poderia
decretar, por si só, penas graves, como prisão perpétua, exceto na presença do bispo local e
com a autorização deste99.
O espírito da Inquisição podia ser extraído das palavras do profeta Ezequiel: “eu juro
por minha vida, diz o Senhor Deus: que eu não quero a morte do ímpio, mas sim que o ímpio
se converta do seu caminho, e viva”100. Portanto, até o último momento, a Igreja permanecia
atenta, fiel à missão de salvar armas. Assim, se o pecador se revelasse afinal arrependido, a
jurisdição eclesiástica recuperava sua força para lhe dar amparo, e a pena secular de morte era
comutada pela pena canônica de prisão101.
E aqui jaz uma imensa diferençafundamental entre o poder temporal e o poder
eterno: admitir o crime na jurisdição comum implicava condenação certa e brutal, sendo
irrelevante o arrependimento do criminoso; ao passo que, na jurisdição canônica, as provas do
arrependimento podiam levar à mitigação da pena e até mesmo à absolvição. Abria-se,
portanto, larga gama de oportunidades aos acusados102. A questão da pena capital constitui um
dos problemas desse tema, acarretando infindáveis debates. Ela não era contida no direito
canônico, pois a Igreja seguia o princípio que lhe repugna verter sangue
(Ecclesiaabhorretsanguine). Apesar disso, em certas situações, os inquisidores abdicavam de
cuidar do caso e o transmitiam às autoridades civis, onde o réu normalmente recebia a sanção
máxima103.

98
SOUZA, Ney de. et alii. Aspectos da inquisição medieval. Revista de Cultura Teológica, v. 19, n. 73, p. 59-88,
jan./mar. 2011. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/308045864_Aspectos_da_inquisicao_medieval>. Acesso em: 26 mar.
2019, p. 71.
99
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 121.
100
Ez, 18, 23.
101
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 138.
102
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 127.
103
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 136-137.
34

Em suma, o procedimento inquisitorial ocorria na seguinte ordem: convocação para


que os acusados comparecessem espontaneamente ao tribunal; determinação do tempo da
Graça; citação diante do povo e das autoridades encarregadas do processo; interrogatório dos
acusados e detalhamento das acusações; oitiva dos acusados; prisão ou tortura do réu que
entrasse em contradição ou resistisse às perguntas; sentença104. Cabe ressaltar que esses
procedimentos inquisitoriais eram mais organizados e transparentes do que os procedimentos
seculares.
A irracionalidade de certos procedimentos inquisitoriais não passou despercebida a
Tomás de Aquino, que logo tratou de elaborar diversas objeções, sendo a principal a de que
somente as autoridades do Estado poderiam julgar os acusados de crime, não os clérigos. Para
o Santo, compete à mesma autoridade legislar e julgar, porque se a lei não pode ser feita por
quem não é uma autoridade, também não pode ser aplicada por quem não ostentar esse título,
sendo injusto compelir alguém a se sujeitar a um julgamento proferido por autoridade
incompetente para tanto105.
Ao combater alguns desses procedimentos da Inquisição, Tomás de Aquino formula
uma teoria do processo penal, realçando a correta acusação, o direito de defesa e da colheita
de provas. Muitos princípios processuais concebidos pelo Aquinate vigoram até hoje, como a
acusação escrita e identificada, o in dubio pro reo e juízes tecnicamente preparados para a
função julgadora106.
Quanto à importância da Inquisição, basta saber que, anteriormente a ela, vigorava o
“sistema acusatório”, reduzindo o julgamento a um confronto entre dois particulares. No
regime feudal, a jurisdição pertencia ao senhor da terra, que a exercia sobre todas as pessoas
que nela viviam. Não havia a noção de interesse público na punição dos crimes. Por
conseguinte, o direito de acusação pertencia à pessoa lesada ou aos seus herdeiros caso
houvesse morrido. Sem a presença da vítima ou de seu representante, não havia a
possibilidade de instaurar o pleito107.
A criação da ideia inquisitorial representou, nesse sentido, um enorme progresso
jurídico. Apesar disso, um fruto venenoso acabou sendo colhido também: a tortura. Até
meados do século XVIII, a ideia da confissão extorquida pela dor parecia natural. Até a
104
SOUZA, Ney de. et alii. Aspectos da inquisição medieval. Revista de Cultura Teológica, v. 19, n. 73, p. 59-
88, jan./mar. 2011. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/308045864_Aspectos_da_inquisicao_medieval>. Acesso em: 26 mar.
2019, p. 73.
105
S. Th. q. 60, a. 6, c.
106
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 14-15.
107
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 22.
35

justiça criminal secular foi influenciada por esses procedimentos. Assim se continuou um
período tenebroso baseado na vingança pública, calcado no largo emprego de tortura em
processos secretos e com defesa inexistente108.
Gonzaga explica que passaram a “coexistir três jurisdições: a central, exercida pelos
juízes do rei; a local, de cidades ou, conforme o país, de regiões mais ou menos extensas; a
eclesiástica, restrita às questões que importavam à Igreja”109.Neste contexto, vigorava o
sistema chamado da “livre convicção”, em que o juiz possuía inteira autonomia para avaliar as
provas, dando-lhes o peso que melhor lhe aprouvesse. Em seguida, porém, essa liberdade era
mitigada, pois lhe era imposto o dever de justificar suas preferências em sede de sentença110.
Contrariamente ao direito comum, o direito da Igreja logo adotou a privação da
liberdade como pena, recolhendo o condenado a uma cela especial para expiação da falta
cometida, onde ele deveria meditar e estudar. As prisões comandadas pelos clérigos eram
mais humanas do que as seculares. O inquisidor poderia conceder benefícios diversos, como
redução das penas ou férias. No entanto, era considerado crime gravíssimo a tentativa de fuga,
uma vez que o condenado estaria recusando o “remédio salvífico”111.Essa modalidade de pena
influenciou o legislador laico de tal maneira que, a partir do século XIX, ela se tornou o eixo
central dos sistemas repressivos. Como lembrança da origem, os presídios normalmente são
chamados de penitenciárias, locais onde os monges destinavam sua penitência dentro dos
mosteiros112.
Exceto no direito eclesiástico, não se cogitavam penas com função reeducativa. Toda
a justiça da Igreja se baseava na máxima “eu não vim chamar os justos, mas, sim, os
pecadores, ao arrependimento”113. Os castigos da justiça comum tinham mais um sentido de
vingança, aplicada sobre aquele que havia violado as ordens do rei e julgado pelos seus juízes.
Assim, a punição deveria ser exemplar, a fim de convencer o povo a respeitar as leis. Quanto
mais severa, melhor a pena. Obviamente, pela ausência de um aparato investigativo
estruturado, a possibilidade de ser descoberto era pequena; entretanto, o criminoso apanhado
sofreria as terríveis consequências da sançãodecorrente de uma condenação criminal114.

108
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 25.
109
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 26.
110
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 29.
111
SOUZA, Ney de. et alii. Aspectos da inquisição medieval. Revista de Cultura Teológica, v. 19, n. 73, p. 59-
88, jan./mar. 2011. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/308045864_Aspectos_da_inquisicao_medieval>. Acesso em: 26 mar.
2019, p. 75.
112
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 38.
113
Lc, 5, 32.
114
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 49-50.
36

A Inquisição, portanto, teve seus inúmeros problemas, sendo a confissão extraída por
tortura o principal deles. Contudo, diante da crueldade dos tribunais seculares da época,
trouxe grandes avanços humanitários ao processo, alavancando a evolução jurídica do
medievo na direção de uma justiça mais racional, eficaz e em consonância com os princípios
da dignidade da pessoa humana.
37

2. DA JUSTIÇA

Santo Tomás trata da virtude da justiça na Suma Teológica, a partir da questão 57 da


secunda secundae. A exposição do tema é tão relevante que mereceu um tratado à parte, no
qual o Santo discorre exaustivamente sobre a justiça e seus temas correlatos. O tratado é
baseado na Ética de Aristóteles, não se limitando, contudo, aos ensinamentos do Estagirita,
mas ampliando-os e conferindo-lhes um caráter eminentemente cristão e original. A Suma
Teológica, que se divide em três partes, sendo a primeira sobre Deus, a segunda sobre o
homem e a terceira sobre Cristo, formando um círculo lógico e cronológico de estudo, contém
em sua segunda parte o tratado da justiça, assim como o da lei, pondo-os em um contexto
mais especificamente humano e filosófico.
Importante esclarecer, previamente, o status quaestionis do pensamento tomista nos
debates acadêmicos atuais. Após a grande influência do Santo no século XIII, o humanismo
renascentista, na pretensão equivocada de um retorno aos clássicos, guiado pela ideia de que
os saberes antigos haviam se perdido na Escolástica, ignorou, em parte, as grandes obras
filosóficas da Baixa Idade Média. Assim, nos séculos seguintes, a obra de Tomás permaneceu
praticamente esquecida, sendo estudada apenas em círculos católicos muito restritos115. Foi
apenas no século XIX que a filosofia tomista renasceu, ganhando impulso por iniciativa do
eminente Papa Leão XIII, que, com a encíclica AeterniPatris, buscou a restauração da
filosofia cristãconforme o tomismo116.
A ética kantiana e a ética utilitarista, que então dominavam hegemonicamente o
debate acadêmico, logo cederam espaço para a ética das virtudes aristotélico-tomista, cujos
principais disseminadores foram os franceses Jacques Maritain e Étienne Gilson. Na década
de 1970, uma série de palestras em Cambridge ministradas por Peter Geach sobre as virtudes
em Santo Tomás reviveu o tomismo no mundo britânico. No meio anglo-saxão, já no fim do
século XX, ganhou relevo o filósofo do direito John Finnis, cuja releitura de Tomás acarretou
na cisão entre a razão prática e a razão teórica na doutrina tomasiana, o que causou polêmica
entre os estudiosos mais tradicionais. Na Espanha, Javier Hervada promove o realismo

115
Pode-se especular que boa parte dos erros filosóficos da era moderna, muitos envolvendo a falsa dicotomia
entre racionalismo e empirismo, derivam da falta de estudos dos pensadores escolásticos, cujas obras em muito
superaram essas questões.
116
GOMES, Rafael Martins de Oliveira Mendes. Do juízo verdadeiro ao juiz justo: o realismo jurídico em Santo
Tomás de Aquino. 2017. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Petrópolis,
Petrópolis, p. 26.
38

jurídico de Santo Tomás, que ganha força no mundo ibérico117.Deve-se ressaltar, porém, que
mais importante do que uma eventual “vitória” da filosofia tomista, é notar que o grande
gênio escolástico finalmente tem recebido a atenção que merece, e que sua obra, mais atual do
que nunca, aparece como uma possível solução às grandes questões contemporâneas,
justamente por transcender as peculiaridades de sua época, sendo uma verdadeira filosofia
perene.
Quanto aos seus escritos, é na Suma Teológica que o Doutor Comum faz a síntese
final de toda a sua obra, agregando todos os conhecimentos de seus escritos anteriores. Como
obra de maturidade, Santo Tomás já tem seu pensamento bem definido a esta altura da vida,
sendo capaz de elaborar sua filosofia de um modo mais seguro e abrangente. Interessante
notar que, como a justiça é basicamente tratada apenas neste livro, é provável que o Santo
tenha considerado o assunto deveras complexo, optando por discorrê-lo em um momento
mais propício de seu empreendimento intelectual.
Assim como Aristóteles, Tomás compreende o direito como objeto da justiça, isto é,
o direito sendo a prática da justiça de acordo com os preceitos que emanam da lei natural. O
contrário seria considerar o direito uma mera conveniência, fruto do arbítrio daqueles grupos
que porventura detivessem okratos118 e desfrutassem da oportunidade de legislar. O
fundamento ontológico da teoria do direito de Aquino é provavelmente a única posição
defensável para uma filosofia do direito. Caso não se recorra a uma lei transcendente, à lex
aeterna, o homem vê-se obrigado a escolher entre duas alternativas: não ter qualquer
fundamento ontológico para os conteúdos da ordem jurídica e aceitar como válida qualquer
norma positivada que se imponha; ou erigir como absolutos elementos intramundanos, como
instintos, desejos, razão secular, sobrevivência dos mais aptos etc119.
Não surpreende que Santo Tomás tenha adotado essa linha de pensamento clássica
no que concerne à ordem natural, já que a ideia de uma ordem universal (cosmos) é o legado
de Platão, de Aristóteles, dos estoicos, de Santo Agostinho. Além disso, as próprias Escrituras
Sagradas revelam que a criação é ordenada, o que reforça que a negação de uma ordem
natural preestabelecida é corolário do ceticismo e do ateísmo120. Portanto, em se tratando do

117
GOMES, Rafael Martins de Oliveira Mendes. Do juízo verdadeiro ao juiz justo: o realismo jurídico em Santo
Tomás de Aquino. 2017. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Petrópolis,
Petrópolis, p. 26-27.
118
Do grego, significa poder. O kratos, aqui, é utilizado no sentido de um poder destituído de virtudes, mais
especificamente de justiça, tornando sua legitimidade fruto de mera convenção ou sujeição à violência.
119
VOEGELIN, Eric. A Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. v.2. São Paulo: É
Realizações, 2012, p. 263.
120
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 141.
39

homem, conhecer a sua natureza tem um interesse prático: tendo sido criado e orientado para
o bem, o homem, ao estudar a si próprio, concluirá que há uma constituição moral absoluta.
John Finnis, reconhecendo a complexidade do conceito de justiça em Aquino, propõe
que três elementos devem estar presentes para que o conceito seja totalmente aplicável. O
primeiro elemento é que a justiça deve ser voltada para outrem, de modo que a justiça sempre
lida com terceiros, sendo intersubjetiva por natureza. O segundo elemento é em relação ao
dever, o débito (debitum) para com outra pessoa, que torna exigível aquilo que lhe é devido
por direito. O terceiro elemento é o que o autor chamou de igualdade ou
proporcionalidade,ainda que seja uma igualdade que se apresenta de maneiras diversas, como
aritmética ou geometricamente121. Presentes os três elementos cumulativamente, tem-se a
virtude na concepção tomista.
Logo, a filosofia do direito tomasiana se contrapõe aos relativismos e às teorias
céticas a respeito da lei, buscando uma correspondência entre a justiça e a própria ordem da
realidade, determinando que o direito se submeta ao justo, ou seja, ao que é conforme
previamente estabelecido por lei, e não ao que simplesmente foi imposto pelo Príncipe. A
inversão moderna, cuja máxima é a realidade se adaptar ao homem, e jamais o homem à
realidade, é inteiramente rechaçada por Tomás, não apenas em seu pensamento jurídico, mas
também em sua moral e epistemologia. Se há um Deus que primeiro criou o mundo e
posteriormente o homem122, conferindo ao último uma potência cognitiva, é certo que cabe ao
homem conhecer o mundo, preenchendo sua mente com elementos da realidade. Se assim não
fosse, seria o homem capaz tão somente de transformar a realidade, na incessante tentativa de
moldá-la ao seu intelecto, fazendo do mundo a sua imagem e semelhança por não deter a
capacidade de compreendê-la.
Assim sendo, uma das mais importantes considerações para a justiça em Tomás é sua
ligação com a verdade123. Ora, se a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido124, é
certo que o sujeito dessa relação precisa conhecer, primeiramente, o objeto a ser ou não
devido. Posteriormente, conhecer o devedor daquele objeto, para assim realizar corretamente
a transação. Tomás, como um filósofo de inspiração teleológica, busca a finalidade das coisas
para compreendê-las. Para que se possa apreendê-la, entretanto, faz-se necessária uma
abstração da coisa, a fim de revelar a sua ordem no mundo. Quando o homem percebe o
objeto com seus sentidos e, em seguida, o categoriza em sua mente, conhecendo-o em sua

121
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 161-162.
122
Gn, 1-2.
123
Cf. De Veritate.
124
Contra Gent. lib. 2, cap. 28.
40

plena extensão e suas causas125, diz-se que há a devida correspondência entre o intelecto e o
objeto. Assim, para Tomás, a verdade nada mais é do que a adequação do intelecto à coisa126.
Por outro lado, a negação da existência da verdade (ou a afirmação de que seria
impossível conhecê-la) levaria à impossibilidade de se fazer justiça, uma vez que a justiça, no
conceito tomasiano, ampliado em relação ao de Aristóteles e de Ulpiano127, envolve a vontade
constante e perpétua de dar a cada um o que lhe é devido128. Se a verdade não existe, o que se
tem é que, naquele dado momento ou lugar, seriaapenas conveniente que algo fosse devido a
alguém, podendo, contudo, não ser o que era devido ontem, e não ser o devido amanhã, de
modo que a vontade não poderia jamais ser constante nem tampouco perpétua.
O Santo explica que a vontade perpétua pode se dizer de dois modos: um, como um
ato que dura perpetuamente, e assim somente a vontade divina poderia sê-lo; e de outro, a
vontade humana, a qual deve ter sempre e em tudo a vontade de observar a justiça, não
podendo desejar isto num momento e em outro não. Deste modo, perpétuo indica o propósito
de observar sempre a justiça, ao passo que constante exprime a firme perseverança nesse
propósito129.
No mesmo sentido, Gomes afirma que “o justo deve ser verdadeiro e a verdade é um
ato de justiça, pelo qual se dá ao intelecto o que lhe é de direito, a intelecção, o conhecer a
verdade”130. Por conseguinte, a justiça não se relaciona apenas com o verdadeiro mas também
com o bom, já que o bem só pode ser verdadeiro e a finalidade da virtude é o bem tanto
individual quanto coletivo que aperfeiçoa o homem enquanto indivíduo e também na sua
relação com outros homens e com a comunidade.
Como dito anteriormente, ao iniciar o seu tratado da justiça, Santo Tomás afirma o
direito como objeto da justiça131. Não há, nesse sentido, justiça sem direito, uma vez que o
direito dará condições de concretização da justiça, por ambos tratarem de um bem que é
devido a outrem. A justiça, assim, realiza-seem conformidade com o direito, que serve senão
para a promoção dessa virtude humana. Sendo a justiça uma virtude que guarda relação com o
próximo, tratando do bem comum da sociedade, pode-se dizer que o direito possui um caráter

125
Tomás segue a epistemologia de Aristóteles, reconhecendo a célebre doutrina das quatro causas: formal,
material, eficiente e final.
126
S. Th. I, q. 21, a. 2, c.
127
Tomás adicionou ao conceito de Ulpiano a chamada “vontade constante e perpétua”, dando continuidade e
aprofundamento ao sentido da justiça.
128
S. Th. II-II, q. 58, a. 1, c.
129
S. Th. II-II, q. 58, a.1, ad. 3-4.
130
GOMES, Rafael Martins de Oliveira Mendes. Do juízo verdadeiro ao juiz justo: o realismo jurídico em Santo
Tomás de Aquino. 2017. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Petrópolis,
Petrópolis, p. 49.
131
S. Th. II-II, q. 57, a.1, c.
41

eminentemente social132, assegurando a justa igualdade proporcional entre os homens na


organização da comunidade. Portanto, em razão de o objeto ser aquilo sobre o qual a ação do
sujeito recai, pode-se considerar o direito como objeto próprio da justiça, já que o justo dá a
cada um aquilo que lhe é devido e o que é devido a cada um é estabelecido pela lei, o direito
é, então, o objeto da ação justa, que se dá conforme a lei, no caso concreto.
Tomás declara categoricamente a justiça como um conjunto de atos dirigidos à
promoção do bem comum. Nessa concepção específica, a justiça é um meio de preservação
do bem comunitário, sendo utilizada somente na relação do homem com seu próximo,
pensamento extraído de Aristóteles. Como se verá, essa noção se coaduna com a justiça legal
e a justifica, uma vez que a finalidade própria e última da lei é a promoção e garantia do bem
comum, isto é, a reta, honesta e virtuosa relação de um homem para com seu semelhante.
Analiticamente considerado, o bem comum consiste na vida condignamente humana
da população; no acúmulo de bens materiais necessários à vida humana133; na pacificação
social134.Não levando aqui em consideração, obviamente, o fim último do bem comum, que é
cercar os homens de um ambiente que facilite a salvação das suas almas através da promoção
das virtudes e do combate aos vícios135.
A dignidade da vida humana tem íntima relação com a felicidade. A felicidade, por
sua vez, é extraída do conjunto de situações agradáveis, que rodeiam o homem, como o seu
desenvolvimento cultural, a amizade, a família, a religiosidade, o trabalho, enfim, tudo aquilo
que torna o homem digno de suas potencialidades, que o diferencia de um mero animal
determinado pelos instintos. Além do aspecto psicológico do bem comum, ele também
envolve a necessidade material, pois o homem precisa de bens mínimos para que possa
desenvolver suas virtudes, tais como vestimentas, alimentação regular, habitação e algum
conforto. Por fim, o bem comum busca a paz social, a convivência pacífica entre os homens,
pautada na segurança e na tranquilidade, essenciais para o adequado desenvolvimento da
comunidade e do indivíduo136.

