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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JÚLIA MEYER FERNANDES TAVARES

A FILOSOFIA DA JUSTIÇA NA OBRA DE MARCO TÚLIO CÍCERO

Mestrado em Filosofia do Direito

São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

JÚLIA MEYER FERNANDES TAVARES

A FILOSOFIA DA JUSTIÇA NA OBRA DE MARCO TÚLIO CÍCERO

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof.
Livre-Docente CLÁUDIO DE CICCO.

São Paulo
2012
FICHA CATALOGRÁFICA

XXXX Tavares, Júlia Meyer Fernandes


A Filosofia da Justiça na obra de Marco Túlio Cícero / Júlia Meyer Fernandes
Tavares. – São Paulo, 2012.
64 p.

Dissertação de Mestrado – Mestrado em Filosofia do Direito. Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo, São Paulo, SP, 2012.

Orientador: Prof. Dr. Livre Docente Claudio De Cicco

1. Jusnaturalismo 2. Direito e Justiça 3. Marco Túlio Cícero I. Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo. II. Título.
BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

___________________________________________

____________________________________________
II. Mas, não é bastante ter uma arte qualquer sem praticá-la. Uma
arte qualquer, pelo menos, mesmo quando não se pratique, pode ser
considerada como ciência; mas, a virtude afirma-se por completo na
prática, e seu melhor uso consiste em governar a República e
converter em obras as palavras que se ouvem nas escolas. Nada se
diz, entre os filósofos, que seja reputado como são e honesto, que
não o tenham confirmado e exposto aqueles pelos quais se
prescreve o direito da República. De onde procede a piedade? De
quem a religião? De onde o direito das gentes? E o que se chama
civil, de onde? De onde a justiça, a fé, a equidade, o pudor, a
continência, o horror ao que é infame e o amor ao que é louvável e
honesto? De onde a força nos trabalhos e perigos? Daqueles que,
informando esses princípios pela educação, os confirmaram pelos
costumes e os sancionaram com as leis. Perguntando-se a
Xenócrates, filósofo insigne, que conseguiam seus discípulos,
respondeu: “Fazer espontaneamente o que se lhes obrigaria a fazer
pelas leis”. Logo, o cidadão que obriga todos os outros, com as
penas e o império da lei, às mesmas coisas a que a poucos
persuadem os discursos dos filósofos, é preferível aos próprios
doutores. Onde se poderá encontrar discurso de tanto valor que se
possa antepor a uma boa organização do Estado, do direito público e
dos costumes? Assim, julgo preferíveis as cidades magnas e
dominadoras, como as denomina Ênio, aos castelos e praças fortes;
creio, igualmente, que, aos que governam a República com sua
autoridade, se deve antepor a sabedoria dos peritos em negócios
públicos. Já que nos inclinamos a aumentar a herança da
humanidade; já que para isso se encaminham nossos estudos e
trabalhos, estimulados pela própria natureza, e mais, para tornar
mais poderosa e opulenta a vida do homem, sigamos o caminho que
os melhores empreenderam, e não escutemos as vozes e sinais que
nos chamam por detrás e a que os nossos predecessores fecharão
os ouvidos.
MARCO TÚLIO CÍCERO
Da República, p. 10
Dedico esse trabalho àquilo que entendo ser a expressão do divino, princípio
de ordem presente em toda criatura, que nos inspira a viver de maneira íntegra,
humana, que nos preenche de amor, vigor e coragem e que nos faz irmãos de
tudo o que é vivo.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que de alguma maneira me inspiraram e


contribuíram para que esse trabalho fosse possível, foram muitos.

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela oportunidade


e ensinamentos, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPQ, pela bolsa de estudos concedida.

Agradeço a Deus, meu pai e melhor amigo, pelo dom da vida, por
me fazer sempre acreditar e me encantar com o ser humano.

A minha família, meu bem mais precioso, que por dois anos aceitou
minha ausência, me apoiando em tudo de maneira incondicional.

A meus pais por me ensinarem os verdadeiros valores da vida, e a


meus irmãos pela amizade e amor incondicionais.

Ao Rafael, companheiro em tantas horas de estudo, em todos os


finais de semanas e feriados, por sua praticidade, paciência, ternura e amor.

Aos meus amigos Rui, Júlia, Camila, Henrique, Álvaro e Nathaly pelo
suporte nas incontáveis dúvidas e inseguranças acadêmicas.

Ao Sérgio Taj e a Fabiola, pela graça da amizade, pela ajuda e


encorajamento diários e compreensão em tantos momentos.

Por fim ao meu orientador Cláudio de Cicco, ser humano admirável,


cujas lições transcendem em muito o Direito, pelo seu exemplo de doação, de
vocação, de humildade, e de sabedoria.
RESUMO

O presente trabalho tem como finalidade o estudo da filosofia da


justiça no pensamento do filósofo Marco Túlio Cícero. Para tanto, o estudo
versa sobre o contexto histórico em que o filósofo nasceu e a maneira como o
pensamento grego influenciou sua obra, reverberando em tudo aquilo que se
relaciona com o político, jurídico e social em Roma. Tendo em vista que o
estoicismo contribuiu intensamente para o pensamento de Cícero, observa-se
a necessidade de se estudar algumas questões da filosofia estoica,
notadamente a ética, a física e a lógica. Seu estudo possibilita identificar
pontos do pensamento grego no pensamento jurídico romano especialmente
nas obras “Da República”, “Das Leis” e “Dos Deveres”, tratados filosóficos em
que Cícero expõe suas ideias acerca do que entende por Direito, Lei e Justiça.
Palavras-chave: Pensamento romano; Direito natural; Lei natural;
Estoicismo; Cícero.
ABSTRACT

The present work aims to study the philosophy of law from


the Roman thought of the philosopher Marcus Tullius Cicero. To this end, the
study deals with the historical context in which the philosopher was born and
how Greek thought influenced his work, reverberating in everything that relates
to the political, legal and social in Rome. Stoicism, contributed strongly to the
thought of Cicero, hence the need to delve into some issues of stoic philosophy,
especially ethics, Stoic physics and logic. Their study allows identifying points of
Greek thought in the Roman legal thinking especially in the works The Republic
Of Laws and Duties philosophical treatises in which Cicero expounds his ideas
about what it meant by Law, Law and Justice.
Key words: Roman thought; natural law; Stoicism; Cicero.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

1 CÍCERO, SUA ÉPOCA E SUA OBRA ................................................................... 14

1.1 Biografia de Cícero ...................................................................................... 14

1.2 Importância e atualidade do pensamento de Cícero

para a Filosofia do Direito .................................................................................. 18

1.3 Contexto histórico ........................................................................................ 22

1.4 Breves considerações acerca do Direito Romano ....................................... 34

1.4.1 Fontes do Direito Romano .................................................................... 37

1.5 Principais obras de Cícero ........................................................................... 39

1.5.1 Da República ........................................................................................ 41

1.5.2 Das Leis ................................................................................................ 45

1.5.3 Dos Deveres ......................................................................................... 50

2 CÍCERO E O ESTOICISMO:
INFLUÊNCIAS DO ESTOICISMO EM SEU PENSAMENTO
SOBRE O DIREITO E A JUSTIÇA ........................................................................... 54

2.1 Períodos e representantes do estoicismo .................................................... 54

2.2 A física, a lógica e a ética estoicas .............................................................. 61

2.2.1 A física estoica ...................................................................................... 62

2.2.2 A lógica estoica ..................................................................................... 65

2.2.3 A ética estoica ....................................................................................... 67

2.3 O direito natural estoico ............................................................................... 69


11

3 A FILOSOFIA DO DIREITO DE MARCO TÚLIO CÍCERO ................................... 74

3.1 Direito natural e a organização das civitas .................................................. 74

3.2 A concepção de Cícero sobre o Direito ....................................................... 79

3.3 A concepção de Cícero sobre as Leis ......................................................... 84

3.4 A concepção de Cícero sobre a Justiça ....................................................... 88

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 96


12

INTRODUÇÃO

A influência do direito romano em toda a tradição do direito ocidental é


inegável. A partir desta constatação resolvemos estudar esse pensamento
priorizando no trabalho um dos mais notáveis filósofos romanos, Marco Túlio Cícero.

A pesquisa pretende compreender as noções de direito e justiça correntes


na época da República romana, especialmente, a partir da visão de Cícero, o que
torna necessário estudar as três principais obras de Cícero sobre o tema: Da
República, Das Leis e Dos Deveres.

Necessário, ainda, para a compreensão do pensamento de Cícero,


investigar a escola estoica, principalmente no período médio, com Panécio e
Posidônio, que o inspiraram na formação de seu pensamento sobre o Direito
Natural, Lei Natural, e sobre a Justiça. Tendo em vista que Marco Túlio Cícero,
sofre influência das circunstâncias sociais e culturais de sua época, o primeiro
capítulo desse trabalho cuidou de esboçar seu perfil histórico-biográfico de com a
finalidade de expor a atmosfera cultural e histórica que influenciou seu pensamento.

Ainda no primeiro capítulo procuramos fazer uma breve introdução sobre as


três obras acima citadas. No entanto os conceitos extraídos dessas obras serão
objeto de estudo no terceiro capítulo.

No segundo capítulo do trabalho estudamos alguns elementos da doutrina


estoica, uma vez que essa escola influenciou as posições de Cícero sobre o direito e
a justiça. Sobre tal escola, em um primeiro momento relatamos seus três períodos e
seus principais representantes. Em seguida trabalhamos as ideias da física, da
lógica e da ética estoicas.

A física estoica tem por base a afirmação da existência de uma razão


universal, uma natureza intrínseca presente e atuante em todas as coisas que
produz e governa a realidade de acordo com um conjunto de leis que se encadeiam
de maneira necessária e harmoniosa. O conhecimento dessa natureza precisava ser
13

revestido em uma linguagem para que fosse comunicado aos demais homens, papel
esse que caberia a lógica estoica.

Para os estoicos o homem tem, desde o início de sua existência, por


natureza, meios de distinguir o que é conforme e o que é contrário à natureza. Assim
viver de maneira ética seria viver de acordo com a natureza. A virtude residiria na
conformação à ordem natural das coisas, o que levaria o homem a felicidade.

Estudados alguns pontos da filosofia estoica, a parte final do trabalho será


dedicada ao estudo das ideias de Cícero acerca do Direito, das Leis e da Justiça.

Cícero, em sua filosofia, traz do estoicismo a crença em um universo


racionalmente ordenado, na presença da razão em todos os homens, que atribui a
cada ser sua essência e a tarefa para o qual foi direcionado durante sua existência,
e ainda na consubstancialidade dessa razão com a alma humana, ligando a ordem
da natureza com a ordem moral.

Para fundar o direito seria necessário, pois tomar essa lei inscrita no interior
de cada homem, identificada com a razão, e explicitá-la. É a lei natural que funda o
direito possibilitando e gerando a convivência social.

Com relação à justiça os estoicos a concebem como a capacidade de dar a


cada um o que é seu. Cícero assimila essa definição estoica e por isso compreende
a justiça como uma virtude essencialmente social, de forma que a sociedade dos
homens e a comunidade da vida se agrupam em torno dela.
14

1 CÍCERO, SUA ÉPOCA E SUA OBRA

1.1 Biografia de Cícero

Marco Túlio Cícero nasceu na região de Lácio, na cidade de Arpino, no ano


106 a.C. Sua mãe chamava-se Helvia e pertencia à ordem equestre ou ordem dos
cavaleiros.1 Foi iniciado ao estudo do direito aos dezesseis anos e aos vinte cumpriu
o serviço militar. Durante esse período trabalhou na campanha de Sila contra os
confederados italianos na guerra Mársica. Ao retornar a Roma, tomou lições com
Filo de Larissa, Diodoro e Molão de Rodes.

Cícero iniciou sua carreira de advogado aos vinte e seis anos e logo
conquistou respeito e admiração dos romanos ao ganhar uma nobre causa na qual
defendeu Róscio da acusação de parricídio feita por Sila, verdadeiro autor do
assassinato. Temendo possível vingança do ditador, diante do êxito do deslinde,
Cícero sai de Roma e passa a viver na Grécia.

Sua ida para a Grécia é relevante pois nos mostra como os Romanos,
inclusive o próprio Cícero, foram forjados no pensamento grego, que representa
ponto inicial de tudo aquilo que se relaciona com o político, jurídico e social em
Roma. Nesse sentido José Reinaldo de Lima Lopes:2

Os juristas romanos, como em geral os romanos bem-educados e


cultos, foram helenizados. Não se trata de uma absorção completa
da cultura grega. No entanto, não se pode esquecer que a expansão
de Roma para o Oriente dá-se sobre territórios helenizados de longa
data. Alexandria e Antioquia, as duas maiores cidades do império
depois da própria Roma, eram cidades helenísticas; Bizâncio, já no
tardo-império, também. A Língua corrente internacionalmente era o
grego (o latim divulga-se no Ocidente), o grego Koiné (comum) ou
demótikos (popular). Neste ambiente, a educação formal incluía um
mínimo de familiaridade com a tradição grega. Cícero dedica seu
livro Tópicos, uma introdução à retórica, a um jurista amigo seu
(Trebácio Testa). A filosofia grega participa, portanto, de alguma
forma, do pensamento jurídico romano.
(...)

1
CHAUI, Marilena. Introdução à história da Filosofia – As escolas helenísticas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. v. 2, p. 223.
2
O Direito na História – Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, p. 58.
15

O debate grego sobre a melhor forma de governo, sobre as relações


entre a vida pública, cidade, direito e justiça, tudo isto torna-se
patrimônio dos romanos, ainda que para modificá-lo e adaptá-lo.
Outra vez, Cícero escrevendo sua República adota o gênero literário
do diálogo para defender a melhor forma de governo, o governo
misto dos romanos (da República romana). E o convencionalismo, o
respeito pela boa-fé e pelas promessas como meios de se garantir
direitos também se deriva de muito do que os gregos já praticavam e
sobre o que discutiam. Assim, muito embora os juristas não sejam
filósofos, é claro que alguma relação com a cultura de seu tempo faz
com que um senso comum moral esteja presente em seus escritos.

Em Atenas teve contato com Antíoco que na época se aproximara mais dos
dogmas estoicos deixando de lado a nova Academia e a escola de Carneades.
Ansiando voltar a Roma e tomar parte nos negócios públicos, Cícero entendeu por
bem desenvolver mais suas faculdades de eloquência e retórica frequentando, para
tanto, as aulas dos asiáticos Xenócles, Dionísio e Adramita.

Importante ressaltarmos que na Grécia já se encontravam estudos sobre


retórica dialética, gramática etc. e que tais recursos técnicos foram úteis aos juristas
romanos, pois possibilitavam a eles uma forma mais elaborada de argumentação,
concatenando melhor premissas e conclusões, muito úteis em um ambiente que
privilegiava a jurisprudência como fonte do direito.

Sobre a dialética na Grécia, nos ensina o professor Tercio Sampaio Ferraz


Jr.:3

Com efeito, a dialética, a arte das contradições, tinha por utilidade o


exercício escolar da palavra, oferecendo um método eficiente de
argumentação. Ela ensinava-nos a discutir, representando a
possibilidade de chegarmos aos primeiros princípios da ciência
(scientia, epistema). Partindo se premissas prováveis que
representavam a opinião da maioria dos sábios por meio de
contradições sucessivas, ela chegava aos princípios cujo
fundamento, no entanto, era inevitavelmente precário. Esse caráter
da dialética que tornava possível confrontar as opiniões e instaurar
entre elas um diálogo, correspondia a um procedimento crítico. A
crítica não era apenas uma espécie da dialética, mas uma de suas
formas mais importantes, segundo Aristóteles. A crítica não era bem
uma ciência, com um objeto próprio, mas uma arte geral, cuja posse
podia ser atribuída a qualquer pessoa. A importância dessa critica,
procedida mediante a refutação da tese contrária, estava no
fortalecimento das opiniões pela erradicação progressiva das
equivocidades. No fundo, tratava-se, pois, de um meio para resolver
aporias, para enfrentar a ambiguidade natural da linguagem e para

3
Introdução ao estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, p. 35.
16

buscar a alteridade e a identidade, levantando-se premissas e


opiniões. A dialética, em suma, era uma espécie de lógica da
verdade procurada.

Após a morte de Sila, Cícero voltou a Roma e decidiu dedicar-se a carreira


pública. Em 75 a.C. foi nomeado questor na Sicília com a missão impopular de
aumentar o envio de trigo para Roma.

Sua popularidade teve o ponto mais alto quando ganhou uma causa contra
Verres, que fora pretor na Sicília e que, no exercício da função, extorquira a região
apoiado pelos patrícios. Em sua atuação nessa causa produziu discursos que
ficaram conhecidos como Verrínas, onde em algumas célebres passagens se opõe
a corrupção que dominara a República. Conseguiu a condenação de Verres, apesar
dos esforços dos pretores em proteger o acusado protelando o processo, adiando
audiências etc.

No entanto, além de sua fama, cresceu também o número de seus inimigos.


Segundo Plutarco,4 sua combatividade, seus textos irônicos e sarcásticos que
frequentemente usava para atacar aos que lhe fizessem sombra acarretaram-lhe
uma reputação de certa malícia.

Cícero, depois de questor, foi nomeado pretor5 aprovado em primeiro lugar,


tendo concorrido com diversas pessoas de prestigio. Como magistrado, suas
sentenças lhe conferiram a fama de justo e probo.

Seguindo na carreira pública, Cícero se candidatou a cônsul e venceu


Catilina, também candidato e sob o qual pesavam suspeitas de ter matado o irmão e
cometido incesto e ainda de conspirar contra a República. Cícero pôs fim à

4
PLUTARCO. Vidas paralelas. Trad. Gilson Cardoso e notas de Paulo Peixoto. São Paulo: Editora
Paumape, v. 5, p. 3. Digitalizado por consciencia.org.
5
Sobre a organização política de Roma na República afirma Cretella Jr. (Curso de Direito Romano.
31. ed. São Paulo: Forense, p. 32): “Os cônsules são dois, mas o grande desenvolvimento da
população romana exige que as funções consulares se repartam por outras pessoas. Criam-se, pois,
os seguintes cargos: a) questores, a que se confia a guarda do tesouro e a administração financeira;
b) censores, a quem compete o recenseamento, a escolha dos senadores, a fiscalização dos
costumes; c) edis curis; encarregados do policiamento da cidade e dos gêneros alimentícios, bem
como do comércio em geral; d) pretores, encarregados da distribuição da justiça. Primeiro, em
número de um, o cargo de pretor se desdobra, depois em dois: o pretor urbano, para as causas entre
os romanos, o pretor peregrino, para as questões entre romanos e peregrinos (= estrangeiros) ou
entre os próprios peregrinos; e) praefecti jure dicundo, delegados do pretor nas diversas partes da
Itália, encarregam-se de dizer o direito; f) governadores das províncias (protetores ou procônsules),
encarregados de distribuir a justiça”.
17

conspiração, defendeu a condenação de Catilina acompanhado pela plebe e pelo


Senado, com a exceção de um, Caio Julio César.6

Cícero foi acusado pelos amigos de Catilina de não ter havido devido
processo na condenação de Catilina. Um desses amigos chamava-se Clódio e havia
sido acusado de sacrilégio perante o Senado por provocação de Cícero.
Inconformado com isso, Clódio realiza uma manobra e Cícero termina por se exilar
na Ásia Menor.

Pompeu e César, que a princípio abandonaram Cícero, percebendo que


Clódio representava um risco conseguiram realizar seu julgamento e condenação
pelos tribunais e, na sequencia, a aprovação do sufrágio pela volta de Cícero.

Dessa forma, em 57 a.C. Cícero é recebido novamente pelo Senado. De seu


exílio trouxe a ideia de que a República deveria ser fortalecida e seus princípios
resgatados porque essa era a melhor forma de governo. Organizou suas ideias em
seus tratados Da República, Das Leis e Dos Deveres. Os dois últimos tratados
decorrem do primeiro, pois ao dissertar sobre o que entende ser a melhor forma de
governo passou a escrever sobre as leis que deveriam reger aquele governo e seus
desdobramentos práticos.

Na guerra civil entre Pompeu e César, Cícero apoiou o primeiro e por conta
de sua derrota exilou-se novamente, dessa vez em sua propriedade de campo em
Túsculo. Nesta época escreveu a obra Consolação inspirado pela morte de sua filha
Túlia.

Com a morte de Pompeu, Catão e Cipião, Cícero declarou-se a favor de


César. Em seguida César foi assassinado por um plano liderado por seu filho
adotivo Brutos. Desgostoso com a morte de César e com as ambições daqueles que
aspiravam substituí-lo, Cícero volta para Túsculo e só retorna quando Otávio lhe
pede para voltar ao Senado.

Cícero acreditava que Otávio conteria as ambições de Marco Antônio,7 e


escreve nessa época sua obra Filípicas onde retrata Antônio como o tirano Felipe da

6
CHAUI, Marilena. Op. cit., p. 223.
7
Cláudio de Cicco (História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo:
Editora Saraiva. 2010, p. 61) ensina acerca do segundo triunvirato: “O herdeiro de César, seu
sobrinho Otávio, juntamente com Marco Antônio, desejoso de suplantar Otávio, levou-o ao desastre
de Actium (30 a.C.), quando as legiões romanas aniquilaram as tropas que a rainha do Egito,
Cleópatra, enviou a Antônio para sustentá-lo na sua revolta contra Roma”.
18

Macedônia. No entanto Otávio, herdeiro e sobrinho de César, com Marco Antônio e


o General Lépido formaram em seguida o Segundo Triunvirato de Roma.

Inconformado com as supostas acusações de Cícero em seus discursos das


Filípicas, Antônio pede a Otávio a sua cabeça. Cícero tentou fugir com seu irmão
Quinto, mas foi encontrado às margens do mar Tirreno e, aos sessenta e três anos,
no dia 7 de dezembro de 43 a.C. foi assassinado. Antônio ordenou que fosse
degolado e tivesse sua mão direita decepada, depois as levou a Roma onde as
colocou à frente da tribuna dos oradores no fórum. Em seguida Fúlvia, mulher de
Antônio, costurou com um alfinete a língua de Cícero.

Todavia, assim como o Primeiro Triunvirato, o segundo não durou muito


tempo. Otávio se tornou imperador de Roma logo após a batalha de Actium em 30
a.C. onde, apesar dos esforços das tropas enviadas pela rainha do Egito, Cleópatra,
venceu Marco Antônio que desejava suplantá-lo.8

Otávio pôs fim à República, mas cuidou de manter o Senado. No entanto,


embora não tenha aniquilado suas funções, as diminuiu consideravelmente.

Embora mantivesse a aparência de República Senatorial o verdadeiro regime


era a ditadura, as leis do Senado agora só teriam valor com o placet de Otávio. Ao
Senado restou apenas a função consultiva através do senatus-consulta.9

1.2 Importância e atualidade do pensamento de Cícero para a Filosofia do


Direito

Ao estudar a Filosofia e a Teoria do Direito em Roma, observamos que o


Império produziu literatura jurídica no sentido de reflexão doutrinária, criou um
aparelhamento específico de teoria do Direito. Nesse ponto, os romanos inovaram
em relação aos gregos por criarem uma profissão específica, qual seja, a dos
jurisconsultos, juristas cujos olhares voltava-se aos casos concretos, que eram
objeto das consultas por eles prestadas. Três aspectos peculiares aos romanos
indicam essa teoria do Direito:

8
Idem, p. 61.
9
Idem, ibidem.
19

a) Por meio de sua prática judicial, ao apresentarem respostas às questões


que lhes foram consultadas (as responsa e as questiones), escreveram verdadeiros
tratados doutrinários.

b) Além da prática judicial, os jurisconsultos romanos se preocuparam em


desenvolver o ensino do Direito a fim de formar novos discípulos que perpetuassem
a profissão, defendessem uma “escola” doutrinária em detrimento de outra, e
também servissem guia aos praticantes do Direito espalhados pelos domínios
romanos. Nas palavras de Billier e Maryioli:10

O objetivo comum de Cícero e dos jurisconsultos que se dedicavam


a escrever tratados científico-pedagógicos é constituir o direito numa
arts: não arte no sentido moderno, mas sim uma técnica e uma
ciência. A teoria do direito combinará então essa dupla perspectiva
técnico-científica: o direito deve ser uma doutrina coerente, capaz de
exibir as regras de seu funcionamento, com a condição de que essa
doutrina seja baseada no exame de casos jurídicos bem precisos e
que ela possa retornar o mais depressa para eles no prazo do
esclarecimento doutrinário.

c) A relação paradoxal que estabelecem entre o direito natural e o direito


positivo. Sobre o pensamento de Cícero frente a esse tema, ensinam Billier e
Maryioli:11

No pensamento de Cícero, com efeito, sem dúvida não há nenhuma


contradição. Realmente se trata de partir de um direito natural; nas
determinações sucessivas do direito, a obra do legislador pode ter o
sentido de temperar as exigências da pura justiça e da pura razão
natural. O Estado e o direito são efeitos da natureza.

Nesse contexto, de composição de uma filosofia e de uma teoria do direito


romanas, uma das figuras que se destacou foi Marco Túlio Cícero 12 que sentiu a
necessidade de buscar na filosofia ferramentas para enriquecer sua atividade de
jurista renomado.

10
BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de
Andrade. São Paulo: Manole, 2005, p. 102-103.
11
Op. cit., p. 105
12
Nesse sentido: REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 630; BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. A justiça em Aristóteles. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005,
p. 136.
20

Sua contribuição para a criação de uma tradição filosófica romana foi


caracterizada pelo ecletismo filosófico13 uma vez que, teve acesso às varias
doutrinas que circulavam pelo Império Romano naquela época.

