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PUC-SP
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
São Paulo
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
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II. Mas, não é bastante ter uma arte qualquer sem praticá-la. Uma
arte qualquer, pelo menos, mesmo quando não se pratique, pode ser
considerada como ciência; mas, a virtude afirma-se por completo na
prática, e seu melhor uso consiste em governar a República e
converter em obras as palavras que se ouvem nas escolas. Nada se
diz, entre os filósofos, que seja reputado como são e honesto, que
não o tenham confirmado e exposto aqueles pelos quais se
prescreve o direito da República. De onde procede a piedade? De
quem a religião? De onde o direito das gentes? E o que se chama
civil, de onde? De onde a justiça, a fé, a equidade, o pudor, a
continência, o horror ao que é infame e o amor ao que é louvável e
honesto? De onde a força nos trabalhos e perigos? Daqueles que,
informando esses princípios pela educação, os confirmaram pelos
costumes e os sancionaram com as leis. Perguntando-se a
Xenócrates, filósofo insigne, que conseguiam seus discípulos,
respondeu: “Fazer espontaneamente o que se lhes obrigaria a fazer
pelas leis”. Logo, o cidadão que obriga todos os outros, com as
penas e o império da lei, às mesmas coisas a que a poucos
persuadem os discursos dos filósofos, é preferível aos próprios
doutores. Onde se poderá encontrar discurso de tanto valor que se
possa antepor a uma boa organização do Estado, do direito público e
dos costumes? Assim, julgo preferíveis as cidades magnas e
dominadoras, como as denomina Ênio, aos castelos e praças fortes;
creio, igualmente, que, aos que governam a República com sua
autoridade, se deve antepor a sabedoria dos peritos em negócios
públicos. Já que nos inclinamos a aumentar a herança da
humanidade; já que para isso se encaminham nossos estudos e
trabalhos, estimulados pela própria natureza, e mais, para tornar
mais poderosa e opulenta a vida do homem, sigamos o caminho que
os melhores empreenderam, e não escutemos as vozes e sinais que
nos chamam por detrás e a que os nossos predecessores fecharão
os ouvidos.
MARCO TÚLIO CÍCERO
Da República, p. 10
Dedico esse trabalho àquilo que entendo ser a expressão do divino, princípio
de ordem presente em toda criatura, que nos inspira a viver de maneira íntegra,
humana, que nos preenche de amor, vigor e coragem e que nos faz irmãos de
tudo o que é vivo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, meu pai e melhor amigo, pelo dom da vida, por
me fazer sempre acreditar e me encantar com o ser humano.
A minha família, meu bem mais precioso, que por dois anos aceitou
minha ausência, me apoiando em tudo de maneira incondicional.
Aos meus amigos Rui, Júlia, Camila, Henrique, Álvaro e Nathaly pelo
suporte nas incontáveis dúvidas e inseguranças acadêmicas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
2 CÍCERO E O ESTOICISMO:
INFLUÊNCIAS DO ESTOICISMO EM SEU PENSAMENTO
SOBRE O DIREITO E A JUSTIÇA ........................................................................... 54
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 94
INTRODUÇÃO
revestido em uma linguagem para que fosse comunicado aos demais homens, papel
esse que caberia a lógica estoica.
Para fundar o direito seria necessário, pois tomar essa lei inscrita no interior
de cada homem, identificada com a razão, e explicitá-la. É a lei natural que funda o
direito possibilitando e gerando a convivência social.
Cícero iniciou sua carreira de advogado aos vinte e seis anos e logo
conquistou respeito e admiração dos romanos ao ganhar uma nobre causa na qual
defendeu Róscio da acusação de parricídio feita por Sila, verdadeiro autor do
assassinato. Temendo possível vingança do ditador, diante do êxito do deslinde,
Cícero sai de Roma e passa a viver na Grécia.
Sua ida para a Grécia é relevante pois nos mostra como os Romanos,
inclusive o próprio Cícero, foram forjados no pensamento grego, que representa
ponto inicial de tudo aquilo que se relaciona com o político, jurídico e social em
Roma. Nesse sentido José Reinaldo de Lima Lopes:2
1
CHAUI, Marilena. Introdução à história da Filosofia – As escolas helenísticas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. v. 2, p. 223.
2
O Direito na História – Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, p. 58.
15
Em Atenas teve contato com Antíoco que na época se aproximara mais dos
dogmas estoicos deixando de lado a nova Academia e a escola de Carneades.
Ansiando voltar a Roma e tomar parte nos negócios públicos, Cícero entendeu por
bem desenvolver mais suas faculdades de eloquência e retórica frequentando, para
tanto, as aulas dos asiáticos Xenócles, Dionísio e Adramita.
3
Introdução ao estudo do Direito: Técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, p. 35.
16
Sua popularidade teve o ponto mais alto quando ganhou uma causa contra
Verres, que fora pretor na Sicília e que, no exercício da função, extorquira a região
apoiado pelos patrícios. Em sua atuação nessa causa produziu discursos que
ficaram conhecidos como Verrínas, onde em algumas célebres passagens se opõe
a corrupção que dominara a República. Conseguiu a condenação de Verres, apesar
dos esforços dos pretores em proteger o acusado protelando o processo, adiando
audiências etc.
4
PLUTARCO. Vidas paralelas. Trad. Gilson Cardoso e notas de Paulo Peixoto. São Paulo: Editora
Paumape, v. 5, p. 3. Digitalizado por consciencia.org.
5
Sobre a organização política de Roma na República afirma Cretella Jr. (Curso de Direito Romano.
31. ed. São Paulo: Forense, p. 32): “Os cônsules são dois, mas o grande desenvolvimento da
população romana exige que as funções consulares se repartam por outras pessoas. Criam-se, pois,
os seguintes cargos: a) questores, a que se confia a guarda do tesouro e a administração financeira;
b) censores, a quem compete o recenseamento, a escolha dos senadores, a fiscalização dos
costumes; c) edis curis; encarregados do policiamento da cidade e dos gêneros alimentícios, bem
como do comércio em geral; d) pretores, encarregados da distribuição da justiça. Primeiro, em
número de um, o cargo de pretor se desdobra, depois em dois: o pretor urbano, para as causas entre
os romanos, o pretor peregrino, para as questões entre romanos e peregrinos (= estrangeiros) ou
entre os próprios peregrinos; e) praefecti jure dicundo, delegados do pretor nas diversas partes da
Itália, encarregam-se de dizer o direito; f) governadores das províncias (protetores ou procônsules),
encarregados de distribuir a justiça”.
17
Cícero foi acusado pelos amigos de Catilina de não ter havido devido
processo na condenação de Catilina. Um desses amigos chamava-se Clódio e havia
sido acusado de sacrilégio perante o Senado por provocação de Cícero.
Inconformado com isso, Clódio realiza uma manobra e Cícero termina por se exilar
na Ásia Menor.
Na guerra civil entre Pompeu e César, Cícero apoiou o primeiro e por conta
de sua derrota exilou-se novamente, dessa vez em sua propriedade de campo em
Túsculo. Nesta época escreveu a obra Consolação inspirado pela morte de sua filha
Túlia.
6
CHAUI, Marilena. Op. cit., p. 223.
7
Cláudio de Cicco (História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo:
Editora Saraiva. 2010, p. 61) ensina acerca do segundo triunvirato: “O herdeiro de César, seu
sobrinho Otávio, juntamente com Marco Antônio, desejoso de suplantar Otávio, levou-o ao desastre
de Actium (30 a.C.), quando as legiões romanas aniquilaram as tropas que a rainha do Egito,
Cleópatra, enviou a Antônio para sustentá-lo na sua revolta contra Roma”.
18
8
Idem, p. 61.
9
Idem, ibidem.
19
10
BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de
Andrade. São Paulo: Manole, 2005, p. 102-103.
11
Op. cit., p. 105
12
Nesse sentido: REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 630; BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. A justiça em Aristóteles. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005,
p. 136.
