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RES

Herbert Emanuel

Tradução para o inglês: Sergio Ricardo Oliveira


Orelha

Benedito Nunes, em introdução ao excelente Poesia-Experiência de Mário Faustino, afirma que


“linguagem eficaz é a que não distrai do significado”, a que é “precisa ainda quando nos fala do
impreciso”. Nestes 12 poemas-escultura do poeta-filósofo Herbert Emanuel, cada palavra eleita
para significar o real é meticulosamente escolhida, arduamente trabalhada para tirar dos
versos a possibilidade de com pouco dizer muito. Prossegue, assim, a tendência já exposta em
seu livro anterior, Nada ou quase uma arte, de extrair das asperezas do real – “a pau e pedra”,
por vezes – a matéria-prima para sua poesia.

Nesta busca por significar o real, está – aí a verdadeira busca – a palavra, que, na ânsia de
exprimir e na falta de signos que bem expressem o que para o poeta é a um só tempo indizível
e impulso do seu fazer poético cotidiano, pede morada no neologismo roseano: o real-palavra
é “Nonada”; toma de empréstimo o peso-leveza do signo pedra, o real-signo é ônix.

O que é o real além de uma miragem, diante da impossibilidade – de que fala Kant – de se
alcançar a coisa-em-si? Essa impossibilidade, porém, não impede o poeta de explorar o real a
partir de todos os seus vislumbres, desde o acaso, por ser este real “Taça do inesperado”, até
sua face “seca e dura”, concreta, proporcionando metáforas raras para que se possa visualizá-
lo “com seus dois mil círculos concêntricos / suas formas de água”. Um real que ora se abre
“em pedra”, ora humaniza-se, mostrando-se “cauteloso, excessivo, confortável”, “com seu ar
espesso”, evocando as palavras de João Cabral de Melo Neto: “Como todo real / é espesso, /
Aquele rio / é espesso e real.”

Ao leitor é reservado o poder de preencher as lacunas, animar, no sentido de dar de si na


reelaboração dos significados do real. E o próprio poeta se propõe leitor e experimenta sua
criação, nesse jogo de criador e criatura: agora é poeta e capta o que o rodeia; agora é leitor,
consumidor de sua própria matéria. A matéria real coisa-concreta: res.

Tânia Ataíde
Professora de Literatura

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Epígrafes

Como todo real


é espesso

(João Cabral de Melo Neto)

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,


Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo “isto é real”, mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

(Fernando Pessoa)

Nada mais frágil do que a faculdade humana


de admitir a realidade, de aceitar sem reservas
a imperiosa prerrogativa do real.

(Clément Rosset)

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Este real com suas ranhuras (this real with its grooves)
de sonho e vidro (of dream and glass)
sem sombras ou senhas de acesso (with no shadows or passwords)
duro, seco, abstrato (hard, dry, abstract)

esquecido de todo peso (oblivious of any weight)


vagando (drifting)
em direções desiguais (through unequal directions)

este real é um alerta (this real is a warning)


onde o jogo (in which game)
se descoberto (is expressed)
se expressa (if found out)
em rosto, em sombra (in face, in shadow)
em luz (in light)
em cor (in colour)
que o poeta (whose poet)
agora leitor (now a reader)
completa (adds up)

4
o real (the real)
com sua alegria (with its joy)
sua beleza (its beauty)
e seu áspero desespero (and its harsh despair)

a cada passo, a Taça do Inesperado (with every step, the Cup of Unexpected)
a fúria da vida te lambendo (the rage of life licking)
os pés (your feet)

5
o real (the real)
com sua fome de fezes (with its hunger for feces)
sua sede de ônix (its thirst for onix)
seu deus desdentado (its toothless god)
e sem palavra (and speechless)

o que trazes na pele (what you wear on your skin)


este alfabeto de árvore (this tree alphabet)
segredado em sombras (whispered in shadows)
esta palavra (this word)
sobrevoada por astros (flown over by stars)

6
o real (the real)
cauteloso, excessivo (cautious, excessive)
confortável, em viagem (comfortable, in transit)
rito de passagem (rite of passage)
ou imagem desolada (or desolate image)
do mito (of myth)

em núpcias, lado a lado (in nuptials, side by side)


céu e inferno (heaven and hell)
com (shared)
partilhados (at)