Desde o cético Fílon, seu primeiro mestre, passando pelos estoicos Panécio
e Possidônio, dentre outros pensadores e escolas, influenciaram o pensamento do
grande orador, especialmente no que diz respeito à determinação da lei natural
sobre a conduta moral e ética do Homem.

No entanto, embora Cícero tenha buscado na filosofia uma ferramenta para a


compreensão do Direito, os romanos “não foram grandes apaixonados pelos
estudos filosóficos, nem pelos pressupostos gerais da vida jurídica, atraídos de
preferência pelo plano da atividade prática ou do Direito como voluntas”.14

Naquela época ressurgem em Roma os questionamentos feitos na Grécia


sobre o justo por natureza e o justo por convenção.15 Nesse sentido, ensina Reale:16

Estudando alguns fragmentos fundamentais do Direito Romano,


assim como as lições de alguns autores, entre os quais se distingue
Cícero, verificamos que em Roma se repete a distinção já posta na

13
Sobre o ecletismo ensina Marilena Chauí (op. cit., p. 227): “Estamos habituados a tomar o
ecletismo como a mistura um tanto desordenada de opiniões e formas de conduta vindas de
diferentes origens e nem sempre concordantes. Não é o caso. O termo grego eklegein significa
selecionar e reunir as partes selecionadas. O ecletismo é um método que seleciona e escolhe teses
oriundas de sistemas diversos reunindo-as num todo novo e original. Cícero é um eclético, mas, como
explica Milton Valente, um eclético acadêmico, ou seja, inspirado no probabilismo razoável de
Carnéades – isto é, o método do pró e contra – e na dialética socrática. Examina teses de diferentes
procedências, busca o ponto em que se contradizem e em que concordam, determina qual delas é
superior à outra e a adota, modificando seu sentido inicial graças à sua articulação com outra, de
origem diferente, também escolhida como a melhor. O confronto das opiniões não leva à suspensão
do juízo, mas à descoberta do provável e do verossímil, que podem ser aceitos sem risco de
dogmatismo. Cícero trabalha sobre o dissenso para chegar ao consenso. É esse procedimento
metódico que vem se exprimir sob a forma do diálogo”.
14
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 628.
15
Importante exemplo é extraído da tragédia Antígona escrita por Sófocles em 442 a.C. A peça
apresenta a discussão acerca do conflito entre as leis divinas e as leis humanas. Nela, a personagem
principal, Antígona, filha de Édipo e Jocasta, e sobrinha de Creonte retorna com sua irmã a Tebas
após a morte de seu pai em Colono. Em Tebas seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, possuíam um
acordo de revezarem-se no poder, no entanto o pacto fora descumprido motivando Polinices a iniciar
uma luta contra o irmão que termina de maneira trágica com a morte de ambos. Diante do ocorrido
Creonte toma as rédeas do poder, ordena funerais de honra a Etéocles a qual afirma ter sido morto
defendendo Tebas e proíbe o sepultamento de Polinices por ter lutado contra a cidade. Antígona
então desobedecendo as normas impostas pelo tio realiza o enterro de seu irmão por entender que
essa é a vontade da lei divina, universal e superior a lei dos homens.
Sobre esse tema José Reinaldo de Lima Lopes (O Direito na História, p. 40) observa: “(...) Mas o
que é particularmente relevante é que entre o direito “dos deuses” e o direito “dos homens” abre-se
uma fenda, pela qual transitará a cultura clássica. Basta ler a Antígona de Sófocles para perceber o
conflito entre duas concepções possíveis de direito; as comédias de Aristófanes (As Nuvens, por
exemplo) ilustram a irreverência que se permitia para com os tribunais e a eloquência “forense”.
16
REALE, Miguel. Op. cit., p. 628.
21

Grécia entre o Direito Positivo e o Direito Natural, ou melhor, entre o


justo por natureza e o justo por lei ou convenção.
Existem mesmo na obra de Cícero passagens de invulgar beleza,
nas quais se tece a apologia da lex como expressão da ratio
naturalis, sempre igual por toda parte, sempiterna, que determina o
que deve ser feito e o que deve ser evitado. Bem poucas vezes a
consciência da lei natural, enquanto momento essencial da Ética,
atingiu tamanha beleza e precisão como na obra ciceroniana.

Sobre esse tema Cícero, por meio de sua experiência como homem público,
entendia que sem o Direito não era possível organizar a vida social. Todavia essa
organização deveria ter por base o direito natural. Para Cícero o estudo do direito
não poderia ser limitado ao estudo de questões meramente casuísticas, pois o
Direito seria um dos elementos mais importantes para a manutenção da República.

Nesse passo, Cícero entendia que para conhecer o direito era necessário se
aproximar da filosofia. Para desvelar suas fontes era necessário pôr em evidência os
dons recebidos da natureza, observar as boas qualidades do espírito humano,
verificar a tarefa reservada para o gênero humano. A natureza do Direito residiria na
própria natureza humana e não nos textos jurídicos produzidos.

Desta forma, a partir do estudo do pensamento de Cícero percebemos a


influência e repercussão de sua filosofia na teorização do direito romano,
principalmente no que diz respeito à estruturação de um direito natural que repercute
até hoje.

Importante notar que Cícero prenuncia a filosofia cristã e posteriormente os


pensadores do renascimento e estudiosos dos direitos humanos, nesse sentido:17

Mas o que encontramos de mais recente na cultura dos humanistas


é sobretudo a redescoberta das doutrinas chamadas helenísticas, as
que mais tardiamente aparecem na Antiguidade, transmitidas pelo
canal dos autores latinos: Cícero, Sêneca, Horácio, Lucrécio e
outros, que são as leituras favoritas do século XVI. É suficiente ler o
catálogo da biblioteca de Montaigne.
Lembremos então que as seitas chamadas helenísticas vieram após
o declínio do regime da cidade grega, nos grandes impérios
constituídos pelos sucessores de Alexandre (que o Império Romano
continua). Sabe-se bem que seus autores, não podendo mais tratar
de política, interessavam-se pela conduta da vida pessoal do sábio;
e como queriam ser mais práticas do que especulativas, estas

17
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito definições e fins do Direito. Trad. Alcidema Franco Bueno
Torres. São Paulo: Atlas, 1977, p. 109-110.
22

doutrinas foram sobretudo doutrinas morais. Portanto, centradas no


indivíduo.

E ainda, sobre a verificação de elementos cristãos na teoria dos Direitos


Humanos escreve Michel Villey:18

(...) enquanto a doutrina de Aristóteles parte da observação da


cidade e não encara o indivíduo senão no interior da cidade (o
homem é “animal político”), o povo judeu é uma nação, reunião de
indivíduos. Não uma cidade. São dispersos na Diáspora, como serão
em seguida os cristãos através do mundo.
Os pagãos puderam denunciar no cristianismo judaico uma força de
dissolução da comunidade civil.
Com o Evangelho uma parte essencial do indivíduo escapa à
sujeição do Estado. Santo Agostinho mostrou-o na Cidade de Deus,
onde parece que cada cristão só se encontra ligado ao Império
Romano de maneira precária, incerta; porque ele sente muito mais
que pertence à cidade supraterrestre e intemporal, que é uma cidade
inorgânica, somente por imagem.
Encontrar-se-á este tema em Santo Tomás, de forma mais
moderada. Em toda sua vida espiritual, o cristão cessa de ser parte
do organismo político; é um todo, um infinito valor em si. Ele mesmo
é um fim superior aos fins temporais da política, e sua pessoa
transcende o Estado. Aqui está o germe das liberdades modernas do
indivíduo, que serão opostas ao Estado, nossos futuros “direitos do
homem”.

Desta forma, entendemos valiosa a contribuição de Cícero para a


construção de uma ideia de justiça como virtude intrinsecamente ligada à própria
liberdade, permeada pela filosofia estoica, e que influenciará posteriormente o
cristianismo, a formação do conceito de dignidade humana e os próprios direitos
humanos.19

1.3 Contexto histórico

A história de Roma é uma trajetória de vinte e dois séculos, do século VII


a.C. até o século VI d.C. no tempo de Justiniano e depois até o século XV no império
bizantino. Costuma-se dividir essa história em três períodos com regimes políticos

18
Idem, p. 107-108.
19
Importante lembrar também que, embora tenhamos utilizado algumas citações do professor Michel
Villey, em seu livro A formação do pensamento jurídico moderno ele se demonstra contrário a
ideia apresentada neste trabalho, afirmando que não há um direito natural estoico mas sim uma
confusão entre o direito e a moral. Ver p. 472 e seguintes desta obra.
23

diferentes: a monarquia (até 509 a.C.), a república (509 a.C. até 27 a.C.) e o império
(dividido entre alto e baixo império). O império bizantino sucedeu o baixo império
após a morte de Justiniano em 566.20

Roma se desenvolveu na península itálica, tendo por limite territorial ao norte


a Europa centro-ocidental. Sua formação se deu principalmente por povos latinos,
sabinos, samnitas e etruscos.

Foi fundada em 754 a.C. as margens do Tibre. De sua criação até 509 a.C. –
quando o rei Tarquinío foi deposto e proclamada a república – Roma tinha um
governo monárquico temperado pela influência do Senado, que escolhia um novo rei
quando este falecia.21

O rei exercia sozinho as funções executiva, judicial e religiosa, tendo seus


poderes legislativos limitados pelo Senado ou pelo Conselho dos Anciões que
possuíam o condão de vetar e sancionar as leis apresentadas.

Formada por uma confederação de famílias patriarcais em torno de um rei


que exercia o papel de “pai maior”, Roma tinha sua estrutura baseada no culto aos
antepassados de cada família que se ligavam entre si através dos laços de seus
antepassados comuns.

O estado romano respeitava o poder sacerdotal do pai perante as questões


da família e no culto de seus antepassados, como também o direito de propriedade
sobre as terras onde eram constituídas e a substituição pelo primogênito.

Os poderes dos patriarcas não interferiam na ordem do estado, tratava-se de


duas esferas determinadas de jurisdição, a do direito privado e a do direito público
que conviviam juntas.

Vale observar que nessa dicotomia entre o direito público e o privado os


romanos sempre privilegiaram o último. E esse ponto determinou toda a tradição do

20
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A.M. Hespanha e L.M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. A periodificação mencionada,
baseada na forma de governo, é diferente da divisão que se faz quanto à evolução do direito romano.
Conforme preleciona John Gilissen (p. 81): “(...) Distingue-se em relação a este: – uma época antiga,
até meados do século II a.C., período do “direito romano muito antigo”, direito de tipo arcaico,
primitivo, direito duma sociedade rural baseada sobre a solidariedade clânica; – uma época clássica
(de cerca de 150 a.C. a 284 d.C.), a do “direito romano clássico”, direito duma sociedade evoluída,
individualista, direito fixado por juristas numa ciência jurídica coerente e racional; – a época do Baixo
Império, direito nascido da tripla crise do século III, política, econômica e religiosa, direito dominado
pelo absolutismo imperial, pela atividade legislativa dos imperadores, pelo Cristianismo”.
21
DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 54.
24

direito ocidental, pois até a Idade Moderna – antes do movimento do


constitucionalismo – se privilegiou o direito privado. Sobre o tema, ensina Norberto
Bobbio:22

O primado do direito privado se afirma através da difusão e da


recepção do direito romano no Ocidente: o direito assim chamado
das Pandette é em grande parte direito privado, cujos institutos
principais são a família, a propriedade, o contrato e os testamentos.
Na continuidade da sua duração e na universalidade da sua
extensão, o direito privado romano adquire o valor de direito da
razão, isto é, de um direito cuja validade passa a ser reconhecida
independentemente das circunstancias de tempo e de lugar de onde
se originou e está fundada sobre a “natureza das coisas” (...).
O direito público como corpo sistemático de normas nasce muito
tarde com respeito ao direito privado: apenas na época da formação
do estado moderno, embora possam ser encontradas as origens
dele entre os comentadores do século XIV, como Bartolo di
Sassoferrato.
(...)
O primado do público assumiu várias formas segundo os vários
modos através dos quais se manifestou, sobretudo no último século,
a reação contra a concepção liberal do Estado e se configurou a
derrota histórica, embora não definitiva, do Estado mínimo. Ele se
funda sobre a contraposição do interesse coletivo ao interesse
individual e sobre a necessária subordinação, até à eventual
supressão, do segundo ao primeiro, bem como sobre a
irredutibilidade do bem comum à soma dos bens individuais, e
portanto sobre a crítica de uma das teses mais correntes do
utilitarismo elementar.

O Senado romano era uma assembleia política com origem nos Conselhos
de Anciãos da qual participavam os grandes chefes de família chamados de
patrícios. Diversos reis respeitaram a autoridade do Senado, podemos citar Numa
Pompílio, Túlio Hostílio, Tarquínio Prisco e Sérvio Túlio (conhecido por trazer Roma
à hegemonia e fazê-la ingressar na Liga das Sete Colinas).23

Em 509 a.C., o rei Tarquinio (genro do anterior Sérvio Túlio), de origem


etrusca e cognominado “O Soberbo”, foi derrubado por uma conjuração patrícia do
Senado que queria pôr fim à ingerência monárquica e aproveitou-se do episódio da
inércia do rei frente a violência cometida por seu filho Sexto a matrona Lucrecia,
mesmo diante do clamor dos nobres romanos, para junto do marido ofendido e

22
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade – Para uma teoria geral da política. 14. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 21.
23
DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 54-55.
25

chefe da Ordem Equestre dos Cavaleiros Romanos, Lúcio Colatino, e também do


Prefeito Lucrécio declarar deposto o rei.24

Terminava assim a monarquia romana e em seu lugar inaugurava-se a


República período que se prolonga de 510 a.C. até 27 a.C.

Nesse período exerciam o poder dois cônsules anuais escolhidos entre os


comandantes do exército e cujos poderes eram limitados pelo senado e pela
assembleia das cúrias lideradas pelos magistrados. Os cônsules governavam
revezando-se um mês cada até completar um ano. Ao cônsul cabia fiscalizar seu
colega que possuía direito de veto em caso de discordância de seu colega.25

A sede do Senado denominava-se Cúria Hostilia e, mais tarde, Cúria Júlia,


quando reconstruída por Júlio César. Localizava-se no Fórum Romano, que
permaneceu como centro político, econômico e religioso da cidade por muitos
séculos. No Fórum, além do Senado, havia também a Rostra, prédio onde os
políticos discursavam aos cidadãos romanos.

A organização política da República era formada pelos cônsules (eleitos pela


Assembleia Centurial pelo período de um ano), pelo Senado, órgão consultivo
composto por 300 patrícios. Para melhor administração, eram criados também
alguns cargos como os de pretores que eram os responsáveis pela distribuição da
justiça, julgamento dos casos e pronunciamentos no fórum; os censores ou
recenseadores a quem competia velar pelos costumes; os edis curuis ocupados em
conservar a cidade e os questores que eram uma espécie de tesoureiros do dinheiro
público.26

Além desses, em épocas de crises, guerras, calamidades, ou algum outro


perigo externo era escolhido um ditador, pelo período máximo de seis meses, que
governava como monarca com plenos poderes. Ao reestabelecer a ordem voltava-
se a República Senatorial. Segundo José Cretella Júnior:27

Assim que eleitos os magistrados romanos apresentam uma espécie


de plataforma, conjunto de declarações (edicta) em que expõem aos
administrados os projetos que pretendem desenvolver.

24
Idem.
25
Idem.
26
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 31. E, ainda: GILISSEN, John. Op. cit., p. 82-83.
27
Idem, p. 35. No mesmo sentido: MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed.
São Paulo: Saraiva, 1995, p. 21 e MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano – História do
Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, v. I, p. 15.
26

Esses magistrados são os cônsules, censores, pretores,


governadores das províncias.
Interessam-nos, antes de tudo, num curso de direito romano, os
magistrados judiciários, investidos na jurisdictio (faculdade de dizer o
direito). Em Roma, são os pretores e os edis curui; na província, os
governadores e os questores.

E José Carlos Moreira Alves, complementa:28

Este novo regime é caracterizado pela pluralidade de assembleias e


magistraturas, anuais e colegiais. O magistrado romano é um órgão
da cidade, um titular do poder (potestas); difere assim do magistrado
ateniense, que não é afinal senão um agente da assembleia. Os
magistrados são em princípio designados por um ano; são
geralmente em número de dois, por vezes numerosos. Entre eles, os
cônsules, titulares do imperium, dispõem do comando militar e do
governo da cidade; presidem às assembleias, podem propor leis,
tiveram talvez no início um poder de jurisdição. Os pretores são
sobretudo, mas não exclusivamente, magistrados judiciais;
organizam os processos, designam os juízes. Houve outros
magistrados, tais como os edis curuis, os tribunos, os questores, os
censores; ao todo, no século III a.C., 28 magistrados, ajudados por
alguns auxiliares.

No período republicano Roma encontrava-se dividida basicamente em quatro


classes sociais, patrícios, plebeus, clientes e escravos.

Os patrícios eram os cidadãos de Roma, formados pelas famílias patriarcais


com culto de seus antepassados. A plebe era composta pela população dominada
pelos romanos nas primeiras conquistas ou por aqueles vindos de família sem culto
doméstico e que, por conta disso, ficavam à margem do sistema jurídico que era
baseado na religião dos lares.

Apenas os cidadãos romanos gozavam dos direitos romanos. Nesse sentido


Gilissen:29

Só os cives, os cidadãos romanos, gozavam do direito dos


Romanos, do ius civile. Os estrangeiros, os peregrini, não estão
submetidos senão ao ius gentium, o direito comum a todos os
homens (ius commune omnium hominum), conforme a razão natural
(ratio naturalis). Mas sob a República, os romanos tinham
conquistado vastos territórios, primeiro na Itália, depois na Gália, em
Espanha, em África, na Grécia. A cidadania romana foi concedida
não só a pessoas, individualmente, mas também a grupos; no fim da

28
Idem, p. 15.
29
GILISSEN, John. Op. cit., p. 83.
27

República, no século I a.C., a cidadania foi concedida aos Italianos,


até aos Alpes.

Com o intuito de trazer os plebeus a participar da vida da cidade, os patrícios


ofereceram-lhes a clientela. Clientes eram indivíduos subordinados a alguma família
patrícia, cumpridores de obrigações econômicas, morais e religiosas, e, como eram
considerados dependentes dos patrícios, como servos, podiam dessa maneira
entrar na ordem jurídica romana. Escravos, por fim, eram todos aqueles que
perdiam a liberdade como despojos de guerra ou que eram comprados,
considerados ferramentas de trabalho sem qualquer direito na cidade.30

Em 493 a.C. a plebe se revoltou, abandonou Roma e seguiu para o monte


sagrado e criou outra comunidade apartada da cidade com a intenção de, ao se
omitir, chamar a atenção dos patrícios para mudanças no ordenamento. Os patrícios
concordaram em atender aos plebeus que ganharam representação no Senado
através de um tribuno ou juiz especial, o tribuno da plebe. 31

Os tribunos da plebe, função criada em 494 a.C. (em 471 a.C. passaram a
ser dez), eram magistrados plebeus dotados de algumas imunidades, não tinham
autoridade sancionada pela religião e qualquer pessoa que se julgasse injustiçada
poderia procurá-los.

As decisões da plebe eram tomadas por meio de plebiscitos nos quais a


plebe deliberava por proposta de um magistrado plebeu, como um tribuno por
exemplo.

Desta forma, podemos dizer que em Roma havia duas cidades com
organizações paralelas, uma dos patrícios governada pelos cônsules e pelo Senado
e outra da plebe governada pelo tribuno da plebe e pelos plebiscitos.32

Em 451 a.C., após outras revoltas plebeias em que reivindicavam maior


participação política, igualdade civil, política e religiosa, os patrícios convocaram os
decênviros, dez juristas cuja missão era redigir um código de leis de equiparação
entre patrícios e plebeus. As novas leis foram gravadas em doze tábuas e expostas

30
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 10.
31
Idem, p. 15.
32
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 56.
28

no Fórum de Roma trazendo grandes mudanças no que tange ao conceito de


direito.33

Tais leis representam um marco, pois a partir delas o direito, antes de caráter
privado, cuja fonte era o culto doméstico das famílias patrícias, passa a ser
público.34

A partir daí outras leis e reformas foram feitas. Podemos citar algumas como
a Lei Canuléia, 445 a.C., que permitia o casamento entre patrícios e plebeus; as
Leis Licínias em 367 a.C. que propunham que um dos cônsules fosse plebeu; a Lei
Poetélia em 326 a.C. que abolia a escravidão por dívidas. Desta forma, os plebeus
foram conquistando maior espaço na cidade, tanto no campo econômico quanto na
esfera política. Segundo Cláudio De Cicco:35

O advento da democracia nos campos civil (IV século a.C.) e político


levou ao poder os plebeus ricos que compravam os votos nas
assembleias populares ou centúrias. Do IV ao II século a.C., os ricos,
aliados aos aristocratas, governavam a cidade.
A “nova classe” ocupava os altos cargos e as patentes do exército,
formando a ordem equestre, enquanto as pessoas que não tinham
condições para equipar um cavalo combatiam a pé e constituíam os
velites. Com a conquista da Grécia, a ordem equestre rompeu com
as tradições que ainda restavam e aceitou a cultura grega (250 a.C.).

No entanto, apesar das mudanças e conquistas plebeias, Roma ainda vivia


um círculo que beneficiava apenas a nobreza senatorial. As guerras expansionistas
proporcionavam terras, tributos e escravos, gerando recursos para equipar exércitos
e financiar novas conquistas, que, por sua vez, possibilitavam o confisco de mais
terras e a obtenção de mais tributos e escravos. Todas essas riquezas eram
conservadas nas mãos da aristocracia.

A iniciativa de mudança do sistema aristocrático partiu dos irmãos Tibério e


Caio Graco, dois políticos romanos líderes da plebe que apesar de não serem
patrícios pertenciam a uma das famílias mais importantes da aristocracia romana.
Caio era neto de Cipião Africano, o herói da Segunda Guerra Púnica.

33
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 28-29.
34
Cumpre-nos informar que tais leis sofreram forte influência de Sólon: “É inegável a influência das
leis de Sólon, tanto que se chegou a pensar em simples transcrição. Mas tal não se deu: as
mudanças no conceito de direito e de lei são resultantes de uma revolução nas ideias no seio das
famílias aristocráticas romanas” (DE CICCO, Claudio. Op. cit., p. 54).
35
Idem, p. 57.
29

Tibério foi eleito tribuno da plebe em 133 a.C. e direcionou seu olhar ao
problema agrário propondo a proibição da existência de latifúndios com mais de
quinhentas jeiras, e que o excesso fosse comprado pelo Estado e redistribuído aos
soldados no final das campanhas militares. O Senado opôs-se à iniciativa e em uma
de suas sessões Tibério e seus adeptos foram assassinados.36

Seu irmão, Caio, no entanto, assim que eleito apresentou novamente a lei
agrária, e conseguiu aplicá-la ao distribuir lotes públicos em Cápua e Tarento.

Outro marco de sua participação política foi a distribuição de trigo a baixo


preço. Para tanto, Caio reorganizou o comércio desse cereal. O trigo consumido em
Roma era oriundo da Sicília, de Sardenha e da África. No entanto, em razão da
atuação de especuladores e da suspensão do transporte marítimo no inverno, o
preço do trigo ao chegar a Roma era altíssimo e praticamente inacessível à plebe. A
saída foi armazenar o cereal em silos após a colheita, o que equilibrou e barateou
seu fornecimento ao longo de todo o ano, beneficiando a população mais pobre.

Caio tomou medidas muito polêmicas, a primeira foi a fundação de uma


colônia em Cartago e a segunda foi a concessão de cidadania romana a todos os
aliados. Imediatamente a nobreza reagiu acusando Caio de sacrilégio por fazer
renascer Cartago, considerada uma cidade “maldita” após as guerras púnicas.37

Não menos criticada foi a proposta de concessão de cidadania. Ao mesmo


tempo em que a nobreza temia perder o controle sobre as eleições, os próprios
beneficiários da medida a viam com desconfiança. Os latinos ricos, por exemplo,
tornando-se cidadãos romanos, ficavam sujeitos à lei agrária que limitava a sua
propriedade e os pobres viam na concessão a desvantagem de passarem a ter que
servir o exército romano.

Assim, diante da conjuntura que se formava, a aristocracia romana


aproveitou para difundir entre a plebe a ideia de que a concessão da cidadania
proposta por Caio Graco geraria a divisão do trigo e também dos lugares nos circos
entre um número maior de pessoas, alimentando dessa forma os sentimentos de
egoísmo nas massas.

36
Idem, p. 54-55.
37
As guerras púnicas consistiram numa série de três conflitos ocorridos entre 264 a.C. e 146 a.C. nas
quais Roma lutou contra a República de Cartago, cidade-estado fenícia, que acabou totalmente
destruída.
30

Todas as intrigas políticas habilmente conduzidas pelo Senado


desembocaram no impedimento da reeleição de Caio Graco, que terminou exilado
de Roma tão logo sua imunidade de tribuno terminou.

No ano de 121 a.C., o novo tribuno revogou toda a legislação criada por ele.
Seguiu-se então uma desordem social que foi utilizada pelo Senado como pretexto
para aprovar um decreto que concedia aos cônsules o poder de tomar as medidas
necessárias para coibir a agitação. Caio Graco então fugiu para o Monte Aventino,
onde foi atacado pelo cônsul Opímio. Embora tenha escapado do ataque, Caio
ordenou que seu escravo o matasse.