20
Desde o cético Fílon, seu primeiro mestre, passando pelos estoicos Panécio
e Possidônio, dentre outros pensadores e escolas, influenciaram o pensamento do
grande orador, especialmente no que diz respeito à determinação da lei natural
sobre a conduta moral e ética do Homem.
13
Sobre o ecletismo ensina Marilena Chauí (op. cit., p. 227): “Estamos habituados a tomar o
ecletismo como a mistura um tanto desordenada de opiniões e formas de conduta vindas de
diferentes origens e nem sempre concordantes. Não é o caso. O termo grego eklegein significa
selecionar e reunir as partes selecionadas. O ecletismo é um método que seleciona e escolhe teses
oriundas de sistemas diversos reunindo-as num todo novo e original. Cícero é um eclético, mas, como
explica Milton Valente, um eclético acadêmico, ou seja, inspirado no probabilismo razoável de
Carnéades – isto é, o método do pró e contra – e na dialética socrática. Examina teses de diferentes
procedências, busca o ponto em que se contradizem e em que concordam, determina qual delas é
superior à outra e a adota, modificando seu sentido inicial graças à sua articulação com outra, de
origem diferente, também escolhida como a melhor. O confronto das opiniões não leva à suspensão
do juízo, mas à descoberta do provável e do verossímil, que podem ser aceitos sem risco de
dogmatismo. Cícero trabalha sobre o dissenso para chegar ao consenso. É esse procedimento
metódico que vem se exprimir sob a forma do diálogo”.
14
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 628.
15
Importante exemplo é extraído da tragédia Antígona escrita por Sófocles em 442 a.C. A peça
apresenta a discussão acerca do conflito entre as leis divinas e as leis humanas. Nela, a personagem
principal, Antígona, filha de Édipo e Jocasta, e sobrinha de Creonte retorna com sua irmã a Tebas
após a morte de seu pai em Colono. Em Tebas seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, possuíam um
acordo de revezarem-se no poder, no entanto o pacto fora descumprido motivando Polinices a iniciar
uma luta contra o irmão que termina de maneira trágica com a morte de ambos. Diante do ocorrido
Creonte toma as rédeas do poder, ordena funerais de honra a Etéocles a qual afirma ter sido morto
defendendo Tebas e proíbe o sepultamento de Polinices por ter lutado contra a cidade. Antígona
então desobedecendo as normas impostas pelo tio realiza o enterro de seu irmão por entender que
essa é a vontade da lei divina, universal e superior a lei dos homens.
Sobre esse tema José Reinaldo de Lima Lopes (O Direito na História, p. 40) observa: “(...) Mas o
que é particularmente relevante é que entre o direito “dos deuses” e o direito “dos homens” abre-se
uma fenda, pela qual transitará a cultura clássica. Basta ler a Antígona de Sófocles para perceber o
conflito entre duas concepções possíveis de direito; as comédias de Aristófanes (As Nuvens, por
exemplo) ilustram a irreverência que se permitia para com os tribunais e a eloquência “forense”.
16
REALE, Miguel. Op. cit., p. 628.
21
Sobre esse tema Cícero, por meio de sua experiência como homem público,
entendia que sem o Direito não era possível organizar a vida social. Todavia essa
organização deveria ter por base o direito natural. Para Cícero o estudo do direito
não poderia ser limitado ao estudo de questões meramente casuísticas, pois o
Direito seria um dos elementos mais importantes para a manutenção da República.
Nesse passo, Cícero entendia que para conhecer o direito era necessário se
aproximar da filosofia. Para desvelar suas fontes era necessário pôr em evidência os
dons recebidos da natureza, observar as boas qualidades do espírito humano,
verificar a tarefa reservada para o gênero humano. A natureza do Direito residiria na
própria natureza humana e não nos textos jurídicos produzidos.
17
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito definições e fins do Direito. Trad. Alcidema Franco Bueno
Torres. São Paulo: Atlas, 1977, p. 109-110.
22
18
Idem, p. 107-108.
19
Importante lembrar também que, embora tenhamos utilizado algumas citações do professor Michel
Villey, em seu livro A formação do pensamento jurídico moderno ele se demonstra contrário a
ideia apresentada neste trabalho, afirmando que não há um direito natural estoico mas sim uma
confusão entre o direito e a moral. Ver p. 472 e seguintes desta obra.
23
diferentes: a monarquia (até 509 a.C.), a república (509 a.C. até 27 a.C.) e o império
(dividido entre alto e baixo império). O império bizantino sucedeu o baixo império
após a morte de Justiniano em 566.20
Foi fundada em 754 a.C. as margens do Tibre. De sua criação até 509 a.C. –
quando o rei Tarquinío foi deposto e proclamada a república – Roma tinha um
governo monárquico temperado pela influência do Senado, que escolhia um novo rei
quando este falecia.21
20
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A.M. Hespanha e L.M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. A periodificação mencionada,
baseada na forma de governo, é diferente da divisão que se faz quanto à evolução do direito romano.
Conforme preleciona John Gilissen (p. 81): “(...) Distingue-se em relação a este: – uma época antiga,
até meados do século II a.C., período do “direito romano muito antigo”, direito de tipo arcaico,
primitivo, direito duma sociedade rural baseada sobre a solidariedade clânica; – uma época clássica
(de cerca de 150 a.C. a 284 d.C.), a do “direito romano clássico”, direito duma sociedade evoluída,
individualista, direito fixado por juristas numa ciência jurídica coerente e racional; – a época do Baixo
Império, direito nascido da tripla crise do século III, política, econômica e religiosa, direito dominado
pelo absolutismo imperial, pela atividade legislativa dos imperadores, pelo Cristianismo”.
21
DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 54.
24
O Senado romano era uma assembleia política com origem nos Conselhos
de Anciãos da qual participavam os grandes chefes de família chamados de
patrícios. Diversos reis respeitaram a autoridade do Senado, podemos citar Numa
Pompílio, Túlio Hostílio, Tarquínio Prisco e Sérvio Túlio (conhecido por trazer Roma
à hegemonia e fazê-la ingressar na Liga das Sete Colinas).23
22
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade – Para uma teoria geral da política. 14. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 21.
23
DE CICCO, Cláudio. Op. cit., p. 54-55.
25
24
Idem.
25
Idem.
26
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 31. E, ainda: GILISSEN, John. Op. cit., p. 82-83.
27
Idem, p. 35. No mesmo sentido: MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed.
São Paulo: Saraiva, 1995, p. 21 e MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano – História do
Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, v. I, p. 15.
26
28
Idem, p. 15.
29
GILISSEN, John. Op. cit., p. 83.
27
Os tribunos da plebe, função criada em 494 a.C. (em 471 a.C. passaram a
ser dez), eram magistrados plebeus dotados de algumas imunidades, não tinham
autoridade sancionada pela religião e qualquer pessoa que se julgasse injustiçada
poderia procurá-los.
Desta forma, podemos dizer que em Roma havia duas cidades com
organizações paralelas, uma dos patrícios governada pelos cônsules e pelo Senado
e outra da plebe governada pelo tribuno da plebe e pelos plebiscitos.32
30
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 10.
31
Idem, p. 15.
32
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 56.
28
Tais leis representam um marco, pois a partir delas o direito, antes de caráter
privado, cuja fonte era o culto doméstico das famílias patrícias, passa a ser
público.34
A partir daí outras leis e reformas foram feitas. Podemos citar algumas como
a Lei Canuléia, 445 a.C., que permitia o casamento entre patrícios e plebeus; as
Leis Licínias em 367 a.C. que propunham que um dos cônsules fosse plebeu; a Lei
Poetélia em 326 a.C. que abolia a escravidão por dívidas. Desta forma, os plebeus
foram conquistando maior espaço na cidade, tanto no campo econômico quanto na
esfera política. Segundo Cláudio De Cicco:35
33
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 28-29.
34
Cumpre-nos informar que tais leis sofreram forte influência de Sólon: “É inegável a influência das
leis de Sólon, tanto que se chegou a pensar em simples transcrição. Mas tal não se deu: as
mudanças no conceito de direito e de lei são resultantes de uma revolução nas ideias no seio das
famílias aristocráticas romanas” (DE CICCO, Claudio. Op. cit., p. 54).
