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LEITURA CRÍTICA
PUBLISHER Solange Farias
Lucas de Lucca
REVISÃO
EDITORA Nathy Mileno
Daihany de Morais
CAPA
ASSESSORA EDITORIAL Juliana Calado
Marina Solé Pagot
DIAGRAMAÇÃO
Editorial Félix

Esta obra segue as regras do


Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Flyve.LTDA – CNPJ: 33.825.711/0001-54


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Para Thomas,
que despertou o meu lado adormecido
Que me amou sem eu ter exigido.
Que trouxe propósito,
onde só havia vazio.

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FILHO,

Tantos adeuses, tantas despedidas, início


conturbado, negação...
Podia ouvir as folhas descaídas, levadas pelo
vento ao rés do chão.
Diziam: novas folhas surgirão e nascerá a vida
de outras vidas, meu ser, no entanto, em plena
gestação, perdia-se em hormônios, sem saídas.
Mas eu senti, um dia, um frenesi, a força
que dizia: estou aqui, quer haja ou não, em teu
olhar, um brilho.
E desde então prestei-me a conhecê-lo.
Um feto no meu ventre, susto e zelo, renún-
cia e entrega, medo e amor... Um filho.

de Geisa Alves

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Meu casamento chegou aos seis anos. Olho
para meu marido escovando os dentes com mo-
vimentos na horizontal e não na vertical como fui
ensinada no pré II, vejo que somos amigos, mais
do que marido e mulher. Fazia uma semana que
eu tinha vinte e seis anos e nove meses que ele
tinha trinta e cinco. Meu rosto denuncia ser infe-
liz — no casamento e no profissional — mas, sigo
caminhando, às vezes grata pelo que tinha, teto,
água, comida, sapato, outras vezes, sinto que algo
estava faltando. Quando o jardim não está lindo.
A inchada logo trabalha. E tudo some. Os móveis
nos lugares errados, logo são arrastados. Receben-
do gratuitamente minha insatisfação. Adquirindo
marcas desnecessárias.
Caio era bem respeitado como empresário, e eu
já havia iniciado minha pós-graduação em enge-
nharia e gestão da produção, e ninguém sabia que
por trás da fachada de acessórios fashion, tinha uma
mulher negra, que trabalhava de domingo a do-
mingo, doze horas por dia sem salário ou parte do
lucro da empresa. Que pedia ao marido branco di-
nheiro para comprar o absorvente com textura sua-
ve e com abas; creme e shampoo para cabelos 4abc;
roupas, calcinhas e esperava ansiosa pelo Dia dos
Namorados, porque sabia que receberia de presen-
te dele o perfume do Boticário.
Aquilo me incomodava. Sem saber rotular aque-
le sentimento. Caminhava um dia após o outro, so-
brevivendo às oscilações de humor que duravam
segundos, capazes de causar estrago no meu peito
o suficiente para eu chorar por horas.
Nosso relacionamento deu início através de
uma amiga que passou meu número de telefone
para ele, achando que formaríamos um belo ca-
sal. Depois da primeira vez que conversamos, não
paramos mais. Ele morava em Ponta Verde; eu
me escondia em um apartamento junto com meus
pais na favela Vergel do Lago. Passávamos horas
ao telefone, falando sobre tudo, menos de nós.
Logo nos casamos e fomos trabalhar juntos na em-
presa de acessórios femininos.
Quando morava com meus pais, no cantinho
do quarto azul, apoiada na janela com grade, que
permitia o cheiro de esgoto entrar, anotava em
um caderno, ganhado do governo, meus sonhos.
Um deles era ser uma arquiteta renomada. Caio
já tinha sua expectativa de vida. Mas não compar-

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tilhou comigo, assim como eu, não compartilhei
com ele também.
Nosso relacionamento foi revelado após o casa-
mento, no decorrer do dia a dia. Ele não era de pla-
nejar as coisas, simplesmente seguia o dia sem ex-
pectativas. Se estressava fácil por isso. Capaz de me
chamar de puta, quando tudo não saia correto ou
como ele imaginou que seria. Enquanto eu, antes
de dormir, anotava tudo que faria no dia seguinte.
Até o cochilo de dez minutos após o almoço. Eram
tantos alarmes no celular Nokia que hoje foi substi-
tuído por um Iphone 7 usado, para me lembrar de
tudo que precisava fazer.
Não me lembro do motivo que nos levou a ace-
lerar o matrimônio, mas sei que depois nada fazia
sentido. Olhava para ele andando pela casa só de
cueca, ou entrando no banheiro no momento que
eu estava tomando banho, para usar a privada, me
causava irritação. A toalha molhada no meu lado
da cama fazia tremer meu corpo de raiva. O bafo
no meu rosto, sempre que me procurava de madru-
gada para aliviar suas bolas, me causava náusea.
Quando ele chegava do serviço, era um dos mo-
mentos que me dava vontade de abrir a porta, sair
e não voltar nunca mais. Ele entrava retirando os
sapatos e jogando pelo canto, retirando o unifor-
me da empresa e deixando pelo sofá; a cinta seguia
para o encosto da cadeira. Meus olhos sempre des-
grudavam da janta que estava fazendo e pensava
quando ele ia parar com aquilo. Ou quanto tempo