Após esse período a República romana começou a entrar em processo


irreversível de crise: de um lado os patrícios (aristocracia), conservadores
preocupados em manter o “status quo”, e do outro os plebeus, aspirando a
mudanças profundas na vida romana.

A plebe era formada por ricos (ordem equestre) e por plebeus pobres e a
aliança entre essas duas classes era algo impossível em Roma. Os cavaleiros
aliaram-se à nobreza senatorial fortalecendo-a. Dois generais tiveram destaques
nessa época: Mário e Sila.

Mário, defensor da plebe e tirano populista, foi eleito cônsul por diversas
vezes consecutivas, e foi o responsável por transformar o exército, cujos cargos
antes eram reservados apenas aos cidadãos, em popular e assalariado. Dessa
maneira, os soldados passaram a receber um pagamento, parte das conquistas e
ainda, ao final da carreira militar o direito a alguma propriedade de terra. Assim, com
a integração de novos membros no exército, ele se converteu gradualmente em
exército profissional, já que os soldados passaram a ser pagos para combater.

Tais mudanças estruturais no exército terminaram por influenciar os soldados


a colocarem os seus interesses acima dos interesses do Estado e a prestar mais
apoio a um chefe militar que os beneficiasse do que ao governo constituído da
República. Por conta disso, Mário foi ganhando espaço até converter-se no “homem
forte” de Roma. Eleito cônsul pela primeira vez em 107 a.C., só poderia ser reeleito
dez anos depois, como estabelecia a lei. Não obstante, se reelegeu em 104 a.C. e
em todos os anos seguintes até o ano 100 a.C. Desta forma foi cônsul seis vezes
seguidas e ainda chegou a ser reeleito novamente em 87 a.C. apesar dos problemas
31

de saúde. Mário era frontalmente contra os ricos e aristocratas chegando a organizar


listas de proscrição contra tais classes, que responderam de maneira violenta,
liderados por Sila.38

Em 86 a.C., iniciou-se uma guerra civil, cujo resultado a longo prazo foi a
ditadura de Lúcio Cornélio Sila. O general Sila implantou uma ditadura de caráter
conservador que perseguiu os antigos seguidores de seu antecessor. Em 79 a.C.
Sila abdicou do poder.

Nesse momento novos líderes aristocráticos, como Pompeu e Crasso,


surgiram na cena política republicana e se apresentaram como mantenedores da
paz.

Pompeu gozava de grande respeito no senado, pois conseguiu abafar, na


península Ibérica (Espanha), uma revolta popular liderada por Sertório (78-72 a.C.).
Por outro lado, Crasso não menos importante, desmazelou a famosa revolta de
escravos comandada por Espartaco, em Cápua (73-71 a.C.).

O prestígio militar atingido pelos dois generais aproximou-os da política e de


outro destacado general: Júlio César. Esse, no entanto era tido pelo Senado como
um homem perigoso. Isso porque, estava ligado a Mário por laços políticos e
familiares posto que, além de ser seu sobrinho, era casado com Cornélia, filha de
um grande aliado e braço direito do antigo ditador.

A conjuntura de crise e insatisfação continuava, o povo sofria enormemente e


a nova tentativa de golpe político, articulada pelo patrício de nome Catilina, foi
controlada pelo então senador Marco Túlio Cícero. Para desgosto do senador Catão,
Cícero não apontou Júlio César como cúmplice em nenhum de seus quatro
discursos contra Catilina (Catilinarias).39

Essas disputas entre os “cidadãos romanos” pelo controle do poder político


aumentaram cada vez mais a instabilidade que foi a marca do final da República
romana.

Nesse contexto César se articula com Pompeu e Crasso (antigos inimigos) e


em 60 a.C. o Senado elege os três líderes políticos ao consulado: Júlio César,

38
DE CICCO, Cláudio. Idem, p. 58.
39
Idem, p. 59.
32

Pompeu e Crasso. Juntos, eles formaram o chamado Primeiro Triunvirato e dividiram


entre si o poder e os domínios romanos.

Para demonstrar poder e intimidar os senadores, os triúnviros determinam a


prisão de Catão e o exílio de Cícero, que poderia vir a representar algum perigo.

César, nomeado governador das Gálias, segue para a região onde inicia uma
série de campanhas militares bem sucedidas. Diante do sucesso e fama que César
conquistou, Pompeu começou a recear que ele passasse a brilhar mais que os
outros membros do Triunvirato.

Contudo, Crasso morreu em combate contra os partas, na Síria, e Pompeu se


aliou ao Senado que o nomeou em 49 a.C. Primeiro Cônsul, tornando-se assim mais
poderoso que César. Tão logo assumiu o cargo, proibiu César de voltar a Roma,
pois temia que este com apoio popular tomasse o poder. Ao saber das notícias,
César resolveu lutar e atravessou o Rio Rubicão com destino a Roma, lá chegando
derrotou definitivamente Pompeu em 48 a.C. na Batalha de Farsália. Seu rival fugiu
para o Egito onde foi assassinado a mando do faraó Ptolomeu que ansiava o apoio
de César na briga pelo poder contra sua irmã Cleópatra.

Nesse período, no Egito, observava-se a crescente disputa pelo poder entre o


faraó Ptolomeu e sua irmã Cleópatra. César dirigiu-se para Alexandria, de onde
apoiou Cleópatra, restabelecendo-a ao trono egípcio. Em seguida, dirigiu-se para a
região da Ásia Menor, onde destruiu as tropas sírias inimigas vencendo o rei
Mitídrates.

Ao retornar a Roma, ovacionado pelo povo extasiado com as vitórias


militares, César foi proclamado ditador vitalício, em clara oposição ao Senado que
com isso organizou uma conspiração para assassiná-lo.

O senador Caio Cássio, liderou a conspiração atraindo vários membros do


Senado e ainda Marco Bruto, filho adotivo de César. Tratou de articular a
conspiração espalhando a ideia de que o assassinato de César era essencial para a
pátria. Em 44 a.C., dentro do próprio Senado, César foi morto por seis senadores e
suas últimas palavras foram direcionadas a Bruto quando o reconheceu entre os
assassinos.

A morte de César gerou uma grande revolta popular, acontecimento que foi
politicamente explorado por Marco Antônio, amigo e um dos fortes generais de Júlio
33

César que, juntamente com Lépido e Otávio organizou o II Triunvirato. Após


promoverem a eliminação dos opositores de Júlio César, vencidos na Batalha de
Felipos em 42 a.C., os novos triúnviros deram início às lutas internas pelo poder.

Otávio, sobrinho de César, aproveitando-se da ausência de Marco Antônio,


que se achava no Egito, tentou ampliar seus poderes, e não levando Lépido em
consideração, declarou guerra a Marco Antônio e seus aliados egípcios. O esforço
da rainha Cleópatra em enviar suas tropas para apoiar Antônio restou infrutífero,
pois este fora derrotado por Otávio em 30 a.C. na Batalha de Actium.40

Afastado Lépido, Otávio recebeu do Senado o título de “Primeiro Cidadão”,


primeira escala para atingir o título de Supremo Imperador. Otávio, de maneira
habilidosa tornou-se gradualmente o senhor de Roma, recebendo, além dos dois
títulos, o de “divino” (Augustus). E, para ressaltar a sua relação de parentesco com
César, divinizado após a morte, e ainda para demonstrar que era o seu legitimo
herdeiro e que dele havia adquirido o direito de comando do exército, Otávio
conservou para si a denominação César. Assim, o nome que passou a adotar foi,
então, Imperator Caesar Divi Filius, significando “Imperador Filho de César Divino”.

Otávio procurou prestigiar o Senado em algumas de suas ações. Dividiu o


Império Romano em províncias e deixou treze delas sob a tutela do Senado.
Colocava-se como primeiro magistrado da República fazendo aparentar que as
regras do antigo regime foram mantidas. Augusto fortaleceu o poderio militar
desencadeando o surgimento de uma oligarquia formada por representantes das
altas patentes do exército, a chamada Guarda Pretoriana que deveria assistir o
príncipe diretamente. Foi durante o reinado de Augusto que Jesus Cristo nasceu, e
sua condenação e morte se deu no reinado de Tibério.41

Os quatro primeiros imperadores que sucederam Augusto eram todos


parentes entre si e formaram a dinastia Júlio-Cláudia ou Júlio-Claudiana (27 a.C. até
69 d.C.).

O exército foi ganhando cada vez mais força e influência na vida política de
Roma. Exemplo dessa intervenção militar se deu no reinado de Calígula, filho de

40
Idem, p. 61.
41
GILISSEN, John. Op. cit., p. 84.
34

Tibério, um imperador cujo comportamento demonstrava grandes sinais de


desequilíbrio mental, onde a guarda pretoriana depós e assassinou o imperador.

Com a morte de Calígula assumiu o trono seu tio Cláudio, seguido de Cláudio
Nero, famoso tirano acusado de ter matado sua esposa, seu preceptor, sua própria
mãe além de Britâncio, pretendente ao trono, Durante esse período iniciaram-se as
perseguições aos cristãos sob o pretexto de terem incendiado Roma, quando na
realidade quem o teria feito seria Nero.

Seguiram-se, depois, as dinastias Flaviana, Antonina e Severiana.

1.4 Breves considerações acerca do Direito Romano

A par da divisão histórica correspondente aos três regimes políticos, quais


sejam Realeza (até 509 a.C.), República (de 509 a 27 a.C.) e Império, este último
dividido ainda em Alto Império (até Diocleciano em 284) e Baixo Império (até a
época de Justiniano) a qual sucedeu o Império Bizantino, há outra divisão de
períodos baseada na evolução do direito. Nessa repartição, há uma época antiga,
clássica, e do baixo império.

A época antiga até meados do século II a.C. caracterizou-se por um direito


do tipo arcaico, baseado na solidariedade clânica. A época clássica, de 150 a.C. a
284 d.C., foi marcada por um direito vigente em uma sociedade mais evoluída,
individualista, direito esse fixado por juristas por meio de uma ciência jurídica,
coerente e racional. Por fim, a época do Baixo império a partir do século III, marcada
pelo domínio do absolutismo imperial e pela atividade legislativa dos imperadores.42

O direito no período antigo ou arcaico distinguia-se pelo seu formalismo,


pela sua rigidez e formação primitiva. A função do Estado era limitada a questões
que versavam sobre guerras, repreensões a delitos graves, e a observância e
manutenção dos cultos religiosos.

Os cidadãos romanos eram mais identificados à comunidade familiar da qual


pertenciam que ao próprio Estado, e dependiam o mais da defesa privada de seu clã
do que da estatal.43

42
GILISSEN, John. Idem, p. 81.
43
MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito Romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 7.
35

Posteriormente o poder central do Estado foi se desenvolvendo e


consequentemente a criação de regras que visavam reforçar a autonomia do
cidadão como indivíduo. O marco desse período foi a codificação do direito vigente
nas XII Tábuas, feita em 451 e 450 a.C. por um decenvirato nomeado para essa
finalidade.

No entanto, as novas conquistas dos romanos necessitavam de uma


evolução na esfera do direito, assim, a partir do século II a.C. até o século III d.C.
algumas revoluções e renovações foram realizadas. Tais inovações do período
clássico foram trazidas pela atividade dos magistrados e dos jurisconsultos. O
resultado dessas experiências foi a construção de um corpo formado por regras
aceitas e copiadas pelos pretores que se sucediam e que em 130 d.C. foi codificado
por Sálvio Juliano por ordem do Imperador Adriano.

Outra inovação se deu com relação à interpretação das regras do direito.


Originariamente eram apenas os sacerdotes que conheciam as normas e a eles
incumbia sua interpretação, mas a partir do final do século IV a.C. esse monopólio
encerrou-se passando a ser feita também por peritos leigos.

Com relação a essa atividade adverte Thomas Marky:44

Tal atividade jurisprudencial contribuiu grandemente para o


desenvolvimento do direito romano, especialmente pela importância
social que os juristas tinham em Roma. Eles eram considerados
como pertencentes a uma aristocracia intelectual, distinção essa
devida aos seus dotes de inteligência e aos seus conhecimentos
técnicos.
Suas atividades consistiam em emitir pareceres jurídicos sobre
questões práticas a eles apresentadas (respondere), instruir as
partes sobre como agirem em juízo (agere) e orientar os leigos na
realização de negócio jurídico (cavere). Exerciam essa atividade
gratuitamente, pela fama e, evidentemente, para obter um destaque
social, que os ajudava a galgar os cargos públicos da magistratura.

O Imperador Augusto, buscando utilizar os préstimos dos juristas acima


mencionados, concedeu a alguns deles, denominados jurisconsultos, o direito de dar
pareceres em seu nome. Tais pareceres possuíam força obrigatória em juízo.

A metodologia adotada pelos jurisconsultos era o da casuística.


Examinavam, explicavam e davam soluções a casos concretos.

44
Idem, p. 8. E, no mesmo sentido: MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 32.
36

O período Baixo Império ou pós-clássico se caracterizou pela decadência no


campo do direito. O legado dos clássicos sofreu uma vulgarização e em decorrência
da ausência do gênio criativo os romanos sentiram necessidade de fixar
definitivamente as regras vigentes através de uma codificação. Assim, Justiniano
(527 a 565 d.C.) foi quem empreendeu a tarefa legislativa mandando colecionar
oficialmente as normas de direito vigentes na época.

Para tanto, uma comissão de juristas se incumbiu de organizar uma coleção


com as leis emanadas pelos imperadores (chamadas constituições imperiais). Tal
obra foi publicada em 529 sob a denominação de Codex, posteriormente revisado e
publicado sob o nome de Codex Repetitae Praelectionis.

Em seguida, Justiniano ordenou que se fizesse a seleção das obras dos


jurisconsultos clássicos, nomeando para tanto uma comissão que trabalhou por três
anos até finalmente apresentar a obra denominada Digesto (ou Pandectas).

Além disso, professores das escolas de Constantinopla e de Berito


elaboraram, a pedido de Justiniano, um manual aos estudantes de direito intitulado
Institutiones e apresentado em 533 d.C.45 Complementa Tercio Sampaio Ferraz
Jr.:46

Portanto, quando falamos do pensamento jurídico em Roma,


devemos ter em conta que suas doutrinas, enquanto conhecimento,
têm pouco significado em termos da disputa entre teoria e práxis.
Enquanto a prudência grega, em Aristóteles, por exemplo, era uma
promessa de orientação para a ação no sentido de descobrir o certo
e o justo, a jurisprudência romana era, antes, uma confirmação, ou
seja, um fundamento do certo e do justo. Com isso, a jurisprudência
tornou-se entre os romanos um dos instrumentos mais efetivos de
preservação de sua comunidade, quer no sentido de um instrumento
de autoridade, quer no sentido de uma integração social ampla. De
certo modo, graças a tríade religião/autoridade/tradição, a
jurisprudência efetivamente deu ao direito uma generalização que a
filosofia prática dos gregos não conseguira. Foi criada a possibilidade
de um saber que era a aplicação da fundação de Roma e que se
espalhou por todo o mundo conhecido como um saber universal,
surgindo, assim, a possibilidade de um conhecimento universal do
direito fundado, se não teoricamente, ao menos de fato.

45
MARKY, Thomas. Idem, p. 10.
46
Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008,
p. 37.
37

1.4.1 Fontes do Direito Romano

A produção das regras jurídicas é feita pelas fontes do direito, a elas é


incumbida a função de criar a norma jurídica.

Historicamente, o costume foi quase que exclusivamente a única fonte do


período arcaico, já as fontes do direito na época clássica (de 150 a.C. a 284 d.C.) no
período republicano foram o costume, as leis, os plebiscitos, os editos dos
magistrados, e a interpretação dos prudentes. Tais fontes permaneceram durante o
principado (de 27 a.C. a 284 d.C.), no entanto, a importância dos comícios
legislativos decaiu e a atividade legislativa passou para as mãos do imperador, que
através das constituições imperiais expedia normas jurídicas. Sobre as fontes na
época pós-clássica, Thomas Mark:47

Na época pós-clássica, de organização política monárquica absoluta


(284 d.C.-565 d.C.), a única fonte de direito era praticamente, a
vontade do imperador, expressa em suas constituições. O conjunto
de regras de direito por ele aditadas chamou-se de leges, em
contraposição ao direito elaborado pelos pareceres dos
jurisconsultos da época clássica, cuja importância jurídica e validade
os imperadores reconheceram e que se denominou iura. As
compilações pós-clássicas, culminando com a de Justiniano (527
d.C.-565 d.C.), continham justamente leges e iura. O Código de
Justiniano compõem-se das constituições imperiais. O Digesto é uma
coleção de fragmentos das obras e pareceres dos jurisconsultos
clássicos.

O costume seria a obediência constante e espontânea de normas de


comportamento que permeiam uma determinada sociedade. Os juristas romanos do
período republicano não elaboraram uma doutrina sobre essa fonte do direito, no
entanto encontramos em Cícero os primeiros sinais dessa construção, pois ele
define costume como sendo a conduta não determinada em lei, mas aprovada por
longo tempo pela vontade comum de todos.48

47
Op. cit., p. 21.
48
Nesse sentido MARKY, Thomas. Idem, p. 17, e também MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p.
25: “Os juristas republicanos não formularam doutrina sobre o costume como fonte de direito, o que
somente foi realizado pelos jurisconsultos do principado. Mas em Cícero (no De inuentione II, 22, 67)
já encontramos, em virtude da influência da filosofia grega, os primeiros traços dessa construção
doutrinária: “Consuetudine autem ius esse putatur id, quod uoluntate omnium sine lege uetustas
comprobarit”. (Denomina-se direito baseado no costume o que o tempo consagrou, sem a intervenção
da lei, com a aprovação geral).
38

As leis romanas podem ser divididas em Leges rogatae e Leges datae. As


primeiras são propostas por um magistrado e votadas pelo povo (proposta de um
magistrado aprovada pelos comícios onde participavam apenas os cidadãos
romanos, ou a proposta de um tribuno da plebe votada pelos plebeus) já as últimas
eram as leis emanadas de magistrados cujo poder para tal ato fora concedido pelos
comícios. A mais importante Lex data da República foi a Lei das XII Tábuas.49
Cumpre ressaltar que, segundo Cretella Jr.:

Durante o período republicano, a Lex não é o que nós,


modernamente, denominamos lei, ou seja, fonte do direito objetivo,
mas é uma fonte especial do direito com características e conteúdos
próprios.50

O plebiscito é aquilo que a plebe deliberava através de proposta de algum


magistrado plebeu, como o tribuno. A princípio os plebiscitos só se aplicavam à
plebe, no entanto, a partir da Lei Hortência em 286 a.C. essas deliberações
passaram a ser designadas pelo nome de Lex e válidas para toda a comunidade.

Os editos dos magistrados51 eram a proclamação do programa que o


magistrado eleito pretendia cumprir durante o ano de seu exercício no cargo. No
caso dos magistrados com função jurídica, o edito continha uma vasta lista de
diversos meios de se obter a tutela de um direito. Dessa forma, o edito do pretor
terminava por criar novas normas jurídicas que coexistiam com o direito quiritário. O
edito não perdia sua validade no momento em que houvesse a mudança anual dos
magistrados, ao contrário o conjunto de preceitos aproveitáveis de um edito era
conservado pelo novo magistrado, assim ele passava a conter um texto estratificado
fruto da experiência dos pretores antecessores.

Além do edito, competia ao magistrado no exercício de seu cargo, conforme


Thomas Marky:52

A determinação da regra jurídica a ser aplicada pelo juiz na decisão


de uma questão controvertida cabia ao magistrado, especialmente ao
pretor. Essa função se chamava jurisdição (jus dicere) e, no
desempenho dela, os pretores tiveram prerrogativas bastante

49
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 26.
50
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 34.
51
Lembrando que esses magistrados eram: os cônsules, censores, pretores e governadores das
províncias. Sendo que os magistrados judiciários, aqueles investidos na jurisdicto, eram em Roma os
pretores e os edis curis e nas províncias os governadores e os questores.
52
MARKY, Thomas. Op. cit., p. 19.
39

amplas, baseadas no poder de mando, denominado imperium.


Podiam eles, quando julgavam necessário ou oportuno, denegar a
tutela jurídica, mesmo contra as regras do direito quiritário, ou,
inversamente, conceder meios processuais a pretensões que não
tinham amparo legal no mesmo direito. Assim, dependia de seu
poder discricionário a aplicação ou não daquelas regras do direito
quiritário.

A interpretação dos prudentes, fonte do direito romano, é o trabalho de


interpretação e adaptação do texto ao caso concreto realizado por jurisconsultos
encarregados de preencher as eventuais lacunas da lei. Desse oficio deriva a
palavra jurisprudência que significava o trabalho de interpretação feito pelos
prudentes.53

1.5 Principais obras de Cícero

A obra de Cícero é uma das principais fontes do estoicismo e do


conhecimento das escolas helenísticas, cuja produção textual praticamente se
perdeu. Foi Cícero o responsável por criar boa parte do vocabulário filosófico latino
traduzindo os termos gregos e criando novas palavras e expressões. A ele também
coube divulgar a filosofia grega dentre o mundo romano:

(...) a cultura romana apossa-se, por mérito de Cícero, da filosofia


grega; assimila-a, dá-lhe vida prática, difundindo-a e impondo-a ao
mundo. Cícero, reunindo todos os sistemas filosóficos helênicos, dá
a este apanhado a marca da ciência civil e moral de Roma, anima-o,
vivifica-o, dá-lhe o impulso da ação, transformando romanamente o
ideal máximo da cultura grega, a humanitas, em princípio operante
em todos os povos. Os tratados filosóficos de Cícero têm uma marca
estilística que refletia exatamente o conteúdo eclético: sua prosa é
elegante, reavivada na forma e no léxico, os argumentos são
expostos por meio de diálogos, nos quais agem os defensores das
várias teorias. Ainda nisso vemos, mais que o filósofo, o divulgador
da filosofia: um divulgador eficientíssimo (único em toda a literatura
latina), que fará sentir através dos séculos o aço da ação fecunda.54

Infelizmente algumas das obras de Cícero foram perdidas com o tempo, é o


caso das traduções de Platão e Xenofonte, Hortêncio (obra que teria inspirado Santo
Agostinho), sobre os augúrios. No entanto permanecem conservados trinta e três

53
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 35.
54
LEONI, A literatura de Roma: esboço histórico da cultura latina, 1949, p. 44.
40

discursos, oito tratados de retórica, mais de oitocentas cartas e quinze tratados


sobre filosofia. Assim podemos dividir a obra de Cícero em dois grupos, o primeiro
que se verteu para a retórica, a eloquência e a oratória (são os casos de De
Inventione, De Oratore, Brutus, Orador ad Brutum, dentre outros) e um segundo
bloco dedicado a investigações filosóficas.

Com relação ao mencionado segundo grupo Cícero escreveu quinze


tratados sobre filosofia-política,55 a saber: Da República, Das Leis, Paradoxos
Estoicos, Consolação, Sobre os Termos Extremos de Bem e Mal, Acadêmicos I e II,
Sobre a Natureza dos Deuses, Catão ou Sobre a Velhice, Sobre a Adivinhação,
Sobre o Destino, Sobre a Amizade, Sobre a Glória, Dos Deveres e Sobre as
Virtudes.

Os comentadores de Cícero56 costumam interpretá-lo como um pensador


eclético porque sua metodologia consistiu em examinar teses de diferentes
procedências, encontrando nelas os pontos em que divergem e que convergem,
escolher qual desses pontos é dominante em relação ao outro, e com eles montar
sua própria argumentação articulando-os entre si. Esse procedimento aparece em
seus tratados filosóficos sob a forma de diálogos.

Cícero também foi um eclético na medida em que discutia os argumentos


das diferentes doutrinas gregas correntes na época, mas sem vincular-se
inteiramente a nenhuma delas.57

Cícero, quando jovem, teve contato com a filosofia ao estudar em Atenas,


antes mesmo de se tornar advogado e homem público. Foi bastante influenciado por
dois representantes do estoicismo médio, Panécio e Possidônio, que chegaram a
assumir a escola estoica em Atenas. Além disso, Cícero também aprendeu muito ao
desfrutar da companhia de outro estoico, Diódoto.

De todas as correntes com as quais tomou contato Cícero retirou algumas


ideias e compôs uma síntese de suma importância para a composição do vocábulo
latino e como fonte de estudo do pensamento clássico.

55
CHAUI, Marilena. Op. cit., p. 340.
56
Nesse sentido podemos citar Eduardo Bittar, Marilena Chaui, Olney Queiroz, Milton Valente, Paulo
Nader, Jean-Cassien Billier, Aglaé Maryoli.
57
“Defenda cada qual o que se pensa, pois os juízos são livres. Nós mantemos nossa posição e, não
constrangidos pelas leis de nenhuma escola particular a que forçosamente obedeceríamos, sempre
buscaremos, em filosofia, o que em cada coisa é o mais provável” (Tusculanas, IV, 4).
41

No entanto, cumpre-nos advertir que o fato de Cícero ser um pensador


eclético não significa que ele somente amalgamou diferentes teorias filosóficas
gregas sem que tenha produzido nada de original. No que diz respeito a suas
próprias posições doutrinárias, afirma Baby Abrão:58

Cícero, em teoria do conhecimento, opôs-se tanto ao ceticismo


radical de Pirro de Élida (365-275 a.C.) quanto ao dogmatismo
extremado. Defendeu como critério de verdade o probabilismo do
consenso universal, isto é, aquela posição que acha possível ao
homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem no entanto
atingir a verdade absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser
aceito por todos. As razões dessa posição são colocadas menos
num plano puramente lógico do que no terreno das necessidades
práticas do homem. Para Cícero, o problema do conhecimento não
pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O
homem necessita, todavia, admitir como verdadeiras algumas
noções sem as quais não é possível manter a coesão da sociedade.