132
O que se chama atualmente de “justiça social” já é o próprio pensamento elaborado pela corrente filosófica
que seguiu Platão e Aristóteles, já que toda justiça, enquanto relação com outrem e com a finalidade de
promoção do bem comum, é necessariamente social por sua natureza mesma.
133
Ao contrário de certos cristãos gnósticos, sempre foi muito claro para Tomás que o homem é composto não só
pela alma, mas pelo corpo, o que o obriga a se valer de meios materiais para o seu reto desenvolvimento.
134
NUNES, C. P. Uma Reflexão Conceitual-Jurídico-Cristã de Justiça em Tomás de Aquino. 2011. 622 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. 2011, p. 356.
135
Sendo este trabalho de filosofia do direito, certas considerações teológicas serão tratadas apenas brevemente.
Em que pese o Doutor Angélico ser teólogo antes de filósofo, o objetivo principal deste estudo é a análise de sua
filosofia jurídica.
136
NUNES, C. P. Uma Reflexão Conceitual-Jurídico-Cristã de Justiça em Tomás de Aquino. 2011. 622 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. 2011, p. 356.
42

2.1. DA JUSTIÇA COMO VIRTUDE

Inicialmente, Santo Tomás concebe a virtude da justiça à luz de seu objeto, qual seja,
o direito. Parte da premissa jusnaturalista de que o direito é anterior ao Estado, encontrando-
se na natureza do ser humano e na própria estrutura da realidade. A virtude da justiça é
diferente das outras virtudes porque, ao implicar certa igualdade, sempre diz respeito a
outrem137, isto é, trata-se do modo de agir de uma pessoa para com outra.Dentro das virtudes,
a justiça é uma disposição de caráter que inclina as pessoas a fazer o que é justo, a agir
justamente e desejar o justo, antagonicamente à injustiça que leva o homem a desejar e
praticar o que é injusto138.
O que é, exatamente, a virtude na concepção tomasiana? Trata-se do hábito, que é o
princípio dos atos bons, sendo, no caso específico da justiça, atos referentes a terceiros. Na
virtude, é necessário que o ato seja voluntário, estável e firme139. Na justiça, faz-se necessário
dizer que o ato justo deve ser voluntário, pois atos involuntários não podem ser justos, por
faltar-lhes a vontade humana de praticar a justiça. Assim, a virtude humana torna bons os atos
humanos e o próprio homem, retificando suas ações e tornando-as boas. Esses atos são bons
na medida em que atingem uma regra de razão140 sem, entretanto, confundir-se com o mero
conhecimento, pois se diz justo do homem que age corretamente, e não daquele que apenas
conhece corretamente (no sentido de saber o que é certo)141. Por conseguinte, a virtude é certa
perfeição da potência, considerada principalmente em ordem ao seu fim142, e, como o fim da
potência é o ato, sendo pelos hábitos que se determinam os atos, é forçoso concluir que as
virtudes humanas são hábitos143. A virtude, portanto, tem por seu pressupostoque o homem
possa libertar-se do determinismo natural e agir por deliberação, valendo-se da razão para
tanto.
Como se sabe, Tomás toma por ponto de partida a ética das virtudes de Aristóteles.
Segundo o Estagirita, há duas espécies de virtudes: a moral e a intelectual. Esta última gera-se
e desenvolve-se graças ao ensino, demandando tempo e experiência; ao passo que a primeira é

137
S. Th. II-II, q. 57, a.1, c.
138
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 1.
139
S. Th. II-II, q. 58, a. 1, c.
140
É pela razão que o homem tem o discernimento do que é bom ou mau. Na doutrina cristã, o homem age de
modo desordenado quando age exclusivamente conforme as emoções e a concupiscência, em detrimento de sua
potência racional.
141
S. Th. II-II, q. 58, a. 4, c.
142
Aquino segue com precisão o elemento teleológico da filosofia aristotélica.
143
S. Th. I-II, q. 55, a. 1, c.
43

adquirida como resultado do hábito, não podendo surgir no homem por natureza, pois nada do
que existe naturalmente forma um hábito contrário a sua natureza, como a pedra que não pode
mover-se a si mesma para cima por força do hábito, por mais que se tente assim “adestrá-la”.
O homem, contudo, é dotado pela natureza da capacidade de agir formando hábitos que se
tornam virtudes. Aristóteles faz uma analogia com os homens que se tornam arquitetos ao
construir e tocadores de lira ao tocarem o instrumento144. Da mesma forma, os legisladores
tornam bons os cidadãos por meio dos hábitos que lhes incutem, sendo este o propósito dos
governantes.
A virtude, nesse sentido, é o hábito pelo qual se age bem. Age-se assim de dois
modos: primeiramente, enquanto por meio desse hábito se adquire a prática dos bons atos,
como o hábito do carpinteiro que confere a ele a capacidade de dar forma à madeira, ainda
que possa, vez ou outra, cometer erros; em segundo lugar, o hábito faz com que essa prática
se use retamente, não apenas disposto às ações justas, no caso da justiça, mas também a agir
justamente145. Assim, pode-se praticar um ato justo sem ter alcançado a posse plena da
virtude, estando absolutamente habituado a agir justamente sempre que possível, de vivê-la
em sua plenitude. Por isso, a virtude é sempre uma disposição ou inclinação (habitus) para
agir conforme manda a razão. “Visto não ser puro intelecto, o homem necessita da reta
disposição não só no pensar, como no querer”146.
Outra característica essencial da virtude é o fato de residir no meio-termo entre dois
vícios, constituindo uma falta ou um excesso147. Aristóteles ensina que tanto a deficiência de
exercício quanto a sua prática em demasia destroem a força, ao passo que doses imoderadas
de alimentos podem destruir a saúde. Quanto à coragem, não é virtuoso o intemperante, que
se põe desnecessariamente em perigo, ou o covarde, que deserta por medo do combate148. E
assim segue com as outras virtudes.A virtude é, por conseguinte, exatamente o meio-termo
entre dois vícios, o equilíbrio entre o excesso e a falta, o mais e o menos, e nisto se sustenta,
em síntese, toda a ética das virtudes formulada pelo Filósofo. O Aquinate assim resume:
“medium et extrema sunt unius generis. Sed virtus moralis est médium inter passiones;
passiones autem sunt de genereactuum”149.

144
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 1.
145
S. Th. I-II, q. 56, a. 3, c.
146
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Petrópolis: Vozes, 2012, p. 479.
147
Contra Gent. lib. III, cap. 108.
148
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 2.
149
De Virt. q. 1, a. 1, arg. 15.
44

Ademais, não basta definir a virtude como uma disposição de caráter, pois cumpre
frisar que espécie de disposição ela é. A virtude faz com que a função de seu objeto seja bem
desempenhada. Tome-se como exemplo o olho, cuja excelência faz com que seja bom tanto o
olho quanto a sua função, qual seja, enxergar. A virtude do homem torna-o bom e o faz
desempenhar bem a sua função. O mesmo se dá com as paixões, pois se pode senti-las com
excesso ou em grau insuficiente, sendo, num ou outro caso, um mal. Por conseguinte,
Aristóteles conclui que é possível errar de muitos modos, mas só há um modo de acertar150. É
fácil errar a mira, a dificuldade é justamente acertar o alvo, e pelas mesmas razões é fácil errar
e difícil fazer o certo. A escolha correta consiste numa mediania, que é determinada por um
princípio racional próprio do homem.
Tomás, como teólogo e na intenção de melhor ensinar acerca da justiça, pergunta-se
se o homem pode ser justo com Deus, chegando à conclusão de que não se pode perfeitamente
retribuir a Deus tudo o que foi dado por ele, bastando que o homem, por dever sagrado, dê a
Deus tudo o que se pode dar e o que eventualmente for requisitado151. Esse exemplo, além de
pertinente, é extremamente didático, porque evidencia o caráter igualitário da justiça, que visa
a restaurar a relação de igualdade original entre os homens, da qual o pecado os tirou.
A relação justa pode ocorrer de dois modos: pelo direito natural, quando alguém dá
tanto para receber outro tanto, e isso decorre da própria natureza da coisa; ou, por convenção
entre iguais, quando uma das partes se dá por satisfeita ao receber um tanto determinado,
podendo ocorrer tanto com particulares quanto em relação ao Príncipe152. As relações
jurídicas, portanto, podem ser classificadas como objetivas, se decorre da natureza do objeto,
ou subjetivas, se são consequências de acordos privados ou convenções. O importante, aqui, é
que de nenhum modo se cometa um ato de injustiça.
Portanto, o justo se diz em relação ao outro, sendo que o outro pode ser entendido de
dois modos: o outro na concepção de outro homem em igualdade de condições; e, o outro que
se diz do filho em relação ao pai, do servo em relação ao senhor. Ou seja, do outro que não é
senão uma extensão do homem, numa relação de parte com o todo153. No caso do pai, há um
direito paterno, e no do servo, um direito servil, diferentemente daquele direito absoluto, de
plena igualdade de condições.
Deste modo, Tomás reitera, logo em seguida, que o sujeito da justiça não são aqueles
atos ou movimentos das paixões, uma vez que somente os movimentos do apetite sensível se

150
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 6.
151
S. Th. II-II, q. 57, a.1, ad. 3.
152
S. Th. II-II, q. 57, a.2, c.
153
S. Th. II-II, q. 57, a. 4, c.
45

chamam paixões. Ao contrário da temperança e da fortaleza, que são virtudes exercidas sobre
as paixões, a justiça se funda na vontade, que inclina o homem na sua relação com o outro na
busca da igualdade e do bem comum154.
Quanto ao contrário da justiça como virtude, tem-se a injustiça como vício. O
Aquinate, seguindo Aristóteles, parte da ideia de que se pode cometer um ato injusto sem ser,
necessariamente, um homem injusto. Assim, se alguém pratica um ato injusto
involuntariamente, por ignorância, pratica a injustiça apenas materialmente, por acidente,
desconhecendo a verdadeira essência daquele ato. De outro modo, pode-se cometer o ato
injusto sem fazer dele um hábito, mas por paixão, ira ou concupiscência. Portanto, o injusto é
o que pratica a injustiça por livre escolha, dotado de plena intenção, e não aquele que pratica o
ato injusto por ignorância ou tomado por uma paixão momentânea155. Reforça-se, aqui, a
noção do vício como hábito, que depende da voluntariedade do agente, assim como de seu
pleno conhecimento da ação.
O vício, deste modo, caracteriza-se por se opor à virtude. Se a virtude de cada coisa é
sua disposição segundo o que convém à sua natureza, o vício é o fato de estar em disposições
contrárias ao que é naturalmente conveniente à coisa. Como a forma do homem é a sua alma
racional, tudo o que é contrário à ordem da razão é propriamente contra a natureza do ser
humano como tal156. Por isso é correto dizer que os vícios e pecados decorrem da inclinação
dos homens quanto à sua natureza sensitiva em oposição à ordem racional.
Seguindo as lições aristotélicas, Tomás afirma que ninguém sofre uma injustiça
voluntariamente. E explica que essencial e formalmente, ninguém pode cometer uma injustiça
contra si mesmo, e somente não querendo pode sofrê-la. Contudo, por acidente e
materialmente, pode ser que essa injustiça seja praticada contra si mesmo, pois, nesse caso,
falta ao agente a intenção de agir desse modo. Isso porque sofrer uma ação vem de outrem, e
não se pode ser agente e paciente do mesmo ato ao mesmo tempo. O homem, rigorosamente,
só faz aquilo que tem vontade, e sofre propriamente aquilo que lhe é imposto contra a sua
vontade157.
Exemplo que sempre vem à tona na questão da prática da injustiça contra si mesmo é
o do suicida. Na Grécia antiga, os que se matavam a si mesmos eram punidos pela lei civil ao
serem privados das honras da sepultura. E, à primeira vista, parece se tratar de um caso de

154
S. Th. II-II, q. 57, a. 9, c.
155
S. Th. II-II, q. 59, a. 2, c.
156
S. Th. I-II, q. 71, a. 2, c.
157
S. Th. II-II, q. 59, a. 3, c.
46

injustiça contra si mesmo158. Entretanto, há que se dizer que prejudicar-se a si mesmo não é
cometer uma injustiça, mas outra espécie de vício, como a intemperança ou a imprudência.
Mas para com quem ele age injustamente? Para com o Estado, e não para consigo mesmo,
porque o suicida sofre voluntariamente, e ninguém é voluntariamente tratado com injustiça
Por isso é punido pelo Estado159. No caso do suicida, deve-se enxergá-lo como parte de uma
comunidade, algo que a compõe. E, deste modo, quando põe fim à própria vida, comete uma
injustiça não contra si mesmo, mas contra a comunidade considerada como um todo. Por isso
é punido tanto pela lei divina quanto pela humana160. É nesse sentido, vendo a justiça como
uma virtude que ultrapassa o campo particular do indivíduo, que se tratará da justiça geral.

2.2. DA JUSTIÇA GERAL

Na esteira de Aristóteles, Tomás reconhece que a justiça é “toda a virtude”161. Isso


porque a justiça, em sua relação com outrem, pode se dar de maneira particular, isto é, de
homem para homem, ou geral, considerando o homem para com a comunidade, considerando
todos os indivíduos que a ela pertencem. Assim, como o homem é uma parte em relação ao
todo, que é a comunidade, pode-se dizer que a justiça, como relacionada ao conjunto de
homens que compõe aquela comunidade, abrange todas as outras virtudes, uma vez que
ordena o homem ao bem comum, ou seja, a um bem maior do que aquele que visa a si
próprio. A temperança, a coragem, a prudência e as demais virtudes, portanto, que não são
virtudes imediatamente em relação a terceiros.São, contudo, virtudes que, pela sua finalidade
particular, terminam por, de maneira mediata, servirem ao todo, à comunidade, ao bem
comum162.
Logo Aristóteles a chama de “justiça legal” porque exprime a conformidade da
conduta de um indivíduo com a lei moral. Ora, se a lei moral comanda todas as virtudes, a
justiça é a soma de todas elas, sendo universal. O homem justo é, ao mesmo tempo, corajoso,
prudente, sábio etc. A diferença é que se consideram essas virtudes do ponto de vista da
vantagem que dela tiram os outros na comunidade163, como a coragem para o guerreiro que
defende a cidade e a sabedoria para o intelectual que enriquece a cultura.

158
S. Th. II-II, q. 59, a. 3, obj. 2.
159
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 10.
160
S. Th. II-II, q. 59, a. 3, ad. 2.
161
S. Th. II-II, q. 58, a. 5, sc.
162
S. Th. II-II, q. 58, a. 5, c.
163
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 59-60.
47

Por ser geral e ordenar ao bem comum, características próprias da lei, a justiça geral
também pode ser chamada de justiça legal, na medida em que o homem de virtudes se
submete à lei que visa ao bem comum. O caráter universal da justiça ocorre pela sua
ordenação ao bem comum, que exerce sua influência sobre os bens particulares, assim como
sobre as outras virtudes morais. O Doutor Angélico se vale especialmente da noção de “todo”
e “partes” para explicar esses conceitos, sem a qual a explicação restaria deficiente.
Com efeito, pode-se dizer que a justiça existe entre aqueles homens cujas relações
mútuas são governadas pela lei, e a lei existe justamente para esses entre os quais há injustiça.
A justiça legal é a discriminação do justo e do injusto; este último consiste, acima de tudo, em
atribuir a si mesmo mais do que é bom absolutamente considerado e menos do que é mal
absolutamente considerado, violando a proporção do equilíbrio que rege a comunidade164. No
mesmo sentido, Finnis explica que a justiça é sempre uma disposição prática, enquanto
qualidade de caráter, apta a favorecer e fomentar o bem comum de suas comunidades, e a
teoria da justiça nada mais é do que o requerido para a compreensão desse bem comum165.
Dado que o homem sem lei é injustoe o respeitador da lei é justo, pode-se chamar de
justos aqueles atos que tendem a preservar a felicidade da sociedade política e os elementos
que a compõem. Aristóteles afirma que essa forma de justiça é uma virtude completa, não em
absoluto, mas em relação ao próximo. Completa porque essa virtude não é exercida sobre si
mesmo, extrapolando o campo limitado da individualidade do homem e alcançando suas
relações com os outros, de tal modo que se pode dizer que seu contrário é um vício
completo166.Segundo Rhonheimer, o mesmo vale para a injustiça, já que “every act of
injustice brings into play a relation not only to the concrete fellow human being to whom the
injustice is done, but also the relationship to society as a whole”167.A injustiça, então, é
também um “vício geral”.
Logo, é correto dizer que a justiça geral excede em valor todas as virtudes morais,
uma vez que o bem comum tem preeminência sobre o bem particular, assim como o todo
sobre a parte. Além de ser uma virtude superior em razão do lado de seu sujeito, isto é, pela
justiça se localizar no apetite racional, na vontade, ao passo que as outras virtudes pertencem
ao apetite sensível (às paixões), a virtude da justiça também é superior pelo seu objeto, qual
seja, o bem em relação a terceiros, enquanto as outras virtudes aperfeiçoam apenas o seu

164
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 6.
165
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 165.
166
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 1.
167
RHONHEIMER, Martin. Sins Against Justice (IIa IIae, qq. 59-78). In: POPE, Stephen J. (Org.). The Ethics of
Aquinas. Washington, D.C.: Georgetown University Press, p. 287-303, 2002, p. 289.
48

portador. Eis o porquê honra-se mais a justiça acima da fortaleza, por exemplo, pois a força é
útil na guerra, mas a justiça tanto na guerra quanto na paz168.
Portanto, a justiça geral é a virtude do bom cidadão, não se identificando com a
virtude comum, podendo uma existir sem a outra169. A justiça geral, assim, ordena os atos das
outras virtudes ao seu próprio fim, movendo-as todas por seu influxo. Tomás faz uma
analogia com a caridade, que é uma virtude que pode ser chamada de geral por ordenar os
atos das outras virtudes ao bem divino, da maneira como a justiça legal ordena as virtudes ao
bem comum. Encontra-se no governante de forma diretiva e nos governados de forma
secundária e executiva. Por conseguinte, toda virtude que for dirigida ao bem comum pode
chamar-se de justiça geral ou legal170.
Lutz-Bachmann propõe um aprofundamento interessante sobre as lições de
Aristóteles e Tomás. Segundo o autor, há uma “fundação racional normativa” na ideia de
justiça do Santo, especialmente perceptível quando se lê seu conceito geral de justiça, no qual
afirma que o sujeito da virtude da justiça é a vontade humana (voluntas), que é norteada pela
razão prática e não pelos sentidos, consequentemente sendo compreendida como a parte
racional do apetite. É, então, a razão humana que dirige os atos externos e os interpreta em
relação ao que é justo. E aqui se prova que a virtude geral (virtus generalis) da justiça, ao
guiar todas as outras virtudes e seus atos externos em direção ao bem comum, o faz pela razão
prática utilizando-se das leis (leges), já que a principal finalidade da lei é o bem
comum.Aquino, assim, supera as lições de Aristóteles ao perceber a justiça além de sua
perspectiva finalística e que, portanto, pode afirmar uma universalidade normativa para todos
os modelosde sociedades171. A implicação filosófica disso é que a justiça, em Santo Tomás,
resiste às críticas de sua dependência teológica (e teleológica), já que possui uma fundação
normativa racional, de modo que a justiça tomasiana não depende apenas da bondade
(teleologia), mas decorre da própria lei (deontologia).
A justiça legal, entretanto, além de não se identificar com as outras virtudes, não
pode ser tida como suficiente, pois o homem também precisa de virtudes que o ordenem
imediatamente aos bens particulares. Deve haver, assim, virtudes que não ordenem o homem
a outrem, e virtudes que ordenam o homem em relação a outrem, mas não imediatamente ao

168
S. Th. II-II, q. 58, a. 12, c.
169
S. Th. II-II, q. 58, a. 6, sc.
170
S. Th. II-II, q. 58, a. 6, c.
171
LUTZ-BACHMANN, Matthias. The Discovery of a Normative Theory of Justice in Medieval Philosophy:
On Reception and Further Development of Aristotle’s Theory of Justice by St. Thomas Aquinas. Medieval
Philosophy and Theology, Cambridge, p. 1-14, 2000, p. 8-9.
49

bem comum, como ocorre na justiça geral172. Quanto a essas últimas, diz-se que são a justiça
particular, outra espécie de virtude, cujos conceitos Tomás também aproveita de Aristóteles.