7
o real (the real)
sem pedras no caminho (with no boulders in the way)
sem retinas (with no tired)
fatigadas (retinas)
esquecido completamente (utterly ignored)
Nonada (Nonada)

8
o real (the real)
com suas partículas de afeto (with its particles of affect)
múltiplas capturas (multiple capture)
incêndios de silêncio, de verdade (fires of silence, of truth,)
e de loucura (and of madness)

sempre fora (always out)


e entre (and in between)
o real (the real)
em núpcias (in permanent)
permanente (marriage)

9
este real (this real)
oculto em águas densas (hidden in dense waters)
o silêncio o atravessa (silence runs through it)
rende-se (it yields)
acrônico (acronic)
a esta escrita (to this secret)
secreta: (script:)
o poema devorando o leitor (the poem devouring the reader)
esquece o poeta (forgets the poet)

10
este real (this real)
desde o início (from the outset)
seu furor de asas (its winged fury)
sem metal (with no metal)
este sabor das coisas (this flavour of things)
na casa (at home)
a cor (the colour)
o silêncio da luz (the silence of light)
que se expressa (that expresses itself)

11
este real (this real)
deserdado de toda palavra (devoid of every word)
com seu olho gordo (with its evil eye)
seu assombro de pérola (its pearly wonder)
coisa em si (thing in itself)
- promessa de gozo? (promise of joy?)
sempre adiada (always delayed)

cego de tanto céu (blinded by so much sky)


seco de tanta água (dry from so much water)

12
o real (the real)
entre teus dedos (through your fingers)
ofertado (offered)
fincou (staked)
de azul (in blue)
este osso (this bone)
teu almoço (its bountiful)
farto (dish)

13
o real (the real)
com seus dois mil círculos (with its two thousand concentric)
concêntricos (circles)
suas formas de água (its forms of water)
sua gula de caos (its lust for chaos)

desde o nada (from nothing)


este real (this real)
corre(em)ti (runs[in]you)
é tua líquida morada (your liquid dwelling)

14
o real (the real)
com seu ar espesso (with its thick air)
suas sobras (dobras) do corpo (its scraps [folds] from the body)
o incesto (incest)
o enxerto (graft)
com tiros à queima-roupa ([with] point-blank shots)
este real te provoca (this real provokes you)
ferve teus nervos (boils your nerves)

o real (the real)


com seu inseto de luz (and its firefly)
abre-se em pedra (opens up in stone)
com seu faro nos conduz (with its sense leads us)
com sua fúria nos enreda (with its frenzy ensnares us)

o real – crês? – (the real – you think? –)

15
res (res)
ist (ist)
e (s)

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post scriptum / res...ainda

o real que se abisma (the real that abysses)


te engole e te devolve ao chão (it eats you up and returns you to the ground)
seco sujo ácido (dry filthy acid)
sem promessas de passagem (with no promises of passage)
sem orifícios cravejados (with no studded holes)
de palavras (with words)
só um corpo (just one body)
que ali (that breaths)
res (the...)
pira (...re)

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Herbert Emanuel nasceu na cidade de Macapá, no Estado do Amapá, extremo norte do Brasil,
no dia 20 de fevereiro de 1963. Publicou seu primeiro livro em 1997, intitulado “Nada ou quase
uma arte”, com apresentação do poeta Carlos Nejar. Em 1998, com o artista plástico e mímico
Jiddu Saldanha, editou “Postais Poéticos”, e, em 2005, com o mesmo artista, lançou o livro de
haikais “Do crepúsculo ao outro dia”, com apresentação dos poetas Cristiane Grando e Carlos
Nejar. Alguns poemas seus estão incluídos na Antologia Poética Poesia do Gran-Pará, com
seleção e notas de Olga Savary. Em 2008, a convite da Editora Cortez, em parceria com Adriana
Abreu, escreveu livro “Macapá – a capital do meio do mundo”. Herbert é integrante do
Tatamirô Grupo de Poesia e do Pium Filmes – Movimento do Cinema Possível em Macapá.

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