Para este trabalho procuramos dar foco nas três obras de Cícero que mais
abordam os temas da justiça e do Direito, quais sejam os três tratados intitulados:
Da República, Das Leis e Dos Deveres. Nessas três obras Cícero se utiliza dos
conceitos da filosofia estoica como fundamentos de suas conclusões.

1.5.1 Da República

O tratado escrito em 51 a.C. defendia o modo republicano adotado em Roma


como a melhor forma de governo. Cícero pretendia se ater à análise de uma
constituição real, no caso a da Roma republicana, cujas virtudes se esforça em
demonstrar ao longo da obra, com o intuito de mover seus concidadãos a obedecê-
la.

Como um complemento a esta obra, Cícero escreveu entre 53 e 51 a.C. a


obra Das Leis na qual ele apresentou sua noção de lei e justificativas para algumas
leis existentes e vigentes em Roma.

58
2005, p. 39.
42

As principais fontes de inspiração do autor para escrever essa obra foram


nas palavras de Maria Helena da Rocha Pereira:59

(...) As fontes principais são, além de A República de Platão, do


Fedro e do Fédon do mesmo autor (de quem traduz alguns trechos),
Panécio e Políbio. Mas, ao invés do grande filósofo ateniense,
Cícero não vai imaginar uma cidade ideal, que não existe, mas que
cada um pode “fundar para si mesmo”, na sua alma; o que ele na
verdade faz é retratar a República Romana.

E, ainda, na concepção de Leo Strauss:60

Na República, onde os interlocutores procuram o sol e que é


reconhecidamente uma imitação livre da República de Platão, a
doutrina estoica da lei natural, ou a defesa da justiça (isto é, a
demonstração de que a justiça é por natureza boa), não é
apresentada pela personagem principal. Cipião, que na obra de
Cícero toma o lugar que Sócrates ocupa no modelo de Platão, está
perfeitamente convencido da pequenez de todas as coisas humanas
e aspira, portanto, à vida contemplativa que se segue à morte.

No entanto, se a princípio, observando-se o gênero literário escolhido e os


temas versados desconfia-se naturalmente de uma influência de Platão em Cícero
em sua obra Da República, nos esclarece Milton Valente:61

Em resumo, Cícero deve a Platão a ideia e o modo de compor o De


Re Publica; a influência, porém, de Platão e mais ainda de
Aristóteles não chegaram, senão acidentalmente, às próprias ideias:
a sua concepção de Estado não é a deles. O fundo da doutrina é de
origem estoica, nomeadamente a definição capital da comunidade
política. É provável que foi Panécio quem assegurou a transmissão
do ensino estoico até em Cícero. Em todo o caso, este apela para a
sua autoridade, quando faz expor as suas ideias por intermédio de
Cipião. Finalmente, várias reflexões históricas foram sugeridas a
Cícero por Políbio, ou antes, por uma fonte de que Políbio é
testemunha.
Quanto ao resto – e esse resto é importante – Cícero tinha tido
ocasião suficiente para refletir sobre a matéria política no decurso da
sua carreira de magistrado, o que nos assegura de antemão que
introduziu neste tratado o mais pessoal do seu pensamento.

59
Estudos de história da cultura clássica – Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. v. 2, p. 151.
60
STRAUSS, Leo. Direito natural e história. Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2009, p.
134.
61
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 463.
43

O livro Da República está dividido em seis livros, no primeiro deles o autor


faz uma defesa do amor pátrio, afirmando que nada aproxima tanto os homens da
divindade como a fundação e a conservação dos Estados. No segundo, revisa a
história romana e define o que entende ser o tipo do verdadeiro homem político. No
terceiro, desenvolve o tema do livro anterior e conclui que apenas a justiça torna
possível o governo da República. Já no quarto livro aborda questões acerca dos
costumes gregos e romanos; no quinto tece o elogio da família e assegura que a
verdadeira felicidade só se dá através de uma perfeita constituição política, numa
República sábia e organizada. Por fim em seu sexto livro (que durante anos foi o
único texto conhecido, sob o nome de O Sonho de Cipião) o autor defende o dogma
da existência de Deus e da imortalidade da alma.

O livro é apresentado na forma de diálogo travado entre Cipião, o Africano,


Lélio, o Sábio, e um grupo de jovens patrícios que procuram Cícero a fim de
aprender a arte política. As discussões travadas entre esses personagens se passa
no ano de 129 a.C.

Cícero descreve as diferentes formas de regimes políticos, seus pontos


negativos, e o risco de se degradarem; a realeza, por exemplo, pode ser
transformada em tirania, a aristocracia para a oligarquia, o governo popular em
demagogia. No entanto, a abordagem clássica da avaliação dos regimes políticos dá
lugar a uma proposta original, qual seja utilizar como critério a liberdade. Isso porque
a ausência de liberdade dá origem a instabilidade, ameaças contínuas de guerras
civil e destruição da civitas. Por outro lado a presença de liberdade pressupõe
ordem, estabilidade, paz e permanência da civitas. Nas palavras de Cícero:62

Desses três sistemas primitivos, creio que o melhor é, sem disputa, a


monarquia; mas ela mesma é sempre inferior à forma política que
resultaria da combinação das três. Com efeito, prefiro, no Estado, um
poder eminente e real, que dê algo à influência dos grandes e algo
também à vontade da multidão. É essa uma constituição que
apresenta, antes de mais nada, um grande caráter de igualdade,
necessário aos povos livres e, bem assim, condições de estabilidade
e firmeza. Os primeiros elementos, de que falei antes, alteram-se
facilmente e caem no exagero do extremo oposto. Assim, ao rei
sucede o tirano; aos aristocratas, a oligarquia facciosa; ao povo, a
turba anárquica, substituindo-se desse modo umas perturbações a
outras. Ao contrário, nessa combinação de um governo em que se
amalgamam os outros três, não acontece facilmente semelhante

62
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. São Paulo: Edipro, 2011, p. 45,
XLV.
44

coisa sem que os chefes do Estado se deixem arrastar pelo vício;


porque não pode haver pretexto de revolução num Estado que,
conforme cada um com os seus direito, não vê sob seus pés aberto
o abismo.

Cícero termina por concluir que o regime próprio à liberdade é, por ser a única
forma de governo que consegue enfeixar o governo, o senso de justiça e ainda o
interesse coletivo, é o regime misto. Isso porque o regime misto combina as virtudes
dos demais governos, isto é, as excelências da monarquia, da aristocracia e da
democracia, que seriam respectivamente afeição ou tradição, sabedoria e liberdade.

O exemplo trazido por Cícero de governo misto bem sucedido é a própria


constituição romana:63

Mas, receio, Lélio, e vós queridos e prudentes amigos, que meu


discurso, prolongando-se, se assemelhe mais a uma dissertação de
um mestre do que a um diálogo entre amigos que buscam a
verdade. Passemos, pois, a coisas de todos conhecidas, estudadas
por mim mesmo há muito tempo, e que me obrigam a pensar, crer e
afirmar que, de todos os governos, nenhum, por sua constituição, por
sua organização detalhada, pela garantia dos costumes públicos,
pode comparar-se com o que nossos pais receberam dos seus em
herança e nos transmitiram; e, já que quereis que eu repita o que, de
outras vezes, ouvistes de mim, mostrar-vos-ei qual é esse governo e
provarei que é o melhor de todos; tomando-se nossa República por
modelo, tentarei recordar quanto disse a tal propósito. Procurarei,
assim, desempenhar e terminar a empresa que Lélio me confiou.

A República de Cícero, mesmo adotando a forma de governo mista, se


fundamenta no consentimento jurídico, na medida em que exerce sua força em
nome e sobre a base de uma norma, um critério vinculante de regularidade
denominado lei.

Segundo Milton Valente nesse ponto reside a sua constatação de que Cícero
é influenciado pelos estoicos:64

De acordo com a teoria acadêmico-peripatética, o Estado é “a


comunidade perfeita que tem por fim o bem estar”.65 Mas no livro III,
43, não se trata de “más” formas de governo: diz-se ao que uma
comunidade a que falta o íuris consensus não é de modo algum uma
res pública.

63
Idem, p. 45, XLV.
64
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 461.
65
ARISTÓTELES, Política I, 1, 8 (apud VALENTE, Milton. Op. cit.).
45

Insistindo assim sobre o acordo jurídico e dele fazendo o elemento


essencial do Estado, Cícero afastava-se radicalmente da antiga
concepção da Academia e do Ginásio e atrelava-se à nova, que era
a do Pórtico.

1.5.2 Das Leis

O Tratado Das Leis foi escrito por volta de 53 a.C. e 51 a.C. para ser um
complemento ao seu livro Da República. Nessa obra o autor apresenta sua noção de
lei e ainda justificativas para algumas leis existentes e praticadas em Roma.

Diferente do idealismo platônico, que elaborou leis ideais para uma República
imaginária, Cícero propõe para sua República leis práticas, positivas e de inspiração
natural. A maioria das leis citadas em seu livro já eram existentes e postas em
prática na Roma republicana.66

Ao estudar as fontes desse livro seremos levados às mesmas observações


feitas para o Da República. Nesse sentido, Milton Valente:67

O estudo das fontes deste livro nos levará a reproduzir as mesmas


constatações que a propósito do De Re Publica. O gênero e a
finalidade são extraídos do tratado das Leis de Platão: o prólogo
imita-o claramente. Mas a comparação deve ficar por aqui, como nos
adverte o parágrafo 17 do livro II.
(...)
Tentaremos precisar de quem Cícero pôde receber o ensino do
Pórtico. Mais uma vez se apresenta o nome de Panécio. Com efeito,
admitimos a dependência do De Re Publica a Panécio. Ora, a
doutrina do De Legibus (I e princípio de II) é a mesma que a do De
Re Publica III, o que nos leva a atribuir-lhe a mesma fonte.

Cícero escreveu essa obra no momento em que Roma sentia os impactos das
modificações trazidas pelas novas conquistas, a cidade independente transforma-se
no centro de um extenso Império territorial, que tinha que ser bem administrado para
ser mantido. Notando o grande desequilíbrio entre as leis vigentes e as
necessidades sociais César e Pompeu buscaram codificar as leis romanas. Com o
surgimento de leis para reger os novos conflitos e manter a ordem entre os cidadãos

66
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 134.
67
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466.
46

romanos e os estrangeiros, as antigas leis romanas se viram afetadas pela


necessidade de serem adaptadas aos novos tempos.68

Nesse contexto, Cícero apresenta uma exposição sistemática das leis


romanas com a intenção de garantir a permanência de algumas delas, para que a
República como forma de governo também pudesse ser mantida.

Dos seis livros que compõem Das leis, publicados após a sua morte, somente
os três primeiros chegaram até nós. O livro, composto na forma de diálogo entre
Cícero, seu irmão Quinto, e seu amigo Ático, se passa na propriedade do autor em
Arpino.

O primeiro dos três livros que compõem a obra inicia-se com uma discussão
acerca da verdade histórica e a liberdade poética, na qual discorrem sobre alguns
exemplos de passagens míticas da história e da literatura greco-romanas.

Na sequencia Cícero inicia o grande tema do Livro I, qual seja o conceito de


lei e os seus desdobramentos. O autor defende que o direito não era fruto de uma
convenção humana, mas sim de uma lei natural, divina ou eterna, identificada com a
própria razão donde as leis humanas tiravam seu fundamento.69 Para ele todo ser
humano possui dentro de si uma centelha da razão divina presente na natureza, que
rege o universo, e é isso que o aproxima dos deuses e que o diferencia dos demais
animais.

O autor entende ainda que há em toda alma humana uma inclinação natural
para identificar o que é certo, justo, equitativo e bom. Assim, se a lei natural
encontra-se gravada em todos os seres humanos consequentemente ela é aplicável
a todas as nações, em todos os tempos e lugares.70

Antes de iniciar os outros dois livros Cícero refuta as críticas à teoria ético-
jurídica que defende demonstrando que a maioria das escolas (salvo a epicurista)

68
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis. Trad. Marino Kury. Caxias do Sul: Educs, 2004.
Comentário a obra, p. 18.
69
“Entre todas as questões debatidas pelos sábios, certamente a mais importante é aquela que
consiste na inteligibilidade dessa verdade: somos nascidos para a justiça e o direito se fundamenta,
não sobre a opinião, mas sobre a própria natureza” (Tratado das leis, I, 28).
“(...) a lei é a razão soberana introduzida na natureza, que nos ordena o que devemos fazer e nos
proíbe o contrário. Essa razão, quando ela se apoia e se realiza no pensamento do homem, é a lei”
(Tratado das leis, I, 18).
70
BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito e Filosofia. A noção de Justiça na História da
filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 45.
47

admite a Natureza como fonte do direito e a lei natural constituindo um sistema de


valores absolutos.71

Ao tratar da harmonia entre as diversas doutrinas filosóficas de seu tempo


ensina Cícero:72

Observa. Se, como disse Aristão de Quios, há um só bem, o que é


honesto, e um só mal, o que é desonesto, e o restante é indiferente,
e o tê-lo ou não pouco importa – divergia, então, de Xenócrates, de
Aristóteles e de toda a escola de Platão. Existia entre eles uma
divergência fundamental versando sobre os princípios da conduta
em sua totalidade. Porém, enquanto para os antigos a virtude é o
sumo bem, para ele é o bem único; enquanto para os primeiros o
vício é o sumo mal, para ele a riqueza, a saúde e a beleza não são
bens, mas comodidades; e a pobreza, a enfermidade e a dor não
são males mas incômodos. Logo, pensa o mesmo que Xenócrates e
Aristóteles, apesar de expressar-se diversamente. Sem dúvida essa
discussão, que não é de fundo, mas de palavra, originou a
controvérsia sobre os fins do homem.

No segundo livro desse tratado Cícero elabora um código religioso, e assim o


faz, pois naquele período era impossível separar a religião do homem romano, seja
ele plebeu ou pertencente à aristocracia.

Muito embora os atos religiosos fossem independentes dos atos civis, no que
tange a ritos e coação em diversos casos para eficácia plena era preciso que tais
atos acontecessem de forma concomitante, era o caso, por exemplo, das festas-
sacrifícios do calendário anual onde magistrado e sacerdote atuavam juntos.

Sobre a relação do homem romano com a religiosidade nos ensina Fustel de


Coulanges:73

Veja-se o papel que a religião tem na vida do romano. A casa é para


o romano o mesmo que para nós é o templo; este homem encontra
na sua casa o seu culto e os seus deuses. O seu lar é um deus, do
mesmo modo que as paredes, as portas e a soleira são deuses, e
ainda deuses são os marcos que rodeiam o seu campo. O túmulo é
o altar e os seus antepassados são os seres divinos.
Qualquer uma das suas ações de cada dia é um rito; todo seu dia
pertence à religião. De manhã e à noite, o romano invoca o seu lar,
os seus penates e os seus antepassados e, tanto ao sair da sua
casa como ao tornar a ela, dirige-lhes sempre uma oração. Cada

71
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 28.
72
Idem, p. 62.
73
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004,
p. 227-228.
48

refeição representa um ato religioso que o romano partilha com as


suas divindades domésticas. O nascimento, a iniciação, o tomar a
toga, o casamento e ainda os aniversários de todos estes fatos são,
para o romano, atos solenes do seu culto.
(...)
O romano que aqui apresentamos não é o homem do povo, o
homem de espírito débil que a miséria e a ignorância retêm na
superstição. Falamos do patrício, do homem nobre, poderoso e rico.
Este patrício é alternativamente guerreiro, magistrado, cônsul,
agricultor ou comerciante, mas por toda a parte é sempre sacerdote
e tem seu pensamento voltado para os deuses. Patriotismo, amor a
glória, paixão pelo ouro: por mais poderosos que sejam estes
sentimentos em sua alma, são sempre dominados pelo temor aos
deuses. Horácio lapidou numa frase a melhor definição do romano:
por temer os deuses veio a ser o senhor da terra.

Por outro lado, curiosamente, de tempos em tempos, haviam festas


caracterizadas por uma permissividade e suspensão das hierarquias tanto jurídicas
quanto sociais. Segundo Agamber:74

(...) Durante essas festas, que são encontradas com características


semelhantes em épocas e culturas distintas, os homens se fantasiam
e se comportam como animais, os senhores servem os escravos,
homens e mulheres trocam seus papeis, um período de anomia que
interrompe e, temporariamente subverte, a ordem social. Desde
sempre os estudiosos tiveram dificuldade para explicar essas
repentinas explosões anômicas no interior de sociedades bem
ordenadas e, principalmente, a tolerância das autoridades religiosas
e civis em relação a elas.

Ainda nesse livro Cícero procura mostrar aos seus amigos que a Lei não é
produto da natureza humana, tampouco da vontade popular, mas sim de uma força
que rege o Universo através de mandamentos e proibições, e essa Lei, identificava-
se com a mente divina.75

Com efeito, a mente divina não pode estar desprovida de razão, e a


razão divina não pode existir sem o poder para sancionar os bons e
os maus atos. Em parte alguma está escrito que um homem só deve
fazer frente a todas as forças inimigas e mandar que se corte a ponte
à sua retaguarda; e, sem dúvida, não deixaremos de pensar que o
célebre Cocles realizou essa façanha em virtude da Lei e por
imposição da coragem. E se ao tempo de Lúcio Tarquínio não
houvesse em Roma lei escrita punindo o estupro, diríamos por isso
que o atentado de Sexto Tarquínio contra Lucrecia, filha de Tripitino,

74
AGAMBER, Giorgio. Estado de exceção. Homo Sacer. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 108-109.
75
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 72.
49

não foi a violação da Lei eterna? Pois, uma razão existia, derivada
da natureza das coisas, impelindo ao bem e ao mal afastando, e que
para chegar a ser Lei não necessitou ser escrita, mas que foi Lei
desde sua origem. E a sua origem é tão antiga como a mente divina.
Por isso, a Lei verdadeira e essencial, a que manda e proíbe
legitimamente, é a reta razão do supremo Júpiter.

Após reforçar a origem divina da lei, Cícero passa a expor, explicar e justificar
o mencionado código religioso. Nele trata das leis relativas ao culto dos deuses, à
organização sacerdotal, aos ritos e cerimônias religiosas.

Por fim, no terceiro livro, que começa com elogios a Platão, Cícero intenta
estabelecer o estatuto político do povo de Roma, expondo um sistema que em
pouca coisa difere do existente na República romana.

Enuncia as leis, explicitando como deveria ser a magistratura, defende a


consulta ao povo nas questões de me maior relevo estabelecendo o voto como
instrumento para a escolha dos magistrados, para a edição das leis e para tudo o
que corresponda ao interesse de todos.

Sustenta a opinião de que a plebe terá o tribunato, com tribunos invioláveis,


para se defender das arbitrariedades, nesse sentido:76

(...) Quanto a Pompeu, é porque, a meu juízo, não pensaste o


suficiente sobre sua posição: ele teria de preocupar-se não só pelo
melhor, mas também pelo necessário. Por isso compreendeu a
impossibilidade de excluir desta República o poder tribunício: um
povo que o desejou antes de conhecê-lo, não poderia viver sem ele,
após conhecê-lo. Assim, Pompeu deu mostras de prudência cívica
ao não deixar que uma causa desprovida de maldade intrínseca e
aureolada de irresistível popularidade caísse nas mãos de um
demagogo, com todos os riscos incluídos nessa perspectiva.

Dedica-se ainda, com maior cuidado, a tratar das diretrizes gerais do Senado,
instituição a qual pretende que seja a mais alta expressão do Estado. Dada sua
importância os decretos emitidos pelo Senado, mesmo quando não aprovados pela
maioria, devem ser reduzidos a forma escrita e mantidos, sobre o tema:77

Os decretos do Senado serão obrigatórios. Pois, se o Senado detém


a política geral, se todos os cidadãos respaldam suas decisões e se
as demais ordens deixam que se governe o Estado pela prudência

76
Idem, p. 113-114.
77
Idem, p. 114.
50

da ordem superior, é possível, então, manter esse sábio e


harmonioso equilíbrio do estado, que nasce de uma justa distribuição
dos decretos entre o povo, investido de poder, e o Senado, investido
de autoridade.

Cícero apresenta ainda a ideia de que a classe senatorial e os magistrados


deverão ter a moral e o comportamento ilibados para servirem como modelo a ser
seguido.78

Na verdade, o pior nas pessoas eminentes não é o fato de pecarem


– o que, em si, já é um mal sério –, mas que tenham tantos a
imitarem-nas. Bata buscar exemplos na história para constatar que
determinada república foi o que foram seus eminentes cidadãos, e
toda e qualquer mudança por eles introduzida nos próprios hábitos
não tardou a ser adotada pelo povo.
Essa relação é muito mais evidente que aquela com que se entretém
nosso querido Platão, quando disse que uma mudança nos cantos
dos músicos mudou o destino das cidades. Eu penso que uma
mudança na vida e na conduta dos nobres altera os costumes das
cidades. Por isso, os homens eminentes, quando viciados, tornam-se
particularmente perniciosos para o Estado: não apenas por
cultivarem vícios, mas também por difundi-los pela cidade. Além de
corrompidos, são corruptores e mais prejudicam pelo exemplo e pelo
pecado. Na verdade, essa lei – ainda que aplicada a uma ordem
inteira – pode ser mais restrita, pois poucos, muito poucos, são os
que com suas honras e glórias têm o poder de alterar ou retificar os
costumes de uma comunidade.

1.5.3 Dos Deveres

A obra Dos Deveres (De Officiis) foi escrita em 44 a.C. em uma época de
crise política, logo após o assassinato de Júlio César e constitui a última obra
filosófica de Cícero.

Cícero dedica a obra ao seu segundo filho e único homem, Marco, que se
encontrava na Grécia estudando oratória e filosofia. Em um dos capítulos da obra
Cícero esclarece o leitor que o tratado apresentado era um substituto para uma visita
ao filho que não pôde ser realizada por motivos políticos. Sua intenção era através
desse tratado passar ao filho orientações e conselhos. No entanto, é um trabalho
feito não apenas para Marco, mas também para outros jovens romanos da classe

78
Idem, p. 116.
51

governante que tivessem interesse em aprender com a advertência e o exemplo de


um homem mais velho.

O tratado é constituído por três livros onde para os dois primeiros Cícero teria
se inspirado no famoso tratado Sobre o Dever de autoria de Panécio, aristocrata
ródio que viveu entre 180 e 109 a.C. e foi chefe da escola estoica de Atenas por
volta de 129 a.C., em razão disso percebemos a forte influência do estoicismo nesta
obra. Segundo Milton Valente:79

Seriamos tentados a pensar que o trabalho de Cícero não passaria


de simples releitura do modelo estoico. Efetivamente, os estoicos
escreviam de bom grado sobre “os deveres” ou “o dever”. Abordado
pelos três fundadores, Zenão, Cleanto e Crisipo, o tema foi de novo
estudado por Antíoaro de Tarso e Diógenes de babilônia.
Particularmente famosos foram o tratado de Panécio e o de Hecatão
de Rodes. Houve também dois contemporâneos de Cícero que nele
se exercitaram: Possidônio de Apaméia e Antíparo de Tiro. O gênero
era, pois, familiar aos estoicos, e Cícero podia facilmente encontrar
um modelo entre eles.”

Os três livros tratam, cada qual, dos tipos de deliberações que governam a
conduta humana, uma vez que existindo uma hierarquia dos deveres é preciso saber
escolher um mais que outro. Os três tipos são: a honestidade (e seu contrário), o útil
(e seu contrário) e ainda a maneira correta de resolver aparentes choques entre
esses dois.80

Desta forma o que Cícero pretende é ensinar como tomar decisões morais,
como analisar diferentes caminhos possíveis de ação, enfim a sermos “bons
calculadores dos nossos deveres” (I. 59).

Trata-se de uma obra sobre ética prática com ênfase na moralidade social e
política. Muito embora Cícero apresente seus preceitos como aplicáveis a vida como
um todo seu interesse na verdade se verte para o comportamento dos homens em
sociedade. Podemos descrever o De Officiis como um manual destinado aos
membros da classe governante que versa sobre os deveres que têm para com seus
pares na vida privada e para com seus concidadãos na vida pública.81

79
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 424.
80
CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 229.
81 Idem, p. 424.
52

No Livro I o honesto é dividido em quatro virtudes principais as quais as ações


devem estar ligadas, são elas: a sabedoria, a justiça, virtude considerada por Cícero
soberana as demais, a coragem ou magnanimidade e temperança. Assim, Marco
Túlio:82

(...) Mas tudo que é honesto nasce de uma de quatro partes. Com
efeito, consiste ou no discernimento e na apreensão do verdadeiro,
ou na manutenção da sociedade dos homens, e, atribuindo-se a
cada um o que é seu, na fé dos contratos, ou na grandeza e
resistência do ânimo elevado e invencível, ou na ordem e medida de
todas as coisas feitas e ditas, nas quais se encontram a modéstia e a
temperança.
Embora, essas quatro partes estejam ligadas e implicadas entre si,
todavia, de cada uma nascem certos tipos de deveres, como daquela
que foi descrita primeiramente, onde colocamos a sabedoria e a
prudência, surgem a indagação e a invenção do verdadeiro, função
própria dessa virtude.

O segundo livro trata das noções de utilidade e de como ela e a honestidade


são indissociáveis. Para o autor, se o útil se tornar nocivo a alguém então deixará de
ser honesto.