2.3. DA JUSTIÇA PARTICULAR

A justiça particular, tradicionalmente, divide-se em duas justiças: a distributiva e a


comutativa173. Sua razão de ser funda-se na relação que Tomás estabelece entre as partes e o
todo. A virtude é assim circunscrita por ser uma parte da moralidade total e da justiça geral, é
uma virtude que deixa se confundir com a soma de todas as outras virtudes. Nas palavras de
Villey, “a justiça “particular” é uma virtude puramente social, quintessência da justiça”174. A
diferença fundamental entre ambas é que, na justiça distributiva, atenta-se à partilha de bens
que integram a comunidade e seus respectivos sujeitos, que são suas partes, para que a
distribuição ocorra de forma justa conforme o mérito de cada um.
Na justiça comutativa, entretanto, analisa-se os indivíduos como partes iguais que
fazem trocas entre si, dando e recebendo bens conforme cada situação. No âmbito teológico, o
Doutor Comum ensina que, como a justiça comutativa envolve dar e receber de volta, ela
nunca poderia ser aplicada a Deus, uma vez que jamais se poderia retribuir a Ele o que lhe é
inteiramente devido. O débito ontológico da existência humana é impagável. Porém, pode-se
falar na justiça distributiva divina, no sentido de que Deus atribui a cada um a dignidade
própria que lhe é devida, conservando a natureza de cada ser em seu lugar próprio e em seu
devido valor175.
Deve-se notar que essa dicotomia foi idealizada por Aristóteles, que afirmou haver
uma justiça manifesta nas distribuições de honras, cargos e bens, e outra, cuja finalidade é
exercer um papel corretivo nas transações entre indivíduos. Dentro desta última, ainda há a
divisão entre voluntárias, que decorrem da vontade e dos acordos entre os indivíduos, e
involuntárias, em que a vontade de uma parte da relação é solapada por meio de violência ou
fraudes176. A justiça, embora seja a mesma virtude, não é a mesma que a de um senhor, a de
um pai e a dos cidadãos, já que o filho, até atingir certa idade, tem alguma parte que

172
S. Th. II-II, q. 58, a. 7, c.
173
A comutativa também pode ser chamada de corretiva sem prejuízo de seu valor semântico.
174
VILLEY, Michel. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 63-64.
175
S. Th. I, q. 21, a. 1, c.
176
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 2.
50

pertenceao pai177, assim como parte do patrimônio do cidadão em imposto e parte do vassalo
ou seu senhor.
Assim, a justiça particular ordena-se a pessoas privadas, que estão para a
comunidade como a parte para o todo. A primeira relação é do todo às partes, partindo com
comum para o específico, sendo a distributiva; a segunda, de parte para parte, regulando
situações privadas, sendo a comutativa178.Saliente-se que os dois tipos de justiça não se
distinguem por sua unidade ou multiplicidade, mas pela natureza da dívida, pois na
distributiva se deve a alguém algo do bem comum, enquanto na comutativa deve-se o que lhe
é próprio179. A justiça distributiva não se restringe à comunidade política, mas é exercida em
toda forma de agrupamento, como famílias, escolas e igrejas. É função do detentor da
autoridade promover o bem comum realizando a justa partilha dos bens conforme cada um
dos membros mereça. A ideia de que os bens devem ser distribuídos conforme o mérito dos
homens vem de Aristóteles, e esses méritos serão relativos ao que cada sociedade julga
meritório. Destarte, a justiça distributiva trata do justo proporcional180.
A distribuição é uma tarefa que é fundamentalmente coletiva e deriva da natureza
social do homem. “Uma disposição é distributivamente justa, pois, se for uma solução
razoável de um problema de alocação de alguma coisa que é essencialmente pública, mas que
precisa (em prol do bem comum) ser apropriada a indivíduos”181. A necessidade de
distribuição se apresenta porque a alocação de recursos precisa ser realizada racionalmente, já
que não ocorre espontaneamente em se tratando de recursos, oportunidades, tributos, encargos
e responsabilidades.
Então, na justiça distributiva, procura-se distribuir os bens conforme a preeminência
daquela parte sobre o todo, isto é, daquele indivíduo naquela comunidade. E o que é devido a
cada um aqui pode sofrer alterações dependendo do tipo de organização política escolhido.
Em sociedades aristocráticas, considera-se a virtude como parâmetro para ter direito a mais ou
menos bens; numa sociedade oligárquica, considera-se a riqueza; na democrática, a liberdade.
Essa distribuição, portanto, segue uma igualdade proporcional das coisas às pessoas, de modo
que um homem, sendo considerado “maior” do que outro, faz jus a uma parte maior dos bens
distribuídos. Nas comutações, entretanto, dá-se algo a alguém em particular por causa de uma
coisa que dela se recebeu, sendo as compras e vendas os melhores exemplos para

177
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 6.
178
S. Th. II-II, q. 61, a.1, c.
179
S. Th. II-II, q. 61, a. 1, ad. 5.
180
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 3.
181
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 166.
51

compreender essa justiça igualitária182. Portanto, essa espécie de justiça tem como oposto uma
injustiça de desigualdade, na qual o juiz procura igualá-la; porque no caso em que um recebeu
e o outro infligiu um dano, o sofrimento decorrente do crime foi desigualmente distribuído, e
caberá ao juiz restaurar a igualdade por meio da devida pena183.
Já a justiça comutativa (ou corretiva) lida com uma vasta gama de relações e
transações entre indivíduos, na qual os bens do empreendimento comunal e do estoque
comum estão excluídos. A principal característica da justiça comutativa é que “nem os
requisitos, nem os incidentes do empreendimento comunal, nem a distribuição (seja por
possuidores públicos ou privados) de um estoque comum estão em jogo”184. A análise dessa
justiça particular, portanto, dá-se no âmbito das transações que ocorrem entre os indivíduos,
na qualidade de parte com parte, e não mais em relação ao todo.
A justiça comutativa conta com uma singular particularidade: de seus possíveis
intercâmbios, alguns são voluntários e outros involuntários. São chamados involuntários
quando alguém se serve da coisa de outrem contra a sua vontade, seja por fraude, como no
furto simples e no estelionato, ou com violência, como no roubo e no homicídio185.Quanto aos
voluntários, diz-se que são aqueles nos quais voluntariamente transfere-se algo a outrem,
excluindo-se do conceito de justiça aqueles atos de mera liberalidade, como a doação simples,
em que não há contrapartida. Deve haver, assim, a noção de débito para que se possa falar em
justiça. Tomás faz distinção entre três possíveis comutações: a compra e venda, na qual há
compensação pela transferência da coisa; a cessão da coisa para uso, como o aluguel, com a
obrigação de posteriormente restituí-la nas mesmas condições; e, por fim, quando se confia
um bem a outrem com a condição de restituí-lo, sem, contudo, que se faça uso dele, mas que
apenas o conserve, como no caso do depósito. Nessas ações, tanto voluntárias quanto
involuntárias, o “meio-termo se determina da mesma maneira que é a igualdade da
compensação”186.
Há que se notar que a igualdade buscada pela justiça comutativa não pode ser
confundida com uma contrapartida idêntica ao crime praticado. O Aquinate dá o exemplo do
súdito que fere o Príncipe, cujo “cargo” simboliza o próprio Estado. Não se pode apenas
retribuir o ferimento ao súdito, porque não se feriu apenas o homem, mas tudo o que ele
representa. Do mesmo modo, quando se causa dano aos bens de alguém, não se faz justiça

182
S. Th. II-II, q. 61, a. 2, c.
183
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 4.
184
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 176.
185
O rol de crimes aqui é meramente exemplificativo, não exaustivo.
186
S. Th. II-II, q. 61, a. 3, c.
52

apenas em devolver bens de igual valor, antes se devendo pagar também por todo o
aborrecimento causado pelo ato criminoso187. Tomás afirma expressamente que a injustiça
voluntária émais grave do que a involuntária, devendo o injusto receber uma pena maior que
estabeleça a devida compensação para o seu ato188, o que leva à reflexão sobre a
voluntariedade dos atos humanos.

2.4. DA VOLUNTARIEDADE DOS ATOS HUMANOS

Sendo, como descritos, os atos justos ou injustos, é certo que não podem ser
involuntários, mas apenas voluntários, pois a justiça, como se viu, é a vontade de dar a cada
um o que lhe é devido. A vontade (voluntas) é uma das duas faculdades superiores da alma
humana, juntamente com o intelecto, e se movimenta sempre inclinada para algo, sendo
natural o que é inclinado segundo a natureza e voluntária a inclinação decorrente da vontade.
Para Aquino, assim como o intelecto adere necessariamente aos primeiros princípios, a
vontade última do ser humano é a bem-aventurança, uma vez que o fim está para o agir como
o princípio para o conhecer189.
Seguindo a doutrina clássica do tomismo, Gilson ensina que a estrutura do ato
humano apresenta quatro graus distintos. O primeiro é a intenção, na qual a vontade tende ao
fim do seu movimento, aderindo, igualmente, aos meios necessários para tanto. O segundo é o
conselho, em que a vontade analisa melhor os meios à sua escolha, deliberando sobre os
objetos contingentes que se encontram entre a vontade e o fim a que ela se inclina. O terceiro
é o consentimento, no qual os vários juízos formados pela deliberação apresentam-se
desejáveis sob certo aspecto, reconhecendo neles uma bondade que se voltará para a potência
apetitiva. O quarto e último é a eleição, em que a decisão efetivamente ocorre, quando apenas
uma possibilidade é escolhida dentro das consentidas. A eleição é, substancialmente, um ato
da vontade190.
Logo, “o ato livre caracteriza-se por ser um ato espontâneo, um ato que tem seu
princípio no próprio agente”191. Tomás reconhece que o intelecto move a vontade, pois o bem
conhecido é o objeto da vontade, que se inclina a ele, movendo-a enquanto fim. Do mesmo

187
S. Th. II-II, q. 61, a. 4, c.
188
S. Th. II-II, q. 61, a. 4, ad. 3.
189
S. Th. I, q. 82, a. 1, c.
190
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Petrópolis: Vozes, 2012, p. 478.
191
GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de são Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2013, p. 172.
53

modo o rei, que é o guardião do bem comum do reino, move os governadores das suas
cidades, que por sua vez movem seus súditos. Assim como a vista percebe as formas e o
intelecto conhece a verdade, a vontade é aquela que move as potências da alma para seus
atos192.
Numa primeira aproximação, o ato livre manifesta-se como um ato que não é
constrangido: o homem é livre para fazer algo porque nada o obriga. Gardeil, em suas lições
tomistas, divide a ausência de constrangimento em duas partes. Uma é a ausência de
constrangimento exterior, que abrange a liberdade física, civil, política e de consciência. A
outra é a ausência de constrangimento interior: liberdade de querer, possibilidade para a
vontade determinar agir ou não agir e, por fim, a querer ou não querer193.
Por sua capacidade de agir de maneira contrária ao impulso, optando
voluntariamente por declinar o prazer e aceitar o sacrifício, deve-se dizer que o homem é
dotado de livre-arbítrio. E isso fica evidente quando se percebe que certas coisas agem sem
julgamento, como a pedra que se move para baixo e a árvore que cresce para cima. Os
animais, por sua vez, agem com julgamento, porém condicionado pelo instinto natural. A
ovelha, ao ver o lobo, opta por fugir, exatamente do mesmo como manda seu instinto, não
julgando por comparação. E, como o homem pode se orientar para diversos objetos, conclui-
se que é por efeito da razão que se possa fazê-lo, como se vê nos silogismos e nos argumentos
retóricos. Logo, o julgamento da razão sobre atos particulares não é determinado de uma
única maneira, fazendo com que seja necessário admitir que o homem é dotado de livre-
arbítrio justamente pelo fato de ser racional194.
Por isso, se o ato é resultante do instinto natural, como no caso dos animais, então
não há liberdade. Porém, em se tratando de homens, ele resulta de uma deliberação e de
aproximações devidas à razão, caracterizando-se como um ato livre. A liberdade tem, assim,
seu fundamento na razão, do lado do sujeito e, de modo objetivo, no caráter deliberativoque
os bens assumem quando se encontram à disposição do indivíduo195.
Outra distinção feita pelo Santo é a respeito do conhecimento quanto ao fim do ato,
que pode ser perfeito ou imperfeito. Imperfeito diz respeito ao conhecimento do fim sem o
conhecimento de sua razão ou proporção do ato e suas consequências. É o conhecimento do
fim encontrado nos animais, decorrente dos instintos e dos sentidos. Aqui, o voluntário é
192
S. Th. I, q. 82, a. 4, c.
193
GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de são Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2013, p. 171.
194
S. Th. I, q. 83, a. 1, c.
195
GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de são Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2013, p. 175.
54

imediatamente movido para o seu fim, sem deliberação. Já no conhecimento perfeito, não se
apreende apenas a coisa que é o fim, mas suas razões e as consequências que decorrem
daquele ato. Esse conhecimento do fim pertence exclusivamente à natureza racional, e
caracteriza-se pelo ato voluntário em sua razão perfeita, já que há deliberação quanto a
praticá-lo ou não196.
Tomás ensina que “a escolha é o ato próprio do livre arbítrio”197. O homem é livre
para aceitar uma coisa e rejeitar outra, segundo o que lhe convém. Para a escolha, concorrem
algo que é parte da potência cognoscitiva e algo da parte da potência apetitiva, pois a potência
cognoscitiva oferece o conselho pelo qual se julga que algo deve ser preferido; da parte
apetitiva, o desejo de aceitar o julgado pelo conselho. Sendo o bem, enquanto tal, objeto do
apetite, Aquino conclui que a escolha é, sobretudo, um ato da potência apetitiva, do mesmo
modo que o livre-arbítrio também o é. Há, evidentemente, interação entre as causas, porque o
julgamento prático provém da vontade, mas a vontade incide, primeiramente, no que é
considerado bom para o sujeito, de modo que as potências da alma relacionam-se diretamente
com a liberdade humana198.
Portanto, quem pratica um ato involuntariamente não é justo nem injusto, salvo por
acidente, isto é, se do ato decorrem justiças ou injustiças. De modo que é essencial que haja
voluntariedade para determinar se um ato é justo ou não. Por voluntário entende-se “tudo
aquilo que um homem tem o poder de fazer com conhecimento de causa, isto é, sem ignorar
nem a pessoa atingida pelo ato, nem o instrumento usado, nem o fim que há de
alcançar”199.São involuntários, ademais, aqueles atos que são forçados, como usar a mão de
um indivíduo para acertar outro, pois neste caso se estaria usando o indivíduo como mera
ferramenta, anulando sua vontade. Assim também ocorre nos casos em que a justiça ou
injustiça é acidental. Pode um homem restituir um valor depositado em suas mãos apenas por
medo, e neste caso não há um ato de justiça próprio, mas por mero acidente.
Questão sempre recorrente quanto à voluntariedade dos atos humanos é se a
ignorância pode figurar como causa do ato involuntário. Como se viu, a vontade tende para
aquilo que o intelecto concebe como bom. A ignorância, no entanto, priva o intelecto de tal
conhecimento. Diante disso, Tomás pensou em três diferentes situações para a ignorância no
que tange ao ato. A primeira é por concomitância, quando a ignorância refere-se a um ato

196
S. Th. I-II, q. 6, a. 2, c.
197
S. Th. I, q. 83, a. 3, c.
198
Há que se ressaltar aqui que o querer e o escolher pertencem a uma só potência, e por isso a vontade e o livre-
arbítrio não são duas, mas uma.
199
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 8.
55

praticado por desconhecimento, mas que seria, do mesmo modo, praticado caso houvesse
conhecimento. É o caso do sujeito que, desejando matar seu inimigo, pensa ter matado um
animal na floresta, descobrindo depois que se tratava de quem teria matado de qualquer modo.
Não é ato involuntário200, pois em nada atenua ou anula a vontade. A segunda é por
consequência, quando a ignorância afeta o ato da vontade de maneira voluntária. É quando
existe a vontade de ser ignorante em relação a alguma coisa, principalmente quanto àquilo que
se deveria saber, como é o caso do médico que, não se importando com seus pacientes, deixa
de estudar a sua arte, podendo causar danos por conta de sua ignorância e omissão. Assim,
não causa absolutamente o ato involuntário, mas causa-o de algum modo enquanto precede o
movimento da vontade, o que não ocorreria havendo o conhecimento necessário. Por fim,
tem-se a ignorância por antecedência, que ocorre quando um homem ignora uma
circunstância que não deveria mesmo saber, cujo conhecimento o faria agir de modo diverso.
Nesse caso, o ato é absolutamente involuntário201.
Aristóteles chama de mistos entre voluntários e involuntários aqueles atos que,
apesar de a ação partir da vontade, essa vontade sofre uma esmagadora influência de fatores
externos, mitigando-a. É o caso da tripulação que precisa jogar no mar parte dos suprimentos
do navio para salvá-lo de um naufrágio. É evidente que agem com vontade e seus atos são
racionais, mas na realidade não desejariam se desfazer de seus suprimentos caso não
estivessem diante de uma situação extrema. São atos mistos, mas ainda pendem mais para a
voluntariedade, uma vez que são escolhidos no momento em que são realizados e pela
finalidade da ação ser relativa às circunstâncias. São diferentes das ações forçadas, nas quais a
sua causa encontra-se no exterior do agente e este em nada contribui para ela202.
Como estabelecer o que é voluntário nos atos humanos? Aquino responde que a
solução está em considerar onde se localiza o princípio do ato. Se o princípio do ato está no
agente, naquele que se move, o ato é voluntário; se, por outro lado, está no exterior, fora do
agente, o ato é involuntário. Desse modo, a pedra não se move para cima a não ser que o
princípio do seu movimento esteja fora dela. O agente que se move pelo princípio intrínseco
não age apenas pelo agir, como também pelo seu fim203. O voluntário, nesse sentido, implica
que o movimento e o ato venham da própria inclinação da vontade do agente, que primeiro
conhece algo no intelecto e depois se inclina a ele, por ser um bem real ou aparente. É
evidente a influência de Aristóteles aqui, que ensina que são “involuntárias aquelas coisas que

200
Trata-se de um ato não-voluntário, já que não se pode querer aquilo que se ignora.
201
S. Th. I-II, q. 6, a. 8, c.
202
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, III, 1.
203
S. Th. I-II, q. 6, a. 1, c.
56

ocorrem sob compulsão ou por ignorância; e é compulsório ou forçado aquilo cujo princípio
motor se encontra for de nós”204.
Destarte, sofrer uma ação é o efeito de uma ação exterior. Quando do cometimento
de uma injustiça, há que se verificar que o elemento material é o ato exterior, ao passo que o
elemento formal é referente ao concurso das vontades do agente do paciente. Logo,
materialmente, sempre haverá coincidência entre alguém que comete uma injustiça e o outro
que a sofre; formalmente, entretanto, se o pretenso injustiçado aceita aquele ato
voluntariamente, não há que se falar em injustiça, assim como se o agente age com
ignorância, involuntariamente, sem qualquer intenção de praticar um ato injusto, não comete
formalmente injustiça, mas o que a sofre pode-se considerar injustiçado205. É por isso que a
voluntariedade é assunto tão relevante quando do estudo da justiça, pois a intenção do agente
determina sua culpa e o grau de reprovação da sua conduta.
É necessário deixar claro que a vontade, sendo um apetite racional, é somente
voltada para o bem, pois “nenhuma coisa se inclina senão para algo semelhante e conveniente
a si”206. Conforme a doutrina tomasiana, toda coisa que é ente, assim como a substância é
algum bem, e, portanto, toda inclinação dirige-se a esse bem. Esse bem, evidentemente, pode
ser apenas aparente, fruto de um juízo equivocado do intelecto, que conheceu de modo errado
a coisa. O mau só pode ser desejado se ele parecer bom em certo aspecto, e nenhum homem
pode deixar de perseguir o que ele considera bom.
Há que se ressaltar que o termo voluntário é equívoco, isto é, comporta significados
que nem sempre se referem à mesma realidade. No caso dos animais, por exemplo, há
vontade em seu agir, não sendo, contudo, aquela vontade plena, que pressupõe o
conhecimento racional quanto ao fim que se persegue, quanto à sua causa formal e final. Os
animais agem voluntariamente apenas de modo material, consistindo numa vontade natural,
despida da ciência de suas causas e finalidades próprias. Somente o homem age
voluntariamente no sentido total do termo, sendo portador do livre-arbítrio.
Tomás seguiu o pensamento aristotélico segundo o qual não é possível tratar
injustamente a si mesmo. Em sua Ética, Aristóteles fornece quatro impedimentos para tanto:
que tratar a si mesmo injustamente implicaria a possibilidade de ter algo seu simultaneamente
subtraído e acrescido; que a ação injusta é voluntária e praticada deliberadamente, mas aquele
que pratica um dano contra si mesmo sofre e pratica as coisas ao mesmo tempo; caso pudesse

204
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, III, 1.
205
S. Th. II-II, q. 59, a. 3, ad. 3.
206
S. Th. I-II, q. 8, a. 1, c.
57

o homem ser injusto consigo mesmo, poderia, igualmente, ser voluntariamente injustiçado;
por fim, ninguém age injustamente sem praticar aqueles atos específicos da injustiça, porém
ninguém pode praticar adultério com a própria esposa ou assaltar a própria casa207. É
exatamente por este motivo que o suicida é “punido”, não pode tratar injustamente a si
mesmo, mas a comunidade a qual pertence208.
A voluntariedade dos atos é importante para que se possa medir a extensão de
culpabilidade do agente quando da aplicação de uma pena. Quanto mais livre e perseverante é
a vontade, maior o grau de reprovação social da conduta ilícita. Por outro lado, se a vontade
for de algum modo corrompida, diminuída ou até mesmo anulada, o grau de reprovação social
da conduta é atenuado ou inexistente. A questão do livre-arbítrio, portanto, é repleta de
incidências práticas que deverão ser consideradas individualmente em cada caso concreto pelo
julgador.
Exemplo prático é o homicídio em legítima defesa. Aquino é categórico ao dizer que
somente autoridades públicas podem aplicar a pena de morte, jamais indivíduos particulares.
Portanto, não é possível que alguém mate outra pessoa, ainda que para se defender. Porém,
deve-se analisar, aqui, a verdadeira intenção por trás do ato: foi praticado para matar o
agressor ou para se defender? Moralmente, matar o agressor com intenção homicida, para os
tomistas, é sempre errado, mas matar o agressor com a intenção tão somente de defesa pessoal
ou de terceiros, agindo proporcionalmente para impedir agressão injusta, é lícito. “As for its
moral species, the action itself would not be a killing action, but only one of self-defense”209.
Percebe-se a relevância do estudo da voluntariedade dos atos, principalmente porque os
elementos subjetivos da ação determinam a sua licitude ou não e, dentro da ilicitude, seu grau
de reprovação ou culpabilidade.