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mais minha paciente me ajudaria a recolher aque-
las roupas no chão?
Eu nunca reclamava. Calada, engolia as palavras
que saíam da mente e paravam na garganta. En-
golia, porque ele tinha sido a pessoa que tinha me
ajudado a fugir dos meus pais. Uma transição van-
tajosa na época. Com ele tirei a carteira de habilita-
ção, mesmo que ele não me deixasse colocar a mão
no volante. Me deu a formação de administração e
seguia para a pós-graduação, mesmo que eu não le-
vasse os créditos por repassar todo o conhecimento
para a empresa. Com ele, consegui abrir uma conta
no meu nome no banco, mesmo que eu não ficasse
com os cartões e, muito menos, pudesse tirar di-
nheiro de lá, sem autorização.
Ele tinha minha fidelidade, por sussurrar nas
noites no meu ouvido, que eu era gostosa, a garota
dele. Que não tinha olhos para outra mulher. Só de
olhar para mim, lhe dava tesão. E depois de estar
saciado. Me abraçava e dizia que me amava, baixi-
nho. O sono dominava seu corpo aos poucos. Até
não falar mais, eu me lembrar de tudo que me irri-
tava nele.

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Na casa de papai, hoje só ele frequenta a igreja.
Nas noites em família, ele fala que os tempos mu-
daram. Já não se faz mulher e filhos como antes. As
mulheres ouviam seus maridos, os filhos obedeciam
com um olhar. Hoje as mulheres querem ser maiores
do que os homens, falar mais alto, saber de tudo, e
não dão conta de nada. Nessas noites, Caio chega
em casa e diz que não concorda com a visão do pa-
pai. Analiso em silêncio, mais de vinte seis anos se
passaram, e o tempo de papai continua o mesmo.
Só que agora a mulher não trabalha na roça, mas em
outro emprego. Continua cuidando da casa, do fi-
lho, do marido, das demandas dos familiares e dos
amigos. A mulher continua cuidando de tudo. For-
mando pessoas. Ensinando marido e filhos. E nada
por elas. Porque se o fizer, hoje serão egoístas.
A família de Caio é diferente da minha. Eles não
criticam os seus. Mas não alivia para aqueles que
não fazem parte. Brancos a ponto de ver as veias
esverdeadas através da pele. Eles sentam ao redor
da mesa. Comem bolo de fubá e tomando café. Se
atualizam sobre a vida alheia no facebook. Se a
foto da Camélia saiu com um meio sorriso, talvez
seja a depressão que a assola. Se o vestido justo da
Benedita está no meio da coxa, foi porque quis se
divorciar e curtir a vida. Eu, no meio das duas fa-
mílias, querendo uma oportunidade de achar um
lugar para respirar e cessar meus pensamentos não
compartilhados.
Muitas vezes, a família de Caio fica me olhando.
Seguindo cada um dos meus movimentos. Sinto
seus olhos grudados em minhas costas. Dá impres-
são de que esperam algo acontecer. Sempre que
Caio chegava no mesmo ambiente que eu, devido
aos seus olhares, cheguei a cogitar que eles estavam
esperando que meu relacionamento não desse cer-
to, porque, com base nas falas da minha sogra —
“Caio era louco pela primeira esposa”, “eu a considerava
como uma filha”; “antes de ir embora para Paris, veio
ver como Caio estava” —, ela sempre esperava uma
resposta. Nada saia da minha boca. Porque nada
se tinha para falar. No começo do primeiro ano da
empresa, Caio estava casado com Joyce, ambos ad-
ministravam a empresa juntos. Depois do divórcio,
ele ficou solteiro por um ano. E cheio de dívidas
que ela havia deixado. Até que nos conhecemos e
nos casamos rapidamente.