Nesse livro Cícero encerra conselhos da moral prática que se poderiam ministrar aos
jovens romanos do século I antes de Cristo, e o faz muito mais utilizando exemplos
históricos do que através de demonstração especulativa.83

Por fim, no terceiro livro Cícero afirma estar versando sobre o aparente
conflito entre o útil e cada uma das quatro divisões do honesto. No entanto, no
decorrer do livro percebe-se que os conflitos que ocupam a maior parte são os que
ocorrem entre a justiça e o interesse próprio, que falsamente se apresenta como
sabedoria ou “sensatez”.84 Ao tratar do conflito com a coragem, por exemplo,

82
Dos deveres. Tradução Angélica Chiapeta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 11.
83
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 425.
84
Importante lembrar que essa noção de sensatez é grega e gera a própria palavra direito. Sensatez
vem de phronesis. Conforme assevera Tercio Sampaio Ferraz Jr. Op. cit., p. 33: “A palavra
jurisprudência – (júris)prudentia, uma das expressões usadas pelos romanos, ao lado de disciplina,
scientia, ars, notitia, para designar o saber jurídico – liga-se, nesse sentido, ao que a filosofia grega
chamava de fronesis (discernimento). Tal palavra era entendida, entre os gregos, como virtude.
Fronesis, uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, na verdade consistia numa virtude
desenvolvida pelo homem prudente, capaz, então, de sopesar soluções, apreciar situações e tomar
decisões. Para que a fronesis se exercesse, era necessário o desenvolvimento de uma arte (ars,
techne) no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapondo-se, permitiam
uma explanação das situações. Essa arte ou disciplina corresponde aproximadamente ao que
Aristóteles chamava de dialética. Dialéticos, segundo o filósofo, eram discursos somente verbais, mas
suficientes para fundar um diálogo coerente – o discurso comum”.
53

envolve a discussão da justiça de se manter o juramento, e ao falar do conflito com a


temperança ataca os epicuristas por tratarem a adoção das virtudes como forma de
obter prazer, e segundo o autor a justiça não poderia jamais ser encarada dessa
maneira, nas palavras de Cícero:85

Primeiramente, que lugar reservamos à prudência? Procurando


gozos por toda a parte? Que infeliz servidão da virtude, escrava do
prazer! E qual será a função da prudência? Supondo-se que não há
nada mais agradável que isso, podemos imaginar algo mais torpe?
Junto de quem afirma que o sofrimento é o sumo mal, que lugar
ocupa a coragem, que despreza as dores e penas? Por mais
numerosas, com efeito, que sejam as passagens onde Epicuro fale
corajosamente, como de fato fala, do sofrimento, não devemos
considerar o que ele diz mas o que para ele seria lógico dizer, já que
fez do prazer a medida de todos os bens e da dor a medida dos
males. É como se eu o ouvisse discorrer sobre o autocontrole e a
temperança: sem dúvida fala muitas coisas em muitos lugares, mas
“a água não corre” conforme o ditado. Pois como elogiaria a
temperança em homem que coloca o sumo bem no prazer? Com
efeito, a temperança é a inimiga dos desejos, e os desejos são
amantes do prazer.
Ora, nesses três domínios, os tais filósofos tergiversam como
podem, e não sem argúcia: apresentam a prudência como a ciência
que fornece os prazeres e repele as dores. Mostram a coragem, de
certa forma, como a maneira de desdenhar a morte e suportar o
sofrimento. Não sem dificuldade, mas da melhor maneira possível,
introduzem a temperança: sustentam que a intensidade do prazer
tem por alvo a eliminação da dor. Quanto à justiça, ela vacila ou
antes cai por terra, bem como todas as virtudes que dizem respeito à
comunidade e aos vínculos sociais do gênero humano. De fato, não
poderá haver bondade, generosidade, cortesia ou amizade se essas
virtudes não foram buscadas por si mesmas, mas relacionadas ao
prazer e a utilidade.

Além do exposto, Cícero, em seu terceiro livro, faz algumas reflexões acerca
da noção legal de “homem bom”, e ainda, ao atacar a “sensatez” aparente trata dos
problemas da fraude e da boa fé.

Juntos, os três tratados, Da República, Das Leis e Dos Deveres, apresentam


as orientações de Cícero para a regeneração da classe governante de Roma,
fundindo preceitos da filosofia grega aos valores tradicionais dos estadistas
romanos.

85
CICERO. Marco Túlio. Dos deveres, p. 181.
54

2 CÍCERO E O ESTOICISMO: INFLUÊNCIAS DO ESTOICISMO EM


SEU PENSAMENTO SOBRE O DIREITO E A JUSTIÇA

2.1 Períodos e representantes do estoicismo

Para melhor compreender o conteúdo das ideias de Cícero, necessário se


faz investigar os elementos da escola estoica, principalmente no período médio, com
Panécio e Posidônio, que o inspiraram em seu pensamento sobre o Direito Natural,
Lei Natural, e sobre a Justiça.86

A formação e o apogeu do estoicismo compreende o período entre o século


III a.C. e o século II d.C. Durante esses cinco séculos sua doutrina passa por
algumas modificações que nos leva a dividi-la em três grandes períodos: o
estoicismo antigo, o estoicismo médio e o estoicismo imperial.87

O estoicismo antigo é o primeiro período do estoicismo e apresenta como


principais nomes Zenão de Cítio, Cleanto e Crisipo, sendo o primeiro deles fundador
da escola.

Zenão de Cítio nasceu em Chipre, na cidade de Cítio, localizada na Ásia


Menor e viveu aproximadamente entre os anos de 332 e 264 a.C. Chegou a Atenas
no ano de 310 a.C. com vinte e dois anos de idade e durante uma dezena de anos
seguiu o ensinamento de três correntes da época: os megáricos, os cínicos
(especialmente Crates) e a Academia.88

Cerca de dez anos depois de sua chegada, por volta de 301 a.C. Zenão
fundou sua própria escola próxima ao Pórtico Poecilo. Era comum naquela época
dar a escola o nome do local onde ela ficava. Assim, a escola de Zenão levou o
nome stoa, significado de pórtico em grego, da qual derivou o nome estoicismo.

86
Segundo Olney Queiroz (ASSIS, Olney Queiroz. O estoicismo e o direito: Justiça, liberdade e
poder. São Paulo: Lumen Editora, 2002, p. 306): “Na obra de Cícero, particularmente na tríade Dos
Deveres, Das leis e Da República, a filosofia estoica se conecta com o direito, em especial o direito
natural e a moral dos deveres que influenciam os jurisconsultos. Esses tratados expõem o direito
natural, a forma de governo e as leis da civitas com fundamento na filosofia estoica”.
87
Idem, p. 105 e ss.
88
Idem, nota 50.
55

Zenão era um homem sóbrio, discreto, vivia de maneira bastante modesta, e


como não cobrava por seus ensinamentos possuía muitos discípulos pobres. Após
sua morte, o sucesso da escola aumentou e a cidade chegou a lhe prestar honrarias
excepcionais em razão de sua personalidade temperante, sua qualidade intelectual
e o valor moral de seus ensinamentos.89

O sucesso e reconhecimento oficial de Zenão também se deveram à


necessidade da época. Isso porque, o nascimento de uma nova classe social que
podemos chamar de aristocracia nos reinos helenísticos suscita uma nova demanda
cultural. A escola de Aristóteles, o Liceu, e a de Platão, a Academia,
institucionalizaram o ensino e a pesquisa, no entanto, eram direcionadas a uma elite
mais favorecida. Ao contrário, a escola de Zenão tinha uma base social mais aberta
satisfazendo as necessidades intelectuais e sociológicas da época.

Assim, no contexto de expansão cultural, científica e social em que o mundo


helênico se encontrava, os estoicos passaram a ser recrutados pela aristocracia que
os colocava cada vez mais na posição de educadores. Ensina-nos Jean-Joel Duhot
que:90

Os estoicos deliberadamente se inscreveram na continuidade da


filosofia não apenas socrática, mas também pré-socrática. Eles ainda
assumem numerosos empréstimos ao pensamento médico
hipocrático, depois alexandrino, e à ciência de seu tempo. Com
efeito, não há nenhum elemento do pensamento do Pórtico que não
se encontre já em Platão, em Aristóteles, nos cínicos, nos pré-
socráticos ou nos médicos. A contribuição especifica do Pórtico
consiste na síntese que ele faz.

Após a morte de Zenão, seu discípulo Cleanto assume a escola. Nascido em


Assos, Cleanto chegou a Atenas com pouquíssimos recursos e passou a frequentar
a Escola do Pórtico. Cleanto não era o discípulo mais brilhante de Zenão, mas tinha
qualidades morais apreciadas por seu mestre. No entanto, justamente pela falta
dessas qualidades intelectuais foi que resultou na desagregação da escola estoica.91

Depois de Cleanto, Crisipo originário de Soles, em Chipre, o sucede na


direção da Escola. Crisipo destacou-se como filósofo por sua inteligência e amplo
89
Os pensadores. Trad. Leonel Vallando e Gerd Bornhein. São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 38 e
ss.
90
DUHOT, Jean-Joël. Epicteto e a sabedoria estoica. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola,
2010, p. 25.
91
Idem, p. 26.
56

conhecimento em várias áreas do saber. Muito embora hoje só restem fragmentos e


citações, sua obra foi vastíssima, cerca de setecentos livros, e foi também
reconhecido por ter por ter restabelecido a unidade da escola e por ter dado a ela
um caráter sistemático.

Os anos subsequentes, que marcam o estoicismo médio, foram marcados


por uma integração política do mundo grego ao domínio romano donde se pode
observar que, ao mesmo tempo em que se ampliava o poder político de Roma sobre
os gregos, a cultura grega tomava seu espaço no mundo romano.92

O estoicismo médio está ligado principalmente aos nomes de Panécio e


Possidônio. Durante esse período, a filosofia estoica se expande pela Babilônia,
Alexandria, penetrando finalmente em Roma onde passa a influenciar um círculo
social importante de políticos, juristas e filósofos por cerca de quatro séculos. Nessa
fase, os representantes do estoicismo começaram a se deslocar da Grécia para
Roma, Panécio e Possidônio, por exemplo, passaram suas vidas em Roma e só
voltaram para Atenas quando assumiram a Escola.

A nova realidade, claro, sofreu resistência, especialmente por parte dos


grupos sociais e políticos mais conservadores, que acusavam a filosofia de ser uma
maneira de corrupção dos jovens bem como de ataque à ordem do Estado, da
sociedade e dos costumes romanos.93

Surgiram, assim, alas que se opunham: a dos filo-helênicos e a dos anti-


helênicos. Entre os filo-helênicos estavam Cipião (185-129 a.C.) e Terêncio (190-159
a.C.), que acolheram os eruditos e filósofos gregos, dentre os quais Panécio.
Conforme Pereira Melo:94

A helenização romana desencadeou uma reação de caráter nacional,


que teve em Catão (234-149), o Velho, o seu principal arauto. Ele
denunciava essa influencia helênica como prejudicial à tradição e aos
costumes romanos, mas o movimento resultou inútil, uma vez que
nada se podia fazer em relação ao processo. O número de sábios
aumentou significativamente em Roma. As antigas Escolas
representativas do pensamento grego, a Peripatética e a Academia,
que não encontraram terreno propício para se difundirem, não
respondiam aos interesses romanos

92
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 106-107.
93
INWOOD, Brad. Os estoicos. Trad. Paulo Tadeu Ferreira e Raul Filker. São Paulo: Odysseus
Editora, 2006, p. 24-25.
94
2008, p. 28.
57

Mesmo diante da resistência dos conservadores romanos, o pensamento


filosófico se instalou em Roma e, combinando a praticidade romana com a
genialidade grega, deu novo cenário cultural à região. O advento da cultura greco-
romana terminou por influenciar todo o mundo ocidental e principalmente o direito.

Panécio de Rodes viveu entre os anos de 185 a.C. e 125 a.C. e foi acolhido
no círculo dos Cipiões onde passou a conviver com os romanos das classes mais
poderosas. Cícero foi bastante influenciado por Panécio, fato que podemos
comprovar nos dois primeiros livros de sua obra Dos Deveres quando investiga as
relações entre o honesto e o útil. Angélica Chiapeta ensina:95

No De Officiis, Cícero usou de sua licença de cético acadêmico para


adotar os argumentos que considerou, naquele momento e sobre
aquele assunto, os mais convincentes. Esses argumentos eram os
da Stoa. Recorrendo aos escritos estoicos, diz ele, preservou o
direito de exercer seu tirocínio e sua capacidade crítica: não estava
meramente traduzindo ou expondo-os. A obra que Cícero seguiu de
perto foi o famoso tratado Sobre o dever (Peri toû kathékontos), de
Panécio, o aristocrata ródio que viveu aproximadamente entre 180 a
109 a.C., visitou Roma, foi professor e colaborador intelectual de
Cipião Africano Emiliano e tornou-se chefe da escola estoica de
Atenas por volta de 129 a.C.

Embora fosse um admirador de Aristóteles, Panécio direcionou suas


orientações filosóficas para a renovação do pensamento romano estoico,
restaurando seu conteúdo político e dotando-o de um sentido prático que constituía
a característica da romanidade. Conforme a compreensão filosófica de Panécio, o
homem deveria ter força para sobreviver em condições sociais desfavoráveis
buscando organizar e direcionar sua vida pela felicidade.96

Foi também Panécio que introduziu a distinção, inexistente no antigo


estoicismo, entre virtude teórica, no caso o saber, e as virtudes práticas, como a
justiça, magnanimidade e temperança. Tais virtudes atuariam sobre as tendências
existentes em cada ser humano dando-lhes retidão.97

Possidônio de Apamea, de origem Síria, nasceu em 135 a.C. e especula-se


que tenha morrido por volta de 50 a.C. Cícero foi dele amigo e aluno e com
fundamento nos ensinamentos desse filósofo escreveu os tratados Da Natureza dos

95
CICERO. Marco Túlio. Dos deveres, p. 20.
96
Idem, p. 34.
97
Idem, ibidem.
58

Deuses e Sobre a Advinhação. Suas ideias estoicas permeiam a obra desse autor e
influenciando sua filosofia e seu modo de pensar.

Nada do que fora escrito por Panécio e Possidônio remanesceu. Os tratados


de Cícero são a principal fonte de informações a respeito das concepções desses
filósofos.

O estoicismo dessa fase buscava ainda a harmonia, a racionalidade e a


conformidade com a natureza. As virtudes proporcionadas pela razão deveriam
sobressair às paixões e aos desejos instintivos do homem, os quais precisariam ser
eliminados em razão de seus efeitos maléficos. Os estoicos entendem que os sábios
não se deixam levar pelas paixões, doença da alma.

No entanto a ausência de paixão não era sinônimo de bondade e sabedoria.


Nesse sentido nos ensina Diôgenes Laêrtios:98

Os estoicos dizem ainda que o sábio é imune às paixões porque não


pode cair diante delas. Mas, o termo “apatia”, que designa
propriamente a ausência de paixões, pode aplicar-se também ao
homem mau, no sentido de que é insensível e não se deixa comover.

Além disso, o homem necessitaria alinhar seu pensamento aos seus atos,
pois ao cidadão romano não caberia apenas se dedicar ao desenvolvimento do
intelecto, mas também através de exemplos, à contemplação das ações.

O terceiro período, o estoicismo imperial ou estoicismo romano foi


representado principalmente por Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Diferentemente
da primeira fase, cujas preocupações estavam ligadas à física, à lógica e à ética de
maneira equilibrada, o período imperial priorizou, assim como o período médio, o
estudo da ética em detrimento das demais questões.99

A priorização da ética se deu também em decorrência do momento histórico,


qual seja a época dos reinados de Tibério, Calígula e Cláudio, considerados
verdadeiros tiranos, repressores e autores de diversas atrocidades, e ainda uma
sociedade vivenciando uma crise moral, onde prevalecia a busca excessiva dos
bens materiais, a entrega às paixões e aos vícios, exemplo disso é o sucesso que os
circos faziam nas cidades romanas.
98
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad., introd. e notas Mario da Gama Kury. Brasília:
UnB, p. 208.
99
INWOOD, Brad. Op. cit., p. 35.
59

Diante desse quadro, a preocupação dos filósofos estoicos do período se


voltou para encontrar solução e refúgio aos problemas da vida do homem, tendo em
vista a paz do espírito. Segundo Chistopher Gill:100

O tema predominante era a ética, e as obras principais que


sobreviveram consistiam de exercícios de moralização prática
baseados em ideias mapeadas séculos antes. Não é de se espantar
que na fase final desse período o estoicismo seja substituído, como
filosofia viva, por um platonismo redivivo e uma forma de cristianismo
cada vez mais sofisticada e teoricamente consciente.

O pensamento estoico foi se difundindo de tal forma que não havia mais,
nesse momento, uma “escola” institucionalizada, mas sim numerosos professores
estoicos que ensinavam a doutrina em toda parte do Império.

Para esses filósofos, o homem era um ser, que, além de viver para o bem
comum, necessitava buscar a tranquilidade, a paz de espírito e a reflexão
individualmente, não se prendendo às turbulências da sociedade. O estoicismo
pregava o equilíbrio, o desapego aos bens materiais, a igualdade e o respeito entre
os homens, através da harmoniosa vivência com Deus, presente na natureza.101

Assim, notamos no período a preocupação da filosofia estoica com a


formação de um homem renovado, que priorizasse a espiritualidade e a reflexão
sobre suas ações levando em conta a tranquilidade da alma.

Ao pregar uma ação moldada pela virtude, a reflexão filosófica proposta


visava contribuir para que o homem buscasse sua felicidade, já que, libertando-o de
suas angústias teria condições para isso. Em contrapartida o apego aos bens
materiais, o culto às paixões e a busca incessante pelo prazer resultariam na
fraqueza de espírito distanciando o homem da virtude e como consequência de sua
felicidade.

Um dos principais autores do estoicismo imperial Lúcio Anneu Sêneca,


nasceu em Córdoba, Espanha, viveu entre os anos 4 e 50 da Era Cristã, pertenceu a
uma família ilustre que tinha por tradição a atividade intelectual. Foi iniciado nos
estudos de retórica ainda na infância, tinha grandes habilidades para o comércio,

100
A escola no período imperial romano. Os estoicos. São Paulo: Editora Odysseus. 2006.
101
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 107-108.
60

postulava a formação do homem para a busca da paz da alma, tendo como


fundamento a moral sobre a qual escreveu doze ensaios.

Epicteto nasceu em 50 e não se sabe ao certo a data de sua morte, se em


130 ou 138.102 Viveu na condição de escravo durante muito tempo e após conseguir
sua liberdade passou a lecionar em Roma. Tornou-se um mestre da filosofia romana
e, a exemplo de Sócrates, utilizava-se da ironia e maiêutica para ensinar os
conceitos de virtude e elevar a mensagem moral. Por volta de 93, em razão da
expulsão dos filósofos da Itália, Epicteto segue para a Grécia e funda sua escola em
Nicópolis no Epiro. Não escreveu nenhum livro, sua doutrina é transmitida pelo seu
discípulo Ariano de Nicomédia em oito livros (dos quais só restam quatro) compostos
a partir de anotações feitas durante as discussões nas aulas, e ainda uma obra
intitulada Manual de Epicteto com uma coletânea de pensamentos do mestre.

Depois de Epicteto, o último nome do Pórtico foi Marco Aurélio. Nascido em


Roma no ano de 121 no seio de uma família muito rica subiu ao trono imperial com
40 anos e tornou-se o primeiro filósofo a assumir o governo. Aos 25 anos se
envolveu com a filosofia estoica, tomou aulas com Junio Rústico e Apolônio, e
passou a adotar o modo de vida sóbrio dos estoicos. Escreveu uma coletânea de
breves pensamentos, reflexões e meditações, um texto puramente privado103 que o
imperador não destinara à publicação, e quem o tornou conhecido foi Temístio dois
séculos mais tarde.104

Em seguida, o estoicismo foi discretamente desaparecendo do cenário


filosófico, segundo Jean-Joel Duhot:105

102
DUHOT, Jean-Joël. Op. cit., p. 32.
103
Nesse sentido: INWOOD, Brad. Op. cit., p. 38: “As meditações, escritas em grego, servem como
espécie de diário filosófico, em que o imperador (em ampla medida) absorvia princípios estoicos com
vistas a construir uma estrutura que satisfizesse os princípios estoicos com vistas a construir uma
estrutura que satisfizesse os desafios da vida humana tal como ele a experimentava”.
104
DUHOT, Jean-Joël. Op. cit., p. 48.
105
No mesmo sentido: INWOOD, Brad. Op. cit., p. 38: “É mais difícil traçar indicações claras de
atividade estoica no século III particularmente em sua segunda metade. Diógenes Laércio, cujas
Vidas dos Filósofos é fonte fundamental para o conhecimento da filosofia antiga, incluindo o
estoicismo, provavelmente viveu na primeira metade do século III, mas não discute nenhum pensador
posterior ao século II. Contudo, o estoicismo, particularmente como expresso nos Discursos de
Epicteto, permaneceu influente no pensamento da Antiguidade tardia e além. Plotino (205-270)
absorveu ideias tanto estoicas como aristotélicas em sua versão do platonismo, ao passo que o
neoplatonico Simplício, do século VI, escreveu um enorme comentário ao Manual de Epicteto. O
moralismo austero de Epicteto atraiu o interesse dos primeiros padres da Igreja, entre os quais
Clemente de Alexandria e Orígenes, interesse que persistiu entre os ascetas medievais cristãos.”
61

(...) Ainda existiam estoicos, mas eles não produziam mais obras
importantes. No século III, o neoplatonismo sairia das sombras com
Plotino. Seria a última – mas não a menor – filosofia do mundo
grego. Ao mesmo tempo, o cristianismo começava a constituir para si
uma armadura filosófica, utilizando para tanto o estoicismo e o
neoplatonismo.

2.2 A física, a lógica e a ética estoicas

A doutrina filosófica estoica é dividida em três partes: física, ética e lógica.


Essa divisão encontra-se, por exemplo, na obra Sobre a Lógica, de Zenão e nos
livros Sobre a Lógica e Sobre a Física de Crísipos.106 Nas palavras de Diôgenes
Laêrtios:107

Os estoicos comparam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os


nervos correspondem à lógica, as partes carnosas à ética e a alma à
física. Ou então comparam-na a um ovo: a casca à lógica, a parte
seguinte (clara) à ética, e a parte central (a gema) à física. Ou a
comparam ainda a um campo fértil: a cerca externa é a lógica, os
frutos são a ética, e o solo ou as árvores são a física. Ou comparam-
na a uma cidade bem amuralhada e racionalmente administrada. E
nenhuma parte é separada das outras, como dizem alguns estoicos,
mas ao contrário todas estão estreitamente unidas entre si.

Após a época áurea da polis grega, durante o governo de Péricles, seguiu-


se um período de retração das fronteiras e decadência desse modelo de cidade-
estado. Tal situação implicou a mudança de padrão, o padrão-polis (onde só há
liberdade dentro da estrutura da polis) é substituído pelo padrão-natureza
apresentado pelos estoicos no qual a ideia de uma cosmópolis combinava

106
Sobre o tema também nos ensina Alvaro de Azevedo Gonzaga (Filosofia Jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 52): “O estoicismo possui uma lógica, uma ética e uma física. Os estoicos diziam
que a filosofia poderia ser vista como uma árvore; nas raízes, está a lógica; no tronco, a física; e, nos
frutos, a ética. Entendem que a base do conhecimento é a sensação, ou seja, aquilo que afeta os
sentidos. Sendo assim, a sensação é uma impressão provocada pelos objetos sobre os nossos
órgãos sensoriais, e que se transmite à alma, nela se imprimindo e gerando a representação. É
preciso, porém, um consentir, um aprovar do logos, que está em nossa alma, ou seja, o logos atua
sobre nossas impressões. Temos, então, a representação compreensiva”.
107
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad., introd. e notas Mario da Gama Kury. Brasília:
UnB, 1987, p. 190.
62

perfeitamente com o momento de expansão romana.108 Assim preleciona Olney


Queiroz Assis:109

Submetida a essa nova conjuntura, funda-se a filosofia estoica


alicerçada no seu postulado básico: ser livre e ser justo é viver em
conformidade com as leis da natureza. Entretanto, os estoicos
fortalecem o sentido de liberdade interna ligada ao homem virtuoso
que luta contra suas paixões. Estas aparecem como algo contrário à
natureza que impede o homem de desenvolver plenamente a sua
virtude. É a sabedoria que possibilita o controle das paixões. Uma
sabedoria que se alicerça no conhecimento da lógica, da física e
possibilita ao homem viver virtuosamente em conformidade com a
natureza.

A natureza, para os estoicos, era expressão da racionalidade divina, ou seja,


causa última de todas as coisas, que não estariam separadas do mundo. Nesse
sentido, os deuses, o homem, o céu, a terra e todos os seres vivos seriam
considerados expressão dessa racionalidade divina.

Na medida em que concebiam o universo em sua totalidade apresentando


uma visão de mundo onde todas as coisas estavam interconectadas e
interdependentes, o estoicismo enfatizou a necessidade de compreender a filosofia
como um conjunto organizado composto de três partes fundamentais que
corresponderiam a totalidade do saber: a lógica, a física e a ética.