35
Idem, p. 57.
29
Tibério foi eleito tribuno da plebe em 133 a.C. e direcionou seu olhar ao
problema agrário propondo a proibição da existência de latifúndios com mais de
quinhentas jeiras, e que o excesso fosse comprado pelo Estado e redistribuído aos
soldados no final das campanhas militares. O Senado opôs-se à iniciativa e em uma
de suas sessões Tibério e seus adeptos foram assassinados.36
Seu irmão, Caio, no entanto, assim que eleito apresentou novamente a lei
agrária, e conseguiu aplicá-la ao distribuir lotes públicos em Cápua e Tarento.
36
Idem, p. 54-55.
37
As guerras púnicas consistiram numa série de três conflitos ocorridos entre 264 a.C. e 146 a.C. nas
quais Roma lutou contra a República de Cartago, cidade-estado fenícia, que acabou totalmente
destruída.
30
No ano de 121 a.C., o novo tribuno revogou toda a legislação criada por ele.
Seguiu-se então uma desordem social que foi utilizada pelo Senado como pretexto
para aprovar um decreto que concedia aos cônsules o poder de tomar as medidas
necessárias para coibir a agitação. Caio Graco então fugiu para o Monte Aventino,
onde foi atacado pelo cônsul Opímio. Embora tenha escapado do ataque, Caio
ordenou que seu escravo o matasse.
A plebe era formada por ricos (ordem equestre) e por plebeus pobres e a
aliança entre essas duas classes era algo impossível em Roma. Os cavaleiros
aliaram-se à nobreza senatorial fortalecendo-a. Dois generais tiveram destaques
nessa época: Mário e Sila.
Mário, defensor da plebe e tirano populista, foi eleito cônsul por diversas
vezes consecutivas, e foi o responsável por transformar o exército, cujos cargos
antes eram reservados apenas aos cidadãos, em popular e assalariado. Dessa
maneira, os soldados passaram a receber um pagamento, parte das conquistas e
ainda, ao final da carreira militar o direito a alguma propriedade de terra. Assim, com
a integração de novos membros no exército, ele se converteu gradualmente em
exército profissional, já que os soldados passaram a ser pagos para combater.
Em 86 a.C., iniciou-se uma guerra civil, cujo resultado a longo prazo foi a
ditadura de Lúcio Cornélio Sila. O general Sila implantou uma ditadura de caráter
conservador que perseguiu os antigos seguidores de seu antecessor. Em 79 a.C.
Sila abdicou do poder.
38
DE CICCO, Cláudio. Idem, p. 58.
39
Idem, p. 59.
32
César, nomeado governador das Gálias, segue para a região onde inicia uma
série de campanhas militares bem sucedidas. Diante do sucesso e fama que César
conquistou, Pompeu começou a recear que ele passasse a brilhar mais que os
outros membros do Triunvirato.
A morte de César gerou uma grande revolta popular, acontecimento que foi
politicamente explorado por Marco Antônio, amigo e um dos fortes generais de Júlio
33
O exército foi ganhando cada vez mais força e influência na vida política de
Roma. Exemplo dessa intervenção militar se deu no reinado de Calígula, filho de
40
Idem, p. 61.
41
GILISSEN, John. Op. cit., p. 84.
34
Com a morte de Calígula assumiu o trono seu tio Cláudio, seguido de Cláudio
Nero, famoso tirano acusado de ter matado sua esposa, seu preceptor, sua própria
mãe além de Britâncio, pretendente ao trono, Durante esse período iniciaram-se as
perseguições aos cristãos sob o pretexto de terem incendiado Roma, quando na
realidade quem o teria feito seria Nero.
42
GILISSEN, John. Idem, p. 81.
43
MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito Romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 7.
35
44
Idem, p. 8. E, no mesmo sentido: MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 32.
36
45
MARKY, Thomas. Idem, p. 10.
46
Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008,
p. 37.
37
47
Op. cit., p. 21.
48
Nesse sentido MARKY, Thomas. Idem, p. 17, e também MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p.
25: “Os juristas republicanos não formularam doutrina sobre o costume como fonte de direito, o que
somente foi realizado pelos jurisconsultos do principado. Mas em Cícero (no De inuentione II, 22, 67)
já encontramos, em virtude da influência da filosofia grega, os primeiros traços dessa construção
doutrinária: “Consuetudine autem ius esse putatur id, quod uoluntate omnium sine lege uetustas
comprobarit”. (Denomina-se direito baseado no costume o que o tempo consagrou, sem a intervenção
da lei, com a aprovação geral).
38
49
MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 26.
50
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 34.
51
Lembrando que esses magistrados eram: os cônsules, censores, pretores e governadores das
províncias. Sendo que os magistrados judiciários, aqueles investidos na jurisdicto, eram em Roma os
pretores e os edis curis e nas províncias os governadores e os questores.
52
MARKY, Thomas. Op. cit., p. 19.
39
53
CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 35.
54
LEONI, A literatura de Roma: esboço histórico da cultura latina, 1949, p. 44.
40
55
CHAUI, Marilena. Op. cit., p. 340.
56
Nesse sentido podemos citar Eduardo Bittar, Marilena Chaui, Olney Queiroz, Milton Valente, Paulo
Nader, Jean-Cassien Billier, Aglaé Maryoli.
57
“Defenda cada qual o que se pensa, pois os juízos são livres. Nós mantemos nossa posição e, não
constrangidos pelas leis de nenhuma escola particular a que forçosamente obedeceríamos, sempre
buscaremos, em filosofia, o que em cada coisa é o mais provável” (Tusculanas, IV, 4).
41
Para este trabalho procuramos dar foco nas três obras de Cícero que mais
abordam os temas da justiça e do Direito, quais sejam os três tratados intitulados:
Da República, Das Leis e Dos Deveres. Nessas três obras Cícero se utiliza dos
conceitos da filosofia estoica como fundamentos de suas conclusões.
1.5.1 Da República
58
2005, p. 39.
42
59
Estudos de história da cultura clássica – Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. v. 2, p. 151.
60
STRAUSS, Leo. Direito natural e história. Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2009, p.
134.
61
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 463.
43
62
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. São Paulo: Edipro, 2011, p. 45,
XLV.
44
Cícero termina por concluir que o regime próprio à liberdade é, por ser a única
forma de governo que consegue enfeixar o governo, o senso de justiça e ainda o
interesse coletivo, é o regime misto. Isso porque o regime misto combina as virtudes
dos demais governos, isto é, as excelências da monarquia, da aristocracia e da
democracia, que seriam respectivamente afeição ou tradição, sabedoria e liberdade.
Segundo Milton Valente nesse ponto reside a sua constatação de que Cícero
é influenciado pelos estoicos:64
63
Idem, p. 45, XLV.
64
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 461.
65
ARISTÓTELES, Política I, 1, 8 (apud VALENTE, Milton. Op. cit.).
45
O Tratado Das Leis foi escrito por volta de 53 a.C. e 51 a.C. para ser um
complemento ao seu livro Da República. Nessa obra o autor apresenta sua noção de
lei e ainda justificativas para algumas leis existentes e praticadas em Roma.
Diferente do idealismo platônico, que elaborou leis ideais para uma República
imaginária, Cícero propõe para sua República leis práticas, positivas e de inspiração
natural. A maioria das leis citadas em seu livro já eram existentes e postas em
prática na Roma republicana.66
Cícero escreveu essa obra no momento em que Roma sentia os impactos das
modificações trazidas pelas novas conquistas, a cidade independente transforma-se
no centro de um extenso Império territorial, que tinha que ser bem administrado para
ser mantido. Notando o grande desequilíbrio entre as leis vigentes e as
necessidades sociais César e Pompeu buscaram codificar as leis romanas. Com o
surgimento de leis para reger os novos conflitos e manter a ordem entre os cidadãos
66
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 134.