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Pouco antes do nosso casamento, conversamos
onde moraríamos. Como a empresa dele estava no
centro de Ponta Verde em Maceió, decidi largar
meu emprego de caixa em uma loja de móveis e
eletrodomésticos e me mudei para os fundos da
empresa. As regiões de Maceió que os turistas mais
frequentavam eram diferentes da favela onde eu
morava. As pessoas sabiam recepcionar os visitan-
tes. Por ser cidade turística, faziam questão de ser
gentis, educados e prestativos. Deixavam tudo lim-
po, eram educados no trânsito.

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Seu ombro toca no meu, ao desviar de mim para
ir ao quarto. No caminho, diz que vai tomar café
na casa da sua mãe. Seu tom de voz me avisa que
está chateado. Eu sei o motivo. A recusa do sexo
tem suas consequências. Sigo para a cozinha e pas-
so margarina no pão de azeitona. Tinha levado o
final da tarde de domingo para fazer o pão e co-
mer hoje junto com ele hoje de manhã. Mas, Caio
não sentiria o sabor. Depois que aprecio a textura
do pão. Jogo os dois pedaços que sobrou na lata
de lixo. Sem remorso. Não lembro dos famintos. Só
lembro de Caio.
Com dois anos de casados, tentamos ter um fi-
lho. Não foi por um desejo meu. E por sorte não
conseguimos. Isso causou uma rachadura. Mais
para ele do que para mim. Eu não tinha tantas ex-
pectativas com relação à maternidade e cheguei a
ficar feliz por não ter conseguido engravidar. Me
achava jovem. E não conseguia me ver criando
uma criança.
Quando cogitei não tentarmos mais. Nossos di-
álogos começaram a diminuir. Cheguei a falar para
ele que esperasse a conclusão da minha faculdade,
para tentarmos novamente, com a ideia de mo-
tivá-lo a conversar com mais frequência comigo.
Quando terminei a graduação de Administração,
pedi um tempo para concluir a pós-graduação e o
estágio. Ele não aceitou. Então, parei com o anti-
concepcional. Mas, prestava bem atenção no meu
período fértil para inventar desculpas e evitar ter
relação sexual.
A campainha toca. Pela câmera vejo o uniforme
do carteiro. Não ofereço nenhum sorriso, repasso
meu mau humor a ele, porque não sei se são meus
livros ou se são os potes de café de Caio. Assino
e sigo para dentro de casa, pelo corredor ao lado
da empresa. Meu horário de trabalho está próximo.
Entro as nove na segunda-feira, sem hora para sair.
Abro a caixa, e os envelopes ficam sobre o balcão
de mogno. Na caixa da Amazon, tem os livros que
comprei uma semana antes. Penso que poderia
ter mostrado os dentes para o carteiro. Fui reativa
mais uma vez ao distanciamento de Caio. Os meus
olhos se encontram com Mulheres que correm com
os lobos, em seguida com Quarto de despejo.
Quero sentar e colocar uma xícara de café para ler
qualquer um deles. E a vontade passa quando vejo a

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hora. Eu não estava tão mal humorada. Os últimos
dias estão se revelando uma nova versão insuportável.
Sempre que eu dizia que não estava a fim de
fazer sexo. Caio passava o dia sem falar comigo.
Como um castigo. Punição, por eu ter negado a
única coisa que lhe daria prazer e o único meio dele
tornar-se pai.
Depois que voltamos da consulta com a gineco-
logista, aos dois anos de casados, percebi que de
fato não queria ser mãe naquele momento. Um
filho me deixaria refém, mais do que já era. Seria
mais uma boca para dar conta de alimentar. Se-
ria obrigada arrumar um teto ou ficar neste até a
criança não depender de mim. Quem daria empre-
go para uma mãe? Se eu tomasse a decisão de me
separar de Caio? Como um salário-mínimo susten-
taria uma criança? Pagando o aluguel e a comida?
Eu não queria um filho. Esses pensamentos vinham
quando ele me procurava. O desejo não vinha. E
não era por causa do físico. Ele ainda continuava
com o corpo bem definido pelas horas de academia.
Quando saíamos, nossos amigos não deixavam
o assunto da maternidade morrer: “Vocês não pre-
tendem engravidar, não?”; “Já estão com seis anos de
casados”; “Precisam arrumar um herdeiro”; “Filhos
traz muitas alegrias, benção e a vida faz mais sentindo
com eles”; “Não esqueça, a juventude acaba rápido, de-
pois dos trinta, tudo fica mais difícil”; “Se você não der
fruto, não será bem-vinda no reino de Deus”. Aquilo