2.2.1 A física estoica

Na conceituação estoica, a física origina-se da palavra physis, que tem o


sentido de natureza (crescer, gerar, nascer ou brotar) ao passo que Kosmos seria a
totalidade das coisas, o universo ordenado. Para os estoicos a noção de physis é
bastante ampla e relaciona-se à integração do todo, ou seja, ao fato de que tudo
está ligado à natureza e de que tudo é corpo.110

A física estoica tem por base a afirmação da existência de uma razão


universal, uma natureza intrínseca presente e atuante em todas as coisas que

108
Idem, ibidem: “(...) enquanto a doutrina de Aristóteles parte da observação da cidade e não encara
o indivíduo senão no interior da cidade (o homem é ‘animal político’), o povo judeu é uma nação,
reunião de indivíduos. Não uma cidade. São dispersos na Diáspora, como serão em seguida os
cristãos através do mundo”.
109
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 21.
110
Idem, p. 120 e ss.
63

produz e governa a realidade de acordo com um conjunto de leis que se encadeiam


de maneira necessária e harmoniosa. O homem seria parte dessa razão universal e
sua sabedoria consistiria em conformar-se a ela.111

Os estoicos entendiam que a finalidade da existência humana seria viver em


conformidade com a natureza. Sendo a física a parte da filosofia destinada ao
estudo da natureza e a revelar o significado de se viver em harmonia com ela,
podemos afirmar que a física estoica teria finalidade ética. Percebemos, pois que a
física estoica é indissociável da ética e isso se evidencia no reconhecimento de que
a racionalidade da ação humana tem como fundamento a racionalidade da natureza.
Assim, nos ensina Michael J. White:112

Qualquer que seja precisamente o significado desses símiles, ao que


tudo indica os estoicos sustentem que a doutrina física tem relação
íntima com a ética. Para os estoicos, a finalidade da vida humana é
“viver em conformidade com a natureza” (to homologoúmenon têi
phýsei zên). Em consequência, a física – a parte da filosofia que diz
respeito à natureza e revela o significado de viver “em conformidade
com a natureza” – obviamente tem um significado ético. Logicamente
distinto desse aspecto da relação da doutrina física com a ética, tem-
se um segundo ponto de conexão entre as duas: o postulado
contemporâneo comumente aceito de que é tanto possível como
desejável realizar uma investigação “neutra”, “isenta de valores” da
natureza, dista muito do pensamento estoico. Com efeito, é comum
observar que os temas filosóficos estoicos ditos de largo alcance
influem a doutrina física, incluindo alguns dos aspectos
predominantemente técnicos da doutrina física, incluindo alguns dos
aspectos predominantemente técnicos da doutrina física estoica.
Particularmente, os temas estoicos da unidade e da coesão do
cosmos e de uma razão divina onipresente que governa o cosmos
são de importância fundamental para a física estoica.

Nesse sentido, o papel da física estoica seria proporcionar ao homem a


compreensão de si e do modo como age. Tal compreensão seria necessária para
que o homem vivesse de acordo com a sua natureza, do contrário causaria grande
mal a si mesmo e aos outros elementos que compõem o cosmo.

A existência do mal para os estoicos se faz necessária para a própria


compreensão do bem, que não existiria sem seu inverso. No entanto, através de sua
racionalidade o homem poderia distinguir o bem e o mal e escolher um deles para
sua maneira de vida. Assim, ao homem caberia almejar viver em conformidade com

111
INWOOD, Brad. Op. cit., p. 139 e ss.
112
Artigo escrito no livro coordenado por Brad Inwood (Idem, p. 139).
64

a natureza, compreendendo e reconhecendo a sua importância para a garantia do


bem da vida.

A física, para os estoicos, possuía uma parte ativa e outra passiva,


inseparáveis e presentes em todo o universo, que, constituindo-se como pneuma
(sopro vital/fogo), formariam um campo de força responsável por manter unidas as
partes do universo e proporcionando a unificação do todo.113 O princípio passivo
seria a matéria originária, substância de todas as coisas e o ativo seria a razão, ou
Deus, que permeia e opera sobre a matéria e a faz agir sobre todo o mundo.

Deus, razão, ou natureza, era identificado com um fogo artesão que, através
de sua energia, seria capaz de criar, regular e suprir todo o mundo. A respeito do
tema, Jean Brun assim se expressou:114

Podemos, pois, dizer desde já, que, para os Estoicos, natureza, Deus
e fogo são termos sinônimos; divinizar a natureza, ou antes,
naturalizar Deus, é dar ao homem a possibilidade de entrar em
contacto com ele e de encontrar, na realidade que o envolve, a
consistência susceptível de dar a sua vida uma significação
ordenada. Por isso, a física estoica não se apresenta de modo algum
como o sistema racional de um humanismo do conhecimento, mas
como uma teologia que é ao mesmo tempo uma cosmologia, e, por
estranha que a expressão possa parecer, como um materialismo
espiritualista.

Considerando que Deus, Fogo e Natureza e o homem deveriam viver em


comunhão, a física estoica proporcionava a compreensão do que era o homem e de
como ele agia. Nesse sentido, Olney Queiroz Assis:115

O conhecimento de Deus, do mundo, da razão e da natureza é um


dos pontos essenciais da filosofia estoica, porque esse conhecimento
permite a realização de uma harmonia racional entre o homem e a
natureza, onde a sabedoria é uma adesão, uma espécie de
submissão à natureza e de uma aquiescência do homem à
providência e ao destino. Esse assentimento que o homem deve dar
à realidade, isto é, à natureza divina, representa uma comunhão com
o todo; a comunhão divino-humano como parte de uma mesma
ordem unificadora é ponto relevante da física estoica, cujas

113
Ensina ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 132: “Assim, as razões da unidade do mundo repousam
sobre a existência de uma força unificadora da substancia corpórea. Essa força é o pneuma, o sopro
criador que penetra todo o universo. O pneuma possui uma tensão que mantém juntas as partes do
universo, impedindo sua dissipação no vazio infinito. O mundo é uno porque o sopro ou pneuma que
o penetra retém suas partes, possui uma tensão (um campo de força) análoga a que possui, em
pequena escala, todo ser vivo.”
114
BRUN, Jean. O Estoicismo. Trad. João Amaro. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 48.
115
Op. cit., p. 129.
65

consequências expandem-se para o campo ético-político e


determinam as ações humanas, especialmente no plano da liberdade
e da justiça.

Muito embora Deus seja constantemente identificado como a razão


universal, ou natureza, cumpre diferenciar a física estoica do que seria a teologia
estoica sobre este aspecto explica Keimpe Algra:116

O objeto da teologia estoica era o princípio governador do cosmos,


na medida em que pudesse também ser rotulado como “deus”. Os
estoicos correspondentemente consideravam a teologia como parte
da física, mais especificamente como a parte que não foca em
minúcias e aspectos puramente físicos dos processos cósmicos,
senão em sua coerência geral, em sua teleologia e em seu desígnio
providencial, bem como na questão concernente a como essa
teologia cósmica se relaciona com formas populares de crença e
adoração.

2.2.2 A lógica estoica

O conhecimento da natureza precisava ser revestido em uma linguagem


para que fosse comunicado aos demais homens, papel esse que caberia à lógica
estoica. Segundo Susanne Bobzien:117

A lógica estoica é, no âmago, uma lógica proposicional. A inferência


estoica diz respeito a relações entre itens que têm a estrutura de
proposições. Esses itens são os asseríveis (axiómata). São os
portadores primários de valores de verdade. De acordo com isso, a
lógica estoica divide-se em duas partes principais: a teoria dos
argumentos e a teoria dos asseríveis, que são os componentes a
partir dos quais os argumentos são construídos.

Lógica, para os estoicos, vai além da lógica formal, pois pressupõe a teoria
do conhecimento, contém a dialética e a retórica em suas várias formas de
manifestações e, sobretudo, possui a função de preparar o homem para o exercício
da virtude.

A filosofia estoica se preocupou em estabelecer conexões entre o


conhecimento e a linguagem. Os sujeitos do conhecimento não buscam a ciência
para dominar a natureza, mas sim com o objetivo de conformar-se a ela.

116
Teologia estoica. Artigo inserido em: INWOOD, Brad. Op. cit.
117
Em seu capítulo no livro INWOOD, Brad. Op. cit., p. 95.
66

A relação entre sujeito e objeto não pode ser analisada de forma isolada do
universo que eles habitam. Dessa forma, os componentes do conhecimento, quais
sejam o sujeito cognoscente, o objeto do conhecimento (ou a natureza), os atos do
conhecimento (sensação, representação, assentimento e a compreensão) e a
linguagem, são inseparáveis.

No caso do componente linguagem este envolve três elementos, semainon,


lékton e tygchánon. O primeiro é o significante ou o que significa, ou seja, a própria
palavra ou voz; o segundo é o incorpóreo – correspondente ao significado ou
significação, ou seja, aquilo que a palavra ou voz exprime –; e por fim o último
elemento é a própria coisa ao qual a palavra ou voz se refere.118

É assim que, por meio da linguagem, os estoicos fixam o significado das


representações e podem comunicar o conhecimento.

A parte lógica da filosofia compreende uma dialética e uma retórica. A lógica


dialética se divide em dois campos de estudo. Um deles estuda o critério de verdade
e estabelece formas para o encadeamento verdadeiro de proposições (estudo dos
termos, proposições, silogismos, sofismas etc.). O outro campo da dialética se
dedica ao estudo da gramática e das regras que orientam a conexão das palavras,
facilitando a comunicação e a divulgação do conhecimento.

A lógica retórica trata dos discursos, estes se ligam a ética tanto pela
exigência de virtude do orador quanto pela escolha dos temas que compõem seu
conteúdo. Os discursos são divididos em três gêneros, deliberativo, judiciário e
panegírico, e são compostos das seguintes partes: introdução, narração dos fatos,
refutação da parte contrária e conclusão.119

O gênero deliberativo trabalha o aconselhamento do útil, que se liga ao


honestum, virtude que contém todas as demais. No gênero judiciário pleiteia-se a
virtude da justiça, que, dentre as quatro virtudes é a que sustenta a moral dos

118
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 173: “Os estoicos dividem a parte lógica do seu sistema
filosófico em duas ciências: a dialética e a retórica. A lógica dialética merece duas definições. Uma a
define como a ciência de discutir corretamente sobre assuntos mediante perguntas e respostas. A
outra a define como a ciência do diálogo justo, do que é verdadeiro, do que é falso e do que não é
nem verdadeiro nem falso. A dialética abrange a teoria do signo e os seus três componentes básicos
que se situam em três campos distintos, mas correlacionados. Um trata do evento ou objeto
(tychánon) ao qual o signo se refere; outro trata do significado (lektón); e o outro trata do significante
(semainon), que é a entidade percebida como signo”.
119
Idem, p. 174.
67

deveres cujo útil é a base. Por fim, no gênero panegírico o conteúdo do discurso é a
exaltação de virtudes, louvor de uma pessoa, acontecimento, lugar ou objeto.

A invenção dos argumentos, a sua expressão em palavras, sua disposição e


representação compõem os elementos da retórica estoica.

Com o expansionismo romano a partir do século III a.C. aumentou a


complexidade social na civitas, influenciando também o direito que diante desse
contexto passa por mudanças e começa a se expressar e se fixar cada vez mais
através de fórmulas escritas.

Cresce assim a importância do estudo da gramática e da lógica que passam


a fazer parte da formação daqueles que pretendem se dedicar ao direito.

Desta forma, o conhecimento da física e da lógica tem como intuito educar e


preparar o homem para a vida ética, ou seja, para a prática de ações virtuosas que
seria consequência daquele que vive em conformidade com a natureza, fim
supremo. Assim, ao sábio caberia agir de acordo com a lei universal comum a todos
e identificada com a reta razão.

2.2.3 A ética estoica

Os estoicos dividiram e sistematizaram o estudo da ética em: estudo da


tendência (inclinação, impulso), da virtude (ou moral do dever reto), do bem, do mal
e do indiferente, do soberano bem ou fim supremo, das paixões, dos deveres ou
condutas convenientes, do mérito, da exortação em face da ação.120

As diversas partes da ética estoica acima expostas se relacionam com o


preceito de viver em harmonia e conformidade com a natureza. É, neste ponto, que
reside a felicidade, quando houver harmonia entre a alma ou razão humana com a
razão universal.

A formação do caráter ético tem início no aprimoramento das primeiras


tendências e inclinações que o homem recebe da natureza. Sendo o ser humano
parte da razão universal e sujeito à ordem cósmica, espontaneamente repelirá o que
for prejudicial e acolherá o que for útil. Os estoicos comprovaram que as crianças,
mesmo sem o conhecimento do que é prazer ou dor, procuravam o que lhes era útil

120
Diôgenes Laêrtios. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 202.
68

e fugiam do que lhes era nocivo. Esse comportamento expressaria o amor próprio do
homem e sua tendência natural de conservação.121

Desde o início de sua existência o homem tem, por natureza, meios de


distinguir o que é conforme e o que é contrário à natureza. Assim viver segundo a
moral seria viver de acordo com a natureza. A virtude residiria na conformação à
ordem natural das coisas, o que levaria o homem à felicidade.

O homem seria o único entre os seres que, além do instinto, teria o privilégio
da racionalidade. A razão seria uma força presente no homem capaz de aperfeiçoar
suas tendências, inclinações ou impulsos para que tivesse uma vida mais feliz. A
racionalidade seria uma extensão do espírito divino no corpo humano.

Os estoicos, entendendo que os princípios fundamentais da sabedoria


poderiam contribuir para o aperfeiçoamento humano estabeleceram uma divisão de
ordem moral de todas as coisas em três categorias: ”boas”, “más” ou
“indiferentes122”.

Eram consideradas “boas” as ações que estivessem em consonância com a


moral e “más” as que não estivessem. Havia ainda um conjunto de coisas que não
beneficiavam nem prejudicavam por si mesmas, a essas se convencionou chamar
de “indiferentes”, seria exemplo delas a saúde, o prazer, a força, a reputação etc.
Para se distinguir as “coisas indiferentes” em boas ou más era necessário se
verificar uso que se fazia delas.

A virtude era considerada a presença do bem em uma pessoa, e, portanto,


era obrigatoriamente um bem, ao passo que, os vícios e as paixões eram
reconhecidos como males.

A paixão e os vícios seriam juízos ou opiniões em desconformidade com a


natureza que desorientariam o homem afastando-o do caminho da felicidade. Os
estoicos entendiam que o aparecimento do mal não poderia estar na origem do ser
humano, onde aparecem as primeiras inclinações. As paixões seriam doenças da

121
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 265.
122
Sobre o indiferente ensina Olney Queiroz (Idem, p. 275): “Há, para os estoicos, um conjunto de
coisas que não se enquadram nem na categoria de bens nem na categoria de males, dentre as quais
se destacam: a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a força, a riqueza, a reputação, a nobreza, bem
como os seus contrários, a morte, a doença, o sofrimento, a lealdade, a fraqueza, a pobreza, a
obscuridade, a origem humilde. Essas coisas encontram-se na categoria das indiferentes porque não
beneficiam nem prejudicam por si mesmas. Não são boas nem más, posto que depende do uso que
delas se faz”.
69

alma, que acometeriam apenas os insensatos, pois os sábios não deixariam que
elas nascessem em seus corações ou então as aniquilariam já no início de sua
concepção mantendo-se, assim, no caminho da felicidade.123

Já a conduta virtuosa do homem, distanciando-o dos vícios, das paixões e


dos prazeres, levá-lo-ia ao equilíbrio entre as forças da natureza (Deus) e à
salvação. Como os estoicos consideravam que as paixões correspondiam a um erro
da razão, e seu resultado seria a infelicidade do homem, propunham que elas
fossem extirpadas totalmente, livrando o homem da doença da alma e
consequentemente da sua infelicidade.124

A ética estoica pressupõe a ação, o homem virtuoso é o sábio porque


conhece e pratica todas as virtudes. Olney Queiroz Assis assevera que:125

A moral estoica é um convite à ação porque, segundo os estoicos, a


natureza cria o ser racional adaptado para a contemplação e também
para a ação. O conhecimento da natureza é fundamentalmente uma
preparação para a ação, de modo que as virtudes e as disposições
não permanecem interiorizadas. Embora o discurso estoico seja
dirigido a todos os homens, sem distinção de sexo ou de condição
social, a escola se preocupa com a formação do cidadão para o
exercício das funções públicas: legisladores e governantes. O
homem ético, dizem os estoicos, é de grande valia para uma cidade.

2.3 O direito natural estoico

A ideia central do direito natural estoico é a crença na existência de uma lei


comum, aplicável a todos os seres, que está acima de qualquer lei particular
elaborada pelos homens. Essa lei é associada a existência de uma razão universal
que gera e rege o cosmos. Como a razão humana participa da razão universal, pois

123
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 226.
124
Idem, ibidem: “O estudo específico da paixão é uma tentativa de discernir os dois sentidos do
“mal”, o físico e o moral: a doença de que a alma sofre é má? E se é, como preveni-la? Como curá-
la? Também a Cícero se apresentaram estas questões, sob o domínio do sofrimento. Quando perdeu
o ser que mais amava no mundo, a filha Túlia, experimentou a necessidade de se retirar para a sua
vila em Ástura e ali procurar lenitivo à sua dor, uma consolação que fosse ao mesmo tempo
esclarecimento e remédio. Registrou nas Tusculanas as reflexões que fez sobre esse tema. (...) Ao
tema “consolação da Filosofia” estava reservado grande fortuna e notável contributo para o renome
de Cícero no pensamento ocidental, como em Santo Agostinho e Boécio. Porém Cícero pensava
menos na reflexão filosófica, em geral, do que no Estoicismo, em particular. Arte de viver e, portanto,
arte de ser feliz, essa doutrina devia consagrar no ensino largo espaço ao estudo da paixão, uma vez
que a paixão é o principal obstáculo que o homem encontra na ascensão à felicidade. Não é em vão
que determinada atitude perante o sofrimento se costuma qualificar de “estoica” – atitude feita de
coragem e, talvez mais ainda, de desprezo e recusa: atitude prática que parece, a primeira vista,
indicar o insucesso da solução especulativa”.
125
Op. cit., p. 33.
70

é uma centelha dela, o homem pode realizar o direito natural na polis ou na civitas
quando sua razão está em harmonia com a razão universal.

O direito natural emanaria, portanto, da razão universal e não de leis


particulares de uma determinada cidade. Os estoicos inovam ao entender que todos
os homens pertencem a mesma cidade, uma cosmópolis, e estão todos igualmente
submetidos às suas leis naturais. Os seres humanos por serem centelhas do logos,
seriam todos parentes e amigos entre si. Dessa forma os estoicos elevam a
dignidade humana ao considerar que todos, e não apenas os cidadãos de
determinada polis, inclusive as mulheres e os escravos, possuem uma mesma
essência natural protegida pela lei emanada da razão universal.126

Celso Lafer127 reconhece a contribuição estoica (e também judaico-cristã e


seu desdobramento jurídico-político na Idade Moderna) na construção desses
direitos, ao introduzirem o significado e a importância do universalismo, uma vez que
a ideia estoica de mundo sugere a unidade do gênero humano, cujas relações
seriam pautadas por um direito comum, apesar da diversidade de nações.

O homem para ser virtuoso, e consequentemente feliz, deveria praticar todas


as suas ações conforme essa lei universal, pois assim promoveria a harmonia entre
a natureza existente em cada um dos homens e a vontade do ordenador do
universo.

Assim, a estrutura humana do direito deveria refletir esse direito natural,


universal a todos, dessa forma:128

Essa harmonia necessária e perfeita que deve haver entre o todo e


as partes e entre as partes entre si implica na concepção de que a
organização humana deve refletir essa estrutura maios. Em outros
termos, a conservação do homem e a sua felicidade dependem de
uma vida em harmonia com o todo, cujos sinais pode-se recolher nas
primeiras tendências ou inclinações. Esse é o modelo que Cícero
toma como paradigma para organizar a civitas. Vale dizer, a
tendência, que é igual em todos, possibilita a organização humana
com base no consenso em torno da lei natural. Os homens,
inclinados ou tendentes à lei natural, devem reunir-se em torno de
deveres que sejam comuns a todos e que reflitam os princípios
básicos da lei natural.

126
Idem, p. 335.
127
LAFER, Celso. A reconstrução dos Direito Humanos. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 118-
120.
128
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 339.
71

A partir das inclinações naturais é que o conteúdo do direito natural se


organizaria, assim, por exemplo, o princípio da autoconservação geraria o direito
natural de todos os seres a proteção da vida.

Os princípios do direito natural estoico também aparecem de forma


acentuada na filosofia do direito de Cícero. Para ele, as leis naturais de inspiração
divina, aplicáveis para todas as nações, são permanentes e imutáveis, enquanto as
leis dos homens são mutáveis e diferentes em cada cidade, nesse sentido Paulo
Nader:129

Relativamente à noção do Direito Natural, há que se destacar as


reflexões de Marco T. Cícero (106-43 a.C.), especialmente expressas
em Da República e Das Leis. Para ele o Direito Natural seria “a reta
razão em concordância com a natureza” e, por esse motivo, seria
eterno, imutável e universal. Opondo-se à ideia de que seriam justos
todos os costumes e leis, proclamou que a noção do justo adviria
igualmente da natureza e que esse valor antecedia as leis positivas.
O sentimento de justiça seria comum a todos os homens, embora
não fosse idêntico.

Nas palavras de Cícero:130

A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações,


imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal
que proíbe e, ora com seus mandados, ora com suas proibições,
jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os
maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte,
nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo
povo nem pelo Senado; não há que procurar para ela outro
comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em
Atenas, uma antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável,
entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu
imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e
publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar a si
mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrais sobre
si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os
outros suplícios.

O Direito, na concepção de Cícero, é apresentado como o respeito que os


homens devem a tudo que é humano, a saber, como o conjunto dos direitos de
todos sobre cada um, ou das obrigações de cada um em relação a todos. O

129
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 115.
130
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. São Paulo: Edipro, 2011, Livro III,
item XVII, p. 87.
72

problema reside na dificuldade em mantê-lo nesta posição universalista e


humanitária. Por essa razão é preciso ligar o Direito a um princípio universal.

Esse direito universal estreita o vínculo da sociedade entre os homens e é


constituído por uma única lei, que nada mais é do que a reta razão no ato de mandar
e proibir e pode ser escrita ou não escrita e aquele que não a aplica é considerado
injusto, nas palavras de Cícero:131

Na verdade, existe um só direito, aquele que une a sociedade


humana e que nasce de uma só Lei: e essa Lei é a reta razão,
quando ordena ou proíbe. Quem a ignorar é injusto, esteja ou não
escrita em algum lugar. Se a Justiça consistisse em obedecer às leis
escritas e agir conforme as instituições dos povos, como julga a
mesma escola, tudo seria medido pelo padrão da utilidade e qualquer
um, quando lhe fosse proveitoso, poderia ignorar ou violar as leis.
Resulta daí que não existe justiça se não assentada na Natureza, e
que a Justiça fundada na utilidade acaba com qualquer justiça. Se a
natureza não for a base do direito, acabam todas as virtudes.
(...)
É a Natureza que permite distinguir entre o justo e o injusto, entre o
honroso e o desonroso, por nos ter dotado de igual inteligência e nos
ter capacitado para relacionar o honroso com a virtude e o desonroso
com o vicio.

Podemos construir o seguinte raciocínio: a razão é universal e presente em


todos os homens, assim, sendo o Direito decorrente da Lei, que por sua vez decorre
da razão, logo o Direito é comum a todos.

Desta forma, para estabelecer um direito capaz de governar uma


comunidade humana, é necessário que remontemos à fonte de toda a
universalidade: a natureza. Sobre o tema nos ensina Milton Valente:132

O direito é em certa maneira a interioridade da lei, que se volta para


a sociedade política, rede de direitos e deveres, trama, sobre a qual
se tecem as relações humanas de interdependência e de
comunidade, pelo qual se constitui a sociedade em particular. Mas
recebe, ele próprio, a sua força unificadora da Lei, que abrange a
humanidade inteira na unidade da natureza racional, e que, anterior
ao seu desenvolvimento histórico, preside à instituição do Direito.

A experiência de Cícero como homem público forma nele o entendimento de


que sem o direito não é possível organizar a vida social. No entanto, essa
131
Idem, p. 57.
132
Op. cit., p. 303.
73

organização deve ser pautada no verdadeiro direito, qual seja o direito natural.
Cícero entendia que o estudo do direito não poderia se limitar ao estudo de questões
meramente casuísticas, pois o direito é um dos elementos mais importantes para se
manter a República.133

Cícero cria que, para conhecer o direito, era necessário se aproximar da


filosofia. Para descobrir suas fontes era preciso em primeiro lugar colocar em
evidencia os dons recebidos da natureza, analisar as qualidades boas que o espírito
humano possui, verificar a tarefa reservada para o gênero humano. A natureza do
direito, segundo ele, é explicada e entendida a partir da natureza do homem e não
dos textos jurídicos.134

133
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 53.
134
Cumpre-nos também apresentar o ensinamento de Michel Villey em sentido diverso (A formação
do pensamento jurídico moderno, p. 470: “(...) O estoicismo conservou as palavras de Aristóteles,
mas era incapaz de assimilar sua substância. O autêntico direito natural, verdadeiramente jurídico e
extraído do estudo do mundo exterior, não podia entrar em seu sistema. Era inconciliável, tanto com a
moral como com a física do estoicismo, e, se tivesse tempo, eu teria mostrado que não era menos
inconciliável com sua lógica. O estoicismo e o direito natural, no sentido originário da palavra, são
incompatíveis”.
74

3 A FILOSOFIA DO DIREITO DE MARCO TÚLIO CÍCERO

3.1 Direito natural e a organização das civitas

Em seu livro Das Leis, Cícero defende a existência de um direito que tinha
sua origem e fundamento na natureza, direito diferente daquele posto pela vontade
humana.