2.5. DAS LEIS

Em seu tratado da lei, Santo Tomás ensina que a lei é certa regra e medida dos atos
que leva alguém a agir. Essa regra e medida é a razão, a qual é o primeiro princípio dos atos
humanos, devendo os atos humanos ser racionalmente ordenados210. Os atos devem, por

207
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 11.
208
O motivo é evidente: sendo a pólis grega um organismo autossuficiente, qualquer desperdício de vida, força
ou energia enfraquece toda a sua estrutura, sendo um ato reprovável para a coletividade e indesejável para os
governantes.
209
RHONHEIMER, Martin. Sins Against Justice (IIa IIae, qq. 59-78). In: POPE, Stephen J. (Org.). The Ethics of
Aquinas. Washington, D.C.: Georgetown University Press, p. 287-303, 2002, p. 296.
210
S. Th. I-II, q. 90, a. 1, c.
58

conseguinte, ordenarem-se aos fins últimos da vida do homem, quais sejam, a felicidade (fim
imanente) e a bem-aventurança (fim transcendente). Assim sendo, como toda parte se ordena
ao todo como o imperfeito se ordena ao perfeito, é necessário que a lei ordene a felicidade do
homem para a felicidade comum211.
A lei, portanto, tem um sentido intrinsecamente moral para Tomás, pois se encarna
no agir moral de cada pessoa na medida em que essa pessoa é membro de uma comunidade. A
lei deve instaurar um universalismo comunitário pacífico, que possibilite a harmoniosa
relação entre os homens, promovendo virtudes e o amor entre os seres humanos. Como Platão
e Aristóteles, o Doutor Angélico percebeu que o homem não é feito para viver solitariamente,
mas numa comunidade, em contato com seus semelhantes, num ambiente propício à
atualização de suas potências. A comunidade aparece organicamente, pela própria natureza do
homem, começando pelas famílias, aumentando para aldeias e, finalmente, tornando-se uma
cidade, ou pólis, autossuficiente e essencialmente coletiva212.
Em uma obra inacabada de Aquino, De regimine principum (“Sobre o governo dos
príncipes”), um tratado dirigido ao rei Hugo de Chipre e de data incerta, há o
desenvolvimento de uma argumentação no sentido de explicitar a insuficiência material do ser
humano individual. Diversamente dos animais, que encontram seus alimentos sozinhos e não
precisam de roupas, segurança ou abrigo, o homem precisa da convivência com os demais
para se desenvolver e da proteção e solidariedade dos outros para sobreviver213.
A lei procura, logo, uma ordenação ao bem comum. Ordena, principalmente, para
quem tem o cuidado da comunidade, o Príncipe, “porque em todas as coisas ordenar para o
fim é daquele de quem este fim é próprio”214. A destinação comunitária exige que a lei seja
conduzida pelo detentor do poder, seja o Príncipe, numa sociedade aristocrática, ou o povo,
numa sociedade democrática. Além da organização em termos materiais, Tomás demonstra
que a lei tem uma dimensão moral, e que seu objeto próprio é induzir os súditos à virtude.
Dado que o efeito da virtude é tornar bons aqueles que a possuem, conclui-se que a finalidade
da lei é tornar bons os homens sob sua autoridade215.
Sendo assim, o que é ordenado por lei deve servir sempre a um fim comum, jamais
ao fim de um indivíduo enquanto tal. Como o fim do homem é a beatitude, segue-se que as

211
S. Th. I-II, q. 90, a. 2, c.
212
Cf. ARISTÓTELES. A Política.
213
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010, p. 163-164.
214
S. Th. I-II, q. 90, a. 3, c.
215
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010, p. 177.
59

leis, que são normas daqueles atos, igualmente dizem respeito à beatitude. A coletividade e o
bem-estar comum decorrem do fato de que cada parte está ordenada ao todo como o
imperfeito está para o perfeito, não podendo, por conseguinte, ser de outro modo216.
Esse vínculo da lei com o bem comum faz com que ela se incline na direção de algo
que é útil para a comunidade como um todo, não incidindo sobre vantagens privadas. Seu
conteúdo diz respeito ao que ocorre com frequência e às relações de uns homens para com
outros, não se prendendo às exceções que podem ocorrer com um ou outro indivíduo
isoladamente. Nesses casos específicos o juiz fará uma interpretação da lei, agindo conforme
impõe a virtude da justiça e da prudência, dizendo o direito no caso concreto. Portanto, a lei
sempre possui caráter universal e abstrato, o que evita sua multiplicação inútil e consequente
desprestígio pelos súditos.
Dessa maneira, toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível
fazer uma afirmação universal correta, como ensina o Filósofo. Assim, quando surge um caso
não abrangido pela declaração universal da lei, a justiça exige que o legislador217 corrija a sua
omissão, dizendo o que diria caso estivesse presente diante daquela situação específica. São as
leis que devem se adaptar aos fatos, e não o contrário218.
Entretanto, a lei só tem o condão de obrigar os homens quando eles conhecem sua
existência e conteúdo. Essa publicidade da lei, para Tomás, ocorre por meio da sua
promulgação, ato pelo qual o governante torna pública a lei para que seus governados a
conheçam e a cumpram. Deste modo, a definição de lei tomasiana nada mais é do que “uma
ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da
comunidade”219.
Todos os súditos exercem virtudes quando se submetem à lei pelas quais são
governados, donde se pode dizer que é próprio da lei induzir os súditos a uma vida virtuosa.
Se a intenção do legislador for boa, por conseguinte, os homens serão bons; não o sendo,
porém, os homens serão bons apenas relativamente e de modo útil ao governante,
corrompendo a verdadeira finalidade da lei.Contudo, a lei tirânica, ou seja, aquela que não
deriva da razão, não é lei, mas corrupção da lei, não obrigando os súditos (exceto

216
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Petrópolis: Vozes, 2012, p. 480.
217
O legislador, aqui, deve ser entendido como aquele que aplica a lei ao caso concreto, dizendo o direito. Em
outras palavras, o juiz. Apenas posteriormente é que o legislador poderia mudar a lei, o que faria com que aquele
caso em concreto ficasse sem a devida justiça sem a ação do juiz.
218
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 10.
219
S. Th. I-II, q. 90, a. 4, c.
60

excepcionalmente220). Apesar disso, o Aquinate rechaça a ideia de remover o tirano por meios
privados e violentos, devendo o cidadão valer-se de meios lícitos disponíveis para tanto. A
violência privada que busca combater a violência pública normalmente resulta em ainda mais
tirania, e é melhor suportar eventuais desmandos de um tirano imprudente do que o caos
completo de uma guerra civil221.
Na Suma Teológica, Santo Tomás prescreve que há quatro tipos diferentes de leis: a
lei eterna, divina, natural e humana. Serão analisadas logo abaixo.

2.5.1. Das leis em espécie

A lei eterna deriva dos aspectos mais teológicos da filosofia de Tomás. “A tua justiça
é uma justiça eterna, e a tua lei é a verdade”222. O mundo é regido e governado por Deus, que
é a razão suprema. A lei eterna, concebida fora do tempo, é o que ordena tudo o que existe no
universo e que, por isso, inclina todas as coisas para o bem. Dela decorrem todas as outras
leis, que estão para a lei eterna numa relação de participação, isto é, de partes para um todo. A
lei eterna, assim, nada mais é do que a razão da sabedoria divina, diretiva de todos os atos e
movimentos. “Deus por sua sabedoria é criador de todas as coisas, às quais se compara como
o artista aos artefatos”223.
A maior dificuldade referente à lei eterna se decorre da incapacidade de conhecê-la
em sua totalidade. Tomás argumenta que se pode conhecer uma coisa duplamente: em si
mesmo e em seu efeito. A lei eterna, entretanto, jamais pode ser conhecida em si mesma (ao
menos não antes da morte), mas somente pelos seus efeitos224, por sua “irradiação”. A própria
verdade da lei natural e da lei divina, quando conhecida, imediatamente revela parte da lei
eterna, uma vez que essas leis são participação dela.
A ideia da participação é o fundamento para compreender o tratado legal do
Aquinate. Na hierarquia das leis, a lei eterna encontra-se no ponto mais alto, sendo as outras
leis participações em sua razão. A lei natural, divina e humana, portanto, devem estar
alinhadas com a lei eterna, como o efeito que deve ser menor do que a causa. Nos homens, a
lei eterna participa ativamente, pois se trata de ser dotado de razão para escolher obedecê-la,
220
S. Th. I-II, q. 92, a. 1, ad. 4.
221
BUDZISZEWSKI, J. Commentary on Thomas Aquinas’s Treatise on Law. New York: Cambridge University
Press, 2014, p. 125.
222
Sl, 119, 142.
223
S. Th. I-II, q. 93, a. 1, c.
224
Interessante notar, aqui, o mesmo princípio utilizado pelo Santo para formular as famosas cinco vias da
existência de Deus, pelas quais se pode chegar à conclusão de que Deus existe pelos seus efeitos, apesar de o
homem não poder conhecê-lo em essência.
61

ao passo que nos animais, a lei eterna é de participação passiva, uma vez que se movem
exclusivamente pelos instintos, não podendo agir de forma contrária a ela.
A lei eterna, portando, é a lei que essencialmente deflui da razão de Deus, das formas
ideais no intelecto divino, funcionando como princípio ativo da criação. A lei eterna é
“captada” no mundo por dois meios diferentes: em parte pela revelação sobrenatural (lei
divina), em parte pela racionalização da realidade (lei natural), reconhecidas, por esses
caminhos, como normas gerais de comportamento cuja fonte de autoridade é a própria razão
divina225.
Segundo Pattaro, a influência de Platão aqui é evidente tanto em Tomás quanto nos
outros medievais, já que a lei eterna pressupõe um mundo anterior ao material, constituído por
uma razão absoluta, sendo composto por forma substantialis. Desse modo, o homem natural é
um arquétipo da forma do homem na mente divina. Essas formas são eternas, essências
imutáveis e absolutamente independentes, deixando clara a influência platônica do mundo das
ideias na concepção da lei eterna226.
Por este motivo, a eficácia da lei eterna é absoluta, já que os seres sem razão são
necessariamente movidos por ela e o homem, quando age em conformidade com a razão, age
conforme ela. Neste contexto, Santo Tomás ensina que de dois modos algo se sujeita à lei
eterna: de um, enquanto é participada por conhecimento, ou seja, nos homens; e de outro, de
modo inevitável, nas criaturas irracionais. A inclinação do homem, por sua natureza, é em
direção à lei eterna, uma vez que o animal racional foi criado para desenvolver virtudes227.
Na concepção tomista, a lei divina e a lei eterna são diferentes. A lei divina se reduz,
primariamente, aos mandamentos de Deus, que são prescritos pelas revelações encontradas
principalmente nas Escrituras. O Decálogo é a expressão mais evidente dessa lei. As
passagens contidas na Bíblia são, portanto, a própria palavra divina, e por isso devem ser
aceitas por todos228. É dessa maneira que Deus ajuda os humanos a viverem de maneira mais
apropriada suas vidas, conforme a moral e a finalidade originais estabelecidas por Ele229.
Tomás discordou de muitos pensadores ao afirmar que é impossível que a lei divina
esteja em contradição com a lei natural, como certos defensores de uma “verdade dupla”

225
KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010, p. 187.
226
PATTARO, Enrico. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: A History of the Philosophy
of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics. v. 6. The Netherlands: Springer, 2007, p. 289.
227
S. Th. I-II, q. 93, a. 6, c.
228
Santo Tomás não simplesmente impõe que Deus “existe”. Ao contrário, faz questão de provar essa existência
pelas famosas cinco vias, contidas na Suma Teológica, para que todos possam ter certeza desse fato.
229
PATTARO, Enrico. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: A History of the Philosophy
of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics. v. 6. The Netherlands: Springer, 2007, p. 301.
62

apontavam230. Ora, se a lei divina facilita a compreensão da lei natural, “iluminando” parte de
seu conteúdo, ao mesmo tempo em que também pode trazer preceitos da lei natural,sendo
certo que não poderia, ao mesmo tempo, contradizê-la, já que, nesse caso, a razão estaria
equivocada ao ir de encontro ao que se conheceu por revelação.Conforme Pattaro, “since
human nature is a copy of the divine archetype in the divine mind, the maxims of natural law
follow from this essence231”.
Assim como a lei natural e a lei humana, Tomás argumenta que é necessário haver
uma lei divina. Fornece quatro razões para tanto, quais sejam: em primeiro lugar, pela lei
dirigir o homem ao seu fim último, e sendo este fim maior do que o fim meramente natural (a
bem-aventurança), faz-se necessário haver uma lei que exceda a proporção da potência natural
humana. Em segundo lugar, pela natureza falível do discernimento humano, a razão divina
julgou necessário promulgar uma lei cuja fonte estivesse assentada em revelação divina, para
que o homem pudesse proceder com segurança nesses assuntos. Em terceiro lugar, porque o
homem legisla sobre o que pode julgar, isto é, sobre atos exteriores praticados por outrem,
mas não sobre aqueles interiores que só o agente conhece. Por isso, a lei divina orienta o
homem a viver conforme a reta razão inclusive em sua consciência. Por último, a lei humana,
por sua natureza falível, não pode coibir tudo o que há de mal, uma vez que, assim
procedendo, terminaria por suprimir muitos bens. Entretanto, como todo mal deve ser
proibido e punido, à lei divina foi outorgada essa função, por conta de seu caráter de
infalibilidade232.
Ensina Voegelin que a “lei divina foi dada por Deus porque a finalidade sobrenatural
do homem exige uma orientação que este não pode encontrar apenas com suas faculdades
naturais, uma vez que o juízo humano é incerto”233. Trata-se portando, de um caminho seguro
que o homem pode trilhar sem preocupar-se se a sua interpretação da realidade encontra-se
em erro, já que a lei divina revelada, por sua natureza, não pode estar errada, uma vez que a
revelação divina há que ser, necessariamente, infalível, ou não se trataria de revelação divina,
mas de charlatanismo.
Outra espécie de lei é a chamada lei natural, ou lei da natureza. É a sua existência
que embasa todo o jusnaturalismo, a filosofia jurídica adotada por Aristóteles e Tomás. Nessa

230
Cf. PATTARO, Enrico. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: A History of the
Philosophy of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics. v. 7. The Netherlands: Springer, 2007.
231
PATTARO, Enrico. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: A History of the Philosophy
of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics. v. 6. The Netherlands: Springer, 2007, p. 302.
232
S. Th. I-II, q. 91, a. 4, c.
233
VOEGELIN, Eric. A Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. v.2. São Paulo: É
Realizações, 2012, p. 265-266.
63

concepção, há uma lei que emana da própria natureza das coisas, tendo em vista o
ordenamento do cosmos234. Os preceitos dessa lei são extraídos da natureza pela razão e, por
isto mesmo, o homem, sendo animal racional, deve a obediência a estes preceitos onde quer
que se encontre e em qualquer época, sendo a única condição necessária a de pertencer ao
gênero humano. “A lei do seu Deus está em seu coração; os seus passos não resvalarão”235. A
lei natural, assim, existe antes da positivação das leis humanas, servindo como um referencial
ético para guiar o legislador e esclarecer seus preceitos. “Le droitnaturel est
inscritdanslanaturemêmedesrèalités, il precede laloi, quile proclame pourle render
manifeste”236.
Logo, para o homem, que não é inteligência pura, mas corpo e alma, feito de matéria,
o conhecimento da natureza vem por meio dos sentidos. Para Aquino, que seguiu Aristóteles,
a lei natural parte da observação dos fatos, da aplicação sensorial sobre o real. Conforme
Villey, “não há ciência infusa no homem, nem, normalmente, acesso direto às ideias divinas,
nem mesmo no estado de inocência; e a tendência de são Tomás não é filiar-se, nesse
domínio, na iluminação mística, na ilusão platônica de reminiscência, no idealismo”237.
Questão interessante é se os psicopatas, ou seja, aqueles incapazes de sentir remorso
ou culpa pelos seus atos, podem reconhecer a lei natural da mesma maneira que pessoas
comuns, já que um dos meios que o homem dispõe para descobrir que violou os preceitos
naturais é justamente sentir que algo de errado foi feito, um “peso na consciência”.Sobre isso,
Budziszewski ensina que “conscience is not about what we feel, but about what we know.
Remorse and regret are not about what we know, but about how we feel about what we
know”238. Os psicopatas, assim, carecem de emoções e sentimentos normais, porém possuem
pleno discernimento e consciência do que fazem. Consequentemente, se sabem, de fato, o que
fazem e têm consciência de seus atos, devem ser responsabilizados por suas ações, ainda que
não consigam sentir culpa em relação a elas.
Nesses tempos atuais, em que vigora o positivismo jurídico, é importante provar a
existência da lei natural. Uma boa maneira de prová-la é por meio da regra de ouro, um
mandamento universal e atemporal, encontrado em todas as culturas e reconhecido como
234
Para quem advoga não haver uma ordem universal, não faz sentido falar em lei natural, uma vez que toda a
existência seria obra do mero acaso. As constantes mudanças ocorrendo neste grande caos impediria que
houvesse uma lei universal e atemporal que a todos regesse igualmente.
235
Sl, 37, 31.
236
GOUTIERRE, Marie-Dominique. Le juge, justice vivante. Le jugement selon S. Thomas D’Aquin. Ius
Ecclesiae, Rome, XXII, 2010, p. 192.
237
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 143.
238
BUDZISZEWSKI, J. Commentary on Thomas Aquinas’s Treatise on Law. New York: Cambridge University
Press, 2014, p. 168.
64

legítimo por cada homem, que, resumidamente, reconhece que ninguém deve fazer o que não
quer que seja feito consigo mesmo239. Salles explica que “a regra de ouro é apresentada como
suporte e exemplo da evidência da lei da natureza, já que ninguém ignora que o que não se
quer que seja feito a si mesmo, não se deve fazer a outro”240.
Por conseguinte, o conceito básico de direito, em seu sentido subjetivo, equivale ao
“meu direito”, que pode ser arguido contra terceiros. A justiça, assim, somente se dá quando
se conhece o outro como seu igual. A injustiça, então, será sempre uma questão de
desigualdade, que, ao ser superada, expõe, necessariamente, a regra de ouro, porque o homem
sabe exatamente o que ele quer que os outros façam – ou deixem de fazer – em relação a si
próprio241.
Santo Tomás reconhece a evidência e a validade da regra de ouro como
características intrínsecas da lei natural, fundando-se na própria razão prática. Essa regra
independe da religião revelada (lei divina), sendo conhecida por todos os homens como um
preceito decorrente da lei natural mesma. A regra de ouro, portanto, funda-se no primeiro
princípio da razão prática, qual seja, fazer o bem e evitar o mal, primeiro e comumente
princípio apreendido pelos homens na ordem prática de convivência242.
Budziszewski argumenta que há pelo menos cinco maneiras diferentes de se
reconhecer que o homem tem uma objectivecommon ground, cinco meios de se reconhecer
que todos estão sujeitos a uma ordem preestabelecida comum. Primeiramente, os homenssão
iguaisontologicamente, por se tratarem todos de seres contingentes cuja causa reside fora de si
mesmos, e que procuram conhecer essa causa. Em segundo lugar, os homens são iguais
praticamente, porque precisam uns dos outros para sobreviver, além do próprio mundo
material, não sobrevivendo sozinhos. Em terceiro lugar, constitucionalmente, isto é, feitos da
mesma substância, dividindo sua natureza com a dos animais, pelo lado material, e com Deus,
anjos e demônios pelo lado racional. Em quarto lugar, normativamente, porque os três
atributos anteriores são o próprio homem, tornando-o unido com seu semelhante por uma lei
natural mútua. Em quinto e último lugar, existencialmente, já que os homens encontram-se em
contínua rebelião, atormentados pelo desejo de conhecer suas próprias causas, dividindo suas