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era como riscar o fósforo e jogar em Caio, que pa-
recia a própria gasolina.
Nesses dias, quando chegávamos em casa, ele
caminhava de um lado para o outro, falando com a
voz firme que não precisava ter ouvido aquilo dos
amigos, se eu tivesse dado um filho a ele. Nada que
eu argumentasse era o suficiente para acalmá-lo.
Sua chateação se estendia até no horário de dormir.
Quando sua mão quente e macia deslizava pelo
meu corpo calmamente, agarrava meu seio de leve
e com a voz bem rouca, me pedia desculpas pela
pressão e se poderíamos tentar mais uma vez. Sem
dizer sim ou não, apenas erguia o baby-doll, retira-
va a calcinha e sentia ele se ajeitar dentro de mim.
Quando terminava, me abraçava por trás e sussur-
rava “esse vai dar certo”. Fechava meus olhos. Res-
pirava fundo. E meu último pensamento antes de
dormir era “Tomara que esse não dê certo”.

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As notas fiscais se acumulam à medida que os
entregadores colocam as caixas de mercadorias
no chão próximo à porta do meu escritório. Tônia
confere item por item, enquanto conversa com um
fornecedor, para entender por que tinha vindo du-
zentas presilhas, se eu havia pedido cem unidades.
Caio logo entra, desviando das caixas e dando sinal
que quer falar. Tiro por alguns segundos o telefone
do ouvido para escutá-lo.
— Almoço hoje na churrascaria do Bento. — Dou
sinal que estava tudo bem e volto para a ligação.
Nossa mesa tinha dois mojitos pela metade, um
vaso no centro da mesa com algumas flores, uma
cesta com guardanapo de papel e palitos de den-
tes envolvidos em embalagens individuais. Ele en-
rola um dos meus cachos no dedo, enquanto fala
com Romero sobre as novidades em São Paulo.
Na presença do amigo, nem parece estar chateado
comigo. Que mal tinha olhado no meu rosto pela
manhã. Sua voz se mistura com as músicas serta-
nejas. O ambiente está com várias mesas vazias. É
normal em uma segunda-feira. O garçom vem ao
longe com um espeto grande de carne, com a pon-
ta apoiada em um prato de inox. Caminha com
firmeza demonstrando ter experiência com aque-
les utensílios.
— Senhor, aceita contra filé? — pergunta o gar-
çom com simpatia e um sorriso nos lábios. Caio
apenas balança a cabeça que sim. — Mal passado
ou ao ponto? — Mostra as duas partes, enquanto
esperava Caio se decidir.
— Mal passado — responde, molhando os lábios
secos com a língua. Ao seguir o seu olhar, quando
vi o sangue daquela carne escorrendo e pingando
no prato, meu estômago embrulha. Engulo, o líqui-
do que veio até a garganta. Desvio o olhar da carne,
mas o cheiro que segundos antes eu não sentia, en-
tra pelas narinas e mais uma vez meu estômago se
revira. Levanto-me rápido e corro para o banheiro.
Assim que meu cérebro vê a pia me faz jogar com
toda a força o pão de azeitona, café com leite e a
bolacha de água e sal.
O único pensamento que me vem à mente, en-
quanto limpo o chão, a pia e meu rosto, é “grávida” a
mão vai direto na barriga “Meu Deus que viagem. Não
posso estar grávida. Não estou”. Repito várias vezes.
Sentada ao lado dele, acompanho seus movimen-
tos. Ele fala com a boca cheia ao meu lado, algo que

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eu não compreendo. Aquilo sempre me incomo-
dava, mas naquele momento não. Vou até o bufê,
pego algumas saladas, maionese e uma panqueca
de frango. Volto para a mesa e ele devora a carne.
Romero acompanha com o olhar, cada movimento
meu, voltando a comer. A cada momento que pas-
sa um garçom oferecendo algum tipo de carne, eu
tranco a respiração e desvio o olhar. Depois de um
bom tempo, termino de comer. Meu estômago está
sensível. Nos despedimos de Romero.
Nem sempre fazíamos isso. Nos encontrávamos
na churrascaria do Bento apenas quando Caio que-
ria que Romero olhasse as novidades do mercado
para ele.
Dentro do carro, Caio tamborila os dedos no vo-
lante no ritmo da música Eu não iria do Gustavo
Lima, que toca no rádio. Às vezes, ele tira uma mão
do volante e percorre pela minha coxa, por cima
do macacão. Eu me sinto tão irritada. Quero tirar a
mão dele e empurrar para longe.
Em casa, depois de ter ficado mais cinco horas
na loja, ele me procura após o banho. Quer tentar
mais uma vez. Recuso, digo que a comida do res-
taurante havia me feito mal. Contrariado, aceita e
vai ler Casais inteligentes enriquecem juntos, do autor
Gustavo Cerbasi.
Fico na cama, rolando de um lado para o outro.
A mente vazia, sem saber o que pensar. Não fui ao
escritório para planejar o dia seguinte. Horas de-
pois, ele volta para a cama e me acomoda em seu

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peito. Começo a alisar o meu couro cabeludo, com a
ponta dos dedos. Eu não quero dormir. Mas, meus
olhos se reviram. Não aguento mais prolongar essa
agonia e me entrego ao sono profundo.