Entre todas as questões debatidas pelos sábios, certamente a mais


importante é aquela que consiste na inteligibilidade dessa verdade:
somos nascidos para a justiça e o direito se fundamenta, não sobre a
opinião, mas sobre a própria natureza.135

Entendia que para explicar a natureza do direito era preciso descobri-la na


própria natureza humana.136

Pois aquele que conhece a si mesmo se sentirá possuído de algo


divino; conceberá sua própria natureza com uma imagem
consagrada, sempre agindo e pensando de modo que seja digno dos
muitos favores divinos e, quando se examinar a si mesmo,
perscrutando-se por inteiro, descobrirá todos os dons que, ao nascer,
lhe deu a Natureza e todos os instrumentos de que dispõe para obter
e alcançar a sabedoria; desde o princípio, formou em sua mente o
conceito das coisas que estavam como que sombreadas. Porém,
após alcançá-lo sob a direção da sabedoria, compreenderá que
nasceu para ser um homem virtuoso e, como consequência, um
homem feliz.

A concepção de direito natural de Cícero é bastante relacionada à


concepção de direito dos estoicos. O estoicismo, como vimos, entendia haver um
elemento dinâmico (logos) com força para reunir os seres vivos dando-lhes a
necessária coesão para se tornarem um conjunto. Assim, esse elemento ao qual se
atribui a criação e organização do mundo, também chamado de natureza, era
considerado uma força presente em todas as coisas, hegemônica e estável capaz de
atuar sobre os corpos, desenvolvendo-os e organizando-os. Em todos os seres
havia uma parcela de logos, e apenas nos homens e nos deuses estava presente na

135
Tratados das Leis, I, p. 28.
136
Idem, p. 64.
75

sua forma mais pura. Essa parcela de logos presente nos homens, identificada como
a razão, seria a responsável pelo surgimento das sociedades e pelo nascimento do
direito. Assim:137

Marco: – Não me alongarei. Tua concessão leva-nos a reconhecer


que este animal cauteloso, sagaz, complexo, esperto, dotado de
memória, cheio de razão e de prudência, a que chamamos de
homem, recebeu do supremo deus a existência que o coloca em
lugar eminente. Ele é o único entre todas as espécies animadas que
tem acesso á razão e ao pensamento, de que carecem as outras
espécies. E que pode haver, não direi no homem, mas em todo o céu
e na terra, de mais sublime que a razão, a qual, quando cresce e se
aperfeiçoa denomina-se acertadamente de sabedoria? E se nada há
de superior à razão e que esta é encontrada no homem e em Deus,
resulta, então, que a razão é o vinculo da primeira associação que se
estabelece entre o homem e deus. E aqueles que possuem a razão
em comum, também participam da reta razão: sendo essa a Lei, a
Lei é outro vínculo existente entre os homens e os deuses. Os que
possuem a Lei em comum também participam do em comum do
Direito, e os que compartilham da mesma Lei e do mesmo direito
devem ser tidos como membros da mesma sociedade. E isso é mais
evidente quando obedecem às mesmas autoridades e se submetem
ao mesmo poder; submetem-se á existente ordem celestial, à
vontade divina e à potestade de deus Onipotente. Logo, devemos
reconhecer que nosso universo é uma comunidade única, constituída
pelos deuses e pelos homens. E enquanto nos Estados – por
motivos sobre os quais voltaremos a falar em lugar apropriado –
existem diferenças decorrentes dos vínculos de parentesco, na
Natureza essas diferenças oferecem um caráter mais grandioso e
brilhante, pois as relações familiares e gentilícias desenvolvem-se
entre homens e deuses.

Cícero em sua filosofia traz do estoicismo a crença em um universo


racionalmente ordenado, na presença da razão em todos os homens, que atribui a
cada ser sua essência e a tarefa para o qual foi direcionado durante sua existência,
e ainda na consubstancialidade dessa razão com a alma humana, ligando a ordem
da natureza com a ordem moral.

Para fundar o direito seria necessário, pois, tomar essa lei inscrita no interior
de cada homem, identificada com a razão, e explicitá-la. É a lei natural que funda o
direito possibilitando e gerando a convivência social.

O direito, inclusive o civil, é, portanto, passível de sistematização. Cícero se


mostrava desconfortável com a apresentação desconexa e confusa de um

137
Idem, p. 49-50.
76

amontoado de julgamentos particulares, ele reivindicava a necessidade de uma


exposição da jurisprudência romana em uma ordem simples, racional e clara. Sua
ideia era transformar o direito romano em um sistema ordenado para que todo
orador pudesse ter acesso e memorizá-lo.138

Essa lei para Cícero seria validada pela presença comum da razão em todos
os homens, mais que isso, se os homens partilham da mesma natureza, partilham
também do mesmo julgamento e consequentemente do mesmo direito. Nas palavras
de Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros:139

Se essa lei está inscrita na alma de todos os seres humanos,


consequentemente ela se impõe a todas as nações em todos os
tempos e lugares, revelando-se a todos da mesma forma. Desse
sentimento natural de justiça, produto da força moral que age na
consciência de todos os homens, procede o direito.
(...)
Nos textos de Cícero encontra-se a convicção da existência de um
direito fundado na natureza, expressão de uma razão divina que rege
o universo e que está presente na centelha que o homem carrega
dessa razão em seu ser. Toda norma civil deve proceder desse
direito natural, regra única, eterna e imutável que tem o próprio Deus
como autor e que se revela à razão de cada um, não tendo
necessidade de intérprete ou comentador.
Essas noções influenciaram decisivamente tanto o pensamento
cristão no decorrer do período medieval quanto os primeiros
jusnaturalistas modernos, fazendo de Cícero uma referência
obrigatória e um dos autores mais importantes da tradição
jusnaturalista.

Para os romanos o homem que vivia em sociedade estaria preso em uma


série de relações sociais, sejam elas de amizade, comerciais, morais ou de direito.
Aos preceitos que regiam todas essas relações dava-se o nome de direito.

No entanto, cumpre-nos alertar que, na realidade, os romanos antigos não


conheciam a palavra direito, a palavra utilizada na época para designar o que

138
Em 527 da era Cristã o imperador Justiniano instituiu uma comissão de ministros para sistematizar
as leis romanas com a intenção de restabelecer o antigo império. Embora o império não tenha sido
restaurado, um amplo quadro foi elaborado sintetizando o pensamento jurídico romano. Podemos
citar o Código que trazia uma coleção de constituições imperiais em vigor, o Digesto que era uma
coleção de fragmentos das obras dos jurisconsultos notáveis, as Institutas manual destinado aos
estudantes de direitos entre outros.
139
Em artigo do livro: PISSARRA, Maria Constança Peres e FABBRINI, Ricardo Nascimento. Direito
e Filosofia: a noção de Justiça na História da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 47.
77

modernamente entendemos como direito é, em latim, o vocábulo jus, como ensina


José Cretella Jr.:140

Não conheciam os antigos romanos a palavra direito. O vocábulo


cognato e etimológico deste – directus – era um adjetivo que
significava: aquilo que é conforme a linha reta. Cícero, no De natura
deorum, opõe o iter flexuosum ao iter directum, ou seja ao caminho
que é reto.
O vocábulo que traduz o nosso atual direito é, em latim, o vocábulo
jus. O vocábulo jus pertence à mesma raiz do verbo jubere, ordenar,
ou prende-se à mesma raiz do verbo jurare, jurar. Jus é o ordenado,
o sagrado, o consagrado.
Justo é o que está em harmonia com o Jus. E Justitia é a vontade
constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Direito é a arte do meu e do teu. O contrário de justus é injustus.
Tudo o que non jure fit é injúria.
Jus ou direito é o complexo das normas obrigatórias de conduta
impostas pelo Estado para assegurar a convivência dos
agrupamentos humanos.

A respeito desse jus romano podemos defini-lo como o complexo das


normas obrigatórias de conduta impostas pelo poder estatal com a finalidade de
assegurar a convivência dos agrupamentos humanos.

Na organização da civitas romana podemos fazer referência a diversas


divisões e subdivisões do direito, a mais famosa delas, no entanto, e aquela vigente
na época da República era a classificação entre jus civile (direito civil), jus gentium
(direito das gentes) e jus naturale (direito natural).

O jus civile, também chamado jus quiritium era o nome designado ao direito
destinado exclusivamente aos cidadãos romanos. Historicamente as fontes do jus
civile na República (período entre 510 a.C. e 27 a.C.) provinham dos costumes, das
leis, dos plebiscitos, da interpretação dos prudentes (sentenças ou opiniões
daqueles aos quais era permitido fixar o direito) e dos editos dos magistrados.

Cidadão romano é todo aquele que tem o direito de cidade, ou a cidadania,


adquirida por nascimento ou por transferência do domicilio para Roma, por lei, por
prestação de serviço militar, por denúncia (peregrinos que denunciavam e
conseguiam a condenação de magistrados concessionários) ou ainda por concessão
graciosa.

140
CRETELLA JR., José. Op. cit.
78

Entretanto, o cidadão romano pode deixar esse status se perder o “status


libertatis” (a condição de homem livre), ou ainda se vier a tornar-se membro de
cidade estrangeira ou sofrer alguma condenação como exílio ou deportação.

O jus gentium, por outro lado, dizia respeito as normas consuetudinárias


romanas, consideradas como comuns a todos os povos, ou seja direcionadas tanto
aos romanos como aos estrangeiros.

Os homens que não eram cidadãos romanos (lembrando que nessa


classificação não são incluídos os escravos, já que estes não eram considerados
humanos, mas res, coisas) eram divididos em duas categorias: os latinos e os
peregrinos. Os peregrinos são os estrangeiros aos quais se reconhecem alguns
direitos, já a situação dos latinos é um pouco mais intrigante, isto porque pelo direito
civil são escravos e pelo direito pretoriano são livres. Os peregrinos eram divididos
em duas classes, os ordinários e deditícios, enquanto os latinos eram separados em
três classes, os veteres, colonarii e juniani.141

O jus naturale, por fim, seria constituído de regras advindas de uma suposta
lei natural, por tanto comum a todos os seres, como por exemplo, as regras relativas
ao matrimônio, a procriação e educação dos filhos. Cretella diferencia esses três
direitos da seguinte forma:142

Difere ainda o Jus naturale do Jus civile e do Jus Gentium por suas
fontes, porque, se estes dois ramos do direito derivam do costume,
das leis, da doutrina dos jurisconsultos, o direito natural é oriundo da
razão e duma espécie de providência divina (“divina providentia”),
existindo desde épocas imemoriais, encontrando-se entre todos os
povos do mundo e reunindo, em si, o traço característico da
perenidade. Provêm da razão inspirada por uma entidade divina, é
imutável, perene, universal e perde-se na noite dos tempos
passados, projetando-se para o futuro.

141
Mais tarde o edito de Caracala concedeu cidadania a todos aqueles que se encontravam em
Roma, salvo os peregrinos deditícios. “No ano de 212 de nossa era, o imperador romano Marco
Aurélio Antonio Bassanus (que reinou de 212 a 217), o cognominado Caracala, por causa da
vestimenta típica que costumava usar, concede o direito de cidade (“Jus civitatis”) a todos os
habitantes do império exceto aos peregrinos deditícios. É o famoso “edito de Caracala ou constituição
Antonina”. (...) O fundamento da determinação de Caracala em conceder cidadania a todos os
habitantes do império, exceto aos deditícios, é de natureza marcadamente econômica, porque
contribuiu para aumentar a receita do tesouro romano, exaurido por sucessivas guerras e alimentado
quase que apenas pelos tributos lançados sobre o povo” (CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 76).
142
Idem, p. 21.
79

Cícero em sua filosofia do direito não se limitou a descrever pura e


simplesmente o Direito Romano da época, o que pretendia era buscar as raízes e
fundamentos naturais do Direito dentro de uma prospecção tipicamente filosófica.

Sobre sua intenção de estudar o direito com maior profundidade do que a


exigida pela praxes forense Cícero expõe:143

Marco: E com razão. É consenso, pois, que em nenhuma outra


espécie de discussão aparecem tão bem os dons com que a
Natureza dotou o homem, as excelentes qualidades de que se
reveste a mente humana; para que fins recebemos a vida e em que
consiste a confraternização entre os homens e de que natureza é a
associação entre eles existente. Assentadas todas essas questões,
poderemos descobrir a fonte das leis e do Direito.

Nesse sentido, prelecionam Eduardo Bittar e Guilherme de Assis Almeida:144

(...) E nesse retrocesso às causas naturais de Direito, Cícero é


obrigado a proceder a investigações aparentemente desconectadas
do fenômeno que pretende compreender e estudar. Contudo, no
fundo, o que quer Cícero é exatamente demonstrar o movimento do
cosmos ao Direito, para explicar-lhe a essência.
No cosmos é que Cícero encontra a reta razão (recta ratio) que a
tudo ordena, e de acordo com a qual se devem pautar todas as
condutas humanas.

Assim, o que Cícero ambicionava era estudar filosofia para com ela chegar
até as fontes das leis e do direito e então aplicar ao modelo romano de justiça.

3.2 A concepção de Cícero sobre o Direito

Cícero toma para si o desafio de incorporar ao direito a filosofia grega.


Tarefa difícil, pois os juristas de sua época ofereciam resistência ao pensamento
abstrato.145

143
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 46.
144
Curso, cit., p. 144.
145
Nas palavras de Cícero (Dos deveres, p. 79): “com efeito, embora nossos livros tenham suscitado
em muitos não só o gosto pela leitura, mas também o da escrita, às vezes, todavia, temo que para
alguns homens bons o nome de filosofia seja desagradável e que eles se admirem por eu devotar
tanto trabalho e tanto tempo. Eu, no entanto, enquanto a administração pública era conduzida por
aqueles aos quais se entregara, a ela dedicava todas as minhas preocupações e pensamentos. (...)
80

O filósofo pretendeu, assim, abarcar o campo completo do direito e não


apenas o conjunto das leis, costumes e jurisprudências romanos. Entendia que o
campo do direito civil romano representava apenas parte do grande campo
denominado direito. Por conta disso sua proposta era examinar o direito natural e o
direito político (normas pelas quais se deve governar as cidades), e ainda estudar e
classificar as normas que regulam as atividades privadas, ou o jus civile. Nas
palavras de Cícero:146

Ático: – Crês, pois, que a ciência do Direito não nasce do edito do


Pretor, como é pacífico hoje, ou das Doze Tábuas, como antes se
acreditava, mas dos segredos da filosofia?
Marco: – Sim, Pompônio, pois, nessa discussão, não cuidaremos de
como atuar com prudência em matéria de direito ou em dar resposta
a uma ou outra consulta. Esta é, sem dúvida uma atividade
relevante, da qual, no passado, se ocuparam muitos homens ilustres;
à qual, no presente, apenas uma pessoa se dedica com autoridade e
conhecimentos. Nossa discussão, porém, deve abarcar a totalidade
do Direito Universal e das leis; o que chamamos de direito civil ficará
relegado a segundo plano. Há que se explicar a natureza do homem
e examinar as leis pelas quais os Estados deveriam conduzir-se, as
normas e os preceitos instituídos e de uso de todos os povos, e entre
elas não serão excluídas, obviamente, as que regem a nossa
população e que denominamos de direito civil.

Cícero, percebendo a falta de uma doutrina jurídica, tentou com que


princípios fossem reconhecidos por todos os homens e que permitissem discernir o
direito natural, portanto universal e compulsório, do direito estabelecido por
deliberação, mutável no tempo e no espaço e válido apenas para uma ou outra
nação.

Em seu Tratado das Leis, Cícero desenha seu pensamento sobre o que
entende ser o direito e seu fundamento, a lei natural. Sua concepção sobre o direito
é muito influênciada pela filosofia estoica, aspecto sobre o qual Milton Valente traça
uma interessante análise:147

Pelos deuses, o que é mais desejável que a sabedoria, o que é mais elevado, o que é melhor para o
homem, o que é mais digno do homem? Assim, aqueles que a procuram são chamados filósofos,
nem outra coisa é a philosophia, se quisermos traduzir a palavra, senão a dedicação à sabedoria. E a
sabedoria é, como a definiram os filósofos antigos, o conhecimento de todas as coisas divinas e
humanas, e das causas pelas quais essas coisas são conservadas. Quem vitupera seu estudo,
sinceramente não sei o que julgaria digno de ser louvado”.
146
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 47.
147
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466.
81

Por toda a parte do tratado, repete-se esta concepção bem estoica


da Lei, razão universal imanente à natureza, fonte do Direito, dom
dos deuses ao homem, princípio de assimilação dos homens aos
deuses, da unidade dos homens entre si e com os deuses, fonte da
Religião, a própria voz de Deus, que pela natureza e pela razão dita
aos homens os seus deveres e proibições.
(...)
Essa atribuição permanece, todavia, muito genérica. Tentaremos
precisar de quem Cícero pôde receber o ensino do Pórtico. Mais uma
vez se apresenta o nome de Panécio. Com efeito, admitimos a
dependência do De Re Publica relativamente a Panécio. Ora, a
doutrina do De Legibus (I e principio de II) é a mesma que a do De
Re Publica III, o que nos leva a atribuir-lhe a mesma fonte.

No decorrer da obra, Cícero estabelece uma relação entre a imutabilidade


do direito e o Ser imutável (Deus). Tendo em vista que o homem teria recebido sua
alma como presente dos deuses, e sendo essa alma composta de parte da própria
razão universal, poderia-se afirmar que homens e deuses possuiriam algo em
comum, seriamos pois, obrigatoriamente parentes ou descendentes dos deuses.
Assim:148

Marco: – Com efeito, quando se examina a natureza dos homens,


costuma-se afirmar com razão que, depois de inúmeros movimentos
e revoluções celestes, surgiu o momento apropriado para a criação
do gênero humano, e este, plantado e disseminado sobre a Terra,
recebeu o dom divino da alma e os atributos humanos, pertencentes
à categoria das coisas mortais, que são frágeis e efêmeras; a alma,
porém, tem sua nascente em deus. Logo, afirmamos como verdade
que temos um parentesco com os seres celestiais, que somos da
mesma raça ou deles descendemos.

Deuses e homens formariam uma comunidade única sobre a qual Cícero


conclui que o homem teria duas possibilidades de atuação no mundo. A primeira é
que, como seres imperfeitos que somos poderiamos ter ideias distorcidas do bem se
nos deixassemos levar pelas paixões ou vícios. No entanto, por termos, dentro de
nós, uma centelha da divindade, poderiamos escolher o caminho da retidão e da
virtude quando nos deixassemos guiados pela razão em conformidade com a
natureza.

148
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 50.
82

Esse Deus, Ser imutável, é identificado com a ordem universal, racional, e


eterna. Trata-se de um Deus impessoal, que poderia ser entendido como a razão
inerente à natureza, uma força que permeia todo o cosmo e a ele impõe coerência.

A base do direito para Cícero estaria solidamente construída sobre a ideia


de uma razão absoluta, imanente no universo tendo por suporte a mente divina.

A finalidade dos deuses seria o governo do mundo, a essa atividade, donde


nada se produziria sem o concurso do juízo e poder divinos, Cícero convencionou
chamar de providência divina.149

Estando o homem sujeito a essa providência divina, conclui-se que a ele


resta uma única missão durante sua existência, qual seja a de agir conforme a
Natureza, executando suas leis. A virtude (e a justiça é uma delas) é a forma mais
perfeita e acabada da natureza, e seria nosso dever durante a vida desenvolvermos
nossas tendências naturais e virtuosas, pois essa é a maneira de atingirmos a
felicidade.

Cícero fundamentava esses deveres afirmando que o homem nascera para


a justiça e que o Direito estaria alicerçado na identidade de todos os seres humanos
enquanto membros dotados de uma mesma razão e com a mesma disposição para
a virtude. Desta forma, o direito não se assenta em convenções, mas na
Natureza.150

149
Idem, p. 74.
150
Nesse sentido: (Idem, ibidem): “Marco: – Certamente, grandes são as questões ora bosquejadas.
Porém, entre todas que ensejam as discussões dos doutos, nenhuma se assemelha à de
compreender plenamente que nascemos para a Justiça e que o Direito não assenta em convenções,
mas na Natureza. Tal se evidenciará a quem analisar os laços sociais e a união entre os homens.
Nada há tão semelhante, tão igual, uns aos outros, como nós entre nós. E se a depravação dos
costumes e as divergentes opiniões não deformassem e dobrassem os espíritos fracos aos seus
caprichos, todo o homem se assemelharia a todos, e qualquer definição que fosse dada a um homem
se assemelharia a todos, e qualquer definição que fosse dada a um homem serviria a todos. Tais
considerações bastam para provar que não há diferenças no gênero humano. Com efeito, a razão – a
única faculdade que nos coloca acima dos animais e nos torna capazes de inferir, demonstrar, refutar,
discutir, resolver e concluir- é, sem dúvida, comum a todos os homens, pois ainda que díspares no
saber, possuem a mesma aptidão para aprender, não apenas cada um dos sentidos capta objetos
parecidos, mas também em cada um os objetos impressionam os sentidos da mesma forma. Essas
impressões – que são as primeiras noções a que me referi- são idênticas em todos, e a mente, ao
expressar o discurso, mesmo empregando termos distintos, expressa significados semelhantes. Não
há indivíduo, pertença à raça que pertencer, que não consiga, sob a condução da Natureza, alcançar
a virtude”.
83

Assim, para a espécie humana caberia um único sistema de normas de


condutas, que forma uma única sociedade, uma única nação, uma cosmópolis. No
entanto, nos observa Marino Kury:151

Por outro lado, observa-se que, no confronto entre o direito natural e


o direito positivo, surgem dois tipos de sociedades: as sociedades
nacionais, com suas particularidades jurídicas, e a sociedade do
gênero humano, só acessível aos espíritos superiores, forjados na
filosofia, e que poderia subsistir por si mesma, sem outra legislação
que o direito natural e o direito das gentes, que é o conjunto dos
costumes universalmente aceitos. No entanto, os homens não são
tão racionais quanto exigidos pela natureza. Ao nascermos,
recebemos uma chispa da razão que, sem o auxílio de uma boa
educação, se estiola e quase se apaga: por isso, a sociedade do
gênero humano, a sociedade geral, completa-se com o esforço da
sociedade nacional, a sociedade particular, que desenvolve, em
seres da mesma espécie a humanitas, que é a virtude que consiste
em respeitar a todos os seres humanos pelo único fato de serem
nossos semelhantes.

Desta forma, o direito positivo, necessário aos homens comuns, tem a


Natureza como sua fonte e a lei natural como constituinte de um sistema de valores
absolutos. Esse direito fundamenta a reunião de homens no consentimento jurídico
e na utilidade comum possibilitando e regendo a convivencia social. Nas palavras de
Cícero:152

Marco: – Segue-se, pois que a natureza nos criou para participarmos


do direito e em comum possuí-lo. E esse é o sentimento que nesta
dissertação atribuo ao Direito quando afirmo que ele nasce da
Natureza; tanta é, porém, a corrupção que brota dos maus costumes,
fomentando e reforçando os vícios, que apaga as fagulhas da virtude
que pela Natureza e ao pensamento do poeta –“nada do que é
humano nos é estranho” – todos respeitariam por igual o Direito.
Todos receberam da natureza a razão, e por ela a Lei, que outra
coisa não é que a reta razão, quando ordena e quando proíbe. E, se
receberam a Lei, também receberam o Direito. Pois bem, como a
razão foi dada a todos, conclui-se que todos receberam o Direito.

Assim, para Cícero, o Direito não se assenta em convenções humanas mas


na Natureza. Para ele não havia indivíduo pertencente ao gênero humano que não
conseguisse sob a condução da Natureza alcançar a Justiça (“rainha de todas as
virtudes”).

151
Em Introdução à tradução de Tratado das leis, p. 23.
152
Tratado das leis, p. 53.
84

Portanto, podemos dizer que, para Cícero, a origem do Direito está na Lei
Natural, aquela lei suprema imutável, anterior a qualquer lei escrita e a existente
antes mesmo que qualquer Estado.

Desta feita, se na alma de cada ser humano essa lei está inscrita,
consequentemente ela se impõe a todas as nações independentemente de tempo e
espaço, revelando-se a todos da mesma forma. Desse modo, o Direito procede
desse sentimento natural de justiça, produto da força moral que atua na consciência
de todos os homens.

Mais tarde é possivel verificar a influência da noção de direito natural como


uma norma constituída de antemão pela natureza e não imposta pela vontade
humana nos princípios da jurisprudência romana. Exemplo disso podemos averiguar
na compilação de Justiniano (por volta de 527 da era Cristã).

Aliás, essas noções influenciaram decididamente tanto o pensamento cristão


quanto os primeiros jusnaturalistas modernos. Nesse sentido, nos ensina Alberto
Ribeiro Gonçalves de Barros:153

Nessa compilação, a expressão jus naturale aparece com mais de


um sentido. Para diferenciá-lo do direito civil, que se altera conforma
a vontade do legislador, é apresentado como aquele constituído pela
providência divina, permanecendo sempre firme e imutável (Institutas
1,1,2,11). Acrescentando-lhe um fundamento moral, o jurisconsulto
Paulo afirma que o direito natural sempre estabelece aquilo que é
equitativo e bom, enquanto o civil baseia-se num critério utilitário
(Digesto 1,1,11). Ulpiano, por sua vez, define jus naturale como
aquilo que a natureza ensinou a todos os seres animados, sendo
comum a todos ser vivo, inclusive os irracionais (Digesto 1,1,1). Isto
implicava admitir que o direito natural era uma espécie de instinto,
presente em todas as criaturas (Institutas 1,2 pr.). Já Gaius limita o
jus naturale apenas ao gênero humano, concebendo-o como um tipo
de direito ideal, chamado também às vezes de jus gentium no seu
sentido mais amplo (Digesto 1,1,9).