67
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466.
46
Dos seis livros que compõem Das leis, publicados após a sua morte, somente
os três primeiros chegaram até nós. O livro, composto na forma de diálogo entre
Cícero, seu irmão Quinto, e seu amigo Ático, se passa na propriedade do autor em
Arpino.
O primeiro dos três livros que compõem a obra inicia-se com uma discussão
acerca da verdade histórica e a liberdade poética, na qual discorrem sobre alguns
exemplos de passagens míticas da história e da literatura greco-romanas.
O autor entende ainda que há em toda alma humana uma inclinação natural
para identificar o que é certo, justo, equitativo e bom. Assim, se a lei natural
encontra-se gravada em todos os seres humanos consequentemente ela é aplicável
a todas as nações, em todos os tempos e lugares.70
Antes de iniciar os outros dois livros Cícero refuta as críticas à teoria ético-
jurídica que defende demonstrando que a maioria das escolas (salvo a epicurista)
68
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis. Trad. Marino Kury. Caxias do Sul: Educs, 2004.
Comentário a obra, p. 18.
69
“Entre todas as questões debatidas pelos sábios, certamente a mais importante é aquela que
consiste na inteligibilidade dessa verdade: somos nascidos para a justiça e o direito se fundamenta,
não sobre a opinião, mas sobre a própria natureza” (Tratado das leis, I, 28).
“(...) a lei é a razão soberana introduzida na natureza, que nos ordena o que devemos fazer e nos
proíbe o contrário. Essa razão, quando ela se apoia e se realiza no pensamento do homem, é a lei”
(Tratado das leis, I, 18).
70
BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Direito e Filosofia. A noção de Justiça na História da
filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 45.
47
Muito embora os atos religiosos fossem independentes dos atos civis, no que
tange a ritos e coação em diversos casos para eficácia plena era preciso que tais
atos acontecessem de forma concomitante, era o caso, por exemplo, das festas-
sacrifícios do calendário anual onde magistrado e sacerdote atuavam juntos.
71
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 28.
72
Idem, p. 62.
73
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004,
p. 227-228.
48
Ainda nesse livro Cícero procura mostrar aos seus amigos que a Lei não é
produto da natureza humana, tampouco da vontade popular, mas sim de uma força
que rege o Universo através de mandamentos e proibições, e essa Lei, identificava-
se com a mente divina.75
74
AGAMBER, Giorgio. Estado de exceção. Homo Sacer. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 108-109.
75
CICERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 72.
49
não foi a violação da Lei eterna? Pois, uma razão existia, derivada
da natureza das coisas, impelindo ao bem e ao mal afastando, e que
para chegar a ser Lei não necessitou ser escrita, mas que foi Lei
desde sua origem. E a sua origem é tão antiga como a mente divina.
Por isso, a Lei verdadeira e essencial, a que manda e proíbe
legitimamente, é a reta razão do supremo Júpiter.
Após reforçar a origem divina da lei, Cícero passa a expor, explicar e justificar
o mencionado código religioso. Nele trata das leis relativas ao culto dos deuses, à
organização sacerdotal, aos ritos e cerimônias religiosas.
Por fim, no terceiro livro, que começa com elogios a Platão, Cícero intenta
estabelecer o estatuto político do povo de Roma, expondo um sistema que em
pouca coisa difere do existente na República romana.
Dedica-se ainda, com maior cuidado, a tratar das diretrizes gerais do Senado,
instituição a qual pretende que seja a mais alta expressão do Estado. Dada sua
importância os decretos emitidos pelo Senado, mesmo quando não aprovados pela
maioria, devem ser reduzidos a forma escrita e mantidos, sobre o tema:77
76
Idem, p. 113-114.
77
Idem, p. 114.
50
A obra Dos Deveres (De Officiis) foi escrita em 44 a.C. em uma época de
crise política, logo após o assassinato de Júlio César e constitui a última obra
filosófica de Cícero.
Cícero dedica a obra ao seu segundo filho e único homem, Marco, que se
encontrava na Grécia estudando oratória e filosofia. Em um dos capítulos da obra
Cícero esclarece o leitor que o tratado apresentado era um substituto para uma visita
ao filho que não pôde ser realizada por motivos políticos. Sua intenção era através
desse tratado passar ao filho orientações e conselhos. No entanto, é um trabalho
feito não apenas para Marco, mas também para outros jovens romanos da classe
78
Idem, p. 116.
51
O tratado é constituído por três livros onde para os dois primeiros Cícero teria
se inspirado no famoso tratado Sobre o Dever de autoria de Panécio, aristocrata
ródio que viveu entre 180 e 109 a.C. e foi chefe da escola estoica de Atenas por
volta de 129 a.C., em razão disso percebemos a forte influência do estoicismo nesta
obra. Segundo Milton Valente:79
Os três livros tratam, cada qual, dos tipos de deliberações que governam a
conduta humana, uma vez que existindo uma hierarquia dos deveres é preciso saber
escolher um mais que outro. Os três tipos são: a honestidade (e seu contrário), o útil
(e seu contrário) e ainda a maneira correta de resolver aparentes choques entre
esses dois.80
Desta forma o que Cícero pretende é ensinar como tomar decisões morais,
como analisar diferentes caminhos possíveis de ação, enfim a sermos “bons
calculadores dos nossos deveres” (I. 59).
Trata-se de uma obra sobre ética prática com ênfase na moralidade social e
política. Muito embora Cícero apresente seus preceitos como aplicáveis a vida como
um todo seu interesse na verdade se verte para o comportamento dos homens em
sociedade. Podemos descrever o De Officiis como um manual destinado aos
membros da classe governante que versa sobre os deveres que têm para com seus
pares na vida privada e para com seus concidadãos na vida pública.81
79
VALENTE, Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: Educs, 1984, p. 424.
80
CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 229.
81 Idem, p. 424.
52
(...) Mas tudo que é honesto nasce de uma de quatro partes. Com
efeito, consiste ou no discernimento e na apreensão do verdadeiro,
ou na manutenção da sociedade dos homens, e, atribuindo-se a
cada um o que é seu, na fé dos contratos, ou na grandeza e
resistência do ânimo elevado e invencível, ou na ordem e medida de
todas as coisas feitas e ditas, nas quais se encontram a modéstia e a
temperança.
Embora, essas quatro partes estejam ligadas e implicadas entre si,
todavia, de cada uma nascem certos tipos de deveres, como daquela
que foi descrita primeiramente, onde colocamos a sabedoria e a
prudência, surgem a indagação e a invenção do verdadeiro, função
própria dessa virtude.
Nesse livro Cícero encerra conselhos da moral prática que se poderiam ministrar aos
jovens romanos do século I antes de Cristo, e o faz muito mais utilizando exemplos
históricos do que através de demonstração especulativa.83
Por fim, no terceiro livro Cícero afirma estar versando sobre o aparente
conflito entre o útil e cada uma das quatro divisões do honesto. No entanto, no
decorrer do livro percebe-se que os conflitos que ocupam a maior parte são os que
ocorrem entre a justiça e o interesse próprio, que falsamente se apresenta como
sabedoria ou “sensatez”.84 Ao tratar do conflito com a coragem, por exemplo,
82
Dos deveres. Tradução Angélica Chiapeta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 11.
83
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 425.
84
Importante lembrar que essa noção de sensatez é grega e gera a própria palavra direito. Sensatez
vem de phronesis. Conforme assevera Tercio Sampaio Ferraz Jr. Op. cit., p. 33: “A palavra
jurisprudência – (júris)prudentia, uma das expressões usadas pelos romanos, ao lado de disciplina,
scientia, ars, notitia, para designar o saber jurídico – liga-se, nesse sentido, ao que a filosofia grega
chamava de fronesis (discernimento). Tal palavra era entendida, entre os gregos, como virtude.