239
Ou, em sua versão positiva, o homem somente deve fazer para os outros somente aquilo que desejaria que
fizessem para si mesmo.
240
SALLES, Sergio de Souza. Lei Natural e Regra de Ouro em Tomás de Aquino. Aquinate, Rio de Janeiro,
n.15, p. 90-115, mai./ago. 2011, p. 93.
241
RHONHEIMER, Martin. Sins Against Justice (IIa IIae, qq. 59-78). In: POPE, Stephen J. (Org.). The Ethics of
Aquinas. Washington, D.C.: Georgetown University Press, p. 287-303, 2002, p. 290.
242
SALLES, Sergio de Souza. Lei Natural e Regra de Ouro em Tomás de Aquino. Aquinate, Rio de Janeiro,
n.15, p. 90-115, mai./ago. 2011, p. 97.
65

inclinações e frustrações, ofendidos pelas leis de sua própria natureza. “A law is written on
the heart of man, but it is everywhere entangled with the evasions and subterfuges of men”243.
Importante ressaltar que a lei natural não exclui a necessidade de uma lei positiva;
esta não pode opor-se aos preceitos naturais universais e atemporais, mas deve transcrevê-los
formalmente como leis positivadas, tanto para conferir um aspecto oficial e público a eles
quanto para adaptá-los de modo conveniente às exigências específicas de cada comunidade.
Conforme Cicco, “a lei natural é muito geral; precisa ser especificada em muitos pontos. Daí a
necessidade da lei positiva. Esta torna explícito o que a lei natural não exprime
concretamente”244.
Aristóteles ensina que se trata verdadeiramente de uma lei diferente da humana
positiva: a natural é aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não se modifica se os
homens pensarem deste ou daquele modo. A lei positiva, como se verá, varia conforme a
conveniência que os homens a atribuem. Assemelha-se às medidas, já que “as medidas para o
vinho e para o trigo não são iguais em toda parte, porém maiores nos mercados por atacado e
menores nos retalhistas”245. Até as constituições diferem, apesar de a filosofia política
aristotélica considerar que existe um modelo melhor por natureza.
Santo Tomás defende a possibilidade de haver mudanças na lei natural, desde que as
mudanças sejam referentes ao aos princípios secundários da lei natural, pois os primeiros são
totalmente imutáveis246. Estes preceitosmudam por adição ou subtração. Um caso clássico de
adição é o reconhecimento da finalidade afetiva (ou unitiva) do ato conjugal, por muito tempo
considerado meramente para procriação. O ato conjugal continua contido na lei natural,
porém, agora, revela-se uma nova finalidade para a sua prática. São chamados de preceitos
segundos por não mais disporem da evidência imediata dos primeiros, além da possível
contingência de uma situação concreta. Essa questão normalmente é solucionada por meio da
lei humana, como se verá a seguir.
A necessidade da lei natural decorre do pecado presente no coração dos homens.
Caso o homem não estivesse Caído, agiria sem esforço conforme os preceitos da lei naturais.
A discrepância entre as virtudes e os vícios, os desejos da alma e do corpo e a emoção sobre a
razão são o que fazem os homens proceder de modo ilícito. Quando os homens, por si
próprios, não conseguem alcançar a virtude, é conveniente que se valham da coercibilidade da

243
BUDZISZEWSKI, J. Commentary on Thomas Aquinas’s Treatise on Law. New York: Cambridge University
Press, 2014, p. 152-153.
244
CICCO, Cláudio de. História do direito e do pensamento jurídico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 121.
245
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 7.
246
S. Th. I-II, q. 94, a. 5, c.
66

lei para tanto, e daí decorre o caráter pedagógico da lei247. Tomás ainda se questiona sobre a
validade desta coerção, uma vez que os homens são melhores induzidos ao bem
voluntariamente, por meio de conselhos. Responde que os homens bem dispostos são
induzidos à virtude pelos conselhos voluntários, porém os indispostos resistem à virtude,
tendo que ser coagidos para tanto248.
Por fim, a lei humana, também chamada de positiva, é promulgada pelos legisladores
de dois modos: para ampliar a eficácia da lei natural, conferindo-lhe um caráter oficial e
público; para resolver questões contingentes de acordo com as peculiaridades culturais
daquela comunidade. Assim, a lei humana jamais pode ir de encontro ao que estabelece a lei
natural, pois se trata de uma lei que lida com situações contingentes, relativas, temporais e
locais, ao passo que a lei natural é geral, atemporal e universal. Em síntese, “the purpose of
positive law is to establish and to enhance the general conditions that make the common or
public good possible”249.
A lei humana é, portanto, uma continuidade da lei natural: o trabalho de legislação é
um prolongamento do estudo do justo natural, de uma conclusão que é a aplicação de
preceitos tirados da natureza a circunstâncias históricas e culturais. Por isso, o direito é fruto
tanto da razão, na medida em que deriva da racionalização da natureza, quanto da vontade
humana, na medida em que o legislador atribui-lhe um caráter oficial, solene e uma forma
escrita rígida250.
Um exemplo que ilustra bem a relação entre a lei humana e a natural é o do
semáforo. A lei natural estabelece um preceito universal, qual seja, o que de os homens
devem proceder com segurança em sociedade. Logo, a lei humana, para dar concretude ao
preceito natural, estabelece que, no trânsito, a luz verde é um sinal de avançar, ao passo que a
luz vermelha manda parar. Poderia, licitamente, ser o contrário, mas foi deste modo que se
convencionou a maneira mais adequada de fazer a comunicação dos comandos fundamentais
à segurança no trânsito, sendo, portanto, uma solução contingente oferecida em razão de um
preceito necessário.
Questão que se apresenta quando do estudo da lei humana é a sua falibilidade. Sendo
o legislador humano e falível, como proceder no caso de uma lei injusta? Aquino responde
leis injustas nada mais são do que corrupções de leis, violências, e que, por isso, não têm força

247
S. Th. I-II, q. 95, a. 1, c.
248
S. Th. I-II, q. 95, a. 1, obj. 1, ad. 1.
249
PATTARO, Enrico. A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: A History of the Philosophy
of Law from the Ancient Greeks to the Scholastics. v. 6. The Netherlands: Springer, 2007, p. 299.
250
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 151.
67

obrigatória. O Santo já revela aqui uma hipótese muito clara de desobediência civil, uma vez
que o direito, a lei e a justiça, para o jusnaturalista, estão conectados e possuem um conteúdo
moral inafastável. Entretanto, abrem-se duas hipóteses de cumprimento de uma lei aparente:
para evitar escândalo ou grave perturbação da ordem pública, hipóteses em que o homem
deve ceder de seu direito251. A preocupação do Aquinate com o bem comum e a noção de
superioridade do coletivo e do individual são explícitas nessa lição, o mal maior deverá
sempre ser evitado.
Na conceituação da lei humana positiva, Tomás se vale de Isidoro, declarando que a
lei é justa, honesta, possível, conveniente temporal e localmente, necessária, útil, clara e com
a finalidade de promover o bem comum. A lei humana, sendo uma medida regulada por uma
medida superior (lei divina e lei natural), tem um fim proporcional a sua necessidade, que é o
interesse público. Por conveniente e justa, refere-se à disciplina humana, primeiro quanto à
ordem da razão, e em segundo lugar quanto à faculdade dos agentes, uma vez que a lei deve
fazer exigências dentro da possibilidade da natureza do homem, não impondo ao indivíduo
doente o mesmo encargo do saudável. Pela necessidade, refere-se à remoção dos males, e
quanto à utilidade, à promoção dos bens. Por fim, a clareza, para que não se tenha dúvidas
quanto ao seu conteúdo252.
É o caráter pedagógico da lei, que se adapta às capacidades daqueles aos quais se
destina, ao que é socialmente conveniente. Deve ser observada habitualmente, sem prescrever
obrigações impossíveis ou heroicas aos seus destinatários. Pelo costume, elemento normativo
tão caro aos medievais,tem-se a certeza da legitimidade das prescrições da lei, porque só tem
o condão de tornar-se costume aquelas práticas que se provaram possíveis, úteis e socialmente
adequadas pelo tempo.

251
S. Th. I-II, q. 96, a. 4, c.
252
S. Th. I-II, q. 95, a. 3, c.
68

3. DOS CRIMES CONTRA O PROCESSO

Na Suma Teológica, dentro do tratado da justiça, Santo Tomás elenca uma série de
crimes contra a justiça, especificamente contra a justiça comutativa. São exemplos de crimes
listados pelo Santo o homicídio, o roubo, a rapina etc. Assim, o Aquinate não apenas elaborou
um tratado geral da justiça, embasando toda a sua teoria da justiça como virtude, seguindo a
ética das virtudes aristotélica, como também escreveu um tratado especial, listando uma série
de injustiças específicas e suas devidas considerações.
Dentre as injustiças escolhidas por Tomás, há cinco que são referentes aos agentes do
processo judicial, nas quais ele descreve a função correta que cada um desses agentes deve
exercer, suas limitações, meios materiais lícitos de persecução de seus objetivos e até
obrigações que são inerentes ao processo e que não obrigam fora dele. Essas questões
oferecem um modelo de moral profissional para cada um dos personagens do processo,
visando ao correto funcionamento da jurisdição. O juiz, que deve condenar ou absolver o
acusado; o acusador, que faz a denúncia e acusa o réu; o réu, que confessa ou se defende das
acusações; as testemunhas, que prestarão depoimentos para servirem como provas no
processo; o advogado, que defende o réu das acusações a ele imputadas, conforme o direito.
Deste modo, pode-se dizer que o Doutor Angélico elaborou uma verdadeira teoria
processual, e não apenas legal ou jurídica. Deve-se considerar que no século XIII os ordálios
há pouco haviam sido proibidos, e vigorava a jurisdição secular e a eclesiástica, esta última
guiando-se pelas regras do tribunal da Inquisição e do direito canônico. As lições de Tomás,
neste sentido, são gerais, abrangendo tanto o juiz (e os outros personagens) secular quanto o
religioso, o que não poderia ser de outro modo, já que esses preceitos judiciais decorrem da
própria lei natural, isto é, são postulados derivados do jusnaturalismo e, portanto, aplicam-se a
todos os homens, de modo universal e eterno, independentemente do tipo de jurisdição no
qual o processo se desenrola.

3.1. DO JUIZ

Conforme a doutrina de Tomás, o julgamento é o ato próprio do juiz, que, seguindo


os ensinamentos de Aristóteles, é a própria justiça viva. Trata-se do agente que julga
conforme os critérios de justiça, e aqui existe um contraponto fundamental entre o juiz do
69

direito natural e do direito positivo253: enquanto o juiz, para Tomás, julga conforme a virtude
da justiça e segundo a lei humana, o juiz positivista julga apenas conforme os critérios de
legalidade formal254, afastando todos os valores e princípios morais do seu julgamento.
Assim, o juiz é aquele que diz o direito (ius dicens). O julgamento feito pelo juiz
implica uma definição do que é justo ou direito. E o que se define o conveniente nas ações
virtuosas, como se viu, é o hábito da virtude, não o mero ato isolado. O homem corajoso é
aquele que faz da coragem um hábito, não o que age com coragem em eventos isolados. Logo,
o julgamento determina o que pertence a cada um, já que o juiz é a própria personificação da
justiça255.Conforme Aristóteles, recorrer ao juiz é recorrer à própria justiça, já que o juiz é a
justiça animada e age como um intermediário, mediando a pretensão das partes até atingir o
meio-termo, onde reside o justo256.
Questão interessante suscitada por Aquino é em relação ao dilema de se entregar a
execução da justiça à lei ou ao arbítrio do juiz. Afirma na objeção que, se o juiz é a justiça
viva, a lei é a justiça morta, de modo que o arbítrio dos juízes seria superior a qualquer lei.
Responde, contudo, dizendo que as coisas são mais bem ordenadas pela lei do que pelo
arbítrio dos julgadores. E isso se dá por três razões: primeiramente, porque é mais fácil
encontrar poucos sábios para esclarecer leis retas do que muitos sábios para julgar retamente
cada caso; em segundo lugar, porque os legisladores consideraram casos abstratos e gerais já
recorrentes na comunidade, enquanto os juízes lidam com aqueles que se põem
repentinamente em sua frente; por último, porque como os legisladores lidam com eventuais
situações futuras, os juízes julgam apenas aquilo que lhes é presente, de modo que mais
facilmente se permitem influenciar por paixões, depravando o julgamento257.
Os atos do juiz que não são arbitrários, no entanto, possuem natureza de lei, e assim
ostentam a obrigatoriedade que a lei ostenta. Sem tal conteúdo, a decisão judicial seria uma
mera declaração, não uma determinação. Portanto, em Tomás, as pessoas devem obedecer às
decisões judiciais como se estivessem obedecendo à própria lei, uma vez que decisões
judiciais, de fato, possuem força coercitiva de lei258. Sem a coercibilidade, tratar-se-ia de uma

253
Compreendido como o juiz positivista jurídico, que nega a lei natural, e não como o jusnaturalista que
também aplica a lei humana positiva quando esta se encontra em consonância com a lei natural.
254
A lei formal, para o juspositivista, é aquela que passou pelo seu único critério necessário para tornar-se lei: o
devido processo legislativo.
255
S. Th. II-II, q. 60, a. 1, c.
256
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 4.
257
S. Th. I-II, q. 95, a. 1, obj. 2, ad. 2.
258
NUNES, C. P. Uma Reflexão Conceitual-Jurídico-Cristã de Justiça em Tomás de Aquino. 2011. 622 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. 2011, p. 556.
70

jurisdição estéril, que atuaria proferindo meros conselhos e não realmente interpretando a lei e
dizendo o direito no caso concreto.
Mas por que o julgamento pertence somente ao juiz, se juízes não são os únicos
justos? Tomás responde à pergunta dizendo que a justiça se manifesta de formas diversas. A
justiça do Príncipe está em mandar e prescrever o que é justo, enquanto a justiça dos súditos é
a execução do que é justo259. A justiça do juiz, no entanto, é o julgamento justo, em que ele
exerce a sua virtude aplicando a lei ao caso concreto, dizendo o direito. Outrossim, a
obediência à lei positiva é devida quando se pressupõe que esteja conforme a lei natural, do
contrário não passa de corrupção de lei, verdadeira violência, razão pela qual deve ser
repelida, senão ignorada, pelo juiz nos julgamentos260, exceto nos casos em que tal
desobediência resulte em escândalo ou grave desordem pública.
O julgamento só é lícito na medida em que for um ato de justiça. Tomás, preocupado
com julgamentos injustos, que maculam a legitimidade dos julgadores, fornece alguns
requisitos para que o julgamento ocorra conforme a justiça. O primeiro é que o juiz proceda,
durante todo o processo, com a vontade de fazer justiça, isto é, de agir de modo justo
conforme a reta razão; em segundo lugar, que o juiz seja autoridade competente, investido
previamente de jurisdição e das condições necessárias para realizar o julgamento correto; por
fim, que, além da vontade de dar a cada um o que lhe é devido, deve agir em concurso com a
virtude da prudência261. O julgamento sem justiça é perverso e injusto, tem o condão de
condenar inocentes até mesmo à morte. Sem autoridade, é um juízo usurpado, que, correndo o
risco de não estar preparado para julgar corretamente, pode o usurpador equivocar-se quanto à
condenação ou absolvição. Se violar a prudência, baseando-se em conjecturas ou provas
duvidosas, trata-se de juízo temerário, suspeito e propagador de insegurança jurídica.
Desse modo, Tomás lança as bases da legitimidade dos juízes. Somente possuem
autorização para julgar aqueles legitimamente investidos para tal pelo poder público, condição
sem a qual o julgamento é nulo e injusto. O ato de julgar demanda, pois, técnicas e vocação
especial para tal. Além disso, desautoriza todo e qualquer julgamento que não seja de caráter
público-estatal, advertindo, principalmente, os clérigos, separando as missões da Igreja e do
Estado sem, contudo, deixar de admitir a superioridade daquela sobre este262.

259
S. Th. II-II, q. 60, a. 1, obj. 4, ad. 4.
260
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 23.
261
S. Th. II-II, q. 60, a. 2, c.
262
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 16-17.
71

Demonstrando preocupação com o julgamento justo, Aquino afirma que aqueles que
estão em pecados graves não devem julgar os culpados das suas mesmas faltas, pois não
teriam idoneidade para tanto. Diferencia os pecados públicos, que impossibilitam
absolutamente o julgador de proferir julgamentos, e os pecados privados, que o impedem
relativamente, uma vez que, em casos de necessidade e urgência, não causaria escândalo ou
caos social que assim procedesse, desde que o fizesse humildemente263.
Outro aspecto do julgamento é sua impossibilidade de se fundar somente sobre
suspeita. “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”264. Tomás se
preocupa, novamente, com a condenação de inocentes, afirmando que “a suspeita é uma
opinião incerta sobre um mal”265. Deve-se evitar a todo custo condenações embasadas em
opiniões, isto é, juízos de valor destituídos de provas racionais e sólidas. Ao mesmo tem em
que o objeto do julgamento, que são os atos humanos, são fatos particulares e contingentes, o
julgamento lícito demanda certa convicção que é obtida por meio de provas, sejam
documentais, testemunhais ou periciais. Aqui se percebe claramente a importância da verdade
como correspondência do intelecto ao objeto, uma vez que jamais seria possível julgar de
modo justo com base em meras conjecturas transitórias.
A má opinião sobre outrem sem motivo razoável configura injúria e desprezo, que se
já são ilícitos para pessoas comuns, pior ainda para o magistrado, cuja imparcialidade deve
perdurar durante todo o julgamento. Assim, existe a obrigação de interpretar sempre no
melhor sentido o que há de duvidoso em cada indivíduo, na esperança de que seja alguém
dotado de virtudes266. Este mandamento decorre da própria virtude da caridade. Da mesma
forma com que se espera um bom proveito da esmola dada, espera-se o melhor de cada
homem até prova inequívoca em sentido contrário.“Présomption d’innocence, bénéfice du
dout profitant à l’accusé, voilà de grandes affirmations du droit que S. Thomas considèredu
point de vue de l'ana’ysethéologiquedujugement”267.
Santo Tomás revela grande sabedoria ao se indagar se, diante do fato de que muitos
são ímpios, já que, conforme a lição deAristóteles, o vício se faz de muitos modos e a virtude
de apenas um, seria justo julgar mal o homem e, deste modo, acertar na maioria dos
julgamentos. Responde que é melhor enganar-se mais frequentemente, formando uma boa
opinião sobre um homem mau, do que acertar frequentemente, porém formando má opinião

263
S. Th. II-II, q. 60, a. 2, c.
264
Jo, 7, 24.
265
S. Th. II-II, q. 60, a. 3, obj. 1.
266
S. Th. II-II, q. 60, a. 4, c.
267
GOUTIERRE, Marie-Dominique. Le juge, justice vivante. Le jugement selon S. Thomas D’Aquin. Ius
Ecclesiae, Rome, XXII, 2010, p. 186.
72

sobre um homem bom. Neste caso há injustiça, naquele não268. É com base em trechos assim
de sua obra que se pode afirmar categoricamente a oposição que Tomás faz a argumentos de
ordem utilitária, cujaspremissas sãopautadas não pelas virtudes, mas pelo que se coaduna com
a vontadeda maioria, ainda que tal vontade seja falsa ou viciosa. É verdade que o bem comum
e a coletividade prevalecem na filosofia tomasiana, pois se trata de um filósofo holista.
Entretanto, Tomás entende que, em última instância, a verdade e a virtude são os fundamentos
do bem comum, jamais o erro e o vício.
Seguindo a corrente jusnaturalista, o Doutor Angélico afirma que de dois modos
pode-se falar em algo justo: primeiro, quanto ao justo natural, emanado da lei da natureza;
segundo, por convenção do direito positivo. A lei escrita contém o direito natural, pois sua
relação é de participação para com ele, mas não o institui, uma vez que já se encontra
instituído pela própria natureza. O julgamento correto então se faz conforme essas leis
escritas, de modo que ninguém seja surpreendido por decisões baseadas em leis cujo conteúdo
desconhecia. Tomás afirma que agir de modo diverso seria se desviar tanto do direito natural
quanto do positivo, o que revela que o julgamento e os atos judiciais encontram-se inseridos
na própria lei natural, e que tal modo de agir, portanto, é lícito e justo269.
Gomes explica o direito positivo é uma especificação concreta do direito natural, que
procede da própria lei natural e que por isso não pode ser derrogado por qualquer juiz
humano, já que o juiz, sendo humano, está sujeito às mesmas leis que todos os outros, não
perdendo sua condição humana por conta do cargo que ocupa. Acrescenta, com efeito, que o
juiz igualmente não pode prescindir da lei divina, pois ambas, tanto a que decorre da razão
quanto da revelação270, são universais e obrigam a todos271.
Como visto, contudo, ocorre que certas vezes a lei escrita contém preceitos injustos,
que vão de encontro à lei natural. Sendo prescritas por homens falíveis, eventualmente uma
lei humana escrita incorrerá em erro. Nestes casos, a lei humana não tem força cogente, sendo
inapta para obrigar seus destinatários. “Só há lugar para o direito positivo quando, segundo o
direito natural, é indiferente que se proceda de uma maneira ou outra”272. Destarte, a lei
humana escrita que é contrária à lei natural não é lei, mas corrupção de lei, como já visto, não
devendo ser observada pelos homens ou aplicada pelos julgadores.
268
S. Th. II-II, q. 60, a. 4, obj. 1, ad. 1.
269
S. Th. II-II, q. 60, a. 5, c.
270
A revelação, evidentemente, diz respeito àqueles para os quais ela foi revelada, não obrigando, assim, os que,
por impossibilidade absoluta, a ela não têm acesso, como uma tribo isolada numa ilha longe da civilização.
271
GOMES, Rafael Martins de Oliveira Mendes. Do juízo verdadeiro ao juiz justo: o realismo jurídico em Santo
Tomás de Aquino. 2017. 108 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Petrópolis,
Petrópolis, p. 72.
272
S. Th. II-II, q. 60, a. 5, ad. 1.
73