3.3 A concepção de Cícero sobre as Leis

Como já vimos, o Tratado das Leis complementa o Da República, e da


leitura de um e de outro depreendemos que a noção de res publica leva-nos a de
jus, e esta a de lex. Podemos dizer que o Direito, que vem da Lei, é o laço de
coesão da sociedade.

153
Artigo do livro: PISSARRA, Maria Constança Peres e FABBRINI, Ricardo Nascimento. Op. cit., p.
48.
85

Após afirmar que os estudos dos princípios de direito começam pelo estudo
da Lei, razão suprema gravada na natureza, que ordena o que devemos fazer e
proibe o contrário,154 Cícero desenvolve no decorrer de sua obra uma Teoria das
Leis em que examina temas como: o poder da divindade, a condição e a
solidariedade humanas, os julgamentos morais e os princípios que levam a harmonia
social, a Natureza como parâmetro da Lei, a harmonização das diversas correntes
filosóficas, e por fim a filosofia como fundamento supremo das leis. define a Lei
natural da seguinte forma:155

Marco: – Parece-me, então, pelo ensinamento dos sábios mais


eminentes, que a Lei não é produto da natureza humana, nem da
vontade popular, mas é algo eterno, que rege o Universo por meio de
sábios mandamentos e sábias proibições; essa Lei, como se
costuma dizer, é tanto a primeira como a última, identifica-se com a
mente divina, quando, racionalmente, proibindo ou permitindo, dá
impulso a todas as coisas. Portanto, é lícito louvar uma Lei que é um
presente dos deuses ao gênero humano, porque é a razão e o
pensamento de um ente sábio, apropriada a dar ordens permissivas
ou proibitivas.

O conceito de lei que Cícero pretende trabalhar em sua obra é, pois, o


conceito de Lei Natural, fundamento do Direito Natural. Para ele o significado de Lei
Natural encontra-se acima das legislações particulares, é inerente à natureza moral
do homem e ainda está em conformidade com a estrutura racional do universo. 156

Desta maneira a lei positiva deve ser apenas reflexo da Lei Natural, se assim
o for será elaborada visando o bem dos cidadãos e do Estado, trazendo-lhes
segurança, tranquilidade, felicidade. Além disso, havendo confronto entre elas
privilegia-se, obviamente, a lei natural.

Cícero distingue as leis positivas (ou o direito civil) da lei natural. A primeira
garante aos cidadãos a igualdade de direitos e decorre do direito natural ou do

154
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 48: “De momento examinaremos os princípios básicos
do Direito. Aos autores de nomeada agrada começar pela Lei e, certamente, não se equivocam, a Lei
for a razão suprema, impressa na natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário.
Essa mesma razão, quando fixada e desenvolvida na mente humana, converte-se na Lei”.
155
Idem, p. 71.
156
Na concepção de Milton Valente a fonte do pensamento de Cícero sobre as leis é estoica: “Essa
deve procurar-se muito provavelmente entre os estoicos. Por toda parte do tratado, repete-se esta
concepção bem estoica da Lei, razão universal imanente à Natureza, fonte do Direito, dom dos
deuses ao homem, princípio de assimilação dos homens aos deuses, da unidade dos homens entre
si e com os deuses, fonte da Religião, a própria voz de Deus, que pela natureza e pela razão dita aos
homens os seus deveres e proibições” (VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466).
86

sentimento natural de justiça. Já a segunda é a fonte do próprio direito natural, laço


de coesão da sociedade e da cidade. Podemos dizer, pois que as leis positivas
exprimem o direito enquanto a lei natural o estabelece.

No entanto, ambas as acepções de Lei são, para Cícero, o discernimento do


justo e do injusto, o ato de mandar fazer o bem e proibir o mal, ou seja, a reta razão
mandando e proibindo. Como a reta razão está presente em todos pela natureza, a
todos foi, também, dado o direito. Nas palavras de Cícero:157

(...) Se tudo o que foi dito é certo, como creio que genericamente o é,
a origem do direito está na Lei. Ela é a força da Natureza; ela, a
mente e a razão prática; ela, o critério do justo e do injusto. Porém,
como essa discussão versa temas de interesse popular,
popularmente devemos nos expressar, denominando de lei a
disposição escrita que autoriza ou proíbe o desejado objeto. Assim,
para definir o Direito, o ponto de partida será aquela Lei suprema que
pertence a todos os tempos e já estava em vigor quando não existia
lei escrita, nem Estado constituído.

Podemos afirmar que as leis do Estado, que ensinam publicamente a vida


virtuosa em sociedade, derivam da lei Natural, e esta ensina ao íntimo de cada
homem o caminho da virtude.

A Lei Natural teria o condão de mandar e ser imperativa, pois surgiria


espontaneamente de uma razão derivada da natureza. Assim, temos que a Lei é a
razão suprema, impressa na natureza que ordena o que se deve fazer e proíbe o
contrário. Essa razão quando fixada e desenvolvida na mente humana converte-se
em Lei.

Portanto, aquele que ignorar os comandos da Lei Natural estará sendo


injusto já que ela é o próprio critério do justo e do injusto, assim Cícero ensina:158

Na verdade existe um só direito, aquele que une a sociedade


humana e que nasce de uma só lei; e essa Lei é a reta razão,
quando ordena ou proíbe. Quem a ignorar é injusto, esteja ou não
escrita em algum lugar. Se a Justiça consistisse em obedecer às leis
escritas e agir conforme as instituições dos povos, como julga a
mesma escola, tudo seria medido pelo padrão de utilidade e qualquer
um, quando lhe fosse proveitoso, poderia ignorar ou violar as leis.
Resulta daí que não existe justiça se não assentada na Natureza, e
que a Justiça fundada na utilidade acaba com qualquer justiça. Se a
Natureza não for a base do Direito, acabam todas as virtudes.

157
(CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 48.
158
Idem, p. 57.
87

Cícero entende ainda que o único parâmetro para distinguir uma lei boa de
outra má é Natureza, e não as convenções humanas. Para ele, quem entende o
contrário, ou seja, que o parâmetro seria as convenções é insano e distante da
sabedoria. Assim:159

Porém, para distinguir a lei boa da lei má não há outro parâmetro que
não a Natureza. É a Natureza que permite distinguir entre o justo e o
injusto, entre o honroso e o desonroso, por nos ter dotado de igual
inteligência e nos ter capacitado para relacionar o honroso com a
virtude e o desonroso com o vício.
Somente um insano poderá crer que essas distinções assentam-se
em convenções e não na Natureza.

Desta forma, é na lei Natural que reside e prevalece a justiça. Por conta
disso e pelo fato de a lei Natural ter existência anterior ao homem, é que a ela deve
o homem recorrer para guiar-se na construção de suas artificiais estruturas de
organização social, uma vez que viver em sociedade é uma necessidade natural do
ser humano.

Essa lei Natural deve ser a orientação do homem em suas leis civis também
porque, enquanto pertencentes ao gênero humano, comungamos das mesmas
dificuldades, limitações, dons, enfim da mesma condição humana. E essa lei Natural,
fonte do direito, reside numa razão natural e não em convenções humanas, do
contrário estariam também submissas às fraquezas do pensamento humano.

Cícero entendia que, se a sociedade estivesse ordenada dessa maneira, de


acordo com a natureza, o homem conseguiria, com mais facilidade, encontrar a
felicidade. Do contrário, se desvirtuasse de tal ética natural não alcançaria nem
realizaria a felicidade. Portanto, para ele, não haveria felicidade sem uma boa
constituição política, sem uma sábia e bem organizada República.

Mesmo não havendo leis escritas que exprimam o direito é possível


perceber a presença da lei eterna, que governa a todos. Quando, por exemplo, um
indivíduo comete um crime que não tenha previsão na lei dos homens, é possível
reprovar essa conduta e identifica-la como distante do bem, pois a noção intuitiva de
bem é anterior a qualquer lei. Com relação a esse tema, para reforçar suas ideias,

159
Idem, p. 58.
88

Cícero descreve o exemplo ocorrido durante o reinado de Lúcio Tarquínio onde


apesar de não haver, naquela época, lei escrita que proibisse o estupro, o atentado
de Sexto Tarquínio contra Lucrécia, filha de Tricipitino, foi certamente uma violação
da Lei eterna. Isso porque, existia uma razão derivada da natureza das coisas, que
incitava o homem ao bem e o afastava do mal, que não necessitava ser escrita para
existir e ter validade.160

O papel das leis humanas seria, pois, constituírem um estímulo para os bons
e um desestímulo para os maus, e o critério para a diferenciação de ambos, como já
vimos, é dado pela Natureza e não pela convenção humana. E, para que as leis
positivas atinjam sua finalidade, devem estar em conformidade com a Lei Natural.

Dessa forma, a razão deve se sobrepor às fraquezas e defeitos humanos


para conseguir a efetiva implantação da ordem entre os homens, de acordo com a
lei natural. E essa sociedade guiada pela reta razão possibilitaria ao homem
alcançar a felicidade e paz de espírito.

A lei seria para a sociedade o mandamento de ordem, de retidão, de


prudência onde residiria o princípio de igualdade e de justiça. Tal lei, é uma
convenção necessária, pois, ela ordena a República para que esta alcance seus
fins.

Desta forma as leis humanas, quando constituídas em conformidade com a


Lei Natural, são necessárias para a República, e esta é necessária aos homens,
uma vez que eles possuem um instinto de sociabilidade fundamento da utilidade
comum do viver agrupado em sociedade.161

3.4 A concepção de Cícero sobre a Justiça

Cícero cuida da justiça em seus três tratados, mas aprofunda-se no tema em


sua obra Dos Deveres na qual trata da ética prática, que aconselha com base no
honesto e útil.
160
O mesmo acontece com o tema da Antígona na Grécia como exemplificado em nota no início
desta dissertação.
161
Nesse sentido, Eduardo Bittar e Guilherme de Assis Almeida: “(...) Nesse sentido, o povo é a alma
da criação e do sustento da República. É na República, e não fora dela, é com as leis, e não a sua
revelia, que se encontra a felicidade e a realização ética humana. Nisso há ordem, nisso há justiça,
nisso há lei natural, nisso há razão divina. É com o direito que se realizam o estado, a República, o
cidadão e o homem. A República pressupõe Direito, e o direito pressupõe leis, e as leis pressupõem
leis naturais, e as leis naturais pressupõem Deus”.
89

Logo no Livro I Cícero divide a força e a natureza do “honesto” em quatro


virtudes principais (a sabedoria, a justiça, a coragem ou magnanimidade e
temperança) e descreve as obrigações, ou deveres, inerentes a cada uma delas. 162

Diferentemente dos gregos que optavam pela unidade das virtudes e em sua
indivisibilidade e ainda dos estoicos que entendiam estar todas as virtudes contidas
na virtude suprema, qual seja o acordo consigo mesmo, Cícero não receia tratar as
virtudes separadamente. Muito embora entenda que uma virtude possa existir sem a
outra esta não seria nem verdadeira nem aceitável.163

Por meio da ética, o homem pode refletir sobre sua natureza, esta lhe desvela
o lugar em que ocupa na escala dos seres, sua posição no cosmo, o papel que lhe é
dado e que ele deve desempenhar. Quando o homem toma consciência disso
adquire o sentimento de sua dignidade e com ele a obrigação de se conformar a ela.
Conservar essa posição é o que Cícero considera honesto e conveniente. Tender
para essa posição de dignidade seria a virtude e manter-se nela o bem supremo, fim
último do ser humano e seu dever. Em suma, a virtude seria a natureza perfeita e
elevada ao seu grau supremo, ou a própria reta razão.164

Diferente do animal que é um “ser acabado” e que, portanto nasce e morre


igual, o homem pode durante sua existência fazer a si mesmo. Sua virtude está em
conquistar a si próprio, desenvolvendo sua natureza, vivendo segundo sua razão,
dessa forma ele buscará os objetivos elevados propostos pela razão: o honesto.

Desses quatro elementos formadores do honesto decorrem também deveres.


Perquirir, todos os deveres tem por efeito a manifestação da natureza em toda sua
plenitude.

Os estoicos concebem a justiça como a capacidade de dar a cada um o que é


seu. Percebe-se que Cícero assimila essa definição estoica e por isso compreende a
justiça como uma virtude essencialmente social, de forma que a sociedade dos
homens e a comunidade da vida se agrupam em torno dela.

162
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 11: “Embora essas quatro partes estejam ligadas e
implicadas entre si, todavia, de cada uma nascem certos tipos de deveres (...)”.
163
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 124-125: “Para Aristóteles, a virtude era a atividade da razão na
busca da felicidade. Mas a hierarquia dos bens, mantida pela doutrina peripatética, supunha uma
hierarquia correspondente das virtudes, cuja classificação já fora dada no Filebo. Para Zenão, todas
as virtudes estavam contidas na virtude suprema, que era o acordo consigo mesmo”.
164
Idem, p. 135-136.
90

Para Cícero, o instinto social não tem por base o utilitarismo e o egoísmo, ou
seja, a comunidade e a sociedade não se implantaram entre os homens em razão
das necessidades da vida, mas sim de maneira altruísta e desinteressada. Assim, a
utilidade comum não é a soma dos interesses individuais, mas das obrigações que
cada indivíduo deve a todos por natureza. Nesse sentido exemplifica Cícero: 165

E não é verdadeiro o que dizem alguns: que, por causa da


necessidade de vida, a natureza, desejando que não pudéssemos
conseguir e produzir algumas coisas sem o concurso dos outros,
haveria por isso instituído a comunidade e a sociedade dos homens.
Se as coisas que dizem respeito à alimentação e ao cultivo, como
que por um toque divino, como se diz, nos fossem fornecidas, então
o homem de grande engenho, abandonando todos os negócios,
colocar-se-ia de corpo e alma no estudo e na ciência. Ora, não
assim: a fim de evitar a solidão, ele procuraria um companheiro de
estudo, em seguida desejaria ensinar, aprender, ouvir, falar. Logo,
todo dever que promova a união dos homens e proteja a sociedade
será anteposto ao que protege e promove o conhecimento e a
ciência.

Dessa forma, a Justiça não é encarregada da arbitragem dos direitos


individuais, ao contrário a sua finalidade é promover o Bem comum do corpo social
por inteiro. Assim, a sociedade não seria fruto de um contrato utilitarista, mas sim um
fato de natureza.

A partir da definição estoica lato sensu de Justiça Cícero deduz outras


concepções que poderíamos chamar strictu sensu, ligando a noção de justiça ao ato
de julgar.

No direito romano utiliza-se a expressão “homem bom” para designar uma


cláusula contratual na qual em caso de litígio seriam submetidos ao julgamento de
um “homem bom”166 (Digesto, XIX, 2.24). Assim, pela expressão se entende aqueles
homens justos no ato de julgar. Cícero entendia que para a realização da justiça era
imprescindível a qualidade moral do julgador. Assim, aquele que julga ou decide
deve, acima de tudo, perquirir a virtude e seus deveres.

Para Cícero, justiça e liberdade eram partes de uma única virtude


denominada communitas traduzida como o sentimento da comunidade humana e as

165
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 76, Livro I, 158.
166
Idem, p. 13: “(...) Tal princípio se divide em duas partes: a justiça, em que o esplendor da virtude
atinge o ponto máximo e a partir da qual os homens são chamados bons, e, vinculada a ela, a
benevolência, que também pode ser chamada bondade ou liberalidade”.
91

obrigações que dele brotam. Essa virtude se parece bastante com o sentimento de
ternura que nasce do sentimento de pertença a uma família de sangue e se expande
a toda a comunidade humana. Segundo Milton Valente:167

É a virtude que faz as pessoas de bem, aqueles homens, cujas


virtudes amáveis tornam para todos a vida mais suave, que atraem a
afeição do povo, porque se empenham em ser úteis a todos, a
confiança, pelo fato de serem pessoas de boa-fé, de uma reputação
de equidade acima de toda suspeita, e que, pela mesma razão,
despertam a esperança dos cidadãos e dos oprimidos. É, ainda a
virtude que faz os homens justos, dignos de serem elevados às
honras e aos cargos públicos em virtude de seu renome, ás funções
que os mesmos ambicionaram, uma vez que não há cidadãos mais
preocupados do bem público nem mais devotados ao Estado.

Para Cícero a liberdade subtrai da justiça sua aridez jurídica infundindo-lhe


inclinações altruístas. Cícero enuncia ainda duas regras da justiça: a) não prejudicar
a ninguém e; b) usar os bens comuns como comuns e os particulares como
particulares. Nas palavras de Cícero:168

O primeiro ditame da justiça é ninguém prejudicar a outro, a não ser


quando provocado por um ato injusto; depois, utilizar as coisas
comuns em prol das coisas comuns e as coisas privadas em
benefício próprio. Ora, nada é privado por natureza, mas por
ocupação antiga, como se deu com aqueles que chegaram outrora a
lugares desertos ou tomaram terras pela força das armas, quando
não em virtude de lei, convenção, condição e partilha, daí o resultado
que Arpino seja dita dos arpinates e Túsculo, dos tusculanos. Assim,
como das coisas que por natureza eram comuns uma parte tocou a
cada qual, conserve ele o que lhe coube; se alguém lançar mão
desse patrimônio, violará o direito da sociedade humana.

Com relação à primeira regra é possível contrariá-la (injustiça) de duas


maneiras: fazendo diretamente o mal a alguém ou não impedindo, quando for
possível, o mal causado por outra pessoa. Tal regra possui uma reserva, qual seja, é
preciso não praticar o mal a alguém caso não se encontre sob pressão de um ato
injusto.169

167
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 175.
168
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 13, Livro I, 20.
169
Afirma Cícero (Idem, p. 14, Livro I, 23): “Há dois gêneros de injustiça: o daqueles que a produzem
e o daqueles que, podendo, não repelem a injustiça praticada por outrem. Pois quem ataca
injustamente alguém, atiçado pela ira ou outra perturbação, parece dirigir as mãos contra o
companheiro; e quem não se defende nem se opõe, quando pode, à injustiça, tanto está em falta
quanto se abandonasse os parentes, os amigos ou a pátria”.
92

As duas maneiras acima descritas de injustiças seriam resultado de uma ação


movida pelas paixões tais como a ira, o medo, entre outras.170 Há na injustiça, uma
que é menos grave (culposa) e outra mais grave (dolosa), a primeira é ocasionada
por alguma perturbação de ânimo enquanto a segunda se pratica de maneira
intencional e premeditada.171

A forma de injustiça dolosa pode ser praticada de duas maneiras: por fraude,
em que o indivíduo se faz passar por homem bom, ou por violência.

Tendo em vista que a natureza não elenca os bens de cada indivíduo, cumpre
aos homens estabelecer compromissos entre si de fidelidade recíproca para
garantirem a propriedade particular. Daí decorrer para Cícero o fundamento da
justiça como a boa-fé, a sinceridade e fidelidade nas palavras e convenções:172

O fundamento da justiça é a fé, ou seja, a verdade e a constância em


palavras e acordos. Assim, embora isso possa parecer muito
grosseiro a alguns, ousemos imitar os estoicos, que dedicadamente
investigaram a origem das palavras, e acreditemos na “fé” (fides),
assim chamada porque “faz” (fiat) o que foi dito.173

Sobre as contribuições ciceronianas acerca da boa-fé e da fraude nos ensina


Olney Queiroz Assis:174

Cícero presta uma grande contribuição ao direito romano ao elevar


as noções de fraude e de boa-fé ao patamar da filosofia. Ele
descreve a tarefa da filosofia como a de elevar a conduta humana
até o padrão estabelecido pela lei natural, mas também pensa que os
códigos legais humanos devem aspirar tal padrão. A Cícero parecem
óbvias as conexões desses conceitos (bona fides dolum malum) com
a justiça. O conflito se estabelece entre honestidade e utilidade, isto
é, entre a justiça e o interesse próprio. A aparência de utilidade
n’alguns contratos leva Cícero a tratar dos problemas da fraude e da
boa-fé, campo em que o direito romano faz enorme progresso nesse
período (século I a.C.) graças aos editos dos pretores, que criam

170
Idem, p. 15, livro I, 24: “As injustiças praticadas com a finalidade de prejudicar são, muitas vezes,
motivadas pelo medo, pois o homem que cogita no dano alheio receia que, a menos que o inflija, ele
próprio o sobre. E a maior parte agride para promover a injustiça, buscando alcançar aquilo que
cobiça – vício em que é patente a avareza. (...) Muitas pessoas se deixam arrastar a um ponto tal que
esquecem a justiça, quando cedem ao desejo de comandos, honras, glórias”.
171
Idem, p. 16: “Em toda a injustiça, interessa muitíssimo qual destas duas circunstâncias ocorre: se
a injustiça se dá por alguma perturbação do ânimo, frequentemente passageira, ou de propósito e
caso pensado. Menos grave, com efeito, é o que acontece em consequência de um movimento
repentino do que o fruto da meditação e do preparo. Mas sem dúvida já discorremos o suficiente
sobre a prática da injustiça”.
172
Idem, p. 13, Livro I, 20.
173
Nas palavras de Cícero (Idem, p. 14).
174
Op. cit., p. 401.
93

novos tipos de ações. Na época de Cícero são formuladas várias


ações legais oferecendo proteção contra a “fraude maliciosa”.

Percebemos, pois, que a virtude da justiça para Cícero estaria ligada à noção
estoica de dar a cada um o que é seu, e vinculada também à ideia de liberdade, pois
apenas com ela seria possível ao homem desenvolver essa virtude essencialmente
social. Daí a defesa da República de Roma, que como vimos, é apresentada por ele
como modelo da melhor forma de governo, baseada em sua teoria mista (ou seja,
um governo que une ao mesmo tempo a unidade da monarquia, a excelência da
aristocracia e o consenso da democracia).175

175
DE CICCO, Cláudio e AZEVEDO GONZAGA, Alvaro. Teoria Geral do Estado e Ciência Política.
2. ed. São Paulo: RT, p. 195.
94

CONCLUSÃO

Com o intuito de encaminhar nossas considerações finais expomos, de


acordo com a sequência apresentada ao longo do presente trabalho, os aspectos
mais relevantes e as principais conclusões.

Esboçamos no primeiro capítulo da pesquisa o perfil histórico-biográfico de


Marco Túlio Cícero apresentando elementos de sua vida nos âmbitos particular e
público, estudando o meio ao qual estava inserido, qual seja a República Romana,
com a finalidade de compreender melhor a atmosfera cultural e histórica que marcou
seu pensamento.

Disso percebemos que Cícero foi um advogado de grande atuação política


em sua carreira pública, com oratória e eloquência inigualáveis. No entanto, sentiu
necessidade de se aproximar da filosofia para aprimorar suas qualidades de
jurisconsulto, buscando nela uma ferramenta para compreensão do direito e da
justiça. Nesse campo teve bastante contato com o estoicismo, principalmente no
período médio, com Panécio e Posidônio, que o inspiraram na formação de seu
pensamento sobre o Direito Natural, Lei Natural, e sobre a Justiça.

Ainda no primeiro capítulo discorremos um pouco sobre os três tratados de


Cícero utilizados no decorrer do trabalho. São eles, Da República, Das Leis e Dos
Deveres, que juntos formam um conjunto de orientações para a regeneração da
classe governante de Roma, fundindo preceitos da filosofia grega aos valores
tradicionais dos estadistas romanos.

Em seguida passamos a analisar elementos da doutrina estoica, uma vez


que essa escola influenciou as posições de Cícero sobre o direito e a justiça. Sobre
tal escola, em um primeiro momento relatamos seus três períodos e seus principais
representantes. Em seguida trabalhamos as ideias da física, da lógica e da ética
estoicas.

Vimos que a física estoica se baseia na afirmação da existência de uma


razão universal presente em todas as coisas e que se governa através de um
95

conjunto de leis que se encadeiam de maneira necessária e harmoniosa. Para


conhecer essa natureza era preciso uma linguagem, papel esse que caberia a
lógica. E por fim, viver de maneira ética seria viver de acordo com a natureza. Esta
virtude residiria na conformação à ordem natural das coisas, o que levaria o homem
à felicidade.

Estudados alguns pontos da filosofia estoica, o último capítulo do trabalho se


dedicou ao estudo das ideias de Cícero acerca do Direito, das Leis e da Justiça.

Cícero, em sua filosofia, traz do estoicismo a ideia de um universo ordenado


por uma razão universal, presente também em todos os homens, capaz de atribuir a
cada ser sua essência e a tarefa para o qual foi direcionado durante sua vida.
Também entende que essa razão se consubstancia com a alma humana, ligando a
ordem da natureza com a ordem moral.

Desta maneira entendia Cícero que para fundar o direito seria necessário
pois, tomar essa lei inscrita no interior de cada homem, identificada com a razão, e
explicitá-la. Assim, a lei natural é a fonte do direito e possibilita e gera a convivência
social.

Com relação à justiça, Cícero a compreende como a virtude de dar a cada um


o que é seu. Tal virtude, no entanto, estaria intrinsecamente ligada à ideia de
liberdade. Assim, para desenvolver a justiça – que em essência é social – é
necessária uma forma de governo onde haja liberdade. Daí a defesa da república
romana, considerada por ele modelo da melhor forma de governo, validada por sua
teoria mista (aquele governo que une ao mesmo tempo as qualidades dos três
governos: a unidade da monarquia, a excelência da aristocracia e o consenso da
democracia).

Assim, a partir dessas observações concluímos que, a filosofia da justiça na


obra de Marco Tulio Cícero é uma valiosa contribuição para a construção de uma
ideia de justiça como virtude intimamente ligada a própria liberdade, e que
reverberará posteriormente no cristianismo, na formação do conceito de dignidade
humana e os próprios direitos humanos.
96

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