Fronesis, uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, na verdade consistia numa virtude
desenvolvida pelo homem prudente, capaz, então, de sopesar soluções, apreciar situações e tomar
decisões. Para que a fronesis se exercesse, era necessário o desenvolvimento de uma arte (ars,
techne) no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapondo-se, permitiam
uma explanação das situações. Essa arte ou disciplina corresponde aproximadamente ao que
Aristóteles chamava de dialética. Dialéticos, segundo o filósofo, eram discursos somente verbais, mas
suficientes para fundar um diálogo coerente – o discurso comum”.
53
Além do exposto, Cícero, em seu terceiro livro, faz algumas reflexões acerca
da noção legal de “homem bom”, e ainda, ao atacar a “sensatez” aparente trata dos
problemas da fraude e da boa fé.
85
CICERO. Marco Túlio. Dos deveres, p. 181.
54
Cerca de dez anos depois de sua chegada, por volta de 301 a.C. Zenão
fundou sua própria escola próxima ao Pórtico Poecilo. Era comum naquela época
dar a escola o nome do local onde ela ficava. Assim, a escola de Zenão levou o
nome stoa, significado de pórtico em grego, da qual derivou o nome estoicismo.
86
Segundo Olney Queiroz (ASSIS, Olney Queiroz. O estoicismo e o direito: Justiça, liberdade e
poder. São Paulo: Lumen Editora, 2002, p. 306): “Na obra de Cícero, particularmente na tríade Dos
Deveres, Das leis e Da República, a filosofia estoica se conecta com o direito, em especial o direito
natural e a moral dos deveres que influenciam os jurisconsultos. Esses tratados expõem o direito
natural, a forma de governo e as leis da civitas com fundamento na filosofia estoica”.
87
Idem, p. 105 e ss.
88
Idem, nota 50.
55
92
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 106-107.
93
INWOOD, Brad. Os estoicos. Trad. Paulo Tadeu Ferreira e Raul Filker. São Paulo: Odysseus
Editora, 2006, p. 24-25.
94
2008, p. 28.
57
Panécio de Rodes viveu entre os anos de 185 a.C. e 125 a.C. e foi acolhido
no círculo dos Cipiões onde passou a conviver com os romanos das classes mais
poderosas. Cícero foi bastante influenciado por Panécio, fato que podemos
comprovar nos dois primeiros livros de sua obra Dos Deveres quando investiga as
relações entre o honesto e o útil. Angélica Chiapeta ensina:95
95
CICERO. Marco Túlio. Dos deveres, p. 20.
96
Idem, p. 34.
97
Idem, ibidem.
58
Deuses e Sobre a Advinhação. Suas ideias estoicas permeiam a obra desse autor e
influenciando sua filosofia e seu modo de pensar.
Além disso, o homem necessitaria alinhar seu pensamento aos seus atos,
pois ao cidadão romano não caberia apenas se dedicar ao desenvolvimento do
intelecto, mas também através de exemplos, à contemplação das ações.
O pensamento estoico foi se difundindo de tal forma que não havia mais,
nesse momento, uma “escola” institucionalizada, mas sim numerosos professores
estoicos que ensinavam a doutrina em toda parte do Império.
Para esses filósofos, o homem era um ser, que, além de viver para o bem
comum, necessitava buscar a tranquilidade, a paz de espírito e a reflexão
individualmente, não se prendendo às turbulências da sociedade. O estoicismo
pregava o equilíbrio, o desapego aos bens materiais, a igualdade e o respeito entre
os homens, através da harmoniosa vivência com Deus, presente na natureza.101
100
A escola no período imperial romano. Os estoicos. São Paulo: Editora Odysseus. 2006.
101
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 107-108.
60
102
DUHOT, Jean-Joël. Op. cit., p. 32.
103
Nesse sentido: INWOOD, Brad. Op. cit., p. 38: “As meditações, escritas em grego, servem como
espécie de diário filosófico, em que o imperador (em ampla medida) absorvia princípios estoicos com
vistas a construir uma estrutura que satisfizesse os princípios estoicos com vistas a construir uma
estrutura que satisfizesse os desafios da vida humana tal como ele a experimentava”.
104
DUHOT, Jean-Joël. Op. cit., p. 48.
105
No mesmo sentido: INWOOD, Brad. Op. cit., p. 38: “É mais difícil traçar indicações claras de
atividade estoica no século III particularmente em sua segunda metade. Diógenes Laércio, cujas
Vidas dos Filósofos é fonte fundamental para o conhecimento da filosofia antiga, incluindo o
estoicismo, provavelmente viveu na primeira metade do século III, mas não discute nenhum pensador
posterior ao século II. Contudo, o estoicismo, particularmente como expresso nos Discursos de
Epicteto, permaneceu influente no pensamento da Antiguidade tardia e além. Plotino (205-270)
absorveu ideias tanto estoicas como aristotélicas em sua versão do platonismo, ao passo que o
neoplatonico Simplício, do século VI, escreveu um enorme comentário ao Manual de Epicteto. O
moralismo austero de Epicteto atraiu o interesse dos primeiros padres da Igreja, entre os quais
Clemente de Alexandria e Orígenes, interesse que persistiu entre os ascetas medievais cristãos.”
61
(...) Ainda existiam estoicos, mas eles não produziam mais obras
importantes. No século III, o neoplatonismo sairia das sombras com
Plotino. Seria a última – mas não a menor – filosofia do mundo
grego. Ao mesmo tempo, o cristianismo começava a constituir para si
uma armadura filosófica, utilizando para tanto o estoicismo e o
neoplatonismo.
106
Sobre o tema também nos ensina Alvaro de Azevedo Gonzaga (Filosofia Jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 52): “O estoicismo possui uma lógica, uma ética e uma física. Os estoicos diziam
que a filosofia poderia ser vista como uma árvore; nas raízes, está a lógica; no tronco, a física; e, nos
frutos, a ética. Entendem que a base do conhecimento é a sensação, ou seja, aquilo que afeta os
sentidos. Sendo assim, a sensação é uma impressão provocada pelos objetos sobre os nossos
órgãos sensoriais, e que se transmite à alma, nela se imprimindo e gerando a representação. É
preciso, porém, um consentir, um aprovar do logos, que está em nossa alma, ou seja, o logos atua
sobre nossas impressões. Temos, então, a representação compreensiva”.
107
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad., introd. e notas Mario da Gama Kury. Brasília:
UnB, 1987, p. 190.
62
108
Idem, ibidem: “(...) enquanto a doutrina de Aristóteles parte da observação da cidade e não encara
o indivíduo senão no interior da cidade (o homem é ‘animal político’), o povo judeu é uma nação,
reunião de indivíduos. Não uma cidade. São dispersos na Diáspora, como serão em seguida os
cristãos através do mundo”.
109
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 21.
110
Idem, p. 120 e ss.
63
111
INWOOD, Brad. Op. cit., p. 139 e ss.
112
Artigo escrito no livro coordenado por Brad Inwood (Idem, p. 139).
64
Deus, razão, ou natureza, era identificado com um fogo artesão que, através
de sua energia, seria capaz de criar, regular e suprir todo o mundo. A respeito do
tema, Jean Brun assim se expressou:114
Podemos, pois, dizer desde já, que, para os Estoicos, natureza, Deus
e fogo são termos sinônimos; divinizar a natureza, ou antes,
naturalizar Deus, é dar ao homem a possibilidade de entrar em
contacto com ele e de encontrar, na realidade que o envolve, a
consistência susceptível de dar a sua vida uma significação
ordenada. Por isso, a física estoica não se apresenta de modo algum
como o sistema racional de um humanismo do conhecimento, mas
como uma teologia que é ao mesmo tempo uma cosmologia, e, por
estranha que a expressão possa parecer, como um materialismo
espiritualista.
113
Ensina ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 132: “Assim, as razões da unidade do mundo repousam
sobre a existência de uma força unificadora da substancia corpórea. Essa força é o pneuma, o sopro
criador que penetra todo o universo. O pneuma possui uma tensão que mantém juntas as partes do
universo, impedindo sua dissipação no vazio infinito. O mundo é uno porque o sopro ou pneuma que
o penetra retém suas partes, possui uma tensão (um campo de força) análoga a que possui, em
pequena escala, todo ser vivo.”