Na esteira de Aristóteles, Tomás afirma que até as leis humanas que não contrariam a
lei natural, ou seja, que são justas, podem não ter o condão de serem perfeitamente aplicáveis
ao caso concreto, uma vez que a lei prescreve fatos gerais e o julgamento incide sobre fatos
particulares. Nestes casos, o juiz deve recorrer à equidade e interpretar a lei em seu sentido
teleológico, isto é, na intenção de proteger o bem jurídico visado pela norma273. A equidade,
portanto, fará uma adaptação da lei geral ao caso concreto para garantir que o portador de
determinado direito não seja injustamente prejudicado pela abstração típica do corpo
legislativo, aplicando o direito ao julgamento. Essa é outra distinção importante em relação
aos positivistas, que enxergam o juiz como um mero repetidor do texto da lei, suprimindo a
sua função mais essencial: a de aplicador da justiça.
Santo Tomás explica que “a sentença do juiz é como uma lei particular visando um
caso particular”274, o que sustenta a necessidade de se julgar conforme a equidade. O
legislador ordinário não pode prever todas as situações possíveis quando da sua atividade
legislativa, o que o obriga a legislar por meio de preceitos gerais, impondo regras específicas
apenas nos casos mais necessários. A aplicação da equidade, portanto, resolve essa questão ao
tornar a lei “maleável”, e caberá ao juiz ter a sabedoria para usá-la da maneira devida,
evitando distorções em relação às intenções do legislador275.
No que tange à legitimidade do juiz para proferir decisões de caráter obrigatório, faz-
se necessário que o juiz esteja previamente investido de poder jurisdicional, que pertença, de
algum modo, à estrutura do Estado, tendo certo poder sobre os membros da comunidade.
Assim, do mesmo modo que é injusto obrigar alguém a seguir uma lei que não emana da
autoridade pública, é igualmente injusto que se obrigue a seguir uma decisão proferida num
julgamento despido de jurisdição276. A sentença do juiz, por ser considerada uma lei particular
aplicada a um fato particular, deve ter força coercitiva, semelhante à lei geral, e somente a
autoridade pública tem o poder coercitivo. Santo Tomás, então, desde logo já anuncia a
necessidade de um princípio fundamental da jurisdição: o juiz natural277. O julgador precisa

273
S. Th. II-II, q. 60, a. 5, ad. 2.
274
S. Th. II-II, q. 67, a. 1, c.
275
Não se deve confundir o julgamento baseado na equidade com o mero arbítrio do juiz. Na equidade, o juiz
não julga conforme a sua própria vontade, mas adapta o texto legislativo para resolver uma situação concreta
conforme o que foi previamente estabelecido pelo legislador.
276
S. Th. II-II, q. 60, a. 6, c.
277
VANZELLA, José Marcos Miné; RAMPAZZO, Lino. A injustiça legal como vício do juiz que julga: uma
continuidade na diferença paradigmática entre São Tomás e Harbermas. Conpedi Law Review, v. 1, n. 13, p. 67-
93, 2015. Disponível em: < https://www.indexlaw.org/index.php/conpedireview/article/view/3507>. Acesso em:
12 mar. 2019, p. 73.
74

estar investido da jurisdição antes de julgar o caso, e nunca após, sendo vedado, portanto, o
tribunal de exceção.
A doutrina do juiz natural enfrentou grande resistência da Inquisição à época, na qual
os julgamentos eram presididos por clérigos, que podiam aplicar inúmerasespécies de pena,
inclusive remeter o processo à justiça secular para aplicação da pena de morte. Então, para
Aquino, os julgamentos realizados por sacerdotes eram ilegítimos, já que não ostentavam a
condição de juízes, mas de divulgar a palavra de Deus278. O Doutor demonstrou grande
preocupação com a natureza técnica do ofício de aplicar a justiça, o que prova a autonomia
intelectual do Santo em sua época.
Embora o juiz deva estar investido da jurisdição para proferir suas decisões, Tomás
reconhece que é possível recorrer à arbitragem e se submeter espontaneamente ao julgamento
de outrem, desde que haja vontade manifesta para tanto279. Um exemplo notável é o de Cristo,
que, sendo divino, aceitou voluntariamente ser julgado por um tribunal humano, mesmo
sendo composto por juízes que a ele eram inferiores em todos os aspectos280. Diante de tal
caso de submissão espontânea, como não poderia o homem fazer o mesmo, uma vez que sua
diferença para outros homens não pode ser maior do que aquela? Assim se verifica a validade
da arbitragem.
O que decorre da necessidade de estar devidamente investido da jurisdição é que a
opinião do juiz deverá ser formada pelo que vem ao seu conhecimento como pessoa pública,
jamais como pessoa privada. Isso significa que o juiz não pode condenar ou absolver pelo que
ouviu falar, ou baseado em boatos e experiências pessoais. A decisão, ao contrário, deve se
sustentar nas provas apresentadas durante o processo, que podem ser documentos,
depoimentos de testemunhas, evidências materiais e confissões281. O Aquinate ressalta sua
constante intençãode pautar o processo pela razão, pelo demonstrado e provado, rechaçando
convicções pessoais dos julgadores e decisões baseadas em opinião.
Diante da questão das provas do juiz, dois modelos básicos são propostos para
explicar suas decisões: o decisionista e o cognitivista. O primeiro busca a verdade a qualquer
custo, não importando os limites estabelecidos pelo processo, valendo, inclusive, que a
decisão seja fundamentada nas opiniões pessoais do juiz e nos conhecimentos que obteve fora
do processo, enaltecendo sua moralidade própria. O segundo busca a verdade processual, que

278
NUNES, C. P. Uma Reflexão Conceitual-Jurídico-Cristã de Justiça em Tomás de Aquino. 2011. 622 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. 2011, p. 557.
279
S. Th. II-II, q. 67, a. 1, ad. 2.
280
Mt. 26.
281
S. Th. II-II, q. 67, a. 2, c.
75

se forma a partir do conjunto probatório apresentado e discutido no curso do processo, não


podendo o juiz se afastar da objetividade das provas apresentadas, respeitando os limites
objetivos do processo282.
Tomás explica que o juiz não profere sentença de sua própria autoridade como
pessoa, mas como autoridade pública. E neste sentido não pode o juiz absolver o réu que teve
sua culpa comprovada. Primeiro porque cabe ao juiz condenar o réu em razão do dano que ele
causou, não podendo deixar de fazer justiça ao ofendido. Em segundo lugar porque o juiz
exerce a justiça em nome do Estado, que, por deter o monopólio da violência, deve aplicar a
devida punição ao condenado. Contudo, Tomás diferencia o juiz simples do juiz mais alto, o
Príncipe. Estas limitações valem somente para o juiz simples, que exerce apenas a sua função
de magistrado. Em contrapartida, o Príncipe, revestido de plenos poderes estatais283,pode
absolver o réu, desde que o ofendido queira perdoá-lo e que deste ato não resulte algum dano
para a utilidade pública284.
Deve-se frisar, com efeito, que tanto o juiz quanto o Príncipe não devem perdoar
penas de maneira desordenada, causando danos à comunidade e promovendo a sensação de
injustiça, além de impedir o ofendido de receber a sua devida reparação285. Como se viu, a
justiça, nos moldes aristotélicos, é o meio-termo entre dois extremos injustos, que abrangem
tanto o excesso quanto a falta, o que veda tanto a pena mais grave que a ajustada para o crime
quanto a falta de punição do criminoso.
Conclui-se que Tomás, ao tratar cientificamente do tema e da análise do julgamento,
atribui às violações das qualidades do julgamento justo os seus devidos adjetivos: é injusto o
julgamento movido sem a inclinação da justiça; chama-se usurpado aquele proferido por juiz
incompetente; e temerário aquele julgamento realizado por juiz imprudente286. De modo que,
assim como a lei injusta tem apenas aparência de lei, o julgamento em qualquer dessas
hipóteses é um julgamento aparente, despido de correspondência com a lei natural e, portanto,
plenamente nulo.

282
VANZELLA, José Marcos Miné; RAMPAZZO, Lino. A injustiça legal como vício do juiz que julga: uma
continuidade na diferença paradigmática entre São Tomás e Harbermas. Conpedi Law Review, v. 1, n. 13, p. 67-
93, 2015. Disponível em: < https://www.indexlaw.org/index.php/conpedireview/article/view/3507>. Acesso em:
12 mar. 2019, p. 75.
283
Valendo-se de uma analogia, assim como o juiz é a justiça viva, o Príncipe (governante), para os medievais,
era o próprio “Estado vivo”, a encarnação da autoridade pública máxima.
284
S. Th. II-II, q. 67, a. 4, c.
285
S. Th. II-II, q. 67, a. 4, ad. 3.
286
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 19.
76

3.2. DO ACUSADOR

Tomás trata da acusação impondo uma série de obrigações para a figura do acusador.
O acusador pode ser qualquer pessoa que tiver conhecimento de algum crime praticado.
Normalmente, trata-se da própria vítima ou, em caso de homicídio, familiares e amigos da
vítima. Os acusadores são, portanto, os interessados na punição do culpado ou na restauração
da ordem pública.
Como cabe ao juiz decidir entre duas partes, quais sejam, acusador e réu, é
necessário que para a condenação do réu exista alguém disposto a acusá-lo287. Assim, no
processo é essencial que estas três figuras estejam em sua composição, não podendo existir
relação processual na falta de alguma destas figuras. Cabe ressaltar, entretanto, que, no
tribunal inquisitorial, não seguindo as lições tomasianas, a figura do acusador poderia ser
concentrada no juiz, o qual tinha o poder de iniciar investigações (per inquisitionem) em casos
em que havia grave suspeita (manifesta) da prática de um crime e a situação fazia com que
fosse praticamente impossível que surgisse algum acusador particular288.
Seguindo a moral cristã, Santo Tomás afirma que as acusações deveriam ser movidas
pelo espírito de caridade, jamais por intenções malignas ou pela vontade de difamar terceiros.
Esta regra vale especialmente para os subordinados que fazem acusações contra os seus
superiores. Aqui, portanto, Tomás impõe duas condições para a acusação: que seja realizada
por caridade, isto é, pelo bem do acusado; e que seja formulada por quem possuir idoneidade
moral para tanto289.
Na sua teoria do processo, o Doutor Angélico faz uma importante distinção entre a
denúncia e acusação, categorizando-os como institutos jurídicos diversos. A denúncia procura
a correção fraterna, ao passo que a acusação busca a punição do crime. São complementares,
no entanto, porque a pena deve ser como um remédio, um instrumento eficaz para o seu
arrependimento, ao mesmo tempo em que garante a tranquilidade para a comunidade pelo
afastamento social dos criminosos290. Por conseguinte, em respeito ao bem comum, percebe-
se que o acusador tem o dever paracom a comunidade de realizar uma acusação, desde que
esteja em posse de meios suficientes para provar o delito imputado. Em relação aos segredos,

287
S. Th. II-II, q. 67, a. 3, c.
288
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law. New York: Routledge, 2013, p. 94-95.
289
S. Th. II-II, q. 68, a. 1, ad. 2.
290
S. Th. II-II, q. 68, a. 1, c.
77

Tomás ensina que não se pode agir contra a fidelidade revelando segredo alheio; porém, abre
uma exceção quando o segredo for revelado para o bem comum, pois este se sobrepõe ao bem
particular. Se houver testemunhas, ainda, não há mais que se falar em segredo291. Um
exemplo atual seria o amigo de um terrorista que lhe revelasse a localização de uma bomba-
relógio, caso em que é evidente que tal segredo deverá ser revelado às autoridades para
impedir a morte de inúmeros inocentes.
Logo, sublinha que toda pessoa é obrigada a denunciar outra da prática de um ato
delinquente, ajudando o injusto a se corrigir e não causar mais danos a si mesmo e à
comunidade. Ao mesmo tempo, ninguém é obrigar a acusar da prática de delito, salvo em
posse de provas robustas e convincentes. Neste caso, a acusação é movida pela intenção de
preservar e fazer o bem à comunidade292.
Outra obrigação que Tomás impõe à acusação (e, neste caso, ao processo em geral) é
o de reduzir a termo escrito tudo o que foi dito, desde a acusação até os argumentos jurídicos
envolvendo todos os debates no seio do processo. Isto porque palavras ouvidas são facilmente
esquecidas, o que seria de um prejuízo enorme quando da aplicação do direito. Se o juiz deve
agir inclinado pela justiça, como poderia fazê-lo se não consegue lembrar-se propriamente do
que foi narrado? Pela dificuldade de se reter todas as palavras, a escrita não se faz apenas útil
como necessária. Prova disso é a discrepância no depoimento de testemunhas honestas que
depõem após relevante lapso temporal. A exceção é a denúncia, que pode ser realizada
oralmente com a finalidade de correção do que incorreu em erro, e também por sua própria
natureza ser menos grave e mais informal do que a acusação293.
Tais formalidades, ensina Nunes, são importantes porque a pessoa que acusa se
converte em parte ao fazê-lo, além da necessidade de se apresentar uma acusação consistente,
com elevado grau de segurança e certeza, condições imprescindíveis para que o juiz consiga
sentenciar o pedido com a devida justiça que lhe é exigida em razão do cargo que ocupa294.
Essas exigências demonstram a seriedade com que o julgamento e a acusação devem ser
conduzidos, uma vez que, mesmo com a absolvição do acusado ao fim do processo, sabe-se
que a honra e a reputação dos homens muitas vezes resta abalada pela mera acusação e
sujeição ao procedimento judicial, ainda que inocente.

291
S. Th. II-II, q. 68, a. 1, ad. 3.
292
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 27-28.
293
S. Th. II-II, q. 68, a. 2.
294
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 29-30.
78

Quanto aos limites da acusação, Tomás enumera uma série de obrigações ao


acusador, começando pelo mandamento de que ninguém pode prejudicar a outrem
injustamente, nem que seja supostamente em prol do bem comum. A calúnia, que é o ato de
imputar falsamente crime a alguém, é pecado e de nenhum modo pode ser aceita. Por outro
lado, a ninguém cabe impedir maliciosamente a punição de um crime. Neste caso, a
preocupação do Santo é principalmente com a prevaricação, pois o prevaricador, em suas
palavras, “muda de lado”, causando prejuízo à parte que defendia, além da proibição de
desistência da acusação, que é o ato de tergiversar, pois a acusação deve ser pautada em
convicção sólida e a desistência demonstra o contrário295.
A questão da calúnia deve ser compreendida como uma falsa imputação de crime por
malícia, não por ignorância ou erro. É mister que se analise o aspecto subjetivo da acusação,
pois nem toda acusação derrubada em juízo implica necessariamente que o acusador incorreu
em calúnia. “Acontece às vezes, por leviandade de ânimo, que alguém enuncie uma acusação,
por exemplo, por ter acreditado facilmente no que ouviu, o que vem a ser temeridade”296.
Logo, caberá ao juiz, diante do caso concreto e das circunstâncias do processo, verificar a real
intenção do acusador, considerando se a sua acusação falsa decorreu de erro justificado ou de
má-fé.
Quanto ao prevaricador, Tomás afirma que não comete prevaricação quem esconde
crimes verdadeiros, mas somente aquele que esconde mediante fraude o que deveria ser
revelado na acusação, falsificando provas em conivência com o réu297. É evidente a
preocupação com o trâmite devido do processo, já que o Aquinate não considera prevaricador
simplesmenteaquele que não faz a acusação, mas impõe essa conduta somente àqueles que
estão inseridos na empreitada judicial.
O tratamento ao tergiversador também depende da análise dos elementos subjetivos
que levaram à prática daquele ato, de tal modo que tergiversar pressupõe a desistência da
acusação de maneira desordenada, sem justo motivo. No entanto, o Príncipe, como se viu,
representando o bem comum, pode anular a acusação, o que não configura tergiversação. Do
mesmo modo, no curso do processo, em meios aos debates, pode o acusador perceber, de boa-
fé, reconhecer que não tem razão e que eventual condenação não se sustenta, optando por
desistir da acusação em comum acordo com o acusado298.

295
S. Th. II-II, q. 68, a. 3, c.
296
S. Th. II-II, q. 68, a. 3, ad. 1.
297
S. Th. II-II, q. 68, a. 3, ad. 2.
298
S. Th. II-II, q. 68, a. 3, ad. 3.
79

Diante de tais possibilidades elencadas por Aquino, é relevante notar que um


mecanismo processual chamado exceptio criminis existia, cuja finalidade era impor limites às
acusações. Consistia em desqualificar o acusador (ou testemunha de acusação) alegando que
sua honra não permitia sustentar tal acusação, já que se tratava de um criminoso. Assim, caso
fosse comprovada a condenação do acusado em outro processo, sua acusação era
desqualificada. Se, no entanto, não houvesse condenação prévia, instaurava-se como que um
processo dentro do próprio processo para verificar a culpa do acusador, que passava,
temporariamente, à condição de acusado299. Tais mecanismos processuais correspondem à
preocupação de intelectuais como o Doutor Angélico de coibir falsas acusações e garantir a
probidade do processo judicial.
Provavelmente o aspecto mais controverso da acusação em Tomás, para os dias de
hoje, seja a ideia de que o acusado que falsamente acusa outrem fica sujeito à pena que o
acusado inocente sofreria caso fosse condenado. Entretanto, de outra forma não poderia ser,
sob o risco de se cair em contradição com a própria teoria da justiça de Aristóteles. É injusto
que um inocente seja submetido às pesadas provações processuais em decorrência da malícia
de um terceiro300. Deve-se lembrar da severidade das penas no contexto medieval, em que as
penas de morte e de castigos eram preferíveis à prisão. Daí porque com urgência coibiam-se
as falsas acusações a inocentes. Os processos inquisitoriais eram fortemente orientados a
salvaguardar os acusados contra acusações maliciosas. A não ser diante de provas robustas,
nenhuma acusação poderia prosperar. A acusação, assim, era perigosa para o acusador,
“because if he failed to prove his allegations he became liable to punishment himself”301.
É imprescindível verificar, como sempre, a intenção do acusador. A acusação falsa
voluntária merece o castigo, ao passo que a involuntária merece o perdão. Não imporá
pena302, portanto, quando se verificar que por erro ou ignorância a acusação se procedeu. O
falso acusador lesa não apenas a pessoa do acusado, mas toda a comunidade. Por fim, Tomás
sustenta a imposição da pena de infâmia ao falso acusador, sem prejuízo das demais penas
decorrentes de sua acusação, ainda que seja absolvido destas303. A utilidade da pena de
infâmia é manifesta, uma vez que o infame terá mais dificuldades em apresentar outra falsa
acusação no futuro.