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Trinta dias passam rápido. Meu sobrenome não
é mais Bertolini, mas sim procrastinação. Minha
agenda não sente o peso da minha mão e muito
menos recebe a tinta da caneta azul bic. Eu acor-
do tarde. Como alguma fruta. Sigo para a empresa.
Fico irritada por tudo. Ninguém pode me chamar
ou pedir para eu fazer determinada tarefa, que saio
batendo os pés com força no chão.
Volto para fazer o almoço. Não consigo comer.
Passo o resto da tarde dormindo. Pedia para Caio ir
ao mercado comprar calabresa, e sempre acordo na
madrugada para fritá-las. A casa fica com cheiro de
fritura que faz meu estômago embrulhar, ao abrir a
porta do quarto.
Chego a escutar Caio falar para os colaborado-
res que eu estou estranha. Que me levará ao médi-
co. Porque está ficando insustentável ver a minha
nova rotina. Acha que estou depressiva. Sem falar
da minha fisionomia que está um desastre. Olhos
fundos. Bochechas ressaltadas. Pele com aspecto
ressecado. Unhas com tamanhos diferentes. Cabelo
não tinha contato com a água, fazia alguns dias. E
quando tem, fico aborrecida, falo que vou alisar ou
cortá-lo bem curto. Porque dá trabalho. Meus pés
ficam doloridos a maioria do tempo, e meu rosto
sempre tem uma marca de amassado por ficar ho-
ras dormindo.
As matérias da pós-graduação se acumulam.
Notificações no e-mail passam de cem. Não tenho
mais disposição para trabalhar no escritório e eti-
quetar mercadoria. O meu cheiro de suor seco só
serve para me lembrar que faz horas que meu cor-
po não recebe água e sabonete.
Os dias, como hoje, são longos e as noites curtas.
Depois das dez horas, minha vida noturna ganha
vida própria. Levanto, frito calabresa, sento no sofá
em frente à televisão, procuro por “irmãos a obra”,
assisto três a quatro reformas de casas, e fico emo-
cionada quando uma parede ou janela caia no chão
na hora da demolição. Rio muito, quando alguma
parte da casa dá errado porque será necessário o
cliente dar mais dinheiro. É bizarro o quanto minha
barriga e mandíbula doem de tanto rir. Depois do
riso, lembro de como tinha sido o meu dia. Como
nada mais faz sentido. Minha vida está virada de
cabeça para baixo.
Já passava das dez da manhã, Ivete entra pela
porta da sala sem avisar. Tiro os olhos da minha fa-

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tia de bolo de rolo, com recheio de goiabada. Per-
gunta se estou bem. Resmungo que sim. Ela senta
na poltrona da frente. Pigarreia para chamar minha
atenção para seu rosto. Ivete começa dizendo baixo.
Tenho que parar de mastigar para conseguir ouvi-la.
— Estou vendo que está diferente. Você apresen-
tou os mesmos sintomas que eu, quando fiquei grá-
vida do Chico. Eu sei que não quer ter filho — ela
dá uma pausa.
— Você já tinha me falado. Mas acho que está
grávida e pode ser que esteja anêmica. — O am-
biente fica silencioso. Parece grande demais para
duas pessoas. Talvez se eu não tivesse tanta aversão
à palavra grávida, não sentiria a poltrona ficando
pequena. A mesa de centro grande demais. Ou eu
não teria perdido os movimentos do corpo. Minhas
cordas vocais não estão funcionando agora.
A voz de Caio cai sobre mim como um balde de
água fria — Grávida? — Ivete se apressa em dizer
que é apenas uma suspeita dela. Que tenho que fa-
zer exame de sangue primeiro. — Eu sinto que ela
está grávida. Vamos ao laboratório agora mesmo
— Caio disse com empolgação. Enquanto, Caio ia
para o quarto se arrumar. Fico olhando para Ivete.
A mente vazia. Ela move os lábios em um pedido
de desculpas. Os meus lábios ficam cerrados. Meio
segundo parece horas para ela se virar e voltar para
dentro da empresa.

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