114
BRUN, Jean. O Estoicismo. Trad. João Amaro. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 48.
115
Op. cit., p. 129.
65
Lógica, para os estoicos, vai além da lógica formal, pois pressupõe a teoria
do conhecimento, contém a dialética e a retórica em suas várias formas de
manifestações e, sobretudo, possui a função de preparar o homem para o exercício
da virtude.
116
Teologia estoica. Artigo inserido em: INWOOD, Brad. Op. cit.
117
Em seu capítulo no livro INWOOD, Brad. Op. cit., p. 95.
66
A relação entre sujeito e objeto não pode ser analisada de forma isolada do
universo que eles habitam. Dessa forma, os componentes do conhecimento, quais
sejam o sujeito cognoscente, o objeto do conhecimento (ou a natureza), os atos do
conhecimento (sensação, representação, assentimento e a compreensão) e a
linguagem, são inseparáveis.
A lógica retórica trata dos discursos, estes se ligam a ética tanto pela
exigência de virtude do orador quanto pela escolha dos temas que compõem seu
conteúdo. Os discursos são divididos em três gêneros, deliberativo, judiciário e
panegírico, e são compostos das seguintes partes: introdução, narração dos fatos,
refutação da parte contrária e conclusão.119
118
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 173: “Os estoicos dividem a parte lógica do seu sistema
filosófico em duas ciências: a dialética e a retórica. A lógica dialética merece duas definições. Uma a
define como a ciência de discutir corretamente sobre assuntos mediante perguntas e respostas. A
outra a define como a ciência do diálogo justo, do que é verdadeiro, do que é falso e do que não é
nem verdadeiro nem falso. A dialética abrange a teoria do signo e os seus três componentes básicos
que se situam em três campos distintos, mas correlacionados. Um trata do evento ou objeto
(tychánon) ao qual o signo se refere; outro trata do significado (lektón); e o outro trata do significante
(semainon), que é a entidade percebida como signo”.
119
Idem, p. 174.
67
deveres cujo útil é a base. Por fim, no gênero panegírico o conteúdo do discurso é a
exaltação de virtudes, louvor de uma pessoa, acontecimento, lugar ou objeto.
120
Diôgenes Laêrtios. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 202.
68
e fugiam do que lhes era nocivo. Esse comportamento expressaria o amor próprio do
homem e sua tendência natural de conservação.121
O homem seria o único entre os seres que, além do instinto, teria o privilégio
da racionalidade. A razão seria uma força presente no homem capaz de aperfeiçoar
suas tendências, inclinações ou impulsos para que tivesse uma vida mais feliz. A
racionalidade seria uma extensão do espírito divino no corpo humano.
121
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 265.
122
Sobre o indiferente ensina Olney Queiroz (Idem, p. 275): “Há, para os estoicos, um conjunto de
coisas que não se enquadram nem na categoria de bens nem na categoria de males, dentre as quais
se destacam: a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a força, a riqueza, a reputação, a nobreza, bem
como os seus contrários, a morte, a doença, o sofrimento, a lealdade, a fraqueza, a pobreza, a
obscuridade, a origem humilde. Essas coisas encontram-se na categoria das indiferentes porque não
beneficiam nem prejudicam por si mesmas. Não são boas nem más, posto que depende do uso que
delas se faz”.
69
alma, que acometeriam apenas os insensatos, pois os sábios não deixariam que
elas nascessem em seus corações ou então as aniquilariam já no início de sua
concepção mantendo-se, assim, no caminho da felicidade.123
123
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 226.
124
Idem, ibidem: “O estudo específico da paixão é uma tentativa de discernir os dois sentidos do
“mal”, o físico e o moral: a doença de que a alma sofre é má? E se é, como preveni-la? Como curá-
la? Também a Cícero se apresentaram estas questões, sob o domínio do sofrimento. Quando perdeu
o ser que mais amava no mundo, a filha Túlia, experimentou a necessidade de se retirar para a sua
vila em Ástura e ali procurar lenitivo à sua dor, uma consolação que fosse ao mesmo tempo
esclarecimento e remédio. Registrou nas Tusculanas as reflexões que fez sobre esse tema. (...) Ao
tema “consolação da Filosofia” estava reservado grande fortuna e notável contributo para o renome
de Cícero no pensamento ocidental, como em Santo Agostinho e Boécio. Porém Cícero pensava
menos na reflexão filosófica, em geral, do que no Estoicismo, em particular. Arte de viver e, portanto,
arte de ser feliz, essa doutrina devia consagrar no ensino largo espaço ao estudo da paixão, uma vez
que a paixão é o principal obstáculo que o homem encontra na ascensão à felicidade. Não é em vão
que determinada atitude perante o sofrimento se costuma qualificar de “estoica” – atitude feita de
coragem e, talvez mais ainda, de desprezo e recusa: atitude prática que parece, a primeira vista,
indicar o insucesso da solução especulativa”.
125
Op. cit., p. 33.
70
é uma centelha dela, o homem pode realizar o direito natural na polis ou na civitas
quando sua razão está em harmonia com a razão universal.
126
Idem, p. 335.
127
LAFER, Celso. A reconstrução dos Direito Humanos. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 118-
120.
128
ASSIS, Olney Queiroz. Op. cit., p. 339.
71
129
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 115.
130
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. São Paulo: Edipro, 2011, Livro III,
item XVII, p. 87.
72
organização deve ser pautada no verdadeiro direito, qual seja o direito natural.
Cícero entendia que o estudo do direito não poderia se limitar ao estudo de questões
meramente casuísticas, pois o direito é um dos elementos mais importantes para se
manter a República.133
133
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 53.
134
Cumpre-nos também apresentar o ensinamento de Michel Villey em sentido diverso (A formação
do pensamento jurídico moderno, p. 470: “(...) O estoicismo conservou as palavras de Aristóteles,
mas era incapaz de assimilar sua substância. O autêntico direito natural, verdadeiramente jurídico e
extraído do estudo do mundo exterior, não podia entrar em seu sistema. Era inconciliável, tanto com a
moral como com a física do estoicismo, e, se tivesse tempo, eu teria mostrado que não era menos
inconciliável com sua lógica. O estoicismo e o direito natural, no sentido originário da palavra, são
incompatíveis”.
74
Em seu livro Das Leis, Cícero defende a existência de um direito que tinha
sua origem e fundamento na natureza, direito diferente daquele posto pela vontade
humana.
135
Tratados das Leis, I, p. 28.
136
Idem, p. 64.
75
sua forma mais pura. Essa parcela de logos presente nos homens, identificada como
a razão, seria a responsável pelo surgimento das sociedades e pelo nascimento do
direito. Assim:137
Para fundar o direito seria necessário, pois, tomar essa lei inscrita no interior
de cada homem, identificada com a razão, e explicitá-la. É a lei natural que funda o
direito possibilitando e gerando a convivência social.
137
Idem, p. 49-50.
76
Essa lei para Cícero seria validada pela presença comum da razão em todos
os homens, mais que isso, se os homens partilham da mesma natureza, partilham
também do mesmo julgamento e consequentemente do mesmo direito. Nas palavras
de Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros:139
138
Em 527 da era Cristã o imperador Justiniano instituiu uma comissão de ministros para sistematizar
as leis romanas com a intenção de restabelecer o antigo império. Embora o império não tenha sido
restaurado, um amplo quadro foi elaborado sintetizando o pensamento jurídico romano. Podemos
citar o Código que trazia uma coleção de constituições imperiais em vigor, o Digesto que era uma
coleção de fragmentos das obras dos jurisconsultos notáveis, as Institutas manual destinado aos
estudantes de direitos entre outros.
139
Em artigo do livro: PISSARRA, Maria Constança Peres e FABBRINI, Ricardo Nascimento. Direito
e Filosofia: a noção de Justiça na História da Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p. 47.