299
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law. New York: Routledge, 2013, p. 143-144.
300
S. Th. II-II, q. 68, a. 4, c.
301
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law. New York: Routledge, 2013, p. 93.
302
A pena aqui referida é a de Talião, em que o acusador sofre a pena correspondente ao crime que acusa. Nada
impede, contudo, que o acusador que agiu involuntariamente possa receber uma pena, ainda que menos grave,
como ter de pagar uma indenização ao acusado pelos transtornos causados pelo processo.
303
S. Th. II-II, q. 68, a. 4, ad. 1-3.
80

3.3. DO RÉU

Na questão seguinte, Santo Tomás traz preciosas lições quanto aos direitos do
acusado, também chamado de réu. Começa afirmando que o réu não é obrigado a dizer toda a
verdade, apenas aquela que o juiz pode exigir segundo o devido processo legal, ou seja,
aquelas em que há indícios fortes da culpa, como o notório rumor público, e provas quase
incontestáveis. O réu, assim, não é obrigado a confessar toda a verdade, mas não está
autorizado a mentir. Proferir mentiras é sempre ilícito, mais grave ainda durante um
julgamento. Deste modo, Tomás afirma que o réu pode se defender utilizando-se dos meios
lícitos disponíveis, aqueles que têm amparo legal, ocultando a verdade que não é obrigado a
revelar, não podendo jamais recorrer ao que chama de “astúcia”, que é a fraude e o engano304.
A mentira, mesmo que tenha por intenção livrar alguém da morte, não pode ser
considerada uma mentira meramente oficiosa, mas verdadeiro pecado mortal, uma vez que se
nega a outrem o que é devido305, como ao juiz e à comunidade é devida a verdade, à vítima a
retribuição e ao criminoso a condenação. Logo, a mentira, além de atentar contra a verdade
processual, causa uma verdadeira injustiça, e não apenas em relação a indivíduos particulares,
mas para com toda a comunidade. Tomás, entretanto, afirma que a lei humana, por não exigir
uma virtude perfeita dos homens306 (diferentemente da lei divina), não precisa conter punições
para aqueles que buscam escapar da morte, uma vez que diante de tal situação é como o réu
entrar em desespero e tentar sobreviver de qualquer modo. Desse modo, pode-se dizer que é
lícito nesse sentido, mas não no outro307.
Assim como os outros agentes do processo, o réu também conta comdireitos naturais,
e no seu caso é o de comparecer pessoalmente ao tribunal para se defender das acusações
impetradas contra si. Os juristas do medievo negavam que esse direito fosse uma mera
concessão do governo aos cidadãos, insistindo que se tratava de um direito natural de todos os
homens, cujo conteúdo derivava da própria lei moral universal308.
As sentenças absolutórias ocorriam no próprio recinto do tribunal. Nas absolvições
em que restavam dúvidas acerca da inocência do réu, tomava-se providências acautelatórias,

304
S. Th. II-II, q. 69, a. 2, c.
305
S. Th. II-II, q. 69, a. 1, ad. 2.
306
O exemplo usado é o da fornicação, que atenta contra a lei divina e, portanto, é pecado, porém não punível
pela lei humana, que procura intervir apenas em pecados que ponham em risco o bem comum.
307
S. Th. II-II, q. 69, a. 2, ad. 1.
308
WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. 9. ed. São Paulo:
Quadrante, 2014, p. 188.
81

exigindo-lhe um juramento diante de outros católicos que afirmavam a sua inocência. Esse
procedimento era conhecido como “purgação canônica”. Não sendo obtido, em crimes
religiosos, o réu era excomungado, tendo o prazo de um ano para demonstrar que tal
excomunhão era descabida309. O processo, assim, poderia demorar muito mais do que o
previsto, mas ao menos apresentava garantias a mais para o acusado.
Além disso, confissão do réu traz a certeza que por muitas vezes falta ao juiz quando
da análise de todos os elementos probatórios. É nessa fase do julgamento que se admitia a
tortura, no contexto inquisitorial, como meio de se alcançar uma confissão. Infelizmente,
quanto a isso, o Aquinate não teceu comentários, preferindo discorrer sobre os direitos e
obrigações do réu e não das autoridades. Gonzaga explica que aqui há uma imensa diferença
entre a justiça comum e a eclesiástica: na comum, admitir o crime implicava condenação
certa, ao passo que confessar, na justiça eclesiástica, e demonstrar arrependimento, levava a
uma pena moderada ou total absolvição, abrindo-se larga porta aos acusados310.Essa visão da
justiça canônica se coaduna com os preceitos estabelecidos por Aquino, já que o propósito
último de tudo isso é a vida eterna, e esta depende inteiramente do arrependimento do homem
injusto.
No tocante ao direito de recurso do réu, Santo Tomás ensina que por dois motivos
costuma-se recorrer: primeiro, por motivo virtuoso, quando o condenado sabe ser inocente e
acredita na justiça da própria causa; segundo, por motivo vicioso, quando o condenado apela
para retardar a causa e ganhar tempo, interpondo recurso de caráter meramente protelatório311.
No primeiro caso, trata-se de legítimo direito do réu, que pode escolher ser julgado por juízes
diferentes e de instâncias diversas. No segundo, o recurso é ilícito e se trata de defesa
caluniosa. Deve-se frisar que até o recurso é um direito natural, posto que o acusado não pode
se submeter a uma injustiça que decorra de um julgamento viciado, seja por ignorância ou
malícia do julgador.
O juiz, ao condenar injustamente alguém, não atua como a justiça viva, mas afasta-se
da virtude que lhe é esperada. Além da virtude, afasta-se, também, da autoridade superior a
ele, que o delegou poderes jurisdicionais para dizer o direito312. E desse modo pode-se
perceber de onde nasce o direito ao recurso313, uma vez que a justiça é dar a cada um o que

309
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 122.
310
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 127.
311
S. Th. II-II, q. 69, a. 3, c.
312
S. Th. II-II, q. 69, a. 3, ad. 1.
313
Deve-se notar que o recurso não é cabível somente contra a sentença, isto é, ao ato que põe fim à respectiva
fase processual, mas também às decisões que são tomadas durante todo o curso do processo, em especial aquelas
cujo teor pode afetar diretamente a sentença, como a recusa de uma testemunha-chave para o caso.
82

lhe é devido, e o que é devido a cada um é dito pela lei, que é de observância obrigatória a
aquele que possui em si o poder de dizer o que é direito de cada um em razão do cargo que
ocupa. Ora, as coisas devem ser julgadas pelo que efetivamente são, e os homens precisam
incorporar em si a presunção de que são corretos, já que a opinião má sobre um homem bom é
mais grave do que a opinião boa sobre um homem mau314, de modo que, em que pese sobre o
réu todas as provas e acusações, ele pode sempre contar com essa presunção de que, talvez,
tenha havido um mal entendido e sua conduta não foi injusta.
Finalmente, em relação à pena de morte, Santo Tomás diz que, sendo o acusado
justamente condenado a morrer, não é lícito que tente se defender, uma vez a justiça, nesse
caso, estaria sendo corretamente aplicada, dando ao condenado o que lhe é devido. Isso
porque o réu causaria uma violência injusta aos agentes do Estado, ao juiz e seus executores
da justiça. De outro modo, quando o réu é condenado injustamente à morte, é lícito que resista
à morte, agindo, aqui, em legítima defesa. Tomás acrescenta que se a resistência à decisão
pudesse causar um grave escândalo e perturbação do bem comum, seria conveniente que o
condenado não resistisse315, pois o sábio compreende que é melhor sofrer uma injustiça do
que praticá-la.O exemplo da morte de Sócrates corrobora o argumento de Aquino.
Na primeira objeção a esse artigo, o Aquinate lembra que é lícito, no direito natural,
agir conforme a inclinação da natureza, e que essa inclinação é no sentido de se preservar,
opondo-se aos eventuais agentes de destruição. Essa premissa é verdadeira, contudo, a
conclusão que se segue é a de que o condenado poderia resistir de qualquer modo à sentença
de morte. Na resposta, Tomás explica que, apesar das inclinações naturais, o ser humano é
dotado de razão, justamente para que não aja de maneira indiscriminada e não se torne
escravo dos instintos. Por isso, em que pese sua inclinação natural para a preservação própria,
o ato de defesa deve ser realizado apenas de modo lícito e com a devida moderação316.
Deve-se lembrar, conforme as lições de Thomas Woods, que quando o réu é
sentenciado à morte, porém comprovadamente perde a razão no intervalo entre a sentença e a
execução, é mantido vivo até que recupere a saúde mental para só então ser executado. O
motivo dessa medida é totalmente teológico e corroborado por Aquino, já que somente no seu

314
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 25-26.
315
S. Th. II-II, q. 69, a. 4, c.
316
S. Th. II-II, q. 69, a. 4, obj. 1, ad. 1.
83

estado de juízo é que o homem poderá fazer uma boa confissão e receber o perdão pelos seus
pecados antes de morrer, garantindo a possibilidade salvação de sua alma317.
Finalmente, o Doutor Angélico explica que ninguém pode ser condenado a dar morte
a si mesmo, ou seja, a praticar suicídio. O réu que é obrigado a tal ato deve se opor a ele e
aguardar que sofra a morte pelas mãos de outrem. O exemplo é referente ao condenado a
morrer de fome que se alimenta da comida que lhe é secretamente trazida: não é obrigado a
recusar o alimento e causar a própria morte318. Como já foi anteriormente explicado, o
suicídio é uma injustiça contra toda a comunidade, que não pode tolerar que os indivíduos
deem fim a sua própria existência, pois cada um funciona de uma maneira específica em sua
relação de parte para o todo. Além disso, suicidar-se é pecado mortal, o que anularia as
chances de salvação do condenado, que poderia se arrepender antes de ser executado,
salvando sua alma. O suicídio, portanto, é expressamente vedado por ferir a lei divina e
atentar contra o bem comum.

3.4. DA TESTEMUNHA

Em relação à testemunha, Tomás começa afirmando que não se trata de elemento


essencial do processo. Isso porque somente às vezes se requer a prova testemunhal.Em outros
casos basta a prova documental, a pericial ou a confissão.Como se sabe, todo julgamento deve
ser baseado em provas concretas e jamais no conhecimento restrito e pessoal que o juiz
porventura tenha a respeito da controvérsia em demanda319.A prova testemunhal, existindo,
era formalista: as testemunhas depunham oralmente, diante das partes e da assembleia,
limitando-se a responder as perguntas do juiz, da acusação e da defesa, até que os ouvintes
estivessem convencidos de alguma versão dos fatos320.
No entanto, quando um súdito é convocado por autoridade competente a
testemunhar, não há dúvidas de que o testemunho torna-se uma obrigação. O Santo faz uma
ressalva: em se tratando de casos ocultos e que não chegaram ao conhecimento da opinião
pública, não há obrigação de testemunhar, uma vez que a justiça guarda íntima relação com o
bem comum, como visto anteriormente. Nos casos em que o testemunho pode salvar a vida, a

317
WOODS JR., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. 9. ed. São Paulo:
Quadrante, 2014, p. 177.
318
S. Th. II-II, q. 69, a. 4, ad. 2.
319
NUNES, Claudio Pedrosa. Nótulas para uma filosofia jurídico-processual em Tomás de Aquino. Ágora
Filosófica, Pernambuco, ano 11, n. 2, p. 7-37, jul./dez. 2011, p. 32.
320
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 22.
84

honra ou a integridade física de alguém injustamente acusado, deve-se, por caridade,


testemunhar, ainda que a testemunha não tenha sido chamada para testemunhar ou tenha
recebido a intimação de autoridade incompetente. Isso porque é obrigação de todo homem
salvar o outro que esteja em perigo ou sofrendo injustiça321, e aqui Tomás demonstra mais
uma vez preocupação com a verdade. Quanto à absolvição de outrem, ninguém é obrigado a
testemunhar, pois aqui não há dano que possa ser causado pela omissão322.
O procedimento da prova testemunhal ocorria da seguinte forma: juízes recebiam os
nomes das testemunhas de cada parte e uma lista de perguntas que deveria fazer a elas. Caso
alguma testemunha não pudesse ser imediatamente encontrada, o juiz daria um prazo para que
a localizassem. Antes de prestarem o depoimento, as testemunhas faziam um juramento, e a
partir daí eram chamadas separadamente, podendo o juiz fazer mais perguntas se achasse
conveniente. Havia controvérsias a respeito da hierarquia das provas, pois muitos juristas
afirmavam que a prova documental era superior à testemunhal, ao passo que outros
afirmavam o contrário. Todos os depoimentos, enfim, eram reduzidos a termo pelo
escrevente, com as respectivas objeções do advogado, para fins de recurso ou análise posterior
do caso323.
No tocante aos segredos confiados em sede de confissão, Santo Tomás, como frade,
defendeu que de modo algum é lícito testemunhá-los. O motivo é claro: os julgamentos
humanos não estão acima das coisas de Deus, “pois não o sabe o sacerdote enquanto homem,
mas como ministro de Deus”324. Em relação a outros tipos de segredos, como entre médico e
paciente ou advogado e cliente, deve-se dizer que, em casos em que a própria destruição
corporal ou espiritual da comunidade encontra-se ameaçada, existe a obrigação de ignorar os
sigilos e divulgar seu conteúdo. Mais uma vez o caso da bomba-relógio é aplicável, pois não
há sigilo que justifique a morte indiscriminada de inocentes. Em casos menos graves o
segredo deve ser preservado, uma vez que a fidelidade é um preceito de direito natural.
Uma testemunha que apresenta contradição em seu depoimento sobre um ponto
central e relevante demanda que se chamem outras testemunhas para eliminá-la, caso
contrário o testemunho não é digno de ser considerado. Aquino atenta para a credibilidade dos
depoimentos considerados como um todo e em geral, sabendo que testemunhas podem
esquecer certos fatos no curso do processo. A maior preocupação mesmo é em relação à

321
Evidentemente, porém, como preceito fundamental de direito, ninguém é obrigado a praticar atos heroicos ou
pôr a própria vida em risco, valendo a obrigação somente quando se pode fazê-lo sem maiores prejuízos para si
mesmo.
322
S. Th. II-II, q. 70, a. 1, c.
323
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law. New York: Routledge, 2013, p. 132-133.
324
S. Th. II-II, q. 70, a. 1, ad. 2.
85

confiabilidade da testemunha, já que “toallowwitnessestotestify,


eitherknowingorreasonablysuepectingtheirlackifintegrity, istoadvanceaninjustice”325.
Um costume jurídico-processual da época medieval era o fato de que o número de
testemunhas variava entre duas ou três, não mais do que isso. Gonzaga explica que, por
melhor que fosse um só depoimento, ele não bastava: testis unus, testis nullus. Por isso
deveria haver um número prefixado de depoimentos para serem tomados no processo, não
contando, evidentemente, os incapazes de depor326. Tomás argumenta que uma multidão de
testemunhas poderia até ter sua utilidade vez ou outra, mas que, na esmagadora maioria dos
casos, duas ou três bastam para formar um juízo extremamente provável. Seguindo o costume
de seu tempo, o Aquinate concorda com o número dois (ou três, no máximo), que, somando
ao acusador resulta em três, referência simbólica à verdade da Santíssima Trindade327.
Nos casos em que há divergências entre os fatos narrados pelas testemunhas, há que
se considerar certas possibilidades. Em primeiro lugar, é normal que os depoimentos das
testemunhas contenham certas divergências acidentais, como algumas horas de discrepância,
cor da roupa dos envolvidos, as palavras exatas etc. Depoimentos absolutamente idênticos são
evidência de que houve conluio entre as testemunhas para contar uma narrativa falsa. Em
segundo lugar, no caso de depoimentos absolutamente discrepantes, o juiz deverá julgar da
melhor maneira possível para o réu, que não pode ser prejudicado por erro ou ignorância das
testemunhas328. Trata-se da aplicação de uma garantia fundamental, o princípio do in dubio
pro reo, constitucionalmente consagrado no direito brasileiro, já defendido por Tomás em
pleno século XIII.
Quanto à certeza dos testemunhos, é correto afirmar que eles não são, de modo
algum, infalíveis, mas prováveis. Por muitos motivos a veracidade do testemunho pode ser
comprometida, seja por culpa, como ocorre com os infames e culpados por crimes públicos;
seja sem culpa, podendo ser por falta de razão, como ocorre com as crianças e dementes329;
pela afeição, como ocorre com parentes, amigos ou inimigos; ou pela condição social, como

325
NEMETH, Charles P. Lawyers and advocates in the jurisprudence of St. Thomas Aquinas. The Catholic
Lawyer, New York, v. 40, n. 3, p. 271-293, 2001. Disponívelem:
<https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article
=2457&context=tcl>. Acesso em: 15 mai 2019, p. 288.
326
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 31.
327
S. Th. II-II, q. 70, a. 2, c.
328
S. Th. II-II, q. 70, a. 2, ad. 2.
329
Tomás, aqui, também cita as mulheres. É provável que a falta de “razão” atribuída às mulheres seja por sua
falta de instrução, uma vez que a época tratada é a medieval, quando pouquíssimas mulheres tinham acesso à
educação formal. O Santo, como católico, sabe que, dentre as criaturas humanas de Deus, a mais perfeita é uma
mulher, e, portanto, considerar que sua afirmação simplesmente trata as mulheres como seres irracionais ou
inferiores é altamente duvidoso.
86

os servos sujeitos à autoridade de outrem. O testemunho dessas pessoas, ainda que não seja
totalmente recusado, sempre deverá ser tomado cum grano salis330, pela falta de
confiabilidade de suas narrativas e interesse no resultado do processo. A vedação do
testemunho derivará de sua análise do caso concreto, devendo as eventuais testemunhas saber
que não se trata de castigo, mas de se empenhar em buscar a verdade pelos meios mais
eficazes possíveis. Assim, o juiz deve proceder com cautela para que o testemunho falso não
acarrete riscos a terceiros331.
Ainda em relação ao falso testemunho, Tomás o classifica como uma tríplice
deformidade: primeiro porque é um perjúrio, já que as testemunhas prestam juramento antes
de dar seus depoimentos; segundo, trata-se de uma injustiça e pecado mortal, cuja prática
viola todas as espécies de lei, inclusive e principalmente a lei divina, pois no Decálogo há
vedação expressa ao falso testemunho332; por fim, a falsidade mesma, que provém de toda
mentira, que é pecado por atentar contra a verdade333.
Contudo, como o pecado exige plena consciência de sua prática, aquela testemunha
que afirma o que é falso por falha de memória não peca porque não é de sua intenção e a
falsidade é acidental334. Deveria, mesmo assim, dizer que não tem certeza do que diz, para não
correr o risco de submeter o acusado à condenação injusta. Tomás diferencia a mentira
oficiosa, que é aquela que é útil a alguém e não prejudica terceiros, da mentira comum, cuja
consequência é lesar outrem de alguma forma. Cita como exemplo o falso testemunho para
salvar alguém da morte de uma condenação injusta. Nesse caso, deve-se dizer que juízo
injusto não é juízo legítimo, de modo que o falso testemunho não é pecado mortal pela força
do juízo, mas pelo juramento violado, pois houve juramento de dizer a verdade. O juramento
a Deus é um importante mecanismo para se coibir falsos testemunhos, uma vez que o homem
teme mais o pecado contra Deus do que o pecado contra o próximo, sendo útil e desejável que
se faça tal juramento antes de testemunhar335.

3.5. DO ADVOGADO

Na questão 71 do tratado da justiça da Suma Teológica, Tomás faz uma exposição


sobre o papel do advogado no processo judicial. Começa dizendo que o advogado não tem a

330
S. Th. II-II, q. 70, a. 3, c.
331
S. Th. II-II, q. 70, a. 3, ad. 1, ad. 2.
332
Êx, 20, 16.
333
S. Th. II-II, q. 70, a. 4, c.
334
S. Th. II-II, q. 70, a. 4, ad. 1.
335
S. Th. II-II, q. 70, a. 4, ad. 2, ad. 3.
87

obrigação de prestar patrocínio à causa dos pobres, pois “que tem os meios de nutrir, não está
sempre obrigado a nutrir o pobre”336.Patrocinar a causa dos pobres é uma obra de
misericórdia. E, no intuito de prover obras de misericórdia, ninguém é obrigado a contribuir
com todos os ingredientes. O Aquinate destaca aqui duas oportunidades para exercer a
caridade: a oportunidade de lugar, na qual ninguém é obrigado a sair pelo mundo socorrendo
outrem, bastando que auxilie aqueles ao seu alcance imediato; a oportunidade de tempo, na
qual basta socorrer o necessitado no presente, não exigindo que se satisfaçam suas eventuais
necessidades futuras.
Nas lições de Mata-Machado, as circunstâncias para serem consideradas são as de
lugar (pro locorum opportunitatibus), já que o homem não é obrigado a percorrer enormes
distâncias para socorrer indigentes; as de tempo (et temporum), não sendo o homem obrigado
a prover as necessidades futuras do próximo; de outras circunstâncias quaisquer (vel
quarumlibet rerum), “pois o homem deve, antes de tudo, vir em socorro de seus próximos que
estejam na necessidade”337.
Na reunião dessas circunstâncias, caberá ainda ao advogado verificar o grau da
necessidade do outro. Sendo absolutamente necessária a sua atuação para evitar uma injustiça,
então o advogado tem a obrigação de socorrê-lo, praticando obra de misericórdia. Destarte,
somente quando reunidas todas essas condições é que o advogado é obrigado a defender o
pobre, da mesma maneira que o médico também conta com a mesma obrigação338. Não
ocorrendo caso de necessidade extrema, o advogado pode subtrair-se às obrigações de
misericórdia, uma vez que lhe absorveriam todo o seu tempo, impedindo-o de aperfeiçoas sua
cultura profissional e evitando que ele se entregue mais a fundo às causas de maior interesse
para toda a comunidade339.
Ademais, o advogado não está obrigado a prestar seus serviços gratuitamente,
podendo exigir retribuição nas causas em que atuar, do mesmo modo com que o médico
recebe pagamento por seus serviços prestados em prol da saúde. A cobrança, porém, deve ser
moderada, levando-se em conta a condição do cliente, a complexidade da causa, o valor
corrente de mercado. O advogado que exige mais do que deveria, isto é, um valor excessivo,
336
S. Th. II-II, q. 71, a. 1, sc.
337
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. A ética profissional do advogado segundo Santo Tomás de Aquino.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, p. 91-102, 1955. Disponível em:
<https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/896>. Acesso em: 12 mar. 2019, p. 93.
338
S. Th. II-II, q. 71, a. 1, c.
339
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. A ética profissional do advogado segundo Santo Tomás de Aquino.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, p. 91-102, 1955. Disponível em:
<https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/896>. Acesso em: 12 mar. 2019, p. 93-94.
88

peca contra a justiça340 sempre e contra a caridade dependendo do contexto. Deste modo,
pode-se concluir que não é obrigação humana dar gratuitamente o que se possui em nome da
misericórdia, do contrário não haveria compras e vendas. Quando o homem dá algo por
misericórdia, ele espera uma recompensa de Deus, não dos outros homens341, e nisto consiste
o verdadeiro valor da caridade.Deve-se lembrar de que o advogado atua pela justiça num
sentido holístico, observando o bem comum acima do bem particular de seu cliente. Os
advogados, assim, quando atuam corretamente, estão em consonância com a definição
tomasiana de lei, que evita a vantagem individual em prol do bem da coletividade342.
Os advogados, juntamente com os teólogos, logo perceberam que acumular certa
riqueza poderia beneficiar toda a comunidade e, em última instância, a própria Cristandade, já
que não se poderia ignorar a influência e a dependência financeira que um reino poderia ter. O
estudioso Azo, escrevendo na primeira década do século XIII, encorajava a prosperidade
econômica como fator de promoção do bem comum do reino, o que se coaduna com as lições
tomasianas343.
Ainda que aquilo que é espiritual esteja acima do que é temporal, e patrocinar uma
causa judicial é, de certo modo, algo de espiritual, pois não se pode negar que o homem, como
animal racional, possui necessidades materiais, sendo lícito, assim, perceber remuneração e
benefícios da prática de sua arte profissional344. O juiz, como exemplo, também recebe
vencimentos pelo seu trabalho, que é dizer o direito e aplicar a justiça, porém, como juiz, é
pago pelo Estado, pois se trata de uma autoridade pública. Do mesmo modo ocorre com o
advogado, só que no exercício de seu ministério privado345. O Santo sabe que o homem
possui várias dimensões em sua vida, “occupational capacity, economic realities, familial
demands and a never-ending stream of those in need. Thomas demands a contribution, not a
lifelongobligation”346. Por fim, a testemunha, apesar de integrar o processo, não pode receber