77
O jus civile, também chamado jus quiritium era o nome designado ao direito
destinado exclusivamente aos cidadãos romanos. Historicamente as fontes do jus
civile na República (período entre 510 a.C. e 27 a.C.) provinham dos costumes, das
leis, dos plebiscitos, da interpretação dos prudentes (sentenças ou opiniões
daqueles aos quais era permitido fixar o direito) e dos editos dos magistrados.
140
CRETELLA JR., José. Op. cit.
78
O jus naturale, por fim, seria constituído de regras advindas de uma suposta
lei natural, por tanto comum a todos os seres, como por exemplo, as regras relativas
ao matrimônio, a procriação e educação dos filhos. Cretella diferencia esses três
direitos da seguinte forma:142
Difere ainda o Jus naturale do Jus civile e do Jus Gentium por suas
fontes, porque, se estes dois ramos do direito derivam do costume,
das leis, da doutrina dos jurisconsultos, o direito natural é oriundo da
razão e duma espécie de providência divina (“divina providentia”),
existindo desde épocas imemoriais, encontrando-se entre todos os
povos do mundo e reunindo, em si, o traço característico da
perenidade. Provêm da razão inspirada por uma entidade divina, é
imutável, perene, universal e perde-se na noite dos tempos
passados, projetando-se para o futuro.
141
Mais tarde o edito de Caracala concedeu cidadania a todos aqueles que se encontravam em
Roma, salvo os peregrinos deditícios. “No ano de 212 de nossa era, o imperador romano Marco
Aurélio Antonio Bassanus (que reinou de 212 a 217), o cognominado Caracala, por causa da
vestimenta típica que costumava usar, concede o direito de cidade (“Jus civitatis”) a todos os
habitantes do império exceto aos peregrinos deditícios. É o famoso “edito de Caracala ou constituição
Antonina”. (...) O fundamento da determinação de Caracala em conceder cidadania a todos os
habitantes do império, exceto aos deditícios, é de natureza marcadamente econômica, porque
contribuiu para aumentar a receita do tesouro romano, exaurido por sucessivas guerras e alimentado
quase que apenas pelos tributos lançados sobre o povo” (CRETELLA JR., José. Op. cit., p. 76).
142
Idem, p. 21.
79
Assim, o que Cícero ambicionava era estudar filosofia para com ela chegar
até as fontes das leis e do direito e então aplicar ao modelo romano de justiça.
143
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 46.
144
Curso, cit., p. 144.
145
Nas palavras de Cícero (Dos deveres, p. 79): “com efeito, embora nossos livros tenham suscitado
em muitos não só o gosto pela leitura, mas também o da escrita, às vezes, todavia, temo que para
alguns homens bons o nome de filosofia seja desagradável e que eles se admirem por eu devotar
tanto trabalho e tanto tempo. Eu, no entanto, enquanto a administração pública era conduzida por
aqueles aos quais se entregara, a ela dedicava todas as minhas preocupações e pensamentos. (...)
80
Em seu Tratado das Leis, Cícero desenha seu pensamento sobre o que
entende ser o direito e seu fundamento, a lei natural. Sua concepção sobre o direito
é muito influênciada pela filosofia estoica, aspecto sobre o qual Milton Valente traça
uma interessante análise:147
Pelos deuses, o que é mais desejável que a sabedoria, o que é mais elevado, o que é melhor para o
homem, o que é mais digno do homem? Assim, aqueles que a procuram são chamados filósofos,
nem outra coisa é a philosophia, se quisermos traduzir a palavra, senão a dedicação à sabedoria. E a
sabedoria é, como a definiram os filósofos antigos, o conhecimento de todas as coisas divinas e
humanas, e das causas pelas quais essas coisas são conservadas. Quem vitupera seu estudo,
sinceramente não sei o que julgaria digno de ser louvado”.
146
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 47.
147
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466.
81
148
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 50.
82
149
Idem, p. 74.
150
Nesse sentido: (Idem, ibidem): “Marco: – Certamente, grandes são as questões ora bosquejadas.
Porém, entre todas que ensejam as discussões dos doutos, nenhuma se assemelha à de
compreender plenamente que nascemos para a Justiça e que o Direito não assenta em convenções,
mas na Natureza. Tal se evidenciará a quem analisar os laços sociais e a união entre os homens.
Nada há tão semelhante, tão igual, uns aos outros, como nós entre nós. E se a depravação dos
costumes e as divergentes opiniões não deformassem e dobrassem os espíritos fracos aos seus
caprichos, todo o homem se assemelharia a todos, e qualquer definição que fosse dada a um homem
se assemelharia a todos, e qualquer definição que fosse dada a um homem serviria a todos. Tais
considerações bastam para provar que não há diferenças no gênero humano. Com efeito, a razão – a
única faculdade que nos coloca acima dos animais e nos torna capazes de inferir, demonstrar, refutar,
discutir, resolver e concluir- é, sem dúvida, comum a todos os homens, pois ainda que díspares no
saber, possuem a mesma aptidão para aprender, não apenas cada um dos sentidos capta objetos
parecidos, mas também em cada um os objetos impressionam os sentidos da mesma forma. Essas
impressões – que são as primeiras noções a que me referi- são idênticas em todos, e a mente, ao
expressar o discurso, mesmo empregando termos distintos, expressa significados semelhantes. Não
há indivíduo, pertença à raça que pertencer, que não consiga, sob a condução da Natureza, alcançar
a virtude”.
83
151
Em Introdução à tradução de Tratado das leis, p. 23.
152
Tratado das leis, p. 53.
84
Portanto, podemos dizer que, para Cícero, a origem do Direito está na Lei
Natural, aquela lei suprema imutável, anterior a qualquer lei escrita e a existente
antes mesmo que qualquer Estado.
Desta feita, se na alma de cada ser humano essa lei está inscrita,
consequentemente ela se impõe a todas as nações independentemente de tempo e
espaço, revelando-se a todos da mesma forma. Desse modo, o Direito procede
desse sentimento natural de justiça, produto da força moral que atua na consciência
de todos os homens.
153
Artigo do livro: PISSARRA, Maria Constança Peres e FABBRINI, Ricardo Nascimento. Op. cit., p.
48.
85
Após afirmar que os estudos dos princípios de direito começam pelo estudo
da Lei, razão suprema gravada na natureza, que ordena o que devemos fazer e
proibe o contrário,154 Cícero desenvolve no decorrer de sua obra uma Teoria das
Leis em que examina temas como: o poder da divindade, a condição e a
solidariedade humanas, os julgamentos morais e os princípios que levam a harmonia
social, a Natureza como parâmetro da Lei, a harmonização das diversas correntes
filosóficas, e por fim a filosofia como fundamento supremo das leis. define a Lei
natural da seguinte forma:155
Desta maneira a lei positiva deve ser apenas reflexo da Lei Natural, se assim
o for será elaborada visando o bem dos cidadãos e do Estado, trazendo-lhes
segurança, tranquilidade, felicidade. Além disso, havendo confronto entre elas
privilegia-se, obviamente, a lei natural.
Cícero distingue as leis positivas (ou o direito civil) da lei natural. A primeira
garante aos cidadãos a igualdade de direitos e decorre do direito natural ou do
154
CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 48: “De momento examinaremos os princípios básicos
do Direito. Aos autores de nomeada agrada começar pela Lei e, certamente, não se equivocam, a Lei
for a razão suprema, impressa na natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário.
Essa mesma razão, quando fixada e desenvolvida na mente humana, converte-se na Lei”.
155
Idem, p. 71.
156
Na concepção de Milton Valente a fonte do pensamento de Cícero sobre as leis é estoica: “Essa
deve procurar-se muito provavelmente entre os estoicos. Por toda parte do tratado, repete-se esta
concepção bem estoica da Lei, razão universal imanente à Natureza, fonte do Direito, dom dos
deuses ao homem, princípio de assimilação dos homens aos deuses, da unidade dos homens entre
si e com os deuses, fonte da Religião, a própria voz de Deus, que pela natureza e pela razão dita aos
homens os seus deveres e proibições” (VALENTE, Milton. Op. cit., p. 466).