340
S. Th. II-II, q. 71, a. 4, c.
341
S. Th. II-II, q. 71, a. 4, ad. 1.
342
NEMETH, Charles P. Lawyers and advocates in the jurisprudence of St. Thomas Aquinas. The Catholic
Lawyer, New York, v. 40, n. 3, p. 271-293, 2001. Disponívelem:
<https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article
=2457&context=tcl>. Acesso em: 15 mai 2019, p. 272.
343
BRUNDAGE, James A. Medieval Canon Law.New York: Routledge, 2013, p. 81.
344
S. Th. II-II, q. 71, a. 4, obj. 2, ad. 2.
345
S. Th. II-II, q. 71, a. 4, ad. 3.
346
NEMETH, Charles P. Lawyers and advocates in the jurisprudence of St. Thomas Aquinas. The Catholic
Lawyer, New York, v. 40, n. 3, p. 271-293, 2001. Disponívelem:
<https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article
=2457&context=tcl>. Acesso em: 15 mai 2019, p. 289.
89

benefícios financeiros para prestar o testemunho347, pois poderia facilmente se corromper e


vender testemunhos, ao mesmo tempo em que não está prestando serviço algum, apenas
relatando um fato que porventura tenha presenciado.
Quanto às limitações ao exercício da advocacia, Tomás elenca dois possíveis
impedimentos: um por incapacidade e outro por inconveniência. A incapacidade é um
impedimento absoluto, porque trata dos casos em que o indivíduo carece do básico para atuar
como advogado, como é o caso dos surdos e mudos348 e dos loucos, alienados e impúberes.
Deste modo, exclui-se do exercício da advocacia quem se encontra em estado de
incapacidade. De outro modo, há os que não podem advogar por falta de conveniência, como
aqueles que se encontram ligados a deveres mais elevados, no caso dos sacerdotes e clérigos,
ou como aqueles que são infames ou condenados por crimes graves. Nesses casos, como se
trata de impedimento relativo, é possível que exerçam a advocacia num caso concreto por um
bem maior, podendo os clérigos defender suas igrejas se assim for necessário349. Eis o
princípio que sustenta toda a questão: o advogado participa da administração da justiça como
um funcionário público, prestando, inclusive, um juramente de agir justamente. Daí se
compreende a série de privilégios especiais de ordem social do advogado, como ter acesso ao
desenrolar dos processos judiciários350.
Santo Tomás preocupa-se, igualmente, com a ética profissional do advogado. Assim,
o advogado que colabora com o mal, patrocinando causas injustas e tendo ciência da injustiça,
peca gravemente e é obrigado a reparar o dano causado à parte adversa. Se agir com
ignorância, entretanto, está escusado, na medida exata do grau de ignorância com que atuou
no processo351. A primeira objeção de Tomás ilustra bem o caso porque dá o exemplo do
médico que cura o doente em estado desesperador, o que leva a crer que o advogado de causa
difícil e injusta merece o mesmo louvor. Responde afirmando que o médico, ao tratar do
doente, não prejudica ou comete injustiça contra ninguém, ao passo que o advogado lesa
gravemente a parte contra a qual pleiteia sua injustiça. Assim, a comparação não é válida, pois

347
É lícito, contudo, que suas despesas para prestar o testemunho sejam indenizadas (como transporte,
hospedagem, alimentação), porquanto não é razoável exigir que tenha de pagar com seu próprio dinheiro para
auxiliar no processo alheio.
348
Vale dizer que não havia, na época de Tomás, condição para que deficientes advogassem, ao contrário do que
se tem hoje. Linguagens de sinais e outras técnicas modernas conferiram a essas pessoas a oportunidade de
exercer a advocacia sem prejuízo da qualidade de seus trabalhos.
349
S. Th. II-II, q. 71, a. 2, c.
350
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. A ética profissional do advogado segundo Santo Tomás de Aquino.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, p. 91-102, 1955. Disponível em:
<https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/896>. Acesso em: 12 mar. 2019, p. 98.
351
S. Th. II-II, q. 71, a. 3, c.
90

em que pese a grandeza de sua perícia, trata-se de conhecimento usado para fins
intrinsecamente maus e viciosos352.
E se o advogado descobrisse a injustiça da causa já no curso do processo? O Doutor
Angélico ensina que não deve trair o seu cliente, ajudando ou patrocinando a parte contrária.
Contudo, pode e deve convencer seu cliente a dizer a verdade ou tentar uma composição
amigável. Caso o cliente recuse, deverá abandonar a causa353, pois de modo algum é lícito
praticar injustiça e prejudicar inocentes, configurando, assim, uma exceção ao mandamento
profissional de defender a causa que assumiu até o seu fim.Deve-se saber que o advogado não
é mandatário do seu cliente: não o representa, assiste-o. Enquanto o mandatário compromete o
mandante, pois fala pela boca daquele, o advogado fala em nome próprio, defendendo o
cliente. Seu papel, assim, não é de expor todas as pretensões de seu cliente, mas agir com
independência em benefício dele354.
Conforme Nemeth, atualmente é difícil dizer aos advogados que existe uma
concepção moral e metafísica em seu trabalho, uma vez que a ascensão de uma cultura
juspositivista dominou o imaginário do mundo jurídico, especialmente nas salas de aula e nos
tribunais. Um advogado justo atua conforme a razão, guiando-se pela lei natural e pelas
virtudes. Os ingredientes necessários para a felicidade do homem em geral são aplicados
igualmente aos advogados. “To the advocate, then, is the heady responsibility of advocating
in conformity with this plan, advocating not as anautomaton, but as moral agent”355.
Outra vedação ao advogado diz respeito à impossibilidade de se usar testemunhas
falsas, leis inexistentes ou fraudar o processo com artifícios ilícitos de qualquer tipo, devendo
proceder sempre conforme a verdade e a inclinação para a justiça. Tomás usa o exemplo da
guerra justa, em que o general pode utilizar-se de astúcia, confundindo seus inimigos. No
entanto, trata-se de situação diversa, pois agir com astúcia é diferente de proceder
injustamente, e mesmo para com o inimigo existe a obrigação de guardar a lealdade356. Assim,
o dever profissional de agir de acordo com a justiça não é exclusivo do juiz, mas estende-se

352
S. Th. II-II, q. 71, a. 3, obj. 1, ad. 1.
353
S. Th. II-II, q. 71, a. 3, obj. 2, ad. 2.
354
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. A ética profissional do advogado segundo Santo Tomás de Aquino.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, p. 91-102, 1955. Disponível em:
<https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/896>. Acesso em: 12 mar. 2019, p. 95.
355
NEMETH, Charles P. Lawyers and advocates in the jurisprudence of St. Thomas Aquinas. The Catholic
Lawyer, New York, v. 40, n. 3, p. 271-293, 2001. Disponívelem:
<https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article
=2457&context=tcl>. Acesso em: 15 mai 2019, p. 278.
356
S. Th. II-II, q. 71, a. 3, obj. 3, ad. 3.
91

ao advogado, cujo papel também é o de trabalhar em prol da virtude, impedindo julgamentos


injustos e auxiliando cada parte a receber aquilo que lhe é devido conforme o direito.
A relação entre a testemunha e o advogado é, portanto, complicada, já que, de um
modo, Aquino exorta a verdade e, ao mesmo tempo, respeita os procedimentos a que o
processo deve estar submetido. O advogado falha ao utilizar depoimentos que são fruto de
memórias deturpadas ou percepções distorcidas dos fatos, também ao mesmo tempo
reconhecendo as limitações humanas que são próprias dos depoentes no processo judicial.
Somente falsos testemunhos intencionais são absolutamente condenáveis357. Assim, existe
uma forma correta de se chegar à verdade, não podendo o advogado se valer de todo e
qualquer meio para tanto.
Todas essas considerações decorrem de uma conceituação social e comunitária da
profissão do advogado. Não se trata de profissão qualquer, o advogado participa diretamente
da administração da justiça, como um servidor público, estabelecendo uma união entre a vida
real e a justiça, perante a qual deve se esforçar para dar uma solução justa em cada litígio
conforme a verdade. Portanto, para Santo Tomás, o advogado é servo da justiça e da verdade,
inseridas na convivência entre os homens358.

357
NEMETH, Charles P. Lawyers and advocates in the jurisprudence of St. Thomas Aquinas. The Catholic
Lawyer, New York, v. 40, n. 3, p. 271-293, 2001. Disponívelem:
<https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article
=2457&context=tcl>. Acesso em: 15 mai 2019, p. 285-286.
358
MATA-MACHADO, Edgar de Godoi da. A ética profissional do advogado segundo Santo Tomás de Aquino.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 7, p. 91-102, 1955. Disponível em:
<https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/896>. Acesso em: 12 mar. 2019, p. 102.
92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se viu, toda a filosofia de Santo Tomás conta com uma estrutura sólida e
coerente, com os primeiros princípios sustentando os demais de forma lógica e ordenada,
fazendo de sua obra um grande bloco intelectual, cujas bases gerais e mais simples fornecem
os elementos necessários para se chegar aos argumentos mais complexos e específicos do
topo. Esse rigor intelectual se vê, igualmente, em seu tratado sobre a lei e sobre a justiça, este,
ainda, contendo os crimes que ocorrem dentro do processo.
Primeiramente, para compreender a concepção de justiça do Santo e de sua filosofia
processual, foi necessário o estudo do sistema jurídico de seu tempo, desde seus aspectos mais
gerais até os procedimentos mais específicos, como os ordálios e o processo inquisitorial.
Para tanto, foi necessário demonstrar que o pensamento dos medievais incluía a Igreja como
umaautoridadesuperior ao próprio Estado, ainda que diferente dele, pois o eterno se sobrepõe
ao temporal. Fortemente influenciados pela concepção de Santo Agostinho sobre a Cidade de
Deus e a Cidade dos Homens, esse modelo perdurou durante todo o medievo até a
modernidade, quando foi derrubado e substituído por modelos políticos nascidos de
ideologias revolucionárias de caráter imanentista.
Outro fator de grande influência na filosofia de Tomás foi o papel dos costumes para
o jurista medieval. Partindo da noção de que o direito se revela de baixo para cima, isto é,
pelos atos reiterados e socialmente aceitos nas relações humanas, consolidados pelo tempo, a
segurança jurídica existia justamente por saber o que se esperar de cada um, ainda que não
existissem grandes codificações. Em que pese o século XIII já apresentar uma tendência para
a elaboração de códigos e multiplicação de leis escritas, o Aquinate ainda atribuía enorme
peso para o papel dos costumes, demonstrando respeito pelas peculiaridades locais de cada
comunidade e valorizando a grande sabedoria do senso comum de seus integrantes.
O direito canônico foi um grande objeto de estudos para o Santo, provavelmente
apenas atrás da teologia e da filosofia. A influência do trabalho de Graciano é evidente: a
Suma Teológica é composta por uma série de questões com as suas objeções e respostas,
tendo o método dialético presença constante durante toda a obra, exatamente como Graciano
fez com seu Concordia discordantium canonumao demonstrar que de preceitos discordantes
poderia haver concordância se devidamente interpretados conforme a razão. Além disso, o
direito canônico foi o responsável por humanizar as práticas bárbaras, de crueldade extrema e
pouca justiça, concretizando juridicamente a moral cristã.
93

A respeito da Inquisição, Tomás teceu certas críticas, especialmente em razão da


ausência de legitimidade dos clérigos para julgarem. Viu-se que a Inquisição surgiu como
uma resposta em um momento de crescente urbanização, o que causou um aumento da
criminalidade, ao mesmo tempo em que antigas heresias surgiam ainda mais fortes,
ameaçando provocar uma ruptura no tecido social unificado pela fé que tanto demorou para se
formar após a queda de Roma. Não é que o Santo quisesse juízes laicos; todavia, chama a
atenção para o fato de que os julgadores sejam profissionais vocacionados e tecnicamente
aptos para a função.
Gonzaga, com suas lições, demonstrou que o tribunal inquisitorial, apesar de seus
defeitos, aproximou-se da aplicação da justiça mais do que qualquer outro tribunal da época, o
que representa uma maior compatibilidade com o sistema jurídico elaborado por Santo
Tomás, cuja finalidade era dar a cada homem julgado exatamente aquilo que lhe era devido,
nada mais. Além disso, a preocupação com o arrependimento e com a redenção do condenado
orientavam tanto os julgamentos religiosos quanto o pensamento de Aquino, sendo outro
ponto em comum, tão diferente dos ordálios e dos tribunais seculares.
Conclui-se, pelo exposto, que a Inquisição, a despeito de certos abusos (como a
tortura), aproximou-se muito mais do ideal de justiça proposto por Tomás do que os tribunais
seculares da época, nos quais não havia a preocupação com a efetiva prova de culpa do
acusado e com o seu arrependimento. Assim como na absoluta irracionalidade dos ordálios,
faltava-lhes o elemento expiatório.
A teoria tomasiana da justiça recebeu grande influência de Aristóteles. Tomás é um
continuador e inovador do jusnaturalismo, e sua afirmação de que o direito é objeto da justiça
demonstra sua oposição à tese de que o direito e a lei seriam aquilo que emana do detentor do
poder, ainda que destituídos de qualquer virtude ou racionalidade. A justiça, portanto, é dar a
cada um o que lhe é devido, e pode-se concluir que o devido é aquilo prescrito pela lei, que
nada mais é do que uma ordenação da razão visando ao bem comum e promulgada por quem
tem o cuidado da comunidade.
A justiça, assim, é uma virtude moral e, portanto, um hábito, não um mero ato
isolado praticado sob influência de emoções e paixões, mas a atualização de uma potência que
se traduz na inclinação para o bem. E, como a justiça trata da relação do homem para com
outrem, ordenando-o ao bem comum, Tomás afirma que a justiça é uma virtude geral, ou uma
virtude das virtudes, por abranger todas as demais, que lhe são inferiores na medida em que a
parte é inferior ao todo. O Doutor Angélico ainda continuou as lições aristotélicas tratando da
justiça particular, essa sim uma virtude no mesmo sentido que as demais, porque lida com
94

aspectos particulares da justiça, como a justa distribuição dos bens comuns de uma sociedade
ou, em um segundo caso, a correção de uma violação da igualdade inerente aos homens.
Em relação aos atos humanos, Tomás seguiu a tradição cristã referente ao livre-
arbítrio, na qual se sabe que o homem, por ser dotado de razão, consegue, mediante analogia,
optar por agir de um ou outro modo, contrariando seus instintos naturais, ao contrário dos
animais, cujos atos são previamente determinados por sua natureza. Dessa liberdade decorre a
responsabilidade pelos seus atos, uma vez que a ação justa ou injusta depende,
essencialmente, da voluntariedade nela empregada. Em outras palavras, o homem só pode ser
julgado e condenado dentro das possibilidades de escolhia que possuía ao tempo do ato, e tal
análise tem o condão de afetar todo o resultado do processo.
O tratado da lei, por sua vez, está contido na pars prima secundae, diferentemente do
tratado da justiça, que fica secunda secundae. Isso porque o Santo diferencia a lei, que possui
fundamento ontológico e que, logo, é matéria do homem enquanto criação divina, da justiça,
que é uma virtude (virtus), possuindo um tratado à parte, tamanha a importância da ética das
virtudes para Tomás. Pelo fato de que as leis se manifestam diversamente e que há uma
hierarquia entre suas espécies, Aquino as dividiu em quatro, partindo da lei eterna, que se
desdobra em divina (por revelação) e natural (pela razão) e que, por fim, ao tratar do que é
contingente ou para formalizar e dar concretude a essas leis, faz-se a lei humana, que ocupa o
lugar mais baixo na hierarquia, possuindo natureza residual, porém não menos importante.
A teoria da lei de Tomás, então, parte da lei eterna, que é a própria razão de Deus,
ordenadora do universo, desdobrando-se imediatamente na lei divina e na lei natural, e
mediatamente na lei humana. Esse fenômeno é chamado de participação, uma vez que as leis
hierarquicamente inferiores são partes da superior, não com ela se confundindo.A lei humana
contrária à natural ou divina não é considerada lei, mas corrupção da lei, ou mera violência, e
só deve ser obedecida em casos em que a sua desobediência causa um dano ainda maior à
coletividade.
Ficou demonstrado, conforme as lições do Aquinate, que há,no mínimo, uma forte
prova da lei natural, aceita tanto por filósofos pagãos como judeus e cristãos.Com efeito,
chama-se justamente de regra de ouro aquela máxima moral,presente emvárias tradições
sapienciais, e universalmente aceitas. Tal máxima pode ser dividida em positiva, “fazer com
outrem o que quer que seja feito consigo mesmo” e negativa “não fazer ao próximo o que não
quer que seja feito a si mesmo”, sendo esse um preceito que decorre da máxima da razão
prática, “fazer o bem e evitar o mal”. Ora, se todos concordam com as proposições práticas e
95

as compreendem, é impossível que não se possa falar em uma lei anterior ao Estado, que a
todos obriga e rege como leis dos corações.
Ainda, nas lições de Lutz-Bachmann, viu-se que Tomás aprimorou a teoria da justiça
aristotélica ao descobrir que o Santo fincou suas bases em uma rational normative foundation,
não considerando apenas o elemento teleológico aristotélico, mas demonstrando que se há
também um elemento deontológico intrínseco à justiça legal, o que a torna imune aos
argumentos kantianos de séculos depois, já que a sua premissa não parte apenas do bem, mas
da própria razão.
Em seguida, dentro do contexto jusnaturalista e no tratado das virtudes, Aquino
apresenta uma série de pecados (crimes) contra a justiça, sendo cinco inerentes ao processo
judicial, estabelecendo obrigações profissionais aos agentes processuais necessários, quais
sejam, o juiz, o acusador, o réu e o advogado, e ao agente contingente, a testemunha. Essas
obrigações, como se viu, decorrem da própria lei natural e, às vezes, até da divina, como no
caso de não prestar falso testemunho.
Assim, tem-se um juiz que deve estar revestido da legitimidade julgadora, da
inclinação para a justiça e da prudência; um acusador armado com provas sólidas e robustas
que de fato acredite na veracidade de sua acusação; um réu que possa se apresentar
pessoalmente para se defender, inclusive podendo recorrer de sentenças injustas e, até mesmo,
resistir-lhes quando a pena for grave; o advogado, que, ao contrário da cultura utilitarista
moderna, não pode proceder de quaisquer meios para atingir a vitória processual, devendo
agir como verdadeiro funcionário público da justiça, nas lições de Matta-Machado, e ainda
deve, por caridade, trabalhar pro bono em casos extremos; por fim, a testemunha, que não
pode mentir sob circunstância alguma, por estar sob juramente e pelo seu dever para com a
justiça.
Desse modo, pode-se concluir essa exposição afirmando que Santo Tomás seguiu sua
filosofia coerentemente por toda a sua obra, incluindo sua filosofia jurídica e processual.
Atentou-se para a existência da lei natural, negada por muitos, e mostrou que não é apenas
possível mas necessário que o direito esteja pautado pela moral, já que o homem é
naturalmente inclinado para o bem e para o verdadeiro, não sendo lícito, de maneira alguma,
desviar-se de sua vocação para a justiça, a mais completa das virtudes, pois nem Vésper, nem
a estrela d’alva são tão admiráveis quanto ela.
96

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