86
(...) Se tudo o que foi dito é certo, como creio que genericamente o é,
a origem do direito está na Lei. Ela é a força da Natureza; ela, a
mente e a razão prática; ela, o critério do justo e do injusto. Porém,
como essa discussão versa temas de interesse popular,
popularmente devemos nos expressar, denominando de lei a
disposição escrita que autoriza ou proíbe o desejado objeto. Assim,
para definir o Direito, o ponto de partida será aquela Lei suprema que
pertence a todos os tempos e já estava em vigor quando não existia
lei escrita, nem Estado constituído.
157
(CÍCERO, Marco Túlio. Tratado das leis, p. 48.
158
Idem, p. 57.
87
Cícero entende ainda que o único parâmetro para distinguir uma lei boa de
outra má é Natureza, e não as convenções humanas. Para ele, quem entende o
contrário, ou seja, que o parâmetro seria as convenções é insano e distante da
sabedoria. Assim:159
Porém, para distinguir a lei boa da lei má não há outro parâmetro que
não a Natureza. É a Natureza que permite distinguir entre o justo e o
injusto, entre o honroso e o desonroso, por nos ter dotado de igual
inteligência e nos ter capacitado para relacionar o honroso com a
virtude e o desonroso com o vício.
Somente um insano poderá crer que essas distinções assentam-se
em convenções e não na Natureza.
Desta forma, é na lei Natural que reside e prevalece a justiça. Por conta
disso e pelo fato de a lei Natural ter existência anterior ao homem, é que a ela deve
o homem recorrer para guiar-se na construção de suas artificiais estruturas de
organização social, uma vez que viver em sociedade é uma necessidade natural do
ser humano.
Essa lei Natural deve ser a orientação do homem em suas leis civis também
porque, enquanto pertencentes ao gênero humano, comungamos das mesmas
dificuldades, limitações, dons, enfim da mesma condição humana. E essa lei Natural,
fonte do direito, reside numa razão natural e não em convenções humanas, do
contrário estariam também submissas às fraquezas do pensamento humano.
159
Idem, p. 58.
88
O papel das leis humanas seria, pois, constituírem um estímulo para os bons
e um desestímulo para os maus, e o critério para a diferenciação de ambos, como já
vimos, é dado pela Natureza e não pela convenção humana. E, para que as leis
positivas atinjam sua finalidade, devem estar em conformidade com a Lei Natural.
Diferentemente dos gregos que optavam pela unidade das virtudes e em sua
indivisibilidade e ainda dos estoicos que entendiam estar todas as virtudes contidas
na virtude suprema, qual seja o acordo consigo mesmo, Cícero não receia tratar as
virtudes separadamente. Muito embora entenda que uma virtude possa existir sem a
outra esta não seria nem verdadeira nem aceitável.163
Por meio da ética, o homem pode refletir sobre sua natureza, esta lhe desvela
o lugar em que ocupa na escala dos seres, sua posição no cosmo, o papel que lhe é
dado e que ele deve desempenhar. Quando o homem toma consciência disso
adquire o sentimento de sua dignidade e com ele a obrigação de se conformar a ela.
Conservar essa posição é o que Cícero considera honesto e conveniente. Tender
para essa posição de dignidade seria a virtude e manter-se nela o bem supremo, fim
último do ser humano e seu dever. Em suma, a virtude seria a natureza perfeita e
elevada ao seu grau supremo, ou a própria reta razão.164
162
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 11: “Embora essas quatro partes estejam ligadas e
implicadas entre si, todavia, de cada uma nascem certos tipos de deveres (...)”.
163
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 124-125: “Para Aristóteles, a virtude era a atividade da razão na
busca da felicidade. Mas a hierarquia dos bens, mantida pela doutrina peripatética, supunha uma
hierarquia correspondente das virtudes, cuja classificação já fora dada no Filebo. Para Zenão, todas
as virtudes estavam contidas na virtude suprema, que era o acordo consigo mesmo”.
164
Idem, p. 135-136.
90
Para Cícero, o instinto social não tem por base o utilitarismo e o egoísmo, ou
seja, a comunidade e a sociedade não se implantaram entre os homens em razão
das necessidades da vida, mas sim de maneira altruísta e desinteressada. Assim, a
utilidade comum não é a soma dos interesses individuais, mas das obrigações que
cada indivíduo deve a todos por natureza. Nesse sentido exemplifica Cícero: 165
165
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 76, Livro I, 158.
166
Idem, p. 13: “(...) Tal princípio se divide em duas partes: a justiça, em que o esplendor da virtude
atinge o ponto máximo e a partir da qual os homens são chamados bons, e, vinculada a ela, a
benevolência, que também pode ser chamada bondade ou liberalidade”.
91
obrigações que dele brotam. Essa virtude se parece bastante com o sentimento de
ternura que nasce do sentimento de pertença a uma família de sangue e se expande
a toda a comunidade humana. Segundo Milton Valente:167
167
VALENTE, Milton. Op. cit., p. 175.
168
CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres, p. 13, Livro I, 20.
169
Afirma Cícero (Idem, p. 14, Livro I, 23): “Há dois gêneros de injustiça: o daqueles que a produzem
e o daqueles que, podendo, não repelem a injustiça praticada por outrem. Pois quem ataca
injustamente alguém, atiçado pela ira ou outra perturbação, parece dirigir as mãos contra o
companheiro; e quem não se defende nem se opõe, quando pode, à injustiça, tanto está em falta
quanto se abandonasse os parentes, os amigos ou a pátria”.
92
A forma de injustiça dolosa pode ser praticada de duas maneiras: por fraude,
em que o indivíduo se faz passar por homem bom, ou por violência.
Tendo em vista que a natureza não elenca os bens de cada indivíduo, cumpre
aos homens estabelecer compromissos entre si de fidelidade recíproca para
garantirem a propriedade particular. Daí decorrer para Cícero o fundamento da
justiça como a boa-fé, a sinceridade e fidelidade nas palavras e convenções:172
170
Idem, p. 15, livro I, 24: “As injustiças praticadas com a finalidade de prejudicar são, muitas vezes,
motivadas pelo medo, pois o homem que cogita no dano alheio receia que, a menos que o inflija, ele
próprio o sobre. E a maior parte agride para promover a injustiça, buscando alcançar aquilo que
cobiça – vício em que é patente a avareza. (...) Muitas pessoas se deixam arrastar a um ponto tal que
esquecem a justiça, quando cedem ao desejo de comandos, honras, glórias”.
171
Idem, p. 16: “Em toda a injustiça, interessa muitíssimo qual destas duas circunstâncias ocorre: se
a injustiça se dá por alguma perturbação do ânimo, frequentemente passageira, ou de propósito e
caso pensado. Menos grave, com efeito, é o que acontece em consequência de um movimento
repentino do que o fruto da meditação e do preparo. Mas sem dúvida já discorremos o suficiente
sobre a prática da injustiça”.
172
Idem, p. 13, Livro I, 20.
173
Nas palavras de Cícero (Idem, p. 14).
174
Op. cit., p. 401.
93
Percebemos, pois, que a virtude da justiça para Cícero estaria ligada à noção
estoica de dar a cada um o que é seu, e vinculada também à ideia de liberdade, pois
apenas com ela seria possível ao homem desenvolver essa virtude essencialmente
social. Daí a defesa da República de Roma, que como vimos, é apresentada por ele
como modelo da melhor forma de governo, baseada em sua teoria mista (ou seja,
um governo que une ao mesmo tempo a unidade da monarquia, a excelência da
aristocracia e o consenso da democracia).175
175
DE CICCO, Cláudio e AZEVEDO GONZAGA, Alvaro. Teoria Geral do Estado e Ciência Política.
2. ed. São Paulo: RT, p. 195.
94
CONCLUSÃO
Desta maneira entendia Cícero que para fundar o direito seria necessário
pois, tomar essa lei inscrita no interior de cada homem, identificada com a razão, e
explicitá-la. Assim, a lei natural é a fonte do direito e possibilita e gera a convivência
